A Confissão de Lúcio

Sabia que?

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O movimento modernista europeu foi marcante no modo como influenciou e transformou as conceções artísticas e estéticas em Portugal. Assim, será interessante conhecer a obra dos seguintes artistas: Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) Cristo Vermelho, de Amadeo de Souza-Cardoso Amadeo de Souza-Cardoso nasceu a 14 de novembro, em Amarante (no Norte de Portugal). Após ter terminado o liceu foi para  Paris, onde contactou com pintores e arquitetos. Em 1909,  conheceu o pintor Amadeo Modigliani,  com quem conviveu e aprofundou os conhecimentos sobre técnicas artísticas. No ano seguinte, em Bruxelas, tomou contacto com a pintura dos primitivos flamengos.Em 1914, regressou a Portugal onde casou com Lúcia Pecetto  e passou a viver em Manhufe (perto de Amarante). Nesta fase, estabeleceu contactos com os poetas e artistas modernistas portugueses.Ao longo da sua vida, apresentou as suas obras em várias Exposições: nos Estados Unidos da América (Nova Iorque), na Alemanha (Berlim), em França (Paris) e em Portugal (no Porto).Para saber mais sobre: As obras primas deste pintor A vida e obra de Amadeo Sousa Cardoso José  Almada Negreiros (1893- 1970) Auto-retrato de Almada Negreiros, com alguns amigos na Brasileira do Chiado (1925) "Auto-retrato" (1943) de Almada Negreiro José Almada Negreiros foi escritor e artista plástico. Colaborou no movimento da revista Orpheu (1915) e no Portugal Futurista (1917). Na literatura cultivou a poesia, a ficção, o ensaio e o drama. Viveu em Paris de 1919 a 1920 e em Espanha de 1927 a 1932 onde desenvolveu múltiplas atividades artísticas como ilustrador, pintor, cenógrafo e coreógrafo. Revelou-se como uma das figuras mais polémicas e irreverentes do Modernismo. Participou em exposições de pintura desde 1911 e foi membro da Academia Nacional das Belas Artes. Para saber mais sobre: Almada Negreiros A vida e obra de Almada Negreiros O movimento modernista português [Recuperar Links Base Lit. Pt]

Quem escreveu

Quem escreveu
Mário de Sá Carneiro (1890-1916)Nasceu em Lisboa e suicidou-se em Paris. Foi um dos principais animadores da publicação modernista intitulada Orpheu.  Conviveu  com Fernando Pessoa e, ao nível das artes plásticas e pintura, com Santa-Rita Pintor. Escreveu poesia e prosa e a sua obra apresenta elementos herdados do simbolismo e decadentismo do final do século XIX. A Confissão de Lúcio mostra como  as diferentes imagens do «fogo» correspondem às diferentes expressões de dizer a Arte e a Vida. Neste sentido, o fogo condensa  simbolicamente a novidade defendida pela estrangeira a voluptuosidade é uma arte e a vida é voluptuosa. Nesta novela, tal  como noutras obras de Sá-Carneiro, a imagem do fogo aparece sob múltiplas variantes de alucinação, de quase  loucura, do excesso de sofrimento; mas também corresponde à chama do amor espiritual e erótico. Com efeito, o fogo está associado à ideia da rápida transformação do material ao (quase)  imaterial.Neste contexto, importa  lembrar o ensaio de David Mourão-Ferreira, que fixou a figura poética de Mário de Sá-Carneiro ao mito de Ícaro, realçando a imagem do poeta como o herói que sobe ao céu para desafiar perigosamente o sol, e que, quando se aproxima do fogo, cai morto. David Mourão-Ferreira, Ícaro e Dédalo Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, in Hospital das Letras, Lisboa, IN-CM, 1981.Ver: http://www.instituto-camoes.ptbasesliteraturadavidlit.htm Obras Principais de Mário de Sá-CarneiroPoesia: Dispersão,1914; Indícios de Oiro, 1937; Poesias, 1946.Ficção: Princípio, 1912; A Confissão de Lúcio, 1914; Céu em Fogo, 1915. Consultar  no sítio do Instituto Camões Mário de Sá-Carneiro Modernismo Percursos da Literatura Portuguesa Consultar outros sítios da Internet Poemas Modernismo [Recuperar Links da Base de Lit. Portuguesa]

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A António Ponce de Leão…assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendobem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…Fernando PessoaNa Floresta do AlheamentoCumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonho:  nada podendo já esperar e coisa alguma desejando - eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta.E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: « Mas por que não fez a sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou a sua inocência ao tribunal?»,  a esses responderei: - A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um embusteiro ou por um doido… Demais, devo confessar, após os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente. Era o esquecimento, a tranquilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro - um termo para a minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença.De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem claro… Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente… E todas as simpatias estavam do meu lado.O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um «crime passional». Cherchez la femme. Depois, a vítima um poeta - um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a minha pena foi curta.Ah! foi bem curta - sobretudo para mim… Esses dez anos esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou - apenas - os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz - pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.Mas ponhamos termos aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer de uma grande soma de factos. E são apenas fatos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca experimentei. Endoideceria, seguramente.Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverosímil.A minha confissão é um mero documento. Mário de Sá Carneiro, A Confissão de Lúcio, Publicações Europa-América, Lisboa, 2ª. edição, 1989. Ao Leitor:Acabou de ler a introdução à obra  de Mário de Sá Carneiro - A Confissão de Lúcio. É um início estranho e misterioso. Propomos que acompanhe a leitura orientada do primeiro capítulo que conta uma história que  pode ser importante para a compreensão do crime (?) que Lúcio não cometeu.(ou cometeu?) Leitura Orientada

Leitura Orientada

Leitura Orientada
«Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido - sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.» p. 63. Ao leitor:Contudo, Gervásio Vila-Nova  era uma figura misteriosa e sedutora. Gervásio conhecia o mundo artístico e, um dia,  apresentou Lúcio a uma mulher americana  muito fascinante mas estranha. (...) No dia seguinte - uma esplêndida tarde de inverno, tépida, cheia de sol e céu azul -, tomando um fiacre, lá nos dirigimos ao grande restaurante. Sentamo-nos; mandou-se vir chá… Dez minutos não tinham decorrido, quando Gervásio me tocava no braço. Um grupo de oito pessoas entrava no salão - três mulheres, cinco homens. Das mulheres, duas eram loiras, pequeninas, de pele de rosas e leite; de corpos harmoniosos, sensuais - idênticas a tantas inglesas adoráveis. Mas a outra, em verdade, era qualquer coisa de sonhadoramente, de misteriosamente belo. Uma criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio. Com efeito, mal a vi, a minha impressão foi de medo - de um medo semelhante ao que experimentamos em face do rosto de alguém que praticou uma acção enorme e monstruosa.Ela sentou-se sem ruído; mas logo, vendo-nos, correu estendendo as mãos para o escultor:- Meu caro, muito prazer em o encontrar… Falaram-me ontem muito bem de si… Um seu compatriota… um poeta… M. de Loureiro, julgo…Foi difícil adivinhar o apelido português entre a pronúncia mesclada.- Ah… Não o sabia em Paris - murmurou Gervásio.E para mim, depois de me haver apresentado à estrangeira:- Você conhece? Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas…Que nunca lhe falara, que apenas o conhecia de vista e, sobretudo, que admirava intensamente a sua obra. p.65 Ao leitor:Depois, sentaram-se e conversaram sobre arte. (...) a conversa deslizou, não sei como, para a voluptuosidade na arte.E então a americana bizarra logo protestou:- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte - e, talvez, a mais bela de todas. p.66 Ao leitor:Qual é o significado desta expressão: a voluptuosidade era uma arte? Vamos continuar a ler... Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia - não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas - tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores - e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual - mas de desejos espiritualizados de beleza - ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!  p. 66 Ao leitor:Passado um mês Lúcio foi convidado a  ir a uma festa na casa da americana. Encontrou-se com Gervásio que lhe apresentou o conhecido poeta que Lúcio tanto admirava: Ricardo Loureiro. A americana recebeu-os e tudo era sumptuoso e deslumbrante - a sala, as luzes e até as cores da sua túnica  enlouqueciam. E antes da meia-noite - a americana disse: Depois da ceia, é o espectáculo - o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro!  p. 72 Ao leitor:Mas como é que terá  terminado esta  festa misteriosa? Porém nada valeu em face da última visão:Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula - e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua - ela surgiu, a mulher fulva…E começou dançando…Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, húmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara - toda a harmonia esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se…Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro…Quimérico e nu, o seu corpo subtilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados - num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo - terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…Vencedora, tudo foi lume sobre ela…E, outra vez desvendada - esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro - ruivo meteoro - ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.Então foi apoteose:Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…… Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas - tranquilas, mortas também… p.75 Ao leitor:Este episódio fantástico acabou.... Contudo, adivinha-se um novo  mistério na história. Quem será este poeta das Brasas que Lúcio conheceu momentos antes de viver uma experiência alucinante em casa da americana? ..Sabemos, na introdução, que esta personagem desempenhou um papel importante na vida de Lúcio ...e que houve um crime...mas que crime?Convidamos o leitor a ler a versão integral deste testemunho «factual» para tentar desvendar o mistério. Versão Completa do Conto: A Confissão de Lúcio [Encontrar Link para versão completa??? existe legal?]