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Primeiro momento

Era o governador do castelo de Loulé um homem dotado do dom da magia. Depois dos duros combates feridos em frente do castelo, reconheceu que a vila seria brevemente invadida pelos soldados de D. Paio. Na penúltima noite, quando todos descansavam, abriu uma das portas do castelo, e sem que o pressentissem, saiu acompanhado de suas filhas e encaminhou-se em direcção de uma fonte, a nascente da vila, aberta junto de um viçoso canavial.
Alguns cristãos, moradores em um aduar próximo, conheceram o governador e suas filhas; presenciaram então o governador aproximar-se da fonte e entoar umas preces tristes e monótonas, um pouco abafadas pelos soluços das três filhas. A música do canto era pausada, piedosa e de uma doçura angelical. Em seguida afastou-se ele da fonte, sozinho, com a cabeça inclinada sobre o peito, extremamente comovido. Na noite seguinte desamparou o castelo, acompanhado de toda a sua gente, e foram todos embarcar em Quarteira para Tânger, na doce esperança de que voltariam brevemente, acompanhados de grandes forças armadas, a retomar o castelo e a vila.

*Loulé – vila no Algarve (região no sul de Portugal).
*Aduar – do árabe ad-duuar, «grupo de tendas da população dos campos, formando uma povoação temporária».
*Quarteira - vila no Algarve (região no sul de Portugal).
*Tânger – cidade do norte de África.



Segundo momento
Ilustração de Maria Keil
Ilustração de Maria Keil

Em certo dia chegaram a Tânger alguns cristãos, cativos dos mouros, e entre estes um carpinteiro de Loulé. Vendidos em praça pública, foi o louletano adjudicado ao governador.
Ao primeiro relancear de olhos conheceu o artista o velho governador; fingiu porém não o conhecer. Em certo dia aproximou-se o governador do carpinteiro e pediu-lhe notícias de Loulé.
- Quando dali saí, falava-se muito do encantamento das filhas do governador do castelo, respondeu o carpinteiro.
- Estás resolvido a prestar-me um grande serviço?
- O meu amo e senhor manda e eu obedeço.
- Preciso que vás ao Algarve desencantar minhas filhas.
- Por terra não sei o caminho, por mar nunca aprendi a guiar uma almadia.
- Acompanha-me ao meu quarto.
O carpinteiro acompanhou o amo, e viu no quarto sobre um par de alforges, e no meio do quarto um alguidar cheio de água.
O governador fechou por dentro a porta, olhou fixamente o artista, e disse-lhe:
- Antes de tudo quero que jures pelo teu Nazareno cumprir à risca tudo que te ordenar.
- Juro - respondeu o carpinteiro resolutamente.
- Então governador tirou de uma caixa três pães e disse:
- Em cada um destes pães está escrito o nome de cada uma das minhas filhas. Na véspera de S. João, à meia-noite, abeira-te da fonte onde estão encantadas, lança-lhe dentro um destes pães e dize: Zara; depois este e dize: Lídia; e o terceiro: Cassima. Ditas estas palavras retira-te para tua casa.
- Daqui ao Algarve deve ser muito longe.
- Vês aquele alguidar cheio de água?
- Vejo.
- Coloca-te daquele lado do alguidar e dá um salto para trás. Se o saltares de um pulo, encontrar-te-ás imediatamente às portas da tua vila; se o não saltares cairás afogado no mar.
- Estou pronto.
- Andarei pelo ar muito tempo? - perguntou o carpinteiro.
- Em breve o saberás.
O artista aproximou-se mais do alguidar e segurou com energia os alforges e os pães.
- Salta! -ordenou o governador numa voz cava e acentuada.
O carpinteiro deu um salto e desapareceu.

*Almadia – do ár. Al-ma`adiâ  - os burros que acompanham uma viagem (uma «jangada»).
*Alforges – do ár. Al-khurj, - «sacola ou saco de viagem».
*Alguidar – do ár. Al-giDar - grande recipiente.



Terceiro momento

E entretanto o carpinteiro atravessava como uma águia os ares e saltava os mares, chegando às portas da vila, ao romper da manhã.
Sentou-se a tomar fôlego, esperando que fossem abertas as portas.
Rompeu o sol no horizonte! Como é belo o nascer do sol na nossa província!
Encaminhou-se para uma casa e bateu à porta. Apareceu-lhe a mulher e ambos se abraçaram.
O carpinteiro, porém, depois de abraçar a mulher e beijar os filhos, subiu ao sótão e foi guardar os três pães dentro de uma arca usada, onde estavam as velhas alfaias, que de nada serviam.

Ilustração de Maria Keil
Ilustração de Maria Keil

Nas tardes dos domingos e dias santificados, saía o carpinteiro da vila em passeio à fonte e ali se conservava, horas inteiras, com os olhos fixos na água da fonte, esperando, a cada momento, ver lá no fundo alguma das mouras encantadas. Quando começava a escurecer, voltava para casa, e ia observar os três pães escondidos na arca.
Tantas vezes abriu a arca que a esposa, na ausência do marido, foi ver o que a arca continha. Viu os três pães e ficou surpreendida. Conteriam os pães algum dinheiro? Ou algum segredo do esposo apaixonado? Resolveu pedir informações ao marido.
- Não lhes toques - respondeu o marido visivelmente incomodado, quando a mulher o interrogou.
Esta resposta simples despertou a desconfiança na mulher. Em uma tarde de domingo, na ocasião em que o marido, debruçado na fonte, espreitava as mouras, subiu a mulher ao sótão, abriu a arca e deu, com uma faca, um grande golpe em um dos pães. Imediatamente começou a sair sangue pela cutilada. Amedrontada, a mulher curiosa escondeu o pão entre os outros e fechou a arca à pressa.
Nesse mesmo momento o marido, debruçado na fonte, ouviu distintamente um enorme grito saído do interior e da parte mais funda das águas. Sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e não soube explicar aquele fenómeno. A mulher nada contou ao marido.

Ilustração de Maria Keil
Ilustração de Maria Keil

Chegou  a noite da véspera de S. João (noite igualmente festejada por mouros e cristãos). O carpinteiro sentou-se ao lado da fonte e esperou que desse a meia-noite. Logo que deu a hora marcada, tirou dos alforges um pão, lançou-o dentro da fonte, e disse em voz alta:
- Zara!
E apareceu um relâmpago.
- Lídia! - exclamou o carpinteiro, no mesmo tom de voz, lançando o pão à fonte.
Repetiu-se o mesmo fenómeno.
- Cassima! - disse no mesmo tom.
Soou um grito, repassado de dor, e as águas permaneceram quietas.
- Cassima! - repetiu o artista, num tom de voz forte e enérgico.
Então o carpinteiro viu uma formosíssima mulher.
- O que significa isto? - perguntou o carpinteiro.
- Significa que estou condenada a passar séculos e séculos nesta fonte - respondeu a moura, soluçando.
- E de quem é a culpa?
- De tua mulher, que me cortou de um golpe a perna direita.
- Minha mulher... Naturalmente não teve a consciência do mal que fez.
- Nem a culpo.

*Alfaias - do ár. Al-haiâ de Al-hajâ - «roupa, objectos»



Quarto momento

Esperou o carpinteiro durante muitas semanas a retribuição que lhe fora prometida pelo pai das mouras.
Um dia, na praça sentiu-se arremessado ao ar, como se fora arrastado num tufão, e foi cair, sem perigo, na praça de Tânger. Julgou-se perdido quando se viu agarrado por diversos mouros, que o conheciam e o levaram à presença do velho governador.
O velho governador, logo que viu o carpinteiro, empalideceu horrorosamente! Despediu os mouros e ficou só com o artista.
- O que fizeste da minha querida Cassima, infeliz?
- Não fui culpado, senhor! - respondeu o carpinteiro.
- Bem sei, bem sei ! Os fados foram-lhe contrários. Tinha de ser, tudo estava escrito.
O governador entrou como em êxtase e disse profeticamente:
- Enquanto Al-Faghar existir, nele palpitará um mundo de corações sarracenos.
Disse estas palavras, e exclamou:
- Sai da minha presença!
- Para onde ir, senhor?
- Tens razão. Tenho contigo um compromisso, e não será um velho crente que faltará a sua promessa.

Ilustração de Maria Keil
Ilustração de Maria Keil

Nessa noite, por ordem do governador, embarcou o nosso carpinteiro em um barco veneziano, que o levou directamente a Faro. Conta-se que foram tão importantes as riquezas que o pai das mouras lhe oferecera que ele chegara a comprar todo aquele terreno ocupado pela fonte e hortas circunvizinhas.
Seja o que for, o que é certo e se acha confirmado pela tradição constante de centenares de anos, é que a moura Cassima ainda hoje, nas noites de Inverno, ou nas amenas de Verão, pranteia tristemente o seu encantamento; e diz-se também que são muitas as encantadas por aqueles arredores.

*AI-Faghar - topónimo de Algarve.

(Ataíde Oliveira)

(adaptado)