Cartografia náutica portuguesa

Cartografia náutica portuguesa

Armando Cortesão definiu quatro grandes marcos na história da ciência náutica e da cartografia: o desenvolvimento da carta‑portulano, no século XIII, no Mediterrâneo; a invenção da navegação astronómica e consequente introdução da escala das latitudes nas cartas, em finais do século XV; a descoberta da loxodrómia e a sua representação por uma linha recta na carta desenhada segundo a projecção de Mercator; e por último o aperfeiçoamento do cronómetro, pelo inglês Harrisson, em finais do século XVIII, que permitiu a determinação da longitude no mar. Entre estes passos, o segundo é quase exclusivamente português, enquanto que em relação à projecção de Mercator podemos afirmar que ela deve muito aos estudos realizados pelo grande matemático Pedro Nunes, que descobriu o conceito de loxodrómia e cuja obra seria certamente conhecida de Mercator, que nela se teria inspirado para conceber a projecção que celebrizou o seu nome.

A representação cartográfica dos lugares, que iam sendo descobertos pelos navegadores dos séculos XV e XVI, foi fundamental para o estabelecimento de viagens regulares para esses mesmos locais. Só com um conhecimento mais ou menos rigoroso das condições de navegação se pode realizar esta em segurança. A cartografia foi, entre diversos outros factores, um dos elementos fundamentais para o sucesso dos Descobrimentos portugueses.

Herdeira das escolas cartográficas do Mediterrâneo, centro a partir do qual se desenvolveu a cartografia na Idade Média, a cartografia portuguesa teria recebido essa influência a partir da vinda de Mestre Jaime de Maiorca, a pedido do Infante D. Henrique, durante o primeiro quartel do século XV. No entanto, deste século são conhecidos poucos exemplares cartográficos de origem portuguesa, embora existam diversas referências nos textos da época que nos permitem deduzir que as cartas eram uma das ferramentas ao dispor dos homens do mar de então para garantirem uma navegação mais segura.

Se em relação ao século XV os dados disponíveis sobre a cartografia produzida em Portugal são escassos, a situação relativa ao século seguinte é completamente diferente. São conhecidas centenas de cartas, reunidas por Avelino Teixeira da Mota e Armando Cortesão na obra Portugaliae Monumenta Cartographica. Está identificada a maioria dos autores destas obras, embora ainda existam algumas desenhas de cartas sobre as quais não foi possível descobrir a identidade do cartógrafo que a realizou.

Sendo a cartografia uma arte, no sentido medieval de trabalho de artesão, não admira que as técnicas utilizadas no desenho e reprodução fossem transmitidas de pais para filhos. Por esta razão encontramos diversas famílias de cartógrafos como a família Reinel, a família Homem ou a família Teixeira.

Podemos considerar a existência de duas grandes vertentes na cartografia daquela época. Por um lado, uma cartografia de características eminentemente práticas, destinada a uma utilização a bordo dos navios que, todos os anos, em largo número, viajavam nas diversas carreiras praticadas pelos Portugueses. Estas cartas teriam na sua grande maioria destruídas pela sua utilização normal a bordo desses navios. O outro tipo de cartas que seriam produzidas teria um fim diferente. Eram destinadas a uma utilização sumptuária e decorativa. Tratava‑se de autênticas obras de arte. São deste último género praticamente todas aquelas que chegaram até nós, uma vez que como não foram usadas a bordo e como eram consideradas preciosidades pelos seus detentores, foram devidamente conservadas, facto que impediu a sua destruição.

Uma análise atenta de todos os exemplares cartográficos portugueses conhecidos datados daqueles séculos permite‑nos conhecer alguns elementos sobre a evolução das técnicas de construção utilizadas e sobre o rigor da informação contida nas cartas. A técnica base de construção era a das cartas‑portulano, caracterizadas por terem uma “rede” de direcções irradiando a partir de determinados pontos da carta para que os seus utilizadores pudessem facilmente conhecer a direcção que unia quaisquer dois locais representados na carta. A posição de um navio no mar, em qualquer instante, pode ser conhecida se soubermos qual a direcção em que ele navegou e qual a distância percorrida desde uma posição anterior. Este método é conhecido entre os historiadores da náutica com de rumo e estima. Daí que fosse fundamental que as cartas possuíssem os elementos necessários para que os marinheiros conseguissem marcar essa direcção.

No entanto, com a progressão das navegações portuguesas, ao longo da costa africana, as distâncias percorridas no alto‑mar, sem avistar terra para rectificar a posição, foram sendo cada vez mais extensas. Os erros associados à determinação da direcção e da distância percorrida vão‑se acumulando ao longo do tempo. Assim, as posições obtidas recorrendo apenas ao rumo e estima eram afectadas por erros tanto maiores quanto maior fosse o intervalo de tempo decorrido para rectificação da posição. Os Portugueses resolveram este problema, ainda durante o século XV, adaptando técnicas astronómicas para uso a bordo dos navios, técnicas essas que permitiam um conhecimento rigoroso da latitude do navio. As cartas passaram a reflectir este avanço que se verificou a nível da Arte de Navegar, passando a conter uma escala apropriada para determinação da latitude dos diversos lugares nelas registados.

A introdução da escala das latitudes e a recolha sistemática de elementos “hidrográficos” para inserir nas cartas levou a um aumento do rigor da informação contida nas mesmas. A representação do mundo herdada da obra de Ptolomeu foi completamente ultrapassada. As concepções do grande sábio grego, baseadas em elementos que em muitos casos não tinham sido confirmados por observações práticas, foram substituídas por outras que resultavam da observação directa realizada pelos Portugueses que viajavam com uma frequência cada vez maior por quase todo o mundo.

Além da sua principal função que seria a marcação das posições dos navios no mar, as cartas teriam outro tipo de utilidade. Nelas eram representadas informações diversas, com intuitos decorativos ou com um interesse prático bastante acentuado. Serviam, por exemplo, como suporte para representação de imagens dos habitantes, da fauna e da flora das terras que iam sendo descobertas. Ou seja, as cartas eram uma das formas possíveis de representação do exótico, desses mundos novos, tão ao gosto do homem do Renascimento. Por outro lado, nas cartas eram inseridos muitos dos elementos que serviam para a condução da navegação, tais como representações gráficas ou tabelares dos regimentos e das regras práticas de que os pilotos se serviam para determinação de elementos de interesse náutico. Em muitas delas eram ainda representadas vistas de algumas regiões costeiras ou ainda informação de interesse político como é o caso dos elementos que atribuíam a posse de um determinado território a um dado reino europeu.

A cartografia portuguesa da época das grandes descobertas servia perfeitamente para as exigências das técnicas de navegar daquele tempo. No entanto, apresentavam duas grandes limitações que só posteriormente foram resolvidas, fora de Portugal. A primeira tem a ver com a existência duma escala de longitudes. As cartas portuguesas não apresentavam esta escala pelo simples facto de a determinação desta coordenada não ser possível naquele tempo. O problema apenas foi resolvido no século XVIII.

Quanto à segunda limitação prende‑se com a representação de uma superfície esférica num suporte plano. Uma vez que a Terra tem uma forma aproximadamente esférica a sua representação sem distorções apenas é possível sobre um globo. No século XVI esta foi uma das hipóteses consideradas pela cartografia. No entanto, o uso de globos apresenta duas grandes limitações. A primeira tem a ver com as dimensões. Como num globo se representa sempre a totalidade da superfície terrestre o seu tamanho teria que ser bastante grande para que fosse possível representar essa superfície com o detalhe suficiente para que o globo tivesse alguma utilidade, o que tornava impraticável o seu uso. Por outro lado, a medição ou o traçado de direcções ou distâncias sobre uma esfera, fundamental para o conhecimento da posição do navio, é bastante complexo, razão pela qual os globos nunca tiveram qualquer utilidade prática no mar.

Pedro Nunes identificou praticamente todas as limitações que as cartas daquela época apresentavam na representação da superfície terrestre. A ele se deve a noção de que a distância mais curta entre dois pontos da superfície terrestre é uma linha curva. Percebeu que a técnica utilizada para marcar direcções nas cartas implicava que os meridianos fossem paralelos entre si, quando na realidade eles convergem todos nos pólos. Compreendeu que devido a essa convergência uma linha recta representada numa carta, ou seja uma direcção que faça sempre o mesmo ângulo com todos os meridianos, não corresponde a uma recta sobre a superfície do globo mas sim a uma espiral que termina nos pólos. O resultado dos estudos de Pedro Nunes tiveram certamente influência no trabalho de Mercator que concebeu uma projecção que permitiu ultrapassar essas limitações das cartas daquele tempo.

António Costa Canas


Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de “Cartografia Portuguesa”, in Luís de Albuquerque [dir.], Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, pp. 213‑216.
CORTESÃO, Armando, História da Cartografia Portuguesa, 2 vols., Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1969‑1970.
MOTA, Avelino Teixeira da, “Cartografia e cartógrafos portugueses”, in Joel Serrão [dir.], Dicionário de História de Portugal, vol I, Porto, Livraria Ferreirinhas, [s.d.], pp. 500‑506.
MOTA, Avelino Teixeira da, CORTESÃO, Armando, Portugaliae Monumenta Cartographica, 6 vols, Lisboa, 1960.