Livros de Marinharia

Livros de Marinharia

«A designação de “Livros de Marinharia”, ligado a documentos de natureza náutica do período da expansão, não corresponde a nenhum termo da época, e usa-se apenas pela necessidade de classificar um conjunto de textos do século XVI (até princípios do XVII), que constituem compilações de regras de navegação, associadas a colecções de roteiros, cujo número e abrangência depende da própria actividade do piloto que manuseou o trabalho. E é interessante seguir a explicação de Fontoura da Costa, sobre o termo “marinharia”, porque isso nos permite entender melhor o papel que desempenharam estes escritos. Segundo a sua opinião, “Marinharia, Arte de navegar, Sciência náutica” são três estádios do saber sobre a navegação, que podem comparar-se à “adolescência, juventude e virilidade” do Ser Humano. Hoje, com melhor propriedade, diríamos infância, juventude e idade adulta, mas o que importa reter do paralelismo estabelecido é a ideia de que a navegação teve uma fase primeira dominada pelo praticismo, que se caracteriza pela aplicação de procedimentos (mais do que conhecimentos) concretos que serviam para conduzir um navio a bom porto. E esta fase decorreu até ao final do século XVI, entendendo eu que mesmo a navegação astronómica – indispensável ao domínio do Atlântico e do Índico – se consubstanciava num sistema de regras práticas, tão simplificadas quanto possível, que funcionavam mas que não eram perfeitamente compreendidas pela maioria dos pilotos.

Os “Livros de Marinharia” são, assim, uma espécie de cadernos de apontamentos e notas de carácter utilitário, reunidas pelo piloto ao longo da vida, de acordo com a sua própria aprendizagem e experiência. Têm, na sua origem, um carácter pessoal, pressupondo muitos saberes não expressos, e, por isso, não lhe encontramos coerência científica ou didáctica. A sua leitura deixa-nos a impressão de uma enorme insuficiência técnica, que só era superada pela perícia profissional adquirida durante as sucessivas viagens. De forma mais ou menos exaustiva, os que até nós chegaram, contêm “regimentos da altura” do sol e de outras estrelas (Polar, Cruzeiro do Sul, etc.), com as respectivas tabelas; regras para cálculo de marés, com as fórmulas de cálculo da idade da lua; um “regimento das léguas” apresentado de forma gráfica ou tabular; normas para aterragem (“demandar um porto”); e uma colecção de roteiros elaborados pelo compilador, ou copiados e passados de mão em mão, acrescentados com notas pessoais.

Conhecem-se oito exemplares de documentos náuticos deste tipo. São eles o Livro de Francisco Rodrigues (ci. 1512); João de Lisboa (até meados do século XVI); Manuel Álvares (ci.1535); Bernardo Fernandes (ci. 1548); André Pires (ci. 1552); Pero Vaz Fragoso (ci. 1566); anónimo (ci. 1573); e o de Gaspar Moreira (posterior a 1595). As datações efectuadas são muito imprecisas, baseando-se em parâmetros largos, e a própria atribuição do nome de um piloto a cada um deles não quer dizer que o mesmo tenha sido elaborado por essa pessoa (provavelmente, nenhum deles foi elaborado por uma só pessoa). A prática historiográfica recente foi atribuindo nomes aos documentos, facilitando a sua identificação, mas o critério resulta do facto desse nome aparecer como referência dentro do texto. Nalguns casos porque há um ou outro roteiro cuja autoria se conhece, mas noutros apenas porque se identificou um dos múltiplos textos.

Os “Livros de Marinharia” são, pois, a expressão de um conhecimento prático e pouco sistematizado da navegação – a infância da navegação oceânica – que, apesar de tudo, foi aquele com que os navios portugueses do século XVI desbravaram todo o Atlântico e Índico, alcançando o Extremo Oriente.


Luís Jorge Semedo de Matos

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Luís, O Livro de Marinharia de André Pires, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1963.

ALBUQUERQUE, Luís, O Livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso, Coimbra, Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1977.

COSTA, Fontoura da, A Marinharia dos Descobrimentos, 4ª Ed., Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1983.

REBELLO, Jacinto Ignacio de Brito, Livro de Marinharia, Tratado da Aguha de Marear de João de Lisboa, Lisboa, Imprensa de Libânio da Silva, 1903.