António Lobo Antunes
António Lobo Antunes (1942) foi a grande revelação do final da década de oitenta, com dois romances de grande êxito: Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que traçam, numa escrita desenvolta e de prodigiosos efeitos metafóricos, uma visão decetiva da guerra colonial e da geração que de forma contrafeita lhe deu corpo. De produção romanesca regular a partir de então, tem alcançado grande projeção internacional e mantém uma aguda consciência crítica do ambiente contemporâneo e da memória nacional do passado recente, com Auto dos Danados, 1985, ou Manual dos Inquisidores, 1996, ou mesmo do passado português mais glorioso, em gesto simultâneo de homenagem e de libelo acusatório e dolorido (As Naus, 1988).
Não são só os ratos, aliás, que moram connosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, melgas, traças, centopeias, aranhas, grilos, carunchos, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno almoço de meio grama de heroína da injecção da manhã.
Auto dos Danados
© Instituto Camões, 2001