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Serendipidade!
Há tempos, o Comandante Estácio dos Reis passeava-se por Nova Iorque e fazia horas, deambulando pelo Central Park. Lembrou-se de visitar o planetário Hayden, agora enquadrado numa magnífica obra de arquitectura moderna, com uma gigantesca esfera encaixada num cubo envidraçado. Estava aí uma exposição de instrumentos científicos do passado, entre os quais a reprodução de um quadrante com o nónio de Pedro Nunes. A legenda estava errada, pois chamava-lhe «compasso proporcional de Galileu», mas revelava tratar-se de uma cópia contemporânea de um instrumento situado no Museu de História da Ciência de Florença. Especialista na história da instrumentação científica, Estácio dos Reis percebeu encontrar-se perante algo de insólito. A reprodução parecia-se com um desenho apresentado por Tycho Brahe na «Astronomiae Instauratae Mechanica», publicada em 1598 e onde o astrónomo reproduzia um quadrante construído para as suas medições astronómicas, aplicando o princípio do nónio de Pedro Nunes. Mas Estácio dos Reis nunca tinha visto um nónio autêntico, um instrumento que tivesse realmente sido utilizado à época, com o objectivo de tornar mais precisas as medições angulares. E não o tinha visto pela simples razão de que nenhum especialista conhecia algum nónio autêntico. Julgava-se mesmo que os instrumentos graduados segundo o método de Pedro Nunes se tinham todos perdido. A referência dos historiadores era precisamente a gravura do livro de Tycho Brahe.
Foi uma sequência de acasos felizes. Um passeio descontraído pelo Central Park, uma decisão casual de visitar o planetário, o acaso de aí se encontrar de passagem uma exposição de instrumentos científicos, um erro na legenda, seguido da referência ao museu onde se encontrava o original - esta sucessão de casualidades levou o especialista português a descobrir o único exemplar de nónio hoje conhecido. «De todos os acasos felizes que até hoje me aconteceram», conclui o comandante, «este foi o de maior serendipidade!»
Estácio dos Reis está a utilizar uma palavra nova, que ainda não entrou nos nossos dicionários. Mas trata-se de uma palavra há muito existente na língua inglesa. Amorim da Costa, na sua obra «Introdução à História e à Filosofia das Ciências», de 1984, utilizava já esse termo em português, mas ele não é ainda muito conhecido entre nós. Ao contrário de muitas palavras cuja origem se perde na bruma dos tempos, a origem de «serendipidade» pode ser datada com precisão. Foi exactamente em 28 de Janeiro de 1754 que Sir Horace Walpole, um escritor inglês hoje conhecido sobretudo pela sua correspondência, propôs pela primeira vez essa palavra. Numa carta então escrita ao seu amigo Horace Mann, descreve a sorte que teve em encontrar uma pintura antiga: «Esta descoberta é quase daquele tipo a que chamarei serendipidade, uma palavra muito expressiva, a qual, como não tenho nada de melhor para lhe dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastante apalermado, chamado 'Os Três Príncipes de Serendip': enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer descobertas, por acidente e sagacidade, de coisas que não estavam a procurar... » Foi assim que, de uma ficção imaginada em Serendip, antigo nome de Ceilão, actual Sri Lanka, nasceu esta moderna palavra. Durante algum tempo, o vocábulo viveu na semiobscuridade. Recentemente, o seu uso passou a generalizar-se. Em língua inglesa há várias obras publicadas sobre a serendipidade científica, nomeadamente «The Stars and Serendipity», de Robert S. Richardson (Nova Iorque, Pantheon, 1971), e «Serendipity: Accidental Discoveries in Science», de Royston M. Roberts (Nova Iorque, Wiley, 1989). O termo tem-se generalizado e entrou de tal forma no vocabulário que há restaurantes e lojas com esse nome - espera-se que os clientes aí façam descobertas felizes. Para Umberto Eco, no entanto, o vocábulo é tema de «excursões em erudição», como confessa numa colecção de ensaios que publicou nos Estados Unidos com o título «Serendipities: Language and Lunacy» (Nova Iorque, Harvest, 1998).
Há serendipidades científicas famosas, tais como o banho de Arquimedes, a maçã de Newton e o bolor nos cadinhos de Fleming. Assim como há serendipidades históricas conhecidas de todos, tais como a viagem de Cristóvão Colombo, que encontrou um novo continente enquanto procurava a Índia.
Ao que se conta, Arquimedes tinha sido encarregue pelo Rei de Siracusa de investigar a composição de uma coroa ou tiara de ouro que este tinha mandado construir, a fim de verificar se a coroa era de ouro puro ou se tinha misturado algum outro metal que a tornasse menos pesada. Pesar a coroa era simples, o problema era medir o seu volume, de forma a conseguir verificar se o peso correspondia ao de uma coroa de ouro puro. Arquimedes, que tinha desenvolvido formas de calcular o volume de alguns sólidos, não sabia como medir o volume de um sólido tão irregular. Quando entrava no banho, reparou que a água da banheira transbordou e percebeu que o volume de líquido deslocado correspondia ao volume do seu próprio corpo imerso na água. A partir daí, era fácil medir o volume da coroa: bastava imergi-la em água e medir o volume de líquido deslocado. Ao que se diz, a descoberta tê-lo-á surpreendido tanto que saltou da banheira e correu pelas ruas da cidade gritando «Eureka! Eureka!» - «Descobri! Descobri!»
Conta-se também que Newton foi levado a descobrir a Lei da Gravitação Universal por uma queda fortuita de uma maçã, que se teria registado mesmo à sua frente, numa tarde em que tomava chá no jardim. Pensando no motivo que levaria a maçã e ser atraída para a Terra, o físico inglês pensou que essa força de atracção poderia ser a mesma que mantinha os planetas em órbitas estáveis.
Já no nosso século, Alexander Fleming foi levado a descobrir a penicilina ao verificar que algumas culturas de bactérias que estudava morriam quando um certo tipo de bolor se desenvolvia nessas culturas. Estudando os constituintes desse bolor, veio a isolar o primeiro antibiótico. Foi assim que o médico escocês fez uma das descobertas mais importantes dos tempos modernos. Talvez mesmo a descoberta que mais influenciou a vida moderna.
Em todos estes casos, tais como em centenas ou milhares de outros, houve cientistas que foram levados a descobertas fundamentais por acontecimentos fortuitos que souberam aproveitar habilmente. Como dizia Walpole, foram descobertas provocadas «por acidente e sagacidade». O acaso terá desempenhado um papel fundamental em todos estes acontecimentos felizes, mas é evidente que foi preciso o génio e a perspicácia dos investigadores para que esses acasos se tivessem transformado em descobertas. Pasteur, ele próprio bafejado várias vezes pela serendipidade, disse-o melhor do que ninguém: «No campo da observação, o acaso favorece apenas as mentes preparadas.» Mais recentemente, o físico norte-americano Joseph Henry voltou a expressar a mesma ideia dizendo: «As sementes da descoberta flutuam constantemente à nossa volta, mas apenas lançam raízes nas mentes bem preparadas para as receber.»
A descoberta do único nónio sobrevivente foi provocada por acasos felizes, mas foi preciso a sagacidade e persistência de um especialista experimentado como o é Estácio dos Reis para transformar esses acasos numa descoberta. |
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