O Laboratório Chimico da Escola Polytechnica

Muitos dos grandes museus de ciência existentes pelo mundo, tais como o Deutsches Museum e o Science Museum de Londres, apresentam reconstituições de laboratórios de química do passado, onde reproduzem algumas experiências clássicas e explicam como começou a investigação nesta importante ciência. O Museu de Ciência da Universidade de Lisboa mostra aos seus visitantes um exemplo vivo de um antigo laboratório. Trata-se do «Laboratorio Chimico» da antiga Escola Polytechnica.

A Escola Polytechnica, transformada em 1911 na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, era uma das instituições de ensino mais prestigiadas do país. O edifício primitivo, que acolhia o Noviciado da Cotovia, fora construído em 1619 pela Companhia de Jesus, com base numa igreja edificada no local em 1605. Estava situado numa zona nobre da cidade, o chamado Monte Olivete. Em 1755, o edifício foi parcialmente destruído pelo terramoto. Poucos anos depois, os jesuítas foram expulsos do país e o edifício foi reconstruído, com o propósito de albergar o recém-formado Colégio dos Nobres. Em 1766, foi inaugurada a nova instituição de ensino. A marcar a importância da data, o rei D. José assistiu à abertura solene do ano lectivo.

O antigo laboratório, numa gravura da revista «O Occidente» de Maio de 1891. Hofmann regista «uma profusão de espaço que poucas vezes tenho encontrado» e confessa não se lembrar «de nenhum laboratório que tenha conseguido combinar de tal maneira a elegância e a utilidade»

Em 1837, o Colégio dos Nobres foi extinto e foi criada a Escola Politécnica, que viria a dar o nome à rua fronteira. A actividade da nova instituição foi interrompida em 1843, com um incêndio que destruiu quase por completo as antigas instalações. O laboratório químico só foi construído em 1857, depois de aprovada a nova planta geral de reconstrução.


Os fundadores do laboratório esmeraram-se na concepção e construção do espaço e no seu equipamento, que vieram a ocupar lugar central no novo edifício. O Laboratorio Chimico passou a constituir o orgulho dos mestres portugueses e a suscitar a admiração de químicos europeus. Inaugurou-se uma época em que a química portuguesa teve razoável projecção internacional.

No século precedente, a Química tinha-se individualizado como ciência. Sob o impulso, entre outros, de Antoine Lavoisier (1743-1794), tinha adoptado uma nomenclatura sistemática e tinha dado nova importância à quantificação. No século XIX, a Química especializa-se em várias áreas e torna-se um empreendimento colectivo. É nessa altura que se criam escolas de investigação nas grandes universidades e se constituem grupos de investigação.

O antigo laboratório, numa gravura da revista «O Ocidente» de Maio de 1891. Hofmann regista «uma profusão de espaço que poucas vezes tenho encontrado» e confessa não se lembrar «de nenhum laboratório que tenha conseguido combinar de tal maneira a elegância e a utilidade»

Portugal acompanhou a evolução desta ciência através de alguns mestres excepcionais. No século XVIII, Vicente Seabra (1764-1804), professor da Universidade de Coimbra, introduziu em Portugal o novo rigor teórico e a nova nomenclatura. No século XIX, Agostinho Vicente Lourenço (1826-1893), lente responsável pelas práticas de química da Escola Politécnica, associou o ensino à investigação e realizou trabalhos pioneiros na preparação de polímeros, área que viria a ter uma enorme importância industrial no século XX.

Agostinho Lourenço tinha trabalhado com Adolphe Wurtz (1817-1884), no laboratório da Faculdade de Medicina de Paris, e tinha visitado vários outros laboratórios europeus. Após catorze anos de prática de investigação no estrangeiro, Lourenço regressou a Portugal e tornou-se lente da Escola Politécnica. A sua descrição tem a autoridade de quem conhecia o melhor que existia na Europa: «O laboratorio chimico da escola é o mais vasto e ao mesmo tempo mais grandioso que todos os laboratórios da Europa, em que estudei, ou os que visitei; mede uma área de 860 metros quadrados, incluindo o amphytheatro de chimica, que pode receber 200 alumnos.»

Entre os colegas de Lourenço destacava-se José Júlio Bettencourt Rodrigues (c. 1845-1893), lente da cadeira de Química Mineral e Inorgânica. Como investigador, Bettencourt Rodrigues colaborou com alguns dos maiores vultos da época. Na Escola Politécnica, valorizou as aplicações industriais e aperfeiçoou processos fotográficos e tipográficos. Como docente, introduziu um ensino prático e experimental obrigatório, em que todos os alunos eram chamados ao laboratório, para fazerem eles próprios as experiências. Os estudantes, que até aí se tinham praticamente limitado a assistir no anfiteatro à realização de experiências, passaram a ser admitidos na sala do laboratório, para mexerem eles próprios nos tubos de ensaio e nas pipetas. Sob a direcção de Bettencourt Rodrigues, passa-se a querer que todos os alunos confirmem experimentalmente os resultados e que sejam preparados para aplicar à investigação ou à indústria os conhecimentos adquiridos.

Um dos vultos da época com que Bettencourt Rodrigues manteve contacto era August von Hofmann (1818-1892), químico alemão que revitalizou a investigação e ensino desta ciência em Inglaterra e na Alemanha. Hofmann tinha-se tornado famoso pelo desenvolvimento de um processo de extracção de anilina e por descobrir substâncias que são a base da tinturaria moderna. De visita a Portugal em 1890, fica impressionado com o laboratório da Politécnica. «Admiro sobretudo os laboratórios e o anfiteatro de química», revela em carta dirigida a Bettencourt Rodrigues. «Tendo construído os laboratórios das universidades de Bona e de Berlim», acrescenta, «não hesito em afirmar que não conheço laboratório melhor preparado para o ensino e a investigação.»

Passado mais de um século, depois de ter servido muitas gerações de docentes e estudantes, o velho laboratório manteve-se com a traça original, tendo ainda hoje muitos instrumentos e peças de mobiliário dos tempos de Lourenço e Bettencourt Rodrigues. O incêndio de 1978, que destruiu grande parte da Faculdade de Ciências, poupou o laboratório, que até 1999 continuava a ser utilizado por alunos e professores. A circunstância infeliz de não se ter procedido, ao longo do século XX, à actualização das instalações e equipamentos transformou-se na circunstância feliz de existir hoje, em Portugal, um sobrevivente quase perfeito de uma época passada.

A entidade hoje responsável por este laboratório, neste momento bastante degradado pelo uso de mais de um século, é o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, que se encontra instalado na antiga Escola Politécnica. Uma das prioridades desse museu consiste em recuperar o Laboratorio Chimico e oferecê-lo ao público. Pretende-se construir um espaço museológico que combine a autenticidade das instalações e de grande parte do equipamento com o propósito didáctico que caracteriza os modernos museus interactivos.




O antigo anfiteatro, numa fotografia da sua época áurea. Ao centro, mostra-se a bancada onde os professores realizavam as experiências. Por detrás do quadro removível, acedia-se directamente à bancada traseira, que comunicava com o laboratório. Os assistentes e técnicos preparavam aí os materiais que passavam ao professor.





Nuno Crato


© Instituto Camões 2003