Físico e poeta

Rómulo de Carvalho foi uma personalidade invulgar. No decorrer de uma vida longa e extraordinariamente produtiva, marcou gerações de alunos, despertou vocações científicas, conquistou leitores para a poesia e realizou estudos históricos de grande valor.

 

Modesto, professor dedicado, personalidade discreta, nada na sua aparência ou no primeiro convívio deixava entrever a riqueza e valor da sua obra. Rómulo de Carvalho, o professor de liceu, Rómulo de Carvalho, o autor de obras de divulgação científica, Rómulo de Carvalho, o historiador de ciência, eram apenas algumas das suas facetas, onde deixou trabalho notável, que chegaria para encher várias vidas produtivas. Mas Rómulo de Carvalho era também o poeta e escritor António Gedeão, um homem de letras conhecido do grande público por poesias de rara sensibilidade e colorido, como «Pedra filosofal», «Lágrima de preta» e «Lição sobre a água».

 

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho nasceu na cidade de Lisboa em 24 de Novembro de 1906, na Rua Arco do Limoeiro, n.º 7, 4º, hoje Rua Augusto Rosa. Filho de uma família algarvia que se tinha deslocado para a capital, ingressou no Colégio de Santa Maria com cinco anos e concluiu a escola primária aos oito anos. Tem então a sua primeira experiência como professor: tendo de esperar dois anos para se poder matricular no liceu, fica esses anos no colégio ajudando na instrução dos seus colegas. A precocidade da sua experiência docente é, no entanto, superada pela da sua experiência poética. Aos cinco anos compõe o primeiro poema. Ainda antes de entrar para o liceu, tem algumas estrofes publicadas na imprensa.

 

De 1917 a 1925 completa os estudos secundários no Liceu Gil Vicente. Nessa altura, aventura-se ainda no teatro e na canção. Em 1925, ingressa no Curso Preparatório de Engenharia Militar, na velha Escola Politécnica, já então designada Faculdade de Ciências. Escreve, em parceria com Carlos Bana, uma revista que chega a ser representada no Teatro São Carlos, com encenação de Vasco Santana. Pouco entusiasmado com o curso, decide mudar-se para o Porto, onde termina a licenciatura em Físico-Químicas, para seguir a via de professor do ensino secundário. De 1933 a 1974, foi professor em vários liceus, nomeadamente no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, onde seria metodólogo, isto é, encarregue da orientação de estágio de docentes.

Dispositivo que mostrava as leis da reflexão da luz.

Enquanto professor, Rómulo de Carvalho destaca-se pelas suas qualidades pedagógicas e pela sua dedicação ao ensino. Escreve manuais, publica artigos sobre aspectos didácticos, constrói aparelhos que demonstram princípios físicos vários e, sobretudo, marca gerações de estudantes a quem transmite, pelo exemplo, o seu entusiasmo pela ciência.

 

A «marmita» demonstrava a transformação da energia calorífica em mecânica.

Quem teve o privilégio de o ter como mestre recorda uma figura alta, direita, aparentemente distante, uma voz calma, aulas vivas mas pausadas, um grande rigor de linguagem e a discrição de quem se impunha pelo exemplo e não pela argumentação. Nele não havia um tique de linguagem nem rodeios. Começava as aulas no horário e terminava-as ao toque de campainha. Havia sempre tempo para terminar as experiências, que corriam sempre como planeado. Aos estudantes, transmitia uma facilidade de manuseamento dos conceitos e dos materiais, facilidade que provinha de uma preparação muito cuidada. Tal como um grande desportista nos faz parecer simples um salto à vara, todas as experiências que Rómulo de Carvalho efectuava pareciam simples e de uma elegância perfeita. Por detrás dessa simplicidade estava uma preparação muito cuidada.

No laboratório de física do liceu, onde passava longas horas preparando as suas aulas e orientando os seus estagiários, concebia e construía com as suas próprias mãos instrumentos que lhe permitiam tornar mais vivas as aulas e mais ilustrativas as experiências. Ao invés de se queixar da falta de materiais didácticos, construía-os. Ao invés de se lamentar da dificuldade dos conceitos, procurava torná-los simples. Ao invés de se queixar da falta de preparação dos alunos, procurava melhorá-la, sendo compreensivo com as suas dificuldades, mas rigoroso na sua avaliação.

 

Modelo de átomo de carbono construído por Rómulo de Carvalho

Os seus alunos, entre os quais o autor destas linhas, lembram-no com carinho, pois por detrás dessa figura aparentemente distante estava um homem compreensivo e sensível, que os procurava entender, mas que não confundia a compreensão das suas limitações com a conciliação com as suas insuficiências. Nas suas aulas, falava uma pessoa de cada vez. Se um aluno formulava mal uma pergunta, esperava que ele acabasse, não deixava que nenhum colega o interrompesse, aguardava que o aluno reformulasse correctamente a pergunta e só depois intervinha. Na sua resposta, repetia a pergunta em português perfeito, clarificava o raciocínio e fazia com que o esclarecimento fosse natural. Pelo exemplo, os seus alunos percebiam que não há nenhum mérito na concessão aos tiques de linguagem, que as modas dos «prontos!» e dos «é assim:» apenas dificultam a comunicação límpida das ideias.

 

Tinha horror aos rodeios e às falsas desculpas. Nunca começava nenhuma intervenção nem nenhum texto justificando-se pelo que ia dizer. Começava pelo começo, pela primeira ideia. E isso bastava. Quem o conhecia como professor não imaginava o que esse mestre pensava, no seu íntimo, sobre a política, as modas, ou as outras pessoas. Nunca nenhum aluno lhe ouviu um ataque directo ao regime nem nenhum queixume. Mas percebia-se, pela sua postura e pelo contraste com muitos outros, que discordava da mesquinhez e da opressão salazarista e que tinha esperanças em dias diferentes.

 

Fora do seu liceu, Rómulo de Carvalho tinha uma vida igualmente intensa e produtiva. Muitos dos seus alunos não sabiam que ele era também o poeta António Gedeão, com uma obra original e muito difundida, que teria traduções em várias línguas. Nos seus poemas, retomava assuntos e conceitos científicos e transmitia um optimismo esclarecido. Lendo-os, era possível ganhar nova confiança no progresso da humanidade e no progresso da ciência.

 

Ao mesmo tempo, Rómulo de Carvalho desenvolvia uma intensa actividade de divulgação científica. Escrevia livros, como a História dos Balões e a Ciência Hermética, recentemente reeditados pela Relógio D'Água. Em todas essas obras, nomeadamente em A Física no Dia-a-dia, procurava mostrar como a vida diária pode ser enriquecida com o conhecimento científico. Explicava a razão porque um ferro de engomar aquece, como funciona o cinema e as vantagens da panela de pressão. Para ele, o conhecimento científico era um factor de enriquecimento do indivíduo e ser-se simples era uma virtude.

 

Para Rómulo de Carvalho, foi ainda possível desdobrar-se numa outra faceta, que será, certamente, uma das suas vertentes mais perduráveis: a de historiador da ciência. Dotado de uma cultura vastíssima e de uma capacidade de trabalho extraordinária, começou, pouco a pouco, a fazer investigação histórica original. Durante os seus anos em Coimbra, onde residiu de 1950 a 1957, catalogou sistematicamente o equipamento sobrevivente do primitivo Gabinete de Física pombalino, que hoje se encontra exposto na universidade coimbrã. Desse trabalho resultou a magnífica história e catálogo desse gabinete, que ainda hoje é uma referência obrigatória no estudo da época. Especializando-se no século XVIII, publicou vastíssimos estudos sobre a nossa actividade científica e educativa, de que resultaram muitos artigos e resumos ainda hoje disponíveis na Biblioteca Breve, tais como A Astronomia em Portugal no Século XVIII. Publicou ainda uma História da Educação em Portugal desde a Fundação da Nacionalidade até ao Fim do Regime de Salazar-Caetano.

 

Rómulo de Carvalho morreu em Lisboa em 1997. Depois de uma vida tão preenchida, pareceria que tudo o que fez e publicou era bastante para um só homem. Mas, no seu espólio, descobrem-se continuamente novas obras. Em 1998, a Gulbenkian publicou As Origens de Portugal: História Contada a uma Criança. Em Setembro de 2000, a Relógio D'Água publicou a sua Memória de Lisboa, um belíssimo estudo fotográfico e histórico sobre a nossa capital.

 

Nesses trabalhos, tal como em toda a sua obra, não há vestígios de rodeios nem sombras de afectação. Rómulo de Carvalho historiador, Rómulo de Carvalho professor, António Gedeão poeta, Rómulo de Carvalho fotógrafo são sempre personalidades simples e francas. Os seus trabalhos são directos, valem pelo muito que revelam. Dizem o que têm a dizer, nem mais uma palavra, nem menos uma vírgula. Ponto final.

 

Nuno Crato


© Instituto Camões 2003