Da Mão-Travessa ao Metro

FEZ EM 2002 150 ANOS QUE O SISTEMA MÉTRICO FOI LEGALMENTE INSTITUÍDO EM PORTUGAL

Há alguns anos, no Rossio, havia um vendedor ambulante que vendia fitas métricas, daquelas que se usam nas lojas e na costura. O homem anunciava à potencial clientela: «É o metro de metro e meio a 200 escudos!» Havia quem achasse piada, mas para a maioria das pessoas era natural que o homem vendesse «metros de metro e meio». Até poderia vender metros de dois metros; metros de um metro é que seriam menos úteis. A palavra entrou de tal forma no nosso vocabulário que «metro» significa instrumento de medição e significa também a unidade de comprimento legalmente adoptada. Mas já houve tempos em que a palavra se evitava a todo o custo.

Marco de D. Manuel I (um sistema de pesos padrão)

Com efeito, a adopção do sistema métrico decimal foi feita relutantemente em muitos países, dadas as circunstâncias revolucionárias que instituíram o sistema em França em 1791. Já anos antes, cientistas e academias de vários países, nomeadamente França e Inglaterra, tinham procurado chegar a acordo para a instituição de um sistema racional e uniforme de medidas. Com a revolução francesa de 1789 interromperam-se esses esforços e os franceses declararam unilateralmente o sistema métrico decimal em 1791. Segundo o fundador da química moderna, Antoine Lavoisier (1743–1794), «jamais algo de maior e mais simples, de maior coerência em todas as suas partes, saiu das mãos dos homens». Mas os tempos eram difíceis. O próprio Lavoisier, que tinha sido um dos membros do comité nomeado pela Assembleia Nacional revolucionária para a reforma das unidades, veio a ser condenado e executado durante o Terror, em 1794.

Passados poucos anos, Napoleão espalhou o sistema métrico pela Europa. Usou meios de persuasão pouco ortodoxos em ciência e no comércio. O metro passou a ser visto como um símbolo das invasões francesas e em Portugal, tal como em alguns outros países, tentava-se evitar a própria palavra. Por isso, apesar da racionalidade do sistema o impor, procuravam-se subterfúgios.

Caixa/Armário «Sistema Métrico», usual nas escolas primárias há uns anos

Em 1812 formou-se uma comissão «para a igualdade dos pesos e medidas próprios dos grandes conhecimentos e luzes do século». Dois anos mais tarde, D. João VI aprovou a proposta dessa comissão, que era baseada no sistema métrico, e executaram-se novos padrões de pesos e medidas. Evitou-se, no entanto, a palavra «metro» e foi adoptada a designação de «mão-travessa» para a unidade fundamental. A mão-travessa correspondia ao decímetro, a décima parte do metro. De igual forma, adoptou-se o litro como unidade de volume, mas chamou-se-lhe canada. A unidade de peso seria a libra, que correspondia a 1 quilograma.

Este sistema tinha vários inconvenientes. Dificultava as comparações e o comércio internacional e originava grandes confusões, pois usavam-se nomes antigos, que correspondiam a outras unidades, para designar as novas. Ao falar de mão-travessa não se sabia se se estava a considerar a nova unidade, com 10 cm, se a antiga, que media cerca de 11 cm. De igual modo, ao falar de canada, não se sabia se se estava a considerar a nova unidade, correspondente a 1 litro, se a antiga, que correspondia a 1,4 litros. A aumentar a confusão, o sistema de 1814 tinha nomes diferentes para os diversos múltiplos e submúltiplos das unidades principais: 10 mãos-travessas designavam-se por vara e 100 varas constituíam uma milha. Um quintal correspondia a dez canadas e o milionésimo da libra recebia o nome de escrópulo...

Em Portugal, tal como em todos os países, tinham-se passado séculos sem que houvesse unidades uniformes, que pudessem servir de padrão ao comércio entre zonas distintas do reino e com os reinos vizinhos. Conhecem-se unidades que vêm ainda dos tempos árabes, tais como o arrátel, padrão de peso, ou a milha, unidade de comprimento que herdámos dos romanos. Mas as unidades variavam de lugar para lugar e não era raro sobreporem-se unidades diferentes e com diferentes designações ou dar-se o mesmo nome a unidades distintas. Havia o côvado de Viana, que era ligeiramente mais comprido que o de Évora.

A princípio, os próprios reis não estavam interessados em eliminar essas disparidades. Nas cortes de D. Fernando encontramos estatuído esse princípio: «Que sempre se costumou que os pesos e as medidas som de jurisdiçõm real, a qual noos damos aas Villas e lugarees no começo da sua pobra, como he nossa mercee; ca a huas damos mayores e a outras menores, e que os Poboos nom as podem mudar sem mandato do seu Rey». A disparidade de medidas era assumida como parte da política de tributação.

A primeira tentativa de uniformização dá-se com o rei D. Pedro I, nas cortes de Elvas de 1361. Estava-se num período em que o poder real se afirmava em detrimento do poder dos múltiplos senhores feudais. A uniformização das medidas era um instrumento da unidade do reino sob um único soberano. Chegados ao tempo dos Descobrimentos, procedeu-se a duas novas reformas. Nas Ordenações Manuelinas (1499) procurou-se clarificar os sistemas de unidades para as várias aplicações no comércio e definiram-se múltiplos e submúltiplos das unidades principais. No tempo de D. Sebastião procedeu-se a nova reforma em que participou o próprio Pedro Nunes. Estabeleceram-se unidades de volume para líquidos (almudes) e para secos tais como grão e arroz (alqueires). A única reforma importante que se seguiu foi a de D. João VI, já influenciada pelo sistema métrico, mas ainda com as bizarras mãos-travessas e canadas.

A adesão do nosso país ao sistema métrico deu-se poucas décadas depois, verificada a inutilidade de aportuguesar os nomes e evitar o sistema racional de denominação de múltiplos e submúltiplos instituído pelos franceses. Foi em 13 de Dezembro de 1852 que o sistema métrico, com a sua nomenclatura original, foi instituído no nosso país. O metro deixou de ser uma palavra francesa para passar a ser reconhecido como um termo internacional.

Nuno Crato


© Instituto Camões 2003