Cinco Séculos de Ilustração Científica

A ilustração científica é uma técnica e uma arte velha de cinco séculos. É uma técnica especializada, que serve naturalistas, médicos, biólogos e outros cientistas. E é uma arte que tem produzido gravuras de incomparável beleza - gravuras que espantam, pelo pormenor e pela composição, tanto o cientista como o leigo.

1543, «De Humani Corporis Fabrica», de Andreas Vesalius. O autor insistia em fazer ele próprio a dissecação dos cadáveres. As suas ilustrações contribuíram para formar várias gerações de médicos e esclareceram muitos pontos anatómicos até então obscuros.

Os últimos cinco séculos de ilustração científica compreendem praticamente todo o património desta técnica e arte, que só pôde florescer com a invenção e desenvolvimento da imprensa. Anteriormente, quando a reprodução dos textos estava a cargo dos copistas, as ilustrações que neles eram inseridas não podiam ser reproduzidas com fidelidade. Plínio o Velho (23-79 d.C.), talvez o naturalista mais importante da antiguidade, dizia que «a diversidade de copistas, e os seus comparativos graus de habilidade, aumentam consideravelmente os riscos de se perder a semelhança com os originais». E explicava que «as ilustrações são propensas ao engano, especialmente quando é necessário um

grande número de tintas para imitar a natureza». Por tudo isso, recomendava Plínio, os autores devem-se «limitar a uma descrição verbal» da natureza.

Em meados do século XV, tudo mudou. O advento da imprensa de caracteres móveis incentivou a reprodução de gravuras, feitas em madeira ou cobre e por processos manuais. Essas gravuras passaram a poder ser inseridas em livros e reproduzidas em grande quantidade, mantendo fidelidade quase absoluta ao original. É nessa altura também que invenção renascentista da perspectiva veio a introduzir técnicas mais realistas de criação de imagem. Com a perspectiva linear, os artistas do renascimento iniciaram um conceito em pintura que só no século XX veio a ser questionado: a ideia de que o quadro plano era uma janela para o mundo e que essa janela respeitava a perspectiva da visão, a cor local e as proporções visuais. A perspectiva tinha as suas bases em conceitos geométricos e matemáticos, o que reforçou a ideia renascentista de que era possível reproduzir a natureza com rigor científico. O cepticismo de Plínio o Velho sobre as imagens veio a ser substituído pelo optimismo renascentista na possibilidade de representação da realidade.

Ilustração de dragoeiro (Dracaena draco), de Peeter van der Brocht, publicado na Flora, de Clusius, em 1576. Biblioteca Jagiellonska, Cracóvia.

A transição dos séculos XV para o XVI traz consigo uma explosão no conhecimento do mundo. É nessa altura que se realizam as grandes viagens de descobertas. Contrariando a crença grega clássica de que os trópicos eram inatingíveis e inabitáveis, os navegadores do Infante D. Henrique descem pouco a pouco a costa africana, dobram o equador e atingem o sul de África. Vasco da Gama contorna o continente africano e descobre o caminho marítimo da Europa à Índia. Colombo encontra a América. Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil, terra de espantosa fauna e flora que ainda hoje espanta o mundo.
É nesta época maravilhosa que surge a ilustração científica moderna. Quando regressam das suas viagens, os exploradores e os naturalistas pretendem descrever os rinocerontes que encontraram em África, as plantas de onde provêem as especiarias que trazem a bordo, as cores exóticas com que se pintam os nativos do novo mundo e os promontórios com que se defrontaram. A descoberta de uma nova natureza encontra na imprensa e nas técnicas da perspectiva um meio adequado à sua difusão pelo mundo europeu, que assim partilha as viagens dos que ousaram defrontar os mares.

1665, micrografia realizada pelo
polifacetado cientista inglês Robert Hooke.

Ao dobrar os séculos, nota-se um apuro da técnica, mas não se pode deixar de admirar o pormenor realista e a preocupação didáctica e descritiva dos autores mais antigos. Ao contrário de reproduções artísticas motivadas por preocupações puramente estéticas e expressivas, como se observa nos óleos dos pintores que habitualmente apreciamos nos museus, estas ilustrações científicas preocupam-se em contar uma história, em descrever uma realidade, pelo que inserem cortes, perspectivas variadas e anotações explicativas. A ilustração científica é uma arte aplicada que serve um propósito: dissecar a realidade da natureza.

Ao chegar aos séculos XIX e XX, a técnica atinge um requinte inaudito. As ilustrações contemporâneas de Alfredo Conceição, um ilustrador português que dedicou a vida à ilustração biológica, sobretudo de insectos moçambicanos, surpreendem pelo requinte de pormenor e fidelidade de cor. Já nos finais deste século, atinge-se um novo patamar nesta história antiga de cinco séculos. O ilustrador tem agora à sua disposição um instrumento gráfico novo: o computador. Essa nova ferramenta permite-lhe um controlo sem precedentes sobre o pormenor das imagens, sobre as cores, as perspectivas e as proporções. O ilustrador científico moderno utiliza as novas tecnologias a par com as antigas. Pedro Salgado, um biólogo e ilustrador português conhecido, sobretudo, pelos seus magníficos desenhos de peixes, não desdenha a tinta da china nem a aguarela. Daniel Muller, biólogo português que se especializou em ilustração médica, não deixa de recorrer ao computador para os retoques finais nos seus slides e gravuras. Estes artífices, que produzem as ilustrações que os cientistas e médicos utilizam para comunicar as suas experiências, são também artistas que deleitam os olhos do público.

Nuno Crato












             


             

Tartaruga de duas cabeças reproduzida em Viagens Filosóficas, de Alexandre Rodrigues Ferreira (Lisboa, séc. XVIII): Museu Bocage.



Litografia de palmeira (Geonoma paniculigera) pintada à mão por L. Emmert e publicada em Genera et Species Palmarum da autoria de Carl Martius, 1823. Colecção particular de Nuno Farinha.


Desenho de mão

Desenho de mão totalmente realizado em computador pelo biólogo português Daniel Muller. Trata-se de uma ilustração didáctica muito rigorosa, apenas possível de obter com conhecimentos profundos de anatomia humana.


© Instituto Camões 2003