Pedro Nunes - Um matemático num país de navegantes

«Os portugueses ousaram cometer o grande mar oceano», escrevia Pedro Nunes, «descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos: e o que mais é: novo céu, novas estrelas».

O maior matemático da época das Descobertas nasceu há 500 anos, na cidade de Alcácer do Sal. Quase nada se sabe sobre a sua origem, pouco se conhece da sua vida e ignora-se muito da relação com os cientistas do seu tempo. Contudo, é possível reconstituir o seu trabalho através das suas publicações e das muitas referências que lhe são feitas pelos grandes intelectuais da época. Chamava-se Pedro Nunes e assim assinava, mas o seu nome aparece muitas vezes na forma latinizada Petrus Nonius.

Sabe-se apenas o ano de nascimento, não se conhece o mês nem o dia. Sabe-se a data exacta da morte, que se registou em 11 de Agosto de 1578. A sua vida, tal como a de Camões (c. 1524-1580), coincidiu com o período de maior grandeza do nosso país. Pouco após a morte destes grandes portugueses, Filipe II de Espanha ascendeu ao trono de Portugal e o país perdeu a independência, que só viria a recuperar em 1640. Nessa altura, tinha-se já encerrado a época em que Portugal e Espanha dominavam incontestavelmente os mares. Na Península Ibérica, a Matemática e a Ciência perderam também a sua maior grandeza.

Ao que parece, Pedro Nunes tinha origens judaicas, pois Damião de Góis descreveu-o como «português de nação», referência habitualmente aplicada a judeus conversos. No entanto, nada nos escritos de Pedro Nunes mostra alguns sinais de criptojudaísmo e as poucas referências religiosas que neles se encontram são claramente cristãs. Não há também quaisquer indícios de Nunes ter sido alguma vez perseguido - durante toda a vida, foi protegido por reis e príncipes. Os seus netos, contudo, passaram alguns anos a ferros da Inquisição, acusados de professarem o judaísmo.

Tal como o matemático italiano Francisco Maurolico (1494-1575), Pedro Nunes trabalhou no período que medeia entre Regiomontano (1436-1476) e Viète (1544-1603). Tal como o astrónomo Tycho Brahe (1546-1601) e o cosmógrafo Cristóvão Clávio (1538-1612), viveu no período intermédio entre Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642). Entalado entre esses grandes vultos, que marcaram momentos de viragem na Matemática e na Ciência, o trabalho de Pedro Nunes tem sido menos estudado do que mereceria. Ao tempo, contudo, as suas contribuições foram plenamente reconhecidas, até ao fim da sua vida.

Réplica do Quadrante de Kynuyn (Museu de Marinha, em Lisboa) fabricado em 1595 em Londres. É o único instrumento sobrevivente da época dotado do nónio, descoberto por Estácio dos Reis. O nónio aparece aqui nas 45 escalas circulares concêntricas marcadas na face do quadrante

Praticamente no leito de morte, Nunes foi instado pelos enviados do Papa Gregório para dar um parecer sobre a reforma do calendário, pedido a que já não pôde corresponder. Brahe, o maior astrónomo da era pré-telescópica, experimentou uma das suas invenções, a que chamou «subtil processo». E Clávio, a maior figura do Colégio Romano, o grande centro do saber católico da época, classificou-o como «génio matemático supremo».

Pedro Nunes estudou em Lisboa e Salamanca, onde conheceu Guiomar de Aires, uma cristã castelhana com quem se casou e de quem teve seis filhos. Depois de obter o bacharelato, foi contratado como leitor pela Universidade de Lisboa, onde veio a doutorar-se em Medicina. Na posse desse título académico, obtido na única área científica da época que o conferia, Nunes pôde prosseguir as suas investigações matemáticas numa posição confortável.

Ainda novo, o seu génio foi notado na corte. Por decisão do Rei D. João III, foi preceptor dos príncipes D. Luís e D. Henrique, ensinando-lhes Lógica, Filosofia, Geometria e Matemática. Com 27 anos foi nomeado cosmógrafo real, posição de grande prestígio no país. Duas décadas mais tarde foi nomeado cosmógrafo-mor.

Para cumprir as obrigações como cosmógrafo e professor dos príncipes, Pedro Nunes renunciou à posição académica. Foi de novo nomeado professor depois da transferência da universidade para Coimbra em 1537, vindo a residir o resto da vida nesta cidade. Jubilou-se em 1562 e morreu em Coimbra em 1578. Era frequentemente chamado a Lisboa, para aconselhar e examinar os pilotos, para ajudar na cartografia das terras e mares então descobertos e para tratar de assuntos científicos de interesse para o reino.

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Instrumento de Sombras de Pedro Nunes fabricado por Humphrey Cole (1572-1624) em Londres, existente no Museu de Ciência desta cidade

Pouco após a nomeação como professor em Coimbra, escreveu «De erratis Orontii Finaei», a obra mais polémica que alguma vez assinou. Tratava-se de uma refutação das pretensões do matemático do Colégio Real de Paris, Oronce Fine (1494-1555), que afirmava ter resolvido os três problemas geométricos clássicos da Geometria grega: a trissecção de qualquer ângulo, a duplicação do cubo e a quadratura do círculo, com recurso apenas a regra não graduada e compasso. Pedro Nunes não provou a impossibilidade de resolução desses problemas, pois os instrumentos matemáticos da época não permitiam fazer tal demonstração, só conseguida no século XIX. Contudo, a refutação das «provas» apresentadas pelo matemático francês foi de um rigor impecável. É significativo que o recém-chegado matemático de Coimbra tivesse sido o primeiro na Europa a defrontar o professor francês, mostrando assim a superioridade do seu domínio da Geometria.

Os trabalhos mais importantes de Pedro Nunes, no entanto, são anteriores a «De erratis» e à nomeação para a Universidade de Coimbra. A primeira obra impressa do matemático, o «Tratado da Esfera», foi publicada em 1537 em Lisboa. É composta por vários trabalhos, como era costume na época. Nele se incluem traduções de obras clássicas, enriquecidas com comentários e adições que denotam um conhecimento profundíssimo da difícil cosmografia da época. Nele se incluem também dois pequenos trabalhos originais em que Nunes avança a sua teoria da curva loxodrómica, com a qual discute a navegação pelo caminho mais curto e a de direcção cardeal constante. A curva loxodrómica constitui talvez a descoberta mais importante de Pedro Nunes e aquela que este mais considerava. Como acontece com muitos matemáticos, é também a sua primeira descoberta de vulto, pelo menos se nos guiarmos pela data da publicação. Volta a ser discutida em 1566, na recolha das suas obras publicadas em Basileia. Se se tratasse apenas da descoberta de uma curva matemática, o tema poderia ser interessante e ter repercussões no desenvolvimento desta disciplina, como teve, mas tratou-se de muito mais do que isso. Foi a resolução geométrica de um problema essencial à navegação e mudou a forma de cartografar os oceanos e representar o mundo.

A publicação seguinte de Pedro Nunes é «De Crepusculis», habitualmente considerado o seu trabalho mais importante. Nessa obra, publicada em 1542 em Lisboa, resolve um problema de geometria esférica muito difícil, o da determinação rigorosa da duração dos crepúsculos para dada latitude e dado dia do ano.

Estátua de Pedro Nunes na sua cidade natal, Alcácer do Sal

A criação que tornou Pedro Nunes mais conhecido foi o nónio, também proposto no «De Crepusculis». Trata-se de um sistema de conjugação de escalas que permite obter medidas mais precisas que qualquer das escalas individuais. Com esse sistema, Nunes avança uma solução para um problema premente na época, o problema da medida rigorosa dos ângulos de altura de astros. O nónio surge como um sistema de 45 escalas num astrolábio, mas veio mais tarde a ser aplicado a outros instrumentos de medida, sendo hoje comum nas craveiras usadas para medir comprimentos.

O nónio veio a sofrer diversos aperfeiçoamentos, cabendo ao francês Pierre Vernier (1584-1638) a glória de ter proposto, em 1631, a solução mais prática, que reduz o nónio a duas escalas, sendo uma delas fixa e outra móvel. O próprio Vernier dizia que o seu invento era um nónio aperfeiçoado e, durante muito tempo, foi conhecido com o nome de «nonius», mesmo em França. No século XVIII, contudo, os franceses passaram a utilizar a designação «vernier», que se generalizou em quase todo o mundo. Vendo hoje os dois sistemas, é difícil perceber tratar-se de duas formas de aplicar o mesmo princípio, mas estudando a sua evolução, nota-se a continuidade da ideia do nosso matemático.

Pedro Nunes veio ainda a produzir trabalhos notáveis de Geometria e de Álgebra, assim como a apresentar propostas inovadoras para resolver vários problemas de navegação do seu tempo. Algumas das suas ideias não tiveram aplicabilidade, outras acabaram por ser úteis, embora nem sempre tenham sido imediatamente compreendidas. Sabe-se, por exemplo, que nem sempre as suas relações com os homens do mar foram as mais produtivas. Segundo o próprio escreveu, «sei quão mal sofrem os pilotos que fale na Índia quem nunca foi nela, e pratique no mar quem nele não entrou». Mas Pedro Nunes era um matemático e um cosmógrafo, os seus trabalhos de navegação astronómica interessavam-lhe, sobretudo, pelos problemas teóricos que neles reconhecia e com que se inspirava. Sabia que os portugueses tinham descoberto «novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos», mas Pedro Nunes olhava para cima e havia algo que mais o interessava. Disse-o logo a seguir: «E o que mais é: novo céu, novas estrelas».

Nuno Crato


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