Álvaro Tomás, calculator português em Paris 1

Henrique Leitão
C. F. M. C., Universidade de Lisboa

Álvaro Tomás (fl. 1509), mestre na Universidade de Paris nos primórdios do século XVI, é ainda uma figura histórica parcamente conhecida. Na sua obra Liber de triplici motu apresenta uma análise abrangente e sofisticada da teoria das proporções e da ciência do movimento da sua época, na forma característica da tradição Calculatória. Além de uma crítica interessante sobre as teorias físicas contemporâneas, esta obra é também relevante do ponto de vista matemático, pois Álvaro Tomás alcança resultados surpreendentes no estudo das séries infinitas.

Neste artigo, resumo o conhecimento actual sobre Álvaro Tomás, tendo recolhido toda a informação bibliográfica disponível de momento. Apresento muito sucintamente a obra Liber de triplici motu, acrescentando algumas observações sobre o contexto histórico e a influência que exerceu.

Introdução

Na sua obra bem conhecida, Los Matematicos Españoles del siglo XVI, J. Rey Pastor dedica todo um capítulo ao português Álvaro Tomás. Depois de descrever, em poucas páginas, os seus contributos principais para a Matemática desse mestre português, Rey Pastor termina o capítulo com o seguinte parágrafo:

Sirvan estas notas sobre el Liber de triplici motu de incentivo para que alguien lo analice, tan minuciosamente como merece, y para que alguna corporación ibérica emprenda su traducción. De los eruditos portugueses esperamos que indaguen en sus archivos datos bastantes para trazar la biografia de este sutil ingenio, digno precursor de Pedro Nuñez2.

Estas palavras foram escritas em 1926, mas infelizmente este programa de estudos sobre o «digno precursor de Pedro Nunes» está ainda por fazer.

Rey Pastor não foi o primeiro estudioso a mencionar a obra de Álvaro Tomás. Em 1913, o grande historiador da ciência Pierre Duhem, nos Études sur Léonard de Vinci apresentou a primeira análise moderna da obra de Álvaro Tomás3. Duhem notou a erudição e brilhantismo de Álvaro Tomás, comentando que:

Les problèmes que ces maîtres et régents s’acharnent à résoudre, dont ils entrevoient parfois la solution, en dépit de leurs connassances rudimentaires en Mathématiques, ce sont les deux grand problèmes de l’intégration des fonctions et de la sommation des séries. Et l’on se demande alors quels résultats ces hommes n’eussent point imprimée aux Mathématiques s’il leur eût été donné de lire Archimède4.

No seguimento destes estudos pioneiros, outros historiadores da ciência, ao investigarem os contributos de autores do século XVI para o desenvolvimento da Física e da Matemática, apontaram o importante papel desempenhado por Álvaro Tomás. É de especial interesse o trabalho do eminente historiador da Matemática Heinrich Wieleitner, o qual analisou as técnicas empregues por Álvaro Tomás na soma de séries infinitas5. Mais recentemente, estudiosos como Marshal Clagett, William Wallace, Edward Grant e Edith Sylla prestaram atenção à obra de Álvaro Tomás; os seus estudos sobre a importância dos contributos de Álvaro Tomás serão usados ao longo deste artigo. Por agora, é suficiente citar a avaliação feita por William Wallace:

At Paris [...] there can be little doubt that Thomaz was the calculator par excellence at the beginning of the sixteenth century, and the principal stimulus for the revival of interest in the Mertonian approach to mathematical physics6.

Por estranho que pareça, o impacto destas autoridades na matéria tem sido praticamente nulo na comunidade portuguesa. Se exceptuarmos as três breves páginas que Gomes Teixeira dedicou a Álvaro Tomás na História das Matemáticas em Portugal7, e uma entrada curta, mas correcta, na mais importante enciclopédia portuguesa8, não existem outras referências pormenorizadas ou fiáveis à obra científica de Álvaro Tomás, e muito menos uma análise cuidadosa do seu livro. Garção Stockler, Rodolfo Guimarães e Pedro José da Cunha não mencionam Álvaro Tomás nos seus estudos clássicos9, e historiadores posteriores da Ciência portuguesa seguem, no essencial, o mesmo padrão10. A melhor caracterização deste estado de coisas é talvez a afirmação feita por Joaquim de Carvalho, ao dizer que Álvaro Tomás é «[...] uma das figuras mais lamentavelmente esquecidas da nossa história científica.» 11. Uma prova mais do esquecimento a que Álvaro Tomás foi votado no seu próprio país pode ver-se no facto de as referências à sua biografia e obra conterem frequentes imprecisões: caveat lector.

O objectivo deste artigo é o de oferecer uma breve introdução à vida e obra de Álvaro Tomás. Não pretendo apresentar aqui novas descobertas relacionadas com este erudito português, nem uma explicação pormenorizada da sua obra. No entanto, o esquecimento a que este mestre português foi remetido entre os seus concidadãos e a importância da sua obra justificam que mesmo um projecto tão modesto como este deva ser levado a cabo12.

Biografia

A informação sobre Álvaro Tomás é muito escassa. Tal como nota Rey Pastor na citação que se reproduz acima, este é um aspecto que requer mais trabalho.

Os factos da vida de Álvaro Tomás que podem ser verificados com base em documentos são muito poucos e cobrem um período de apenas dez anos13. A primeira das pistas que possuímos é o seu livro – tanto quanto sabemos, o seu único livro – publicado em Paris em 1509 (ou 151014). O título completo é Liber de triplici motu proportionibus annexis magistri Alvari Thomae Ulixbonensis philosophicas Suiseth calculationes ex parte declarans, cuja tradução poderá ser: «Livro sobre os três [tipos] de movimento, com anexos sobre rácios, por Mestre Álvaro Tomás de Lisboa, explicando em parte os cálculos filosóficos [isto é, físicos] de Swineshead».

O «explicit» do Liber de triplici motu afirma que fora «compositus per Magistrum Alvarum Thomam ulixbonensem. Regentem Parrhisibus in Collegio Cocquereti.» Outro documento confirma que em 1513 Álvaro Tomás ainda ensinava Artes, ou seja, Filosofia Natural, no mesmo colégio universitário.

Assim, Álvaro Tomás nasceu em Lisboa e foi Mestre de Artes e «regens» no Collège de Cocqueret em Paris entre, pelo menos, 1510 e 1513. Este Collège tinha sido fundado em 1439 e, embora nunca se tenha alcandorado à distinção do Collège de Montaigu ou do Collège de Saint-Barbe, tinha, entre os seus professores e alunos, alguns dos intelectuais mais distintos do seu tempo15.

O «regens» era geralmente um aluno de uma das Faculdades (Teologia, Direito ou Medicina) que pagava os estudos ensinando Artes num dos colégios da universidade . Aliás, é conhecido que Álvaro Tomás se matriculou na Faculdade de Medicina em 1513 e é muito provável que ali tenha estudado enquanto ensinava Artes em Cocqueret. Completou os seus exames de licentia em Medicina dois anos mais tarde e obteve o grau de Doutor em 1518. Nesse mesmo ano, foi nomeado Professor na Faculdade de Medicina. Após 1521, a sua assinatura já não aparece nos arquivos da Universidade. O que se passou depois não é conhecido.

Frontispício do Liber de triplici motu

O facto de ter estado a estudar Medicina em 1513 e de ter obtido o Doutoramento em 1518 faz-nos supor que ainda não era um homem de meia-idade nessa altura. Por outro lado, o domínio absoluto que tinha de um impressionante leque de fontes, demonstrado no seu livro, e a posição que alcançara em 1510 em Cocqueret são difíceis de imaginar (mas não totalmente impossíveis) num homem com pouco mais de vinte anos. Em comparação com a carreira académica de outros estudiosos portugueses em Paris desse mesmo período, é plausível supor que Álvaro Tomás tivesse chegado a Paris por volta de 1500, um jovem com cerca de 16-18 anos, e que tivesse escrito o Liber de triplici motu alguns anos mais tarde após ter terminado os seus estudos de Artes e antes de se abalançar ao estudo da Medicina. A serem correctas estas suposições isto significaria que teria nascido em Lisboa por volta de 1480-85.

A presença de Álvaro Tomás em Paris é muito natural. Depois de um período de menor proeminência durante o século XV, por alturas do início do novo século a Universidade de Paris tinha recuperado a glória de eras passadas. Tinha-se estabelecido como a universidade mais reputada da Europa, atraindo estudantes de todas as partes excepto da Itália, país cujas Universidades disputavam esta liderança. Sabe-se que se haviam enviado alunos portugueses para a Universidade de Paris desde pelo menos 1192. No período entre 1500 e 1550, cerca de 300 portugueses frequentavam a Universidade de Paris16.

Nas primeiras décadas do século XVI, um número significativo de estudantes portugueses estava em Paris. Além de humanistas, filósofos e teólogos, entre os contemporâneos de Álvaro Tomás encontramos homens que viriam a dar um grande contributo para a história da ciência em Portugal. É o caso de Pedro Margalho (1471?-1556), Francisco de Melo (1490-1536) e João Ribeiro, por exemplo. Também brilhante era o grupo de espanhóis. Entre outros, Gaspar Lax (1487-1560), Pedro Ciruelo (1470-1554), Juan Martínez Silíceo (1486-1557), Juan de Celaya (1490-1558), foram contemporâneos de Álvaro Tomás em Paris17. Este ibéricos viriam a ter um papel importante na História da Ciência, o que levou um historiador moderno a comentar que

Entre os muitos estrangeiros em Paris na volta do século XVI, nenhum grupo era mais interessante que o dos espanhóis e portugueses18.

A história das relações intelectuais entre estes homens está, em grande medida, ainda por fazer. O estudo da sua influência na Península Ibérica é também um desideratum. Em maior ou menor grau, estes homens parece terem sido influenciados pelo nominalista escocês John Major (1467-1550) que era, no início do século XVI, a figura de proa em Paris. Major pontificava no que era talvez o colégio mais importante da Universidade de Paris, o Collège de Montaigu, mas os seus discípulos viriam a ocupar cátedras em todos os outros colégios, estendendo, dessa forma, a sua influência a toda a Universidade de Paris. Não temos provas de que Álvaro Tomás estivesse directamente ligado a Major ou que tivesse sido seu discípulo directo, mas não restam dúvidas de que beneficiou do ambiente intelectual que se vivia em torno do mestre escocês.

Mesmo rodeado de homens de grande prestígio intelectual, Álvaro Tomás parece ter sido uma figura de primeira linha. Um dos seus contemporâneos considerava-o superior a Pierre d’Ailly19 e os historiadores modernos confirmam a posição intelectual de Álvaro Tomás entre os seus pares20.

A tradição calculatória

Para se perceber o contributo científico de Álvaro Tomás, é necessário fazer uma incursão, ainda que breve, sobre o que tinha sido alcançado pela ciência mecânica medieval até ao final do século XV. Uma descrição completa destas ideias está, obviamente, fora do escopo deste artigo. Remetemos, pois, o leitor interessado nesta matéria para a bibliografia relevante21.

Em meados do século XIV, o estudo do movimento – uma questão central e sempre problemática no corpus da Física aristotélica – mudou radicalmente devido aos contributos de um grupo de homens do Merton College, em Oxford. Num período de aproximadamente vinte anos, o aparecimento sucessivo de uma série de textos sobre proporções e rácios, movimento e regras lógicas aplicadas a questões físicas, anunciava uma nova abordagem aos problemas da filosofia natural. De entre estes, os mais importantes eram: Thomas Bradwardine, De proportionibus velocitatum (1328), William Heytesbury, Regulae solvendi sophismata (1335), John Dumbleton, Summa logicae et philosophiae naturalis (1349), Richard Swineshead, Liber calculationum (ca. 1350). Em vez de proceder a uma análise do movimento nas categorias tradicionais de acto e potência, estes homens adoptaram uma abordagem analítica formal e profundamente especulativa que considerava o movimento essencialmente como uma relação. A sua análise do movimento inclui discussões pormenorizadas sobre os possíveis tipos de movimento (uniformiter, uniformiter difformis, difformiter difformis, etc.), a descrição de cada um destes diferentes tipos de movimento e uma análise da origem de cada movimento. Estes estudos eram abstractos, não contendo nenhuma referência a qualquer acontecimento natural ou artefacto, e usavam amplamente técnicas lógicas desenvolvidas noutras demandas intelectuais como seja o estudo da linguagem.

O contexto original destas discussões era a questão muito debatida da «intensio et remissio formarum», que é, basicamente, a questão de saber como as qualidades variam de intensidade. Para os «Calculadores» de Oxford – era esta a designação por  que vieram a ser conhecidos - e para Swineshead, «o Calculador», as variações de velocidade, isto é, o movimento local, eram tratadas como variações na intensidade de uma qualidade, do mesmo modo que a cor muda os seus matizes ou um corpo fica mais quente. Mas os problemas que abordavam tinham um contexto muito mais abrangente do que a mera questão de conhecer o movimento local (motus localis); de facto, estas técnicas calculatórias também eram usadas na Medicina e na Teologia, por exemplo. Na perspectiva da história da mecânica, os contributos da escola de Merton foram resumidos desta forma por um dos historiadores mais competentes da ciência medieval:

Das discussões destes quatro homens em Merton resultaram contributos muito importantes para o desenvolvimento da Mecânica. (1) Uma distinção clara entre Dinâmica e Cinemática, expressa como distinção entre as causas do movimento e os efeitos espacio-temporais do movimento. (2) Uma nova abordagem à velocidade, em que a ideia de uma velocidade instantânea foi objecto de estudo, talvez pela primeira vez, e com uma ideia mais precisa de «funcionalidade». (3) a definição de um movimento uniformemente acelerado, como aquele em que incrementos iguais de velocidade são adquiridos em períodos de tempo iguais. (4) O enunciado e a demonstração do teorema fundamental da Cinemática [...]22  

Não estamos perante despiciendos feitos intelectuais. Embora para um leitor moderno os textos que estes homens produziram são decerto prolixos, confusos e difíceis de seguir – crítica que alguns dos seus contemporâneos também fizeram – por debaixo desta complexidade encontra-se uma capacidade excepcional para abarcar e extrair os aspectos matemáticos do problema do movimento. O seu maior feito – por vezes considerado o contributo medieval mais significativo para a Física - talvez seja a afirmação e demonstração do chamado «Teorema da Velocidade Média» para o movimento uniformemente acelerado. Em termos modernos, este teorema estabelece que um corpo em movimento uniformemente variado durante um determinado intervalo de tempo percorrerá a mesma distância que um corpo com uma velocidade uniforme igual à velocidade instantânea no instante médio, no mesmo intervalo de tempo. O poder deste teorema está em equacionar, para propósitos de cálculo da distância percorrida, um movimento acelerado com um movimento uniforme. Este teorema foi provado através de muitos argumentos de carácter geométrico e numérico e tornou-se no cerne dos estudos do movimento dos Calculadores.

A tradição Calculadora desenvolveu-se apreciavelmente quando chegou ao Continente. Em Paris, as ideias e técnicas da abordagem de Merton foram incorporadas num quadro conceptual mais realista que tinha sido criado por pensadores do século XIV como Jean Buridan e Nicole Oresme. Um aspecto proeminente dos sucessos destes estudiosos de Paris foi a introdução da noção de ímpeto na análise do movimento.

O contributo de Álvaro Tomás

O Liber de triplici motu é uma peça sofisticada e tecnicamente complexa no corpus da tradição Calculatória. Os três tipos de movimento mencionados no título são o movimento local, o aumento e a alteração. O livro abre com uma discussão pormenorizada da teoria das proporções, em que o autor apresenta sistematicamente alguns dos resultados mais importantes. A segunda  parte do livro consiste numa discussão do movimento. Nesta parte, o autor aborda as questões de «De motu locali quoad causam», «De motu locali quoad effectum», «De motu augmentationis», «De motu alterationis»23.

A influência do Liber Calculationum, de Swineshead, é clara, mas a exposição de Álvaro Tomás é mais sistemática e mais bem organizada. A primeira impressão que o leitor retem é a da extensão dos conhecimentos de Álvaro Tomás. As suas fontes matemáticas vão dos mais antigos, Nicómaco ou Boécio, até à edição muito recente de Euclides por Bartholomeus Zambertus (Veneza, 1505). Está tão à vontade com os ingleses Swineshead, Bradwardine e Heytesbury, como com os parisienses, entre eles Oresme, e com os italianos (Paulo de Veneza, Jaime de Forli, etc.). O mestre português está na posição excepcional de conhecer as técnicas formais da abordagem de Merton, a tradição conceptual da escola parisiense e os contributos italianos 24.

Mas o contributo de Álvaro Tomás não seria descrito correctamente se apenas se mencionasse o seu papel como catalisador da tradição de Merton em Paris. Na perspectiva da sua abordagem matemática o Liber de triplici motu contém resultados admiráveis. Dado ser impossível fazer uma revisão do conteúdo do livro, farei apenas alguns comentários aos aspectos relacionados com a soma de séries infinitas.

Tomás segue estratégias típicas da tradição calculatória e, através de uma utilização engenhosa e complexa do Teorema da Velocidade Média, consegue chegar a resultados surpreendentes. A abordagem usada por Tomás pode ser melhor compreendida se usarmos terminologia dos nossos dias. O leitor pode imaginar que está perante um gráfico moderno com a velocidade representada no eixo vertical e o tempo nas abcissas25. Nesta representação, um movimento com velocidade constante é representado por uma linha horizontal e um movimento uniformemente acelerado por uma linha com um declive finito. Um movimento genérico será representado por uma curva. Em todos os casos, o espaço total atravessado pelo móvel é dado pela área por debaixo da curva. Álvaro Tomás considera diferentes tipos de movimento. A questão a que ele tenta responder é inspirada pelo Teorema da Velocidade Média, mas, agora, para movimentos muito mais complexos: dado um determinado movimento complexo, qual seria a velocidade uniforme de tal modo que um corpo, movendo-se com esta velocidade constante, percorresse, no mesmo tempo, a mesma distância que o corpo que segue o movimento mais complexo?

Tomás não consegue abordar o problema em termos gerais, mas leva em conta os movimentos complexos que correspondem a uma divisão no eixo do tempo numa progressão geométrica. Em cada intervalo, parte-se do princípio que a velocidade é constante ou uniformemente acelerada. Através desta construção rigorosa e utilizando o Teorema da Velocidade Média, Tomás consegue calcular o espaço total percorrido pelo móvel e a velocidade uniforme correspondente que o faria percorrer a mesma distância no mesmo tempo. Não é difícil perceber que, do ponto de vista matemático, Álvaro Tomás está a calcular a soma de uma série infinita.

Um dos movimentos levados em conta pelo mestre português corresponde à série

1 + 2x + 3x2 + 4x3 + ...

Tomás consegue mostrar que a soma desta série é igual ao quadrado da soma da série:

1 + x + x2 + x3 + ...

No espírito tipicamente calculatório, Tomás leva estas técnicas ao limite, considerando movimentos progressivamente mais complexos. Com isto, é capaz de obter resultados matemáticos notáveis. Por exemplo, mostra que a série

1 + (2/1)x + (3/2)x2 + (4/3)x3 + ...

está limitada superiormente por

1 + x + x2 + x3 + ... = 1/(1-x)

e limitada inferiormente por

1 + 2x + 3x2 + 4x3 + ... = 1/(1-x)2.

Rey Pastor observou que algumas das séries analisadas por Tomás causariam muitas dificuldades mesmo aos alunos de hoje em dia. Consegue somar séries como

1 + x + ax2 + bx3 + a2x4 + b2x5 + ...

ou mesmo,

1 + (3/2)(1/2) + (5/4)(1/22) + (9/8)(1/23) + ...

Naturalmente, não existe uma observação pormenorizada dos critérios de convergência da série estudada, nem uma tentativa de chegar a definições rigorosas. No entanto, Tomás tem consciência de que, embora algumas das séries que propõe possam ser somadas, outras não podem, quer porque é tecnicamente muito difícil (ou impossível), quer porque as somas parciais dos termos aumentam muito rapidamente.

Conclusão

Seria interessante, neste ponto, avaliar a influência do livro de Tomás. Não se pode fazer, em geral, uma tal avaliação, pois o impacto e destino das técnicas calculatórias na Europa do século XVI é uma questão que só recentemente tem sido investigada. Mas creio que já se recolheu evidência suficiente que consubstancie a afirmação que o livro de Tomás era bem conhecido e foi muito influente. Alguns dos seus contemporâneos citam o livro. Pedro Margalho, Pedro de Espinosa e Diego de Astudillo dão loas, todos eles, a Álvaro Tomás nas suas obras. Juan de Celaya, que foi colega de Tomás em Cocqueret não cita o português pelo nome, mas o seu Expositio (...) in octo libros phisicorum Aristotelis26 foi certamente inspirado pelo Liber de Triplici Motu. Uma outra indicação de uma grande divulgação do Liber de Triplici Motu é o número de exemplares existentes. Segundo Wieleitner, trata-se um «liber rarissimus», opinião que outros historiadores ecoaram27. Mas uma pesquisa rápida nos catálogos das bibliotecas principais em todo o mundo revelou mais de vinte cópias ainda existentes hoje em dia. Para um livro escrito em 1509, é um número significativo que revela uma ampla divulgação.

No que respeita ao estudo das séries infinitas, Álvaro Tomás constitui o culminar de uma tradição intelectual que alcançou os seus limites. A abordagem discursiva a estes problemas matemáticos seria abandonada em breve, e esquecida, com o desenvolvimento das abordagens algébricas muito mais potentes no século XVII. O Tractatus de seriebus infinitis (1689) de  Jakob Bernoulli abria as portas a um novo mundo no estudo das séries infinitas. Mas no estudo do movimento local, o livro de Álvaro Tomás foi talvez muito mais relevante. Argumentou-se plausivelmente que o Liber de Triplici Motu pode ter sido muito influente na formação científica de Domingo de Soto (1495-1560), quer directamente, quer através do professor de Soto em Paris, Juan de Celaya. É da maior importância histórica a possível ligação entre Álvaro Tomás e Domingo de Soto, dado que é hoje sabido que Soto foi o primeiro autor a argumentar que a queda livre dos corpos constitui um movimento uniformiter difformis relativamente ao tempo. Ou seja, em termos modernos, que em queda livre um corpo percorre espaço em proporção directa aos quadrados dos tempos de queda28.

Depois das investigações de William Wallace, é hoje em dia aceite que Galileu conhecia bem os resultados da tradição dos Calculatores na senda de Domingo de Soto. É muito provável que tenha sido a partir deste conhecimento que Galileu se apercebeu pela primeira vez da lei correcta para a queda livre dos corpos, que apresentou no início do século XVII29. Neste sentido, é importante apontar-se o papel de Álvaro Tomás enquanto figura proeminente da tradição calculatória que acabou por levar aos contributos excepcionais de Galileu. Mas não se fica por aqui o interesse dos leitores portugueses nesta história fascinante. O conhecimento que Galileu tinha das ideias e técnicas dos Calculadores provém do seu estudo dos apontamentos das aulas dos professores jesuítas do Colégio Romano. Na eficiente rede de colégios jesuítas a tradição calculatória teve uma larga divulgação com origem na Península Ibérica – consequência directa do regresso à Península de antigos alunos em Paris e, em especial, do ensino de Domingo de Soto. De facto, um número substancial de manuscritos de colégios jesuítas confirma que nas últimas décadas do século XVI a terminologia e noções dos Calculadores estavam a ser usadas na análise da natureza do movimento em Portugal30.

1 Originalmente publicado, em inglês, no Bulletin do CIM [Centro Internacional de Matemática], nº9, Dezembro de 2000, pp. 10-15.
2 J. Rey Pastor, Los Matematicos Españoles del Siglo XVI (Toledo: Biblioteca Scientia, 1926), p. 89.
3 Álvaro Tomás não era, em sentido absoluto, desconhecido dos historiadores. O seu nome aparece incluído em resenhas bibliográficas desde o século XVIII, como seja a de Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana (Lisboa, 1741), Vol. I, pp. 114-115, e aparece em estudos bem conhecidos levados a cabo no século XIX: Martín Fernandez Navarrete, Disertacion sobre la Historia de la Nautica (Madrid: Imprenta de la Viuda de Calero, 1846), p. 126.
4 Pierre Duhem, Études sur Leonard de Vinci, 3 Vols. (Paris : Hermann et Fils, 1906-1913), Vol. III, p. 543. [Informação sobre Álvaro Tomás a pp. 532-543].
5 H. Wieleitner, “Zur Geschichte der unendlichen Reihe in Christilichen Mittelalter”, Bibliotheca Mathematica, Dritte Folge, Vol. 14 (1914), 150-168.
6 W. Wallace, “Thomaz, Alvaro”, in: C. C. Gillispie (Ed.), Dictionary of Scientific Biography (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1970-1980), Vol. 13, p. 350.
7 F. Gomes Teixeira, História das Matemáticas em Portugal (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1934), pp. 95-97.
8 F. Gama Caeiro, “Tomás, Álvaro”, in: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura  (Lisboa: Editorial Verbo, 1963-1985), Vol. 17, p. 1643.
9 Francisco de Borja Garção Stockler, Ensaio Historico sobre a Origem e Progresso das Mathematicas em Portugal (Paris: Officina de P. N. Rougeron, 1819); Rodolfo Guimarães, Les Mathématiques en Portugal (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1900); Pedro José da Cunha, Bosquejo Histórico das Matemáticas em Portugal (Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1929).
10 Só para dar dois exemplos, encontram-se menções muito breves em Joaquim Barradas de Carvalho, Portugal e as Origens do Pensamento Moderno (Lisboa: Livros Horizonte, 1981), p. 69; e em Luís de Albuquerque, “Matemática e Matemáticos em Portugal”, in: Joel Serrão (ed.), Dicionário de História de Portugal (Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1965), Vol. IV, p. 222.
11 Joaquim de Carvalho, “Influência dos Descobrimentos e da Colonização na Morfologia da Ciência Portuguesa do Séc. XVI”, in: Obra Completa (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982), Vol. III, p. 360. [Originalmente in: Congresso do Mundo Português, Vol. V (Lisboa, 1940)].
12 O meu objectivo principal é o de apresentar este autor ao público português. Irei basear-me essencialmente em materiais já publicados. Apresentarei um estudo mais extenso e pormenorizado noutra publicação.
13 Para informação biográfica sobre Álvaro Tomás e indicações dos documentos originais, ver: Luís de Matos, Les Portugais à l’Université de Paris entre 1500 et 1550 (Coimbra: Universidade de Coimbra, 1950), R. G. Villoslada, La Universidad de Paris durante los estudios de Francisco de Vitoria, O. P. 1507-1522 (Roma: Gregorian University Press, 1938), e Luís Ribeiro Soares, Pedro Margalho (Lisboa: Imprensa Naciona-Casa da Moeda, 2000).
14 Devido a um pormenor técnico relacionado com o calendário académico em Paris, há alguma incerteza quanto à data precisa. Seguindo a maior parte dos autores, utilizarei 1509. Ver L. R. Soares, Op. cit., p. 225.
15 Ver: André Tuilier, Histoire de l’Université de Paris et de la Sorbonne (Paris : G.-V. Labat, 1994).
16 Ver : L. de Matos, Op. cit.
17 Hubert Élie, “Quelques maîtres de l’Université de Paris vers l’an 1500”, Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge, 18 (1950-51) 193-243.
18 Marshall Clagett, The Science of Mechanics in the Middle Ages (Madison : University of Wisconsin Press, 1959), p. 655.
19 É esta a opinião expressa por Gregoire Bruneau na sua carta a Álvaro Tomás impressa no final do Liber de triplici motu.
20 Villoslada, após tecer panegíricos a Juan de Celaya, menciona Álvaro Tomás dizendo que “El maestro lusitano era, por su ecletismo, su erudición y dialética invencible, gemelo de Celaya e superior a él como matemático”. Villoslada, Op. cit., p. 190.
21 Algumas obras de introdução a este assunto são: Edward Grant, Physical Science in the Middle Ages (Cambridge: Cambridge University Press, 1977); David C. Lindber (Ed.), Science in the Middle Ages (Chicago & Londres: The University of Chicago Press, 1978); A. P. Juschkewitsch, Geschichte der Mathematik in Mittelalter (Leipzig: Teubner, 1964). Para estudos mais profundos, veja-se o trabalho de Marshal Clagett citado anteriormente e também as seguintes obras: Curtis Wilson, William Heytesbury: Medieval Logic and the Rise of Mathematical Physics (Madison: University of Wisconsin Press, 1956); Edith D. Sylla, Oxford Calculators and the Mathematics of Motion, 1320-1350, Harvard Dissertations in the History of Science (Garland, 1991); H. Lamar Crosby, Jr., Thomas of Bradwardine. His Tractatus de proportionibus. Its significance for the Development of Mathematical Physics (Madison: University of Wisconsin Press, 1955).
22 M. Clagett, Op. cit., p. 205.
23 Esta á apenas uma indicação muito breve das partes do livro. O Liber de triplici motu está dividido em várias partes e cada uma destas em capítulos. Tem 141 fls., impressas a duas colunas num tipo de letra gótico pequeno. Utilizei a cópia existente na Biblioteca Nacional em Lisboa.
24 M. Clagett comenta que “Álvaro Tomás utilizou não apenas as obras em Inglês, mas era um profundo conhecedor dos comentários e paráfrases italianos. Domina, pois, toda a tradição mecânica medieval”, Op. cit., p. 657.
25 Embora esta representação gráfica remonte a Oresme, não há figuras dessas no Liber de triplici motu e mesmo os números aparecem muito raramente. O leitor tem de levar em conta que o contexto original em que o livro foi escrito parece ter sido o das disputas verbais do tipo Sophismata. Num estudo fundamental, Edith Sylla nota que “é o contexto de disputa intelectual que parece motivar Álvaro a alcançar muitos dos seus resultados matemáticos”. Estas questões são importantes e não podem ser levadas mais longe aqui. De qualquer dos modos, Sylla conclui que este contexto disputativo teve um impacto positivo na física matemática de Álvaro Tomás. Ver: Edith D. Sylla, “Alvarus Thomas and the role of Logic and Calculations in sixteenth century Natural Philosophy”, in: S. Caroti (Ed.), Studies in Medieval Natural Philosophy (Florença: Olschki, 1989), 257-298.
26 [Juan de Celaya], Expositio magistri de Celaya Valentini in octo libros physicorum Aristotelis, cum questionibus eiusdem secundum triplicem viam beati Thomae, realium, et nominalium (Paris, 1517).
27 Wieleitner oferece uma descrição bibliográfica pormenorizada da cópia de Munique e menciona que apresenta, escrito por mão posterior, a inscrição Liber rarissimus; Rey Pastor, por certo indo beber ao estudioso alemão, chama-lhe “un libro rarissimo” e, da mesma forma, Gomes Teixeira diz que “o livro de Álvaro Tomaz é muito raro”.
28 Domingo de Soto, Super octo libros physicorum Aristotelis questiones (Salamanca, 1545). Para informação biográfica sobre Soto ver: V. Beltrán de Heredia, Domingo de Soto: Estudo Biográfico Documentado (Salamanca: Biblioteca de Teólogos Españoles, 1960); relativamente às questões físicas, ver os vários artigos de William A. Wallace. Uma das suas obras mais recentes contém referências a escritos anteriores: William A. Wallace, “Domingo de Soto’s “laws” of motion: Text and context”, in: Edith Sylla e Michael McVaugh (Eds.), Texts and Contexts in Ancient and Medieval Science (Leiden: Brill, 1997) 271-303.
29 Galileo Galilei, Galileo’s early notebooks: the physical questions, a translation from the Latin with historical and paleographical commentary [edited by] William A. Wallace (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1977); William A. Wallace, Galileo and His Sources: The Heritage of the Collegio Romano in Galileo’s Science (Princeton: Princeton University Press, 1984).
30 Ver as obras de W. Wallace: “Late sixteenth-century Portuguese manuscripts relating to Galileo’s early notebooks”, Revista Portugeusa de Filosofia, 51 (1995) 677-698; “Domingo de Soto and the Iberian roots of Galileo’s science”, in: Kevin White (Ed.) Hispanic Philosophy in the Age of Discovery (Washington DC: Catholic University of American Press, 1977) 113-129.


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