Do Informalismo ao Formalismo na Ciência Setecentista em Portugal:
Do Conde da Ericeira à Academia Real das Ciências de Lisboa


Os antecedentes histórico-culturais que precedem a emergência do movimento académico português têm a sua base fundante num triângulo conceptual, cujos vértices são o período do Renascimento, o espírito do Humanismo e a experiência da Expansão marítima. A influência desta triangulação nas elites intelectuais da época exerceu-se de maneira diversa, acabando por prevalecer, devido às circunstâncias político-religiosas quinhentistas, uma mentalidade de tipologia acentuadamente filológica, de grande apego à autoridade sapiencial da Antiguidade Clássica e ao fideísmo da patrística.

A consequência mais imediata deste contexto cultural, que para o caso em estudo aqui importa salientar, foi o aparecimento de uma sucessão de academias, nos séculos XVII e XVIII, dedicadas a temas literários e imbuídas de uma estética barroca que na época vigorava. Como exemplos dessas agremiações têm-se as seguintes:

  • Academia dos Singulares (1663)
  • Academia dos Solitários (1664)
  • Academia Instantânea (1675)
  • Academia dos únicos (1691)
  • Academia dos Anónimos (inicios do século XVII)
  • Academia dos Ilustrados (1716)
  • Academia Problemática (1721)
  • Academia Vimaranense (1721)
  • Academia dos Aplicados (1722)
  • Academia dos Escolhidos (1740)
  • Academia dos Ocultos (1745)

Ao mesmo tempo que no reino português floresciam essas pérolas do barroco, na Europa, a ciência trilhava os caminhos da modernidade, em função de articular uma teoria (possível) com uma prática (observável), que seria sujeita a uma experimentação, destinada a comprovar a eficácia da sua validade, com resultados expressos em notação da linguagem matemática, daí resultando una ampliação do conhecimento. Todo este processo da ciência moderna era discutido e comparticipado em academias científicas, que no decorrer dos séculos XVII-XVIII foram surgindo em várias cidades europeias com o patrocínio de poderosos mecenas, sendo de destacar as que se seguem:

  • Accademia dei Lincei (1660-1630), Roma.
  • Collegium Naturae Curiosum (1651/1652-1695), Schweinfurt.
  • Accademia del Cimento (1657-1667), Florença.
  • Royal Society (1660), Londres.
  • Academia Real das Ciências de Paris (1666-1793), Paris.
  • Academia das Ciências de Berlim, (1700), Berlim.
  • Academia das Ciências da Rússia, (1724), S. Petersburgo.

Em Portugal, os primeiros passos que indiciam a caminhada rumo a um academismo científico foram dados por D. Francisco Xavier de Meneses, 4° Conde da Ericeira (1673-1743), responsável pela sustentação de uma série de academias, onde o prazer da fruição dos textos literários barrocos se mesclava com a apreciação de curiosidades produzidas pela ciência. A actividade académica de Ericeira ligou o seu nome a quatro instituições:

  • Conferências Discretas e Eruditas (1696-1705)
  • Academia dos Generosos (1714-1716)
  • Academia Portuguesa (1717-1722)
  • Academia Real de História Portuguesa (1720-1760)

Conquanto se tenha por certo que as academias ericeirenses eram despojadas de normas rígidas e hierarquizadas de organização inerentes a um modelo académico de agremiação científica, é notável, para a época e para o meio, que exista alguém dedicado ao debate apaixonado da ciência e o promova num círculo académico por si organizado.

Após o desaparecimento de D. Francisco Xavier de Meneses há um hiato de quase quatro décadas até que se concretize um projecto de uma instituição científica académica portuguesa. Nesse sentido, a Academia Real das Ciências de Lisboa apresentou-se como uma peça-chave e órgão modelar no panorama organizativo da ciência setecentista em Portugal.

Fundada a 24 de Dezembro de 1779, por acção concertada de D. João Carlos de Bragança, 2° Duque de Lafões (1719-1806), de José Francisco Correia da Serra, celebrizado como Abade Correia da Serra (1751-1823), de Luís António Furtado do Rio de Mendonça e Faro, 6° Visconde de Barbacena (1754-1830) e de Domingos Vandelli (1735-1816), a Academia realizou o seu primeiro encontro particular em 16 de Janeiro de 1780 e a sessão pública inaugural a 4 de Julho do mesmo ano, tomando o título de Real em 13 de Maio de 1783.

A estrutura académica era composta por três classes, ligadas às Ciências da Observação, às Ciências do Cálculo e às Belas Letras e comportava cinco categorias de sócios, que podiam ser Efectivos, Honorários, Estrangeiros, Correspondentes e Supranumerários, os quais assegurariam a prossecução das actividades da Academia, que compreendiam a investigação da natureza, a divulgação de resultados, a aplicação de conhecimentos e a pedagogia do saber.

No percurso comparativo entre o amadorismo do Conde da Ericeira e o profissionalismo da Academia Real das Ciências são detectáveis alguns tópicos relacionais possíveis de serem enunciados, designadamente:

- Ericeira apresenta-se como um prenúncio do academismo científico e embora não sendo a sua acção uma ruptura ela é um desvio às normas da cultura letrada vigente, que esboça um confronto tradição-inovação, manifesto na fundação da Academia das Ciências.
- De Ericeira à Academia assiste-se à mudança de uma perspectiva de curiosidade científica para uma atitude de ciência consciente, o que implica uma alteração da fé e da filosofia, passando-se de uma teologia científica para uma ciência tecnológica e de uma providência da ordem natural a uma previdência do progresso, que se traduz por uma substituição da teleologia pela tecnologia.
- Com o advento da Academia há uma autonomia do conhecimento científico e a formação de um conceito de ciência como utilidade.
- Aquele que conhece, o intérprete da natureza, isto é, o cientista, passa a ter um estatuto baseado no prestígio que a sua actividade lhe confere e no interesse que dela provém para si e para a comunidade, quer a restrita, composta pelos seus pares, como a alargada, constituída pela própria sociedade.
- Com a Academia altera-se a relação anteriormente existente entre patrono e apaniguados, que transita do individual para a esfera do colegial, e que simboliza um triunfo do corporativismo.
- Das reuniões do Conde da Ericeira às sessões da Academia das Ciências há uma transformação das relações informais em redes formais do conhecimento:

A Academia representa um ponto dessa rede, através de uma partilha, socialização e difusão do conhecimento científico.




Referências bibliográficas

Bluteau, Rafael, Prosas Portuguesas recitadas em differentes Congressos Academicos pelo Padre D. Rafael Bluteau, 2 tomos em 1 volume, Lx 1728.
Lameira, António, Do Informalismo ao Formalismo na Ciência Setecentista em Portugal. Do Conde da Ericeira à Academia Real das Ciências de Lisboa, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2000 [Texto policopiado].
Palma-Ferreira, João, Academias Literárias dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1982.


António Manuel Simão Lameira

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