Luís Tirapicos, Visionarium

"O Eclipse" de António Nobre








É inútil reduzir a escombros, por força da análise, a beleza e o significado da poesia. Ainda assim, deve-se reconhecer que a produção literária não é, quer na vertente da prosa quer na vertente poética, um acto isolado. São determinantes as vivências do escritor, as influências de estilo, a época em que vive, o contexto social.

O presente texto busca, no poeta portuense António Nobre, os ecos de uma ciência feita poesia, referência casual mas oportuna a fenómenos ou a objectos celestes. António Nobre nasceu na cidade do Porto, na Rua de St.ª Catarina, aos 16 de Julho de 1867. É nesta cidade que completa os estudos liceais, em 1888, indo depois para Coimbra estudar Direito. António Nobre havia frequentado vários colégios, o do Padre Loureiro Dias, de São Lázaro e da Glória. Segundo os estudiosos o poeta teve uma infância feliz, transformada em nostálgica recordação, mais para o epílogo da sua obra.


António Nobre (1867-1900)

Curiosamente um dos episódios mais originais relacionados com o folclore à volta dos cometas teve a sua origem em Portugal, mais concretamente entre os produtores de vinho do Porto do século XIX.

Corria o ano de 1811, quando, a 25 de Março, o astrónomo francês Honoré Flaugergues descobriu um cometa brilhante visível a olho nu. Designado por cometa Flaugergues (geralmente os cometas recebem o nome do descobridor) foi visível durante 18 meses, tornando-se num dos cometas de maior período de visibiÉ em 1884 que António Nobre escreve "O Eclipse" (então com 17 anos). Datado de 24 de Setembro, este poema só viria a ser publicado em 1921 (Primeiros versos), já depois da sua morte, que ocorreu precocemente em 1900. Foi, portanto, escrito no Porto ou numa das localidades onde António Nobre passava as férias de Verão (Leça da Palmeira, Lixa, Seixo). O poema é em si uma referência ao fenómeno que geralmente designamos por eclipse total da Lua.

Inspirado por esse extraordinário exemplo de erudição e saber científico, que constitui a obra de Luciano Pereira da Silva A astronomia de Os Lusíadas (que por sua vez havia bebido inspiração em "L'Astronomia nell'Antico Testamento" de Schiaparelli e num artigo de F. Angelitti sobre as referências de Dante às estrelas e constelações), tentaremos aqui vislumbrar o "significado" da referência astronómica de "O Eclipse" de António Nobre.

Comecemos por observar as duas primeiras estrofes do poema:


Naquela tarde eu contemplava, ansioso,
A lua das marés:
Ia ver um fenómeno curioso,
Pela primeira vez.

Desde as sete horas que eu me achava pronto,
Pois vinha no jornal
Que se daria, às sete e meia em ponto,
O eclipse total.


Durante os eclipses lunares o nosso astro obscurece-se significativamente. Quando completamente mergulhado no cone de sombra projectado pela Terra pode adquirir colorações avermelhadas, como nesta imagem.

Em "História da Literatura Portuguesa" António José Saraiva e Óscar Lopes dizem da poesia de Nobre: "Tal poesia assimila todo o prosaico de um romance autobiográfico (...)". O aspecto autobiográfico levado ao extremo, conduz-nos à possibilidade de António Nobre ter sido inspirado por um eclipse a que eventualmente terá assistido. Estas duas estrofes são aliás ricas em pormenores (a tal ponto que se poderia quase chamar descrição científica). É-nos dada a natureza do fenómeno, a hora do início e as circunstâncias em que o narrador teve conhecimento da sua ocorrência. Depois de uma pesquisa pelos Borda d'Água, que usámos por serem de acesso fácil (de qualquer modo os Borda d'Água são elaborados com base em efemérides astronómicas), concluímos que as circunstâncias em que decorre o eclipse de António Nobre não correspondem a um eclipse real, nem em 1884, nem nos quatro anos anteriores. Não quer isto dizer que o poeta não possa ter assistido a algum eclipse da Lua, facto de que se suspeita fortemente quando lemos a décima estrofe, dado o realismo da descrição:




E a lua, a pouco e pouco desmaiando,
Sumia-se no ar,
Como se um monstro a fosse devorando,
Na sombra... devagar...


Já outras referências de carácter científico mostram um António Nobre que prefere um astrónomo "clássico" como Ptolomeu aos astrónomos "modernos" como Galileu ou Newton. É assim a quinta estrofe:


Um moço poeta, rouxinol das praias,
Um óculo ofereceu,
A ti, meu casto Ptolomeu de saias,
Geómetra do céu!


De resto António Nobre teve, muito provavelmente, acesso aos conhecimentos de astronomia do seu tempo, visto que, pelo menos em 1895, o manual de Cosmografia para os liceus se encontrava perfeitamente actualizado (Tratado elementar de Cosmographia, J. A. Serrasqueiro, Coimbra 1895).

Curiosa é também a apologia que faz de superstições e crenças populares, pois nem mesmo o esclarecido Fernando Pessoa escapou ao fascínio do misticismo astrológico (astrologia que foi desacreditada pela ciência moderna):


Ah, bem dizem as lendas, os adágios,
E as bruxas do Sabá,
Que os eclipses da lua são presságios,
Sinais de coisa má!


A Lua é um tema recorrente na poesia de António Nobre, onde para além dos "significados astronómicos" dos seus poemas, o que importa é o rol de sentimentos por que somos invadidos ao lê-los. Ou não fosse a Lua um símbolo do Romantismo.


© Instituto Camões 2003