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O que foi o Núcleo de Matemática, Física e Química?
Na realidade, apesar do texto da reforma universitária promovida pelo governo, logo após a instituição do regime republicano declarar expressamente que a primeira função das Faculdades de Ciências, então criadas, seria a investigação científica, pouco - ou nada - se fez para que tal acontecesse. Após uma primeira tentativa para alterar esta situação - realizada por António Sérgio quando da sua fugaz passagem pelo Ministério da Instrução, coube a Augusto Celestino da Costa realizar uma profícua acção neste sentido. Augusto Celestino da Costa (1884-1956), distinto histologista e embriologista, foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa desde 1911 a 1947, profundo conhecedor das lacunas nas nossas Universidades no que respeita à investigação científica, não hesitou em aceitar o desafio de reunir esforços para alterar esta situação, ocupando uma parte do seu tempo de professor e investigador para, com determinação e energia, trabalhar com esse objectivo: primeiro como vogal, vice-presidente e, em 1934, presidente da Junta de Educação Nacional (J.E.N) e, depois, do organismo que lhe sucedeu, em 1936, o Instituto para a Alta Cultura (I.A.C.). Diversos recém-licenciados pelas Universidades portuguesas motivados para o exercício de uma actividade científica - mas em geral, sem encontrarem no país quem os orientasse e locais onde trabalhassem - aproveitaram a oportunidade que lhes foi facultada por Celestino da Costa com a abertura de bolsas de estudo no estrangeiro. Entre eles, contava-se um número apreciável de interessados em ciências básicas, matemática, física e química, que conseguiram obter uma sólida formação como investigadores nos domínios que estudaram, geralmente sancionada pela obtenção do grau de doutor nas universidades em que trabalharam. Conscientes do atraso em que continuavam a sobreviver as nossas Universidades - incluindo actualização do ensino básico em ciências fundamentais - um grupo daqueles bolseiros, uma vez regressados a Portugal, reuniram esforços com outros universitários, já em actividade, numa tentativa de alterar a situação em que se encontrava a instituição universitária portuguesa no que respeitava à investigação e ensino naquelas ciências. Foi esta a origem do Núcleo de Matemática, Física e Química, criado informalmente por um grupo de investigadores todos, de um modo ou de outro, ligados à Universidade e, na sua maior parte, regressados de longos estágios no estrangeiro. Não se conhecem as condições reais da fundação do Núcleo, de quem partiu inicialmente a ideia, que conversações houve para a sua concretização. Quase nada ficou escrito sobre esta instituição pioneira que procurou dar início a uma tradição de cursos livres avançados, indispensáveis à criação de um clima propiciador de actividade de investigação. Não se tratava ainda de seminários, onde se apresentassem e discutissem trabalhos originais ou sínteses de avanços recentes da ciência, mas apenas de cursos que fornecessem bases teóricas indispensáveis à formação de futuros profissionais de ciências fundamentais capazes de produzir - também entre nós, de forma continuada - esses trabalhos originais de nível europeu. O Núcleo de Matemática, Física e Química surgiu em 1936, como se revela numa das poucas publicações que a ele se refere1 , indicando-se igualmente aí quem teriam sido os fundadores: Arnaldo Peres de Carvalho (1904-1989), que tinha obtido a sua formação em química orgânica no Collège de France (Paris), tendo aí se doutorado; Herculano Amorim Ferreira (1895-1974) que após um curto estágio no Imperial College de Londres rapidamente ocupou uma vaga de professor catedrático de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde previamente se doutorou; Manuel Valadares (1904-1982), que fez a sua formação no Institut du Radium, em Paris, doutorando-se na respectiva Universidade e, após o regresso ao país, foi o principal impulsionador do primeiro centro de investigação em física das Universidades Portuguesas; e, António da Silveira (1904-1985), que também tinha estagiado em Paris (Collège de France), regressando a Portugal em 1933 para ocupar, por convite, a cátedra de Física do Instituto Superior Técnico. A este grupo fundador associou-se, desde o início, Bento de Jesus Caraça, destacado professor de matemática do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (o antecessor do actual Instituto Superior de Economia e Gestão) e incansável promotor de uma extensa acção cultural e cívica. É indispensável citar também, pelo seu intenso labor, António Aniceto Monteiro (1907-1980), matemático distinto (regressado ao país em 1937 após o seu doutoramento na Universidade de Paris) que aderiu imediatamente ao Núcleo de Matemática, Física e Química, passando a ser, com Silveira e Valadares, um dos seus mais activos impulsionadores. Não estando o Núcleo ligado a nenhum organismo oficial tratou-se, logo de início, de encontrar um local para a concretização das suas actividades (“mansarda se fosse preciso” como escreveu Bento Caraça, com optimismo, acerca deste problema). Na realidade, os directores da Faculdade de Ciências e do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras negaram autorização para que se utilizassem salas das escolas que dirigiam. Estas recusas provinham certamente do ambiente de desconfiança que, no regime totalitário que então dominava Portugal, era considerada toda a actividade cultural que não fosse controlada pelo poder. O ambiente retrógrado e opressivo que então se vivia era um excelente “caldo de cultura” para boatos malévolos e esterilizantes gostosamente propalados por aqueles que, por ignorância ou preguiça, não estavam interessados em alterar o “satus quo”... Como seria de esperar o Núcleo não escapou a uma campanha de difamação em que era acusado de realizar reuniões políticas de carácter subversivo a coberto de sessões de natureza científica. Felizmente, Duarte Pacheco, então director do Instituto Superior Técnico, não só autorizou que os cursos do Núcleo se realizassem no seu Instituto, como conseguiu neutralizar, usando o seu prestígio político dentro do regime, a campanha difamatória contra o Núcleo.
As actividades públicas do Núcleo iniciaram-se a 16 de Novembro de 1936 por um curso de Cálculo Vectorial, redigido por Bento de Jesus Caraça que durou até ao Natal desse ano. Em acordo com os cartazes que publicitaram as actividades do Núcleo referentes ao ano de 1936-37 (hoje depositados no arquivo do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa), aquele curso foi continuado pelos seguintes: Introdução à Teoria da Electricidade e do Magnetismo, por António da Silveira (a partir de 11 de Janeiro de 1937); Teoria das Matrizes, por António Monteiro (a partir de 2 de Março); Radiação do Corpo Negro. Calores Específicos, por H. Amorim Ferreira (a partir de 8 de Abril); Teoria da Relatividade Restrita, por Rui Luís Gomes (de 19 a 28 de Abril); Efeito Fotoeléctrico, por Manuel Valadares (de 17 a 28 de Maio). Não consegui ainda dispor de informações sobre os cursos que teriam sido realizados nos dois anos seguintes em que o Núcleo ainda existiu - 1937-38 e 1938-39 - pois ele foi formalmente extinto em 5 de Novembro de 1939, como se verifica por uma circular adiante referida.
Foi intenção do Núcleo, desde o início da sua existência, promover a publicação dos cursos professados por sua iniciativa, de modo a que os estudiosos portugueses passassem a ter à sua disposição uma colecção de monografias das especialidades científicas por eles abrangidas. Dos cursos acima citados foram efectivamente publicados o Cálculo Vectorial de Bento Caraça, em 1937, seguindo-se a publicação da Teoria da Relatividade Restrita de Rui Luís Gomes, em 1938, e da Teoria da Radiação Térmica e dos Calores Específicos de Amorim Ferreira, também em 1938. Foi a última publicação ainda durante a existência do Núcleo. O curso de António da Silveira também veio a ser publicado, mas posteriormente, sob o título de Teoria da Electricidade, em dois volumes, o primeiro em 1941 e o segundo sete anos depois.. Porquê teve o Núcleo de Matemática Física e Química uma existência de apenas três anos, quando já estavam previstos novos cursos? Como terminou? Os factos conhecidos indiciam que o seu fim não foi nada “pacífico”. Os parcos testemunhos que restam são obscuros mas, no entanto, reveladores da existência de rivalidades que, aparentemente, minaram uma sã colaboração entre os seus membros. Na realidade, desde o início da sua actividade houve sintomas de desintiligências entre os seus promotores que levaram a um ambiente que acabou por se tornar incompatível com um trabalho de conjunto. Bento de Jesus Caraça deixou curtas notas manuscritas (felizmente conservadas por terem sido depositadas por seu filho na Fundação Mário Soares) que o revelam. Assim, logo no primeiro conjunto de notas correspondentes a 1935 e 1936, surge uma, datada de Outubro deste ano, em que Bento Caraça escreveu: “Primeiras nuvens - luta surda da Faculdade de Ciências, despeito e intriguinha / Isso leva-me a escolher a minha Escola / O meu Director nega-me sala / volto ao ponto de partida - a Escola que quizerem / Vai-se para o Técnico, no meio dum ambiente de expectativa admirável e de luta violenta mas surda” (itálico meu). Muito mais tarde, António da Silveira, referindo-se à extinção do Núcleo escreveu2: (...)”Na verdade não foi necessário proibir o Núcleo porque este Núcleo também queria o seu declínio. Por um jogo de circunstâncias e de coincidências peculiares e infelizes, o Núcleo acabou por se transformar num campo de batalha...” de “excelsas virtudes”. Provocada a necessária excitação por “inteligentes virtudes exteriores, prodigiosas imaginações criadoras”... o Núcleo desintegrou-se, como todo o núcleo que se preza, deixando cinco obras publicadas”. (itálico meu). António da Silveira utilizava, com grande mestria, a ironia caústica nos seus escritos e, mesmo, na conservação informal. Repare-se como aqui conseguiu nada revelar embora levantasse a “ponta do véu” sobre as insanáveis dissidências que afectavam o Núcleo, comparando-as metaforicamente à excitação e desintegração do núcleo atómico.
Entre os promotores do Núcleo os mais activos parecem ter sido António da Silveira, Manuel Valadares e António Aniceto Monteiro, o primeiro professor catedrático de física do Instituto Superior Técnico (com a intenção de instituir a investigação científica no seu laboratório) e o segundo assistente, também de física, mas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa onde já desenvolvia, de forma continuada, a pesquisa em física experimental - que viria a ser internacionalmente reconhecida - no seio de um grupo no qual ocupava uma posição predominante. Julgo ser lícito admitir que haveria uma certa emulação científica entre as duas escolas que, com toda a verosimilhança, provinha da física. De facto, as restantes áreas científicas em que o Núcleo estava interessado - matemática e química - parecem não ter contribuído para o ambiente de tensão que o acompanhou, quase desde o início da sua actividade. Contudo, as relações entre Silveira e Valadares - que foram contemporâneos em Paris como bolseiros, o primeiro no Collège de France e o segundo no Institut du Radium da Universidade - parecem ter sido cordiais, talvez mesmo amistosas, pelo menos até Junho de 1937, como é revelado através de diversos testemunhos e de correspondência trocada entre eles. Entretanto, Manuel Zaluar Nunes (matemático, também ligado ao Núcleo) apercebeu-se, em 3 de Novembro de 1939, de execução numa tipografia de um cartaz anunciando um segundo curso de Bento de Jesus Caraça, que A. da Silveira tinha mandado executar sem o conhecimento dos restantes membros do Núcleo. Este facto veio provocar uma grave crise no seio deste grupo que, não tendo sido ultrapassada, deu origem à sua dissolução (a desintegração como A. da Silveira lhe chamou...). Na realidade, numa carta, com aquela mesma data e dirigida a A. da Silveira (com cópia enviada para os restantes membros do Núcleo), assinada por António Aniceto Monteiro, Aurélio Marques da Silva, Manuel Zaluar Nunes e Manuel Valadares, manifestou-se o desagrado pela situação criada e convoca-se uma reunião para 5 de Novembro de modo a tomar resoluções sobre o assunto em causa. A. da Silveira não compareceu a esta reunião, o que provocou o envio de nova carta um dia depois (6 de Novembro de 1939), assinada pelos signatários anteriores, a que se juntou Manuel Teles Antunes, em que lhe comunicam “que toda e qualquer colaboração com V. Exa., como membro do Núcleo, se torna impossível nas bases em que o Núcleo tem estado a funcionar. Por esse facto foi resolvido dissolver o Núcleo e proceder à sua reorganização”. Penso que esta carta pode ser considerada como a “certidão de óbito do Núcleo de Matemática, Física e Química, pois embora fosse ainda convocada, através de uma circular, uma nova reunião para 7 de Novembro de 1939 para proceder à reorganização do Núcleo, não disponho de qualquer indício que permita concluir que essa reunião tenha de facto ocorrido: se tal aconteceu, dela não saiu qualquer resultado positivo. 1 António da Silveira - Elogio Histórico de Luís Rebelo da Silva, Memórias da Academia das Ciências - Classe de Ciências, Tomo XV, Lisboa, 1971, p. 48 a 50. |
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