A Dendrocronologia e os Painéis de Nuno Gonçalves

A análise aos anéis da madeira dos painéis de Nuno Gonçalves permite tirar 30 anos à datação da obra. Como se pode estar seguro?

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É um debate já com alguns anos. No livro Os Painéis de Nuno Gonçalves, publicado em 2000, Jorge Filipe de Almeida e Maria Barroso de Albuquerque defenderam uma revisão radical da leitura dos célebres painéis. Encontraram num pormenor, anteriormente interpretado como simples arabesco, a data 1445 e a sigla NGs, assinatura do célebre pintor do século XV. O facto de a pintura estar assinada e datada cerca de 30 anos antes do que até aí se supunha permitiu a esses dois autores efectuar uma leitura diferente do políptico, indo ao encontro de teses defendidas em 1925 por José Saraiva. Assim, o quadro estaria centrado em D. Fernando, morto em Fez em 1443, e não em S. Vicente, como se pensava.

Muitos especialistas duvidaram deste achado. Contudo, uma peritagem da Torre do Tombo atestou tratar-se da assinatura do quadro e da sua datação. Recentemente, também, um exame técnico às pranchas de suporte que foram pintadas permitiu datá-las, apontando para uma data provável de pintura algures entre 1442 e 1452. Tudo isto é fascinante para os historiadores. E também para os cientistas, que vêem nestas análises uma prova do sucesso de uma disciplina que tem menos de 100 anos: a dendrocronologia.

O nome vem do grego — «dendron» refere-se a árvore, «cronos» a tempo e «logos» a estudo — e entrou no vocabulário científico graças ao esforço persistente de um astrónomo da Universidade do Arizona chamado Andrew Ellicott Douglass (1867-1962). Em contacto com o grande Sudoeste americano, com as suas florestas milenares, Douglass interessou-se pela influência do ciclo solar no clima terrestre e decidiu estudar os anéis das árvores para perceber essa influência.

Há muito que se suspeitava que as condições de desenvolvimento das árvores afectam os anéis que se formam anualmente nos seus troncos. Esses anéis resultam da formação de um novo tecido exterior, chamado xilema primário, que é produzido para substituir o anterior, que é transformado em lenho e passa a constituir o chamado xilema secundário, no interior do novo revestimento. Sabe-se, por exemplo, que em 1729 o naturalista francês Comte de Buffon (1707-1788) tinha discutido o problema e avançado alguns argumentos razoáveis. Em condições climáticas favoráveis, é natural que a árvore cresça mais rapidamente e, por isso, que o novo anel que nesse ano recobre o seu tronco seja mais espesso. Em condições desfavoráveis, passar-se-á o contrário. O processo repete-se durante toda a vida da árvore. Como cada anel é, no ano seguinte, recoberto por um outro novo, é natural que as condições de crescimento fiquem registadas no tronco da árvore.

Douglass teve o mérito de estudar estas hipóteses, verificá-las, quantificar os ritmos de crescimento, ver as diferenças entre as diversas espécies e tornar a leitura dos anéis num método de medir as condições envolventes, desde a humidade e temperatura do ano em causa até aos incêndios e ataques de insectos. O seu trabalho estendeu-se por mais de meio século e incidiu sobre milhares de árvores, dezenas de espécies e climas muito variados.

A dendrocronologia tomou-se numa ciência. Passou a basear-se em princípios estabelecidos com base em estudos empíricos muito vastos e sólidos. O primeiro desses princípios é o da uniformidade, que o geólogo escocês James Hutton (1726-1797) tinha já formulado em 1785: «O presente é a chave do passado.» Em termos simples, isto significa que os processos actuais de geração dos anéis das árvores são essencialmente os mesmos que se registaram anteriormente, pelo que se podem compreender as condições que determinaram o crescimento passado dos anéis percebendo as condições que hoje determinam esse crescimento.

Outro princípio básico da dendrocronologia é o da datação cruzada. A ideia essencial é muito simples: as características essenciais dos anéis, como a sua espessura e densidade, são comuns na mesma espécie e nas mesmas condições. Isto permite, por exemplo, comparar sequências de anéis semelhantes em árvores vivas e árvores mortas. Sabendo os anos exactos de uma determinada sequência de anéis numa árvore, é possível atribuir as mesmas datas a uma sequência semelhante encontrada noutra. O processo foi utilizado vezes sem conta, e a datação cruzada estabeleceu-se em bases sólidas. Os peritos são hoje capazes de datar com grande segurança anéis de árvores de idade desconhecida.

Os peritos são hoje capazes de datar com segurança anéis de árvores de idade desconhecida

A dendrocronologia tem sido uma ajuda inestimável no estudo do clima terrestre, tendo conseguido obter séries de temperaturas de milhares de anos. E tem sido uma ajuda preciosa no estudo de pinturas antigas feitas sobre madeira. Habitualmente, os peritos raspam ligeiramente os bordos dos painéis com uma lâmina afiada, revelando assim os anéis da madeira sem afectar a pintura. Analisam depois essa superfície ao microscópio, o que lhes permite saber a espécie de onde foi talhada a tábua e datá-la.

Foi isto que fez recentemente um laboratório da Universidade de Hamburgo aos diversos painéis de Nuno Gonçalves. Do estudo concluiu tratar-se de madeira de carvalho de uma região do Báltico, o que não é surpreendente para os especialistas, pois sabe-se que era essa a origem habitual da madeira utilizada pelos mestres da época. Dataram depois os anéis por comparação com padrões conhecidos de crescimento dessas árvores. Juntaram-lhe uma margem para a secagem da madeira e outra para os anéis exteriores, naturalmente desaproveitados nas pranchas para conseguir madeira de qualidade uniforme. Puderam assim estabelecer datas prováveis para a pintura. A conclusão é inequívoca: o célebre políptico de Nuno Gonçalves pode ter sido pintado a partir de 1442, muito provavelmente perto de 1445.


Nuno Crato


© Instituto Camões 2003