O marégrafo de Cascais


O marégrafo está situado no extremo da enseada de Cascais, perto da Fortaleza

Medir o nível médio das águas do mar não é fácil, pois as águas estão constantemente a mexer-se. Oscilam com as ondas, com os ventos, com as correntes e com as marés. E oscilam de forma estranha. Imagine-se, enquanto se olha para as ondas do mar, o que seria necessário para medir o nível médio das águas. A primeira coisa a fazer, naturalmente, seria eliminar as oscilações rápidas. A segunda, seria obter registos longos. A terceira, fazer contas. Para possibilitar tudo isso, inventou-se um instrumento chamado marégrafo.

Os marégrafos são bóias ligadas a um registo: habitualmente um rolo de papel que roda lentamente num tambor, com o ritmo marcado por um relógio. Uma caneta marca nesse papel o nível da bóia. Esta última flutua num poço, em contacto com as águas do mar apenas pelo fundo. Dessa forma, a bóia está protegidas das ondas e das oscilações mais rápidas das águas. Filtra-se o ruído, como se diz em estatística.

Reduzido ou eliminado o efeito das ondas, restam ainda oscilações aleatórias mais lentas, provocadas pelos ventos, pelas correntes, pelas alterações da pressão atmosférica e até pela passagem de navios. Por cima dessas oscilações aparecem ondas largas, de período aproximado de 12 horas e 25 minutos. São as marés. Os marégrafos registam todos estes movimentos. É depois necessário fazer muitos cálculos para encontrar o nível médio das águas do mar.

Os marégrafos são instrumentos discretos, habitualmente montados numa casinhota junto à costa. Em Portugal há vários. Um deles, talvez o mais interessante, é o marégrafo de Cascais, localizado junto à Fortaleza, no Passeio de D. Maria. Foi construído em 1882 e está hoje classificado como imóvel de interesse público. É um instrumento histórico. Foi com ele que se conseguiu calcular o nível médio das águas oceânicas na costa portuguesa. E foi com os seus registos que se calculou o Zero Hidrográfico, um mínimo absoluto que nem na maré mais baixa nem nas condições mais extremas é ultrapassado. O aparelho ainda hoje funciona, e os seus registos continuam a ser usados para fazer previsões rigorosas das marés.


No centro da casinhota está o sistema de registo

Por detrás do sistema encontra-se o poço
No fundo do poço flutua uma bóia

No século XIX, quando foi feito o primeiro levantamento geodésico rigoroso do país, foi necessário referir a altitude de cada ponto ao nível das águas do mar. Usaram-se para isso os dados do marégrafo de Cascais.

Na realidade, o levantamento estendeu-se de 1857 a 1892 e a publicação das cartas foi feita entre 1862 e 1904. Foi um trabalho muito demorado, que teve o impulso decisivo de Filipe Folque (1800–1874). Dele resultou a primeira Carta Corográfica de Portugal, na escala 1 para 100000, o que quer dizer que cada centímetro da carta representava um quilómetro e que Portugal Continental aparecia com a largura aproximada de dois metros.

O marégrafo de Cascais é um dos poucos no mundo que funciona desde o século XIX e que está em contacto com as águas oceânicas — muitos outros estão dentro de portos fluviais ou semi-fluviais. Por isso, as séries registadas pelo marégrafo de Cascais estão entre as séries oceânicas mais longas que se conhecem. Estas são usadas para estudar a lenta alteração do nível dos mar e outros fenómenos geofísicos de longo período. Sabe-se, por exemplo, que o nível médio das águas subiu cerca de 1,3 milímetros por ano ao longo do século XX. E o marégrafo de Cascais foi um dos instrumentos usados pelos cientistas de todo o mundo para medir essa subida.

Sabendo que o nível médio das águas do mar muda, o zero de referência da cartografia portuguesa teve de fixar um valor que servisse para cartas feitas em momentos diferentes. Adoptou-se um zero altimétrico construído a partir de uma média dos dados registados pelo marégrafo de Cascais até 1938.

Em Cascais, na Marina, há hoje um instrumento mais moderno, sem bóia, com medição do nível das águas por sinal acústico, e com transmissão directa de dados digitais por via telefónica. Mas o antigo marégrafo de Cascais ainda funciona e serve para calibrar os dados do novo aparelho. O antigo instrumento não é apenas um monumento histórico. E muito seria se apenas isso fosse.

Um relógio construído em 1877 e que funciona continuamente desde a instalação do marégrafo marca a rotação do tambor

O tambor faz uma rotação diária e cada dia muda-se a cor da caneta
A caneta está colocada num carro deslizante apoiado numa régua

A posição do carro é controlada pelos cabos que provêm da bóia

Ao fim de uma semana retira-se o papel, onde ficam registados os níveis da água ao longo dos sete dias. Os gráficos resultantes são os maregramas

Texto de NUNO CRATO
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