"Cientistas" e navegadores

Este trabalho foi publicado originalmente em:
Oceanos, nº 49 (2002), pp. 9-17.


O filósofo da ciência Ernan McMullin afirmou num "Presidential Address" à American Philosophical Association que "o objectivo de controlo técnico não desempenhou praticamente nenhum papel nas origens da ciência". [1]

Uma leitura, mesmo em diagonal, dos Roteiros de D. João de Castro poderá constitutir ponto de partida legítimo para questionarmos essa afirmação de McMullin. Servirá igualmente como chamada de atenção aos historiadores da ciência para a actividade científica (no sentido moderno do termo) que teve lugar em Portugal durante o período dos descobrimentos. O enfoque deste ensaio limitar-se-á à interacção entre teóricos e práticos especificamente destinada a permitir maior segurança na movimentação das naus e mais avanço no domínio dos mares. Se não, vejamos. Comecemos pelo Roteiro de Lisboa a Goa.

Pedro Nunes havia concebido dois "instrumentos de sombras" - um para se medir a altura do sol e outro para se calcular a declinação magnética. O matemático não era, porém, marinheiro; procurava apenas responder às necessidades manifestadas pelos navegadores que, no regresso das suas viagens, lhe traziam questões, dúvidas, dados novos pondo em causa explicações anteriores ou, nalguns casos, revelando de difícil uso, se não totalmente inúteis, os instrumentos por ele criados. Na descrição da viagem nas imediações da ilha de Porto Santo, lê-se:

Sabbado, treze de abril, amanhecendo vimos a palma, que he huma das Ilhas das canareas, e logo fiz prestes a lamina e estormento de sombras, de que o muito excelente principe o Iffante dom Luis [2] me fez merce, com grande deseio de vereficar duas cousas: a primeira, se nestas Ilhas variavão as agulhas ou não, por ser pratica de muitos pilotos que neste lugar e meridiano feria o norte de suas agulhas no verdadeiro polo do mundo; e a segunda, se era verdadeira e punctual a regra que nos deu o doctor Pero nunez pera, em toda a ora do dia em que fizer sombra, sabermos a levação do polo; com o qual estromento fiz as seguintes considerações, sendo todo o dia o vento calma, que a naao não governava. [3]

Seguidamente, D. João de Castro regista duas medições e acrescenta:

Tomadas estas duas operações, mandey ao piloto que ao meo dia tomasse o sol, e eu, passando-me à poma, pera vereficar a levação do polo deste dia, obrei desta maneira. [4]


Segue-se uma meticulosa descrição, que vale a pena transcrever na íntegra por ser reveladora de uma atitude metodológica deveras rigorosa:

Primeiramente, no orizonte graduado da poma, asentei a variação que fez a sombra do estilo des a primeira altura até a segunda, a qual variação foi sete graos, e logo no principio destes sete graos ia postos no orizonte, a sentei a primeira altura; e foi cinquoenta e sete graos per hum meridiano graduado açima, e no lugar onde se acabou o numero destes 57 graos, pus hum ponto; e tornando a passar o mesmo merediano na outra extremidade da variação da sombra que assentey no orizonte, contey pello meridiano acima a segunda altura, que foy 61 graos e 1/2, e no lugar onde se acabarão pus outro ponto. Feito isto, oulhei a declinação de 90, e tomando o que ficava, que era 77 graos 1/2, com hum compasso curvo, pondo huma ponta do compasso no ponto onde se acabou a primeira altura, fiz com outra ponta huma porção de circulo, e tornando a mesma ponta do compaso ao segundo ponto onde se acabou a segunda altura, fiz outra porção de çirculo, que em termos de giometria se chama decusação; e onde se estas duas porções encontrarão pus hum ponto, o qual trazendo ao meridiano graduado, achei que se apartava do orizonte 29 graos 1/2, que era a levação do polo do lugar onde me achava [5]; e logo mandey esta altura ao piloto em hum escrito çarrado, pera que depois que elle tomasse o sol ao meo dia vissemos iuntamente ambos, sem sospeita, (e assim) podermos detreminar quanto discrepava a minha, tomada pella menhã, da sua, tomada ao meo dia. Ora, acabado o piloto de tomar sua altura, veome dizer que que estavamos em altura de 29 graos 1/3, e em continente abrio o escrito e vio a minha, de que ficou muito espantado. [6]


Note-se, em particular, a preocupação de D. João de Castro em ocultar inicialmente os dados por si obtidos, para poder compará-los mais tarde com os do piloto sem perigo de influenciar as medições deste último. Entretanto, prossegue ele as suas próprias medições, esclarecendo que lança mão do referido instrumento de sombras a fim de verificar a declinação da agulha, exactamente como lhe aconselhara Pedro Nunes. [7]

Mais adiante, a 21 de Abril, escreve D. João:

Porque eu faço menção muitas vezes da altura que se toma por muitas pessoas, e espero ao diante de o fazer, já pode ser que os que lerem este Roteiro, achando tamanha differença de humas alturas a outras, possão crer que esta diversidade naçeria de aver tavoas de declinações differentes, ou de errarem ao fazer da conta; por tanto farey sempre menção do que tomão do sol ao orizonte, e assi declaro que de todas as alturas que aquy escrever, se fara a conta pello livro e tavoas de declinações do Doctor Pero nunez, assy que a differença somente nasçerá do juizo de cada hum, ou do defecto dos estrolabios; e por que esta arte achada pera remedio dos navegantes não venha em algum descredito por esta diversidade de alturas, devemos de considerar quanto lhe devemos, por nos ensinar como não ignoremos o chegado a verdade, como são as cousas humanas que os homens podem saber. Por que, como diz monte Regio nos seus triangulos, de toda a sorte milhor he saber o chegado à verdade que de todo o ponto ignorar a mesma verdade, a que não somente se deve contar per virtude dar no fito, mas tambem chegar perto delle; e assy estes erros e enganos de tomar o sol ficarão em proveito dos nauegantes, pera que, confiados demasiadamente em sua altura, não deixem de dar grandes resguardos no demandar da terra. [8]


De registar de novo aqui o cuidado em se utilizar sempre as mesmas tábuas solares, publicadas por Pedro Nunes, para que se controlasse melhor os dados, e as eventuais diferenças pudessem ser exclusivamente atribuidas a defeito do instrumento de medição ou a erro do medidor. Não menos notável é a manifesta consciência da importância de se descrever em pormenor o processo utilizado na obtenção dos dados - mesmo presumindo que estes estivessem afastados da "verdade". Além disso, é sobretudo de considerar, uma vez mais ainda, a colaboração com o matemático Pedro Nunes, autor das ditas tábuas.

Às vezes D. João de Castro desiste de encontrar explicação para determinados fenómenos ou incidentes, por achar que não possui, nem tem qualquer hipótese de obter, dados suficientes para interpretá-los. Com um leve toque de humor aceita resignadamente o facto:

Pode ser que nos argumentem de tomar mal o sol; a isto respondo, que por tamanho misterio averia ser este sol mal tomado, como de tornarmos atras, tendo vento e proa pera hir por diante, como quer que cinquo pessoas tomassemos este dia a altura, e todos nos achassemos mui conformes no sol. O que me disto pareçe, he que deu em nós algum rolheiro dagoa que nos fez tornar atraz, e se isto não foi, fique a detreminação disto a Apollo. [9]


Noutros casos, todavia, parece-lhe antes que a sua dúvida merece ser estudada por alguém como Pedro Nunes, a quem atribui uma visão mais alargada dos problemas. Exemplo disso ocorre quando detecta significativas anomalias nas suas observações magnéticas:

Este dia fiz as operações que se seguem, e por me tirar de duvida açerqua da agulhinha do meu estormento, tomey outra de hum relogio, çevandoa primeiro; obrando ora com huma, ora com outra, vimme desenganar e crer que os erros que achava na levação do pollo a toda a ora não vinhão da parte do estormento, como se logo verá.
(…)
Com todas estas alturas e variações de sombras obrei na poma, e sempre me deu a levação do polo my errada, do que o grande conçerto que estas operações tiverão desculpão o estormento, e pareçe ficar o defeito com a poma ou demonstração; e porque ao presente eu não sey determinar, fique a duvida pera o doctor Pero nunez. [10]

Quase no final do seu Roteiro, D. João observa novamente uma anomalia para a qual não acha explicação. Embora habituado a não encontrar resposta para muitas dificuldades, revela a intenção de consultar o seu mestre Pedro Nunes. Assim, conclui:

Mas pareçe que nos enganaria esse dia alguma aparençia, a qual não podemos alcançar, como nos aconteçe nas maes das cousas e segredos da natureza; mas, como quer que seja, a soltura desta duvida (fique) pera o doctor pero nunez. [11]


Algumas vezes certas discrepâncias são atribuídas a deficiência dos instrumentos, por estes não serem de confecção muito aperfeiçoada:

E tambem encontra muyto à punctualidade desta demonstração ser a poma não tão redonda como convem, e os meredianos delatão serem mal graduados, e o orizonte não andar justo com a poma, mas todas estas cousas serem feitas de fancaria e sem primor. E, porem, com todos estes defectos mostrou verdade muito tempo, como atras se poderá ver. [12]


Quando razões práticas contrastam com as instruções teóricas recebidas em terra antes da partida, se estas parecem desavisadas, D. João de Castro não hesita em seguir o seu próprio instinto. Não deixa todavia de anotar os dados das suas medições. Não para convencer Pedro Nunes, em quem reconhece esclarecimento bastante para compreender que a teoria precisa de ser ajustada à realidade, mas para se fazer entender de quantos, ao contrário dele, não conhecem nem a matemática nem o mar:

… e como quer que os rumos dagulha por onde fazemos caminho, quanto menor angulo fazem com o nosso meridiano, tanto em diferença de hum grao teremos andado menos legoas, seguirseha que, nordesteando as agulhas, e correndo por dentro destas duas quartas, que em mudança de hum grao tinhamos feito menor singradura do que a denominação do rumo nos vay amostrando, porquanto os regimentos por onde nos governamos sopoem que avemos de andar por verdadeiros rumos. E pera que isto milhor se possa entender, porey aquy alguns exemplos, sem me apartar da rota que levamos partindo de lix.ª pera a India, como quer que esta escritura se não faça pera o doctor Pero nunez, mas pera aquelles que não sentem nada das mathematicas, nem tem experiencia do mar. [13]


Na correspondência de D. João de Castro encontramos igualmente referências à sua colaboração estreita com Pedro Nunes. Em mensagem informando D. João III sobre a localização das Molucas, explica que "a relação disto devera ser dada por mim a V. A. diante de Pero Nunez, seu cosmographo" [14]. Na mesma carta faz também referência específica ao instrumento que ele próprio fabricara e Pedro Nunes inventara:

E isto tenho eu feito hum estromento per minha mão, o qual enventou o Doctor Pedro Nunez, muito necessario a esta navegação: polo qual se sabe caminhando de leste per cada grao d'altura quantas legoas responde ao grao. [15]

Luís de Albuquerque, ao fazer o balanço das "prioridades" de Pedro Nunes, apontou o falhanço de uma das suas invenções, testadas por D. João de Castro, contrapondo-lhe o sucesso de outra. Como refere Albuquerque, a determinação das latitudes segundo os métodos preconizados por Pedro Nunes pareceu a princípio produzir resultados satisfatórios. Contudo, D. João de Castro foi depois notando deficiências de vária ordem, vindo a concluir que o instrumento não tinha grande interesse náutico, tanto assim que os pilotos nem chegaram a interessar-se por ele. [16]

Existem dúvidas sobre a prioridade de Pedro Nunes na criação do instrumento de sombras [17]. Para o argumento que neste ensaio se pretende desenvolver, a questão da paternidade do instrumento é porém secundária. Relevante é, repita-se, a cooperação entre teóricos e navegadores. Mas mais importante ainda será sublinhar a atitude de experimentação-erro (trial and error), entendida por uns e outros como indispensável à obtenção, por aproximações sucessivas, do instrumento que melhor correspondesse às necessidades encontradas pelos marinheiros.

Em resposta a questões apresentadas por Martim Afonso de Sousa, chefe da armada que em 1530 foi ao Brasil, Pedro Nunes aponta os defeitos das cartas de marear quadradas, e tenta diferentes meios de contorná-los. Esse e outros problemas práticos são preocupação central em escritos como o Tratado sobre certas dúvidas da navegação e o Tratado em defensam da carta de marear. Atente-se num mero exemplo da sua escrita, em que estão constantemente presentes as dificuldades e dúvidas apresentadas pelos marinheiros:

"… o nordeste per que cuidam /os navegantes/ que vam: é a linha d. c. e, nesta figura /fig. 74/, mas o caminho per que verdadeiramente andam: é a linha curva a. c. b, a qual não é círculo; nem linha dereita, e quem esta minha imaginação bem oulhar, entenderá que do erro dos navegantes se pode tirar a verdade, e que sem ir a um lugar, nem nunca navegar, pela falsa enformação que dam dêle, se pode saber a verdade. Mas o milhor seria pero claro conhecimento do assento dos lugares: navegar per arte: en a qual ha dous modos: o primeiro é ir per uma mesma rota sem fazer mudança, e isto guardão sempre os navegantes, mas a conta ha se fazer per uma certa maneira de linhas curvas…[18]


Os dois tratados (o primeiro é relativamente curto - 15 páginas) são decididamente uma resposta por escrito aos navegadores, que parecem objectar ao teórico apontando-lhe a sua inexperiência na arte de navegação. Os marinheiros, segundo o próprio Pedro Nunes revela na sua resposta às dúvidas de martim Afonso de Sousa, riem-se das suas teorias:

E sou tam escrupuloso em misturar com regras vulgares desta arte termos e pontos de sciencia: de que os pilotos tanto se rim. [19]

Isso porém não o impede de escrever:

Pera satisfaçã das quaes me conveo trazer nam somente cousas praticas da arte de navegar: mas ainda pontos de geometria e da parte theorica. [20]


Pedro Nunes procura demonstrar a importância e a segurança das suas afirmações, mas revela sempre muita atenção aos problemas por eles levantados pelos navegadores. Aliás, a abrir este tratado, cita Martim Afonso de Sousa, cujas perguntas são precisamente a causa do texto, declarando que, após satisfazer as suas "duvidas per palavra", decidiu passar à escrita as suas próprias respostas "pera quem deseja saber como se ha de navegar per arte y per razão". [21]

De Arte atque Ratione Navigandi [22] é outro tratado em que Pedro Nunes se propõe resolver problemas práticos [23]. A atitude é sempre a mesma. Pedro Nunes tem preocupações teóricas, mas procura fundamentá-las na experiência colhida pelos experimentados. Que por sua vez o escutam, porque ele revela possuir uma visão mais lata das realidades permitindo-lhe encontrar novas hipóteses de solução. Aos marinheiros, cabe testar e, possivelmente, reconhecer que funcionam bem ou, pelo menos, com menor margem de erro.

O historiador das Matemáticas em Portugal, Francisco Teixeira Gomes, declara que algumas das ideias de Pedro Nunes, expostas em tratados anteriores, são neste abordadas de forma mais científica. E conclui, sintetizando o contributo do matemático nos seguintes termos:

O que podemos dizer com segurança é que Pedro Nunes trouxe a dita curva [24] do campo da náutica empírica, em que era para os pilotos apenas a rota descrita pelo navio dirigido pela bússola, para o campo da Geometria para onde é a curva descrita por um ponto que corta os meridianos da esfera sob um ângulo constante, que mostrou que não é geralmente circular e que abriu a sua teoria.

Os cosmógrafos portugueses que o precederam, conheciam um processo para determinar a diferença das longitudes de dois pontos da curva com uma aproximação tanto maior quanto menor fôsse a sua distância; e, por meio de aplicações dêste processo a arcos parciais em que decompunham um arco dado da curva, obtinham a diferença de longitudes dos pontos que o limitam com aproximação tão grande quanto queriam.

Este processo equivale ao emprêgo da equação da curva. Esta equação, obtida mais tarde por Leibniz, depende de logaritmos, algoritmo desconhecido no tempo de Nunes, e a vantagem que teria o emprêgo desta equação sôbre o método usado nas nossas antigas navegações para resolver o problema considerado, seria o de reduzir o cálculo numérico que exige ao cálculo por logaritmos.
(…)
Para se aplicarem estas doutrinas à navegação, continham os regulamentos (…) duas tábuas numéricas que davam, uma a diferença de longitudes de dois lugares da curva percorrida pelo navio correspondentes à diferença de um grau de latitude, a outra o comprimento dêste arco. Ora Pedro Nunez refez, na segunda parte das obras mencionadas, estas tábuas, melhorando-as e inventou um instrumento, a que se chamou compasso (…) para medir a razão do arco do paralelo terrestre correspondente a uma latitude dada para o raio da terra, razão que é necessário conhecer para se aplicar a primeira tábua. [25]


Pedro Nunes revela de facto uma visão alargada dos acontecimentos para além daquele vaivém de caravelas entrando e saindo do Tejo. Logo a abrir o seu Tratado em defensam da carta de marear essa consciência surge bem nítida numa passagem que, sendo bastante conhecida, será aqui apenas parcialmente transcrita:

Nam ha duuida que as navegações deste reyno de cem anos a esta parte: sam as mayores: mais maravilhosas: de mais altas e mais discretas conjeyturas: que as de neehua outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar e oceano. Entrarã per elle sem nenhu receo. Descobriram novas ilhas / novas terras / novos mares / novos povos: e o que mays he: novo ceo: e novas estrellas. [26]


Não será forçardo colarmos aqui Karl Popper e o seu clássico Conjectures and Refutations, pois é precisamente dessa atitude mental que se ocupa o filósofo da ciência [27]. Pedro Nunes usou ele próprio o termo conjecturas. A ciência moderna, incipiente é certo, aprendera e assimilara já uma regra ditada pela experiência: o conhecimento avança através de conjecturas e refutações, a experiência deve ser confrontada com a teoria e vice-versa. A dúvida entrava assim no quotidiano da aventura de se procurar entender como funcionava a máquina do mundo para se poder utilizá-la devidamente. Os instrumentos de controlo (em Pedro Nunes, quase apenas de medição, mas com o objectivo, sempre prático, de melhorar ou facilitar o controlo da navegação) permitiam conhecer mais exactamente o globo e os céus que o circundam, para que os navegadores nele se pudessem melhor orientar.

Daí ser problemática outra das afirmações taxativas de Ernan McMullin:

O objectivo do controlo tecnológico não desempenhou virtualmente nenhum papel nas origens da ciência. (…) A ciência-D grega não depende para a sua aceitação do teste das consequências. E o hiato entre entre a ciência natural, como Aristóteles a concebeu, e o controlo tecnológico propriamente dito era tão grande que a ideia de que um informaria o outro simplesmente não ocorreria a ninguém. [28]

McMullin considera insustentável a antiga ideia de que na Grécia Clássica a ciência fosse apenas de "cadeirão", uma vez que Aristóteles foi um cientista experimental, com plena consciência da importância da experiência. [29] No entanto, a ciência aristotélica obviamente se destina em exclusivo ao conhecimento - não à transformação nem ao domínio - da natureza.

Mais adiante, interrogando-se sobre Francis Bacon, conclui também McMullin que este continua a enfatizar o "entendimento" (understanding), não o controlo, crendo mesmo Bacon que o processo de inquirição pode ser distorcido se muito cedo subordinado à aplicação prática. "O controlo técnico deve ser uma consequência, e nesse sentido uma pedra de toque, da nova ciência, não um objectivo de seu próprio direito" [30]. De seguida, McMullin insiste ainda na ideia de que a compreensão (understanding) da natureza "em nenhum sentido foi procurada na esperança de vantagens tecnológicas" [31].

Estranha uma tão resoluta série de afirmações por parte de um filósofo da ciência que, muito acertadamente, páginas antes tomara posição bem mais moderada quanto ao uso da palavra "ciência" [32], advogando o seu uso generalizado. Tanto mais que, relativamente a outras dimensões da ciência, afirmara ele que a evolução ocorreu sempre de modo lento e gradual em vez de em saltos gestalt. [33]

Se bem que no que respeita ao período de que temos vindo a ocupar-nos não possamos falar ainda de uma generalizada atitude científica, não resta dúvida - ou assim parecem demonstrá-lo as passagens atrás citadas - de que, entre um pequeno núcleo de teóricos e de navegadores, existia já a "communal practice" a que alude McMullin [34]. Incontestavel é ao menos o facto de que um tal núcleo de gente se empenhou na concepção de instrumentos precisos, capazes de medir com exactidão e de permitir mais seguras e eficientes viagens, contornando e controlando as dificuldades com se que deparavam os seus utilizadores - ainda mesmo quando nunca o conseguiram, como no caso da detecção da força magnética e da marcação da longitude.

Todos esses foram passos incipientes da modernidade que aos poucos se ia instaurando. Pedro Nunes e D. João de Castro, o primeiro com vocação mais teórica e abstracta, o segundo com inclinações mais práticas mas profundamente empenhado na observação cuidadosa, são ambos pioneiros de uma atitude científica que se caracteriza pela atenção ao real, pela preocupação com o rigor e a exactidão das medições, pela recolha de dados (mesmo os que contradizem a teoria), pela experimentação, a dúvida, e a noção bem nítida de ser imenso o mundo desconhecido imerso nos segredos de Apolo por muito tempo a haver.

Duas mentes como as suas foram decididamente modernas. A ciência, que dessa forma se adjectiva, teve neles dois exímios cultores. Funcionando dentro de uma cosmovisão medieval (Newton e Galileu não tinham ainda operado a grande revolução na concepção do universo), mas procedendo da forma metodologicamente recomendada pela ciência moderna e, por isso, contribuindo decididamente para o advento generalizado do novo paradigma então emergente.

Uma das pouquíssimas peças bibliográficas existentes em inglês relativas a figuras portuguesas ligadas à ciência no período dos descobrimentos, intitula-se Pedro Nunes (1502-1578). His Lost Algebra and Other Discoveries. Na introdução, John R. C. Martyn sumariza os contributos de Pedro Nunes para a ciência enumerando as suas invenções, e acrescenta seguidamente:

Graças a estas muitas invenções, sobretudo graças ao seu anterior conhecimento de álgebra, Nunes transformou completamente a ciência náutica e deu aos marinheiros do seu país o equipamento necessário para que pudessem cruzar tão vastos oceanos e descobrir e mapear tão distantes terras, muito antes que outro poder europeu pudesse fazê-lo. [35]

Ernan McMullin terá assim de aplicar também à área da "ciência com o objectivo de controlo" a sua visão, historicamente correcta e facilmente demonstrável, segundo a qual a história da ciência não deu saltos gestalt mas passou por fases sucessivas de crescimento, algumas das quais infelizmente ignoradas tanto por ele mesmo como pela grande maioria dos historiadores.


Onésimo T. Almeida



Referências

[1] Ernan McMullin é autor de uma considerável obra no domínio da história e filosofia das ciências. De entre os seus livros, saliente-se Newton on matter and activity (Notre Dame, IN : University of Notre Dame Press, c1978) e a coordenação de volumes como Galileo, man of science (New York,:Basic Books,1968), bem como Construction and Constraint: The Shaping of Scientific Rationality (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1988)..
[2] O Infante D. Luís era irmão do rei D. João III e discípulo dilecto de Pedro Nunes.
[3] Obras Completas de D. João de Castro. Edição Crítica por Armando Cortesão e Luís de Albuquerque, Vol. I (Coimbra: Academia Internacional de Cultura Portuguesa, 1968), pp. 127-8.
[4] P. 129.
[5] Armando Cortesão e Luís de Albuquerque observam que D. João de Castro faz aqui a descrição de um dos métodos aconselhados por Pedro Nunes para a determinação de latitudes. Baseava-se "no conhecimento de duas quaiquer alturas do Sol e da diferença dos seus azimutes tomados nos instantes das observações; na sua aplicação recorria-se a uma poma (esfera armilar dotada de um meridiano móvel) e a um compasso 'de pontas curvas'". (p. 129)
[6] Pp. 129-130.
[7] Cfr. P. 130.
[8] Pp. 140-141.
[9] P. 154.
[10] Pp. 181-184.
[11] P. 268.
[12] P. 190. Armando Cortesão e Luis de Albuquerque anotam que o modelo do instrumento inventado por Pedro Nunes utilizado por D. João de Castro, fora construído por João Gonçalves. (Nota 129, p. 190)
[13] P. 202.
[14] Id., Vl. III, p. 42.
[15] P. 45.
[16] Ver Luís de Albuquerque, "Sobre as prioridades de Pedro Nunes", em Luís de Albuquerque, Estudos de História de Ciência Náutica. Org. de Maria Emília Madeira Santos (Lisboa: Centro de Estudos de História de Cartografia Antiga, 1994), p. 595)
[17] Depois de uma análise criteriosa, Albuquerque conclui que "de qualquer modo, podemos dizer que o instrumento e o processo se divulgaram muito mais em consequência dos ensinamentos de Pedro Nunes da diligência de D. João de Castro em ensaiá-los, do que do tratado de Francisco Faleiro, que pouca ou nenhuma influência exerceu na náutica do século XVI. " (p. 595)
[18] Tratado Sobre Certas Dúvidas. Uso aqui a transcrição de A. Fontura da Costa, no seu A Marinharia dos Descobrimentos (Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1960), pp. 219-220.
[19] Transcrição minha da edição fac-similada do original da obra de Pedro Nunes inserida em Joaquim Bensaúde, Opera Omnia, Vol. V (Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1995), p. 231.
[20] Ibid.
[21] Idem, pp. 215s.
[22] O facto de Pedro Nunes publicar uma obra em latim não significa necessariamente que não a destinasse a marinheiros, antes demonstra que o seu autor pretendia atingir um público mais vasto desconhecedor da língua portuguesa e que ainda usava o latim como língua franca.
[23] Não tive acesso a este texto e pude apenas socorrer-me da excelente análise que dele e de toda a obra de Pedro Nunes faz Francisco Teixeira Gomes na sua História das Matemáticas em Portugal (Lisboa: Academia das Ciências, 1934).
[24] Chamada linha de rumo no tempo de Pedro Nunes e agora conhecida por loxodromia.
[25] Idem. Transcrito do website http://www.mat.uc.pt/˜jaimecs/livrogt/2parte1.html#Pedro%20Nunes, 16 de Abril de 2002. A impossibilidade acesso a De arte atque ratione navigandi de Pedro Nunes obrigou-nos a esta citação longa em segunda mão.
[26] Idem, p. 231.
[27] Karl Popper escreve: "O modo como o conhecimento avança, e especialmente o nosso conhecimento científico, é por injustificadas (e injustificáveis) antecipações, por palpites, soluções tentativas dos nossos problemas, por conjecturas. Estas conjecturas são controladas pela crítica; isto é, por tentativas de refutacão, que incluem severos testes críticos.. (…) As críticas das nossas conjecturas são de importância decisiva: ao assinalarem os nossos erros fazem-nos compreender as dificuldades do problema que estamos a tentar resolver." Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge (New York and Evanston: Harper Torchbooks, 1968), p.vii.
[28] Ernan McMullin, "The goals of natural science", p. 54. Ciência-D é ciência demonstrativa, que é diferente da ciência-P, previsiva (prediction).
[29] Poderemos criticá-lo por não se ter preocupado em testar algumas das suas afirmações, mas Aristóteles foi de facto um experimental, e deve maravilhar-nos a intensidade da sua constante preocupação com os mais minuciosos pormenores da ordem natural.
[30] P. 55.
[31] Ibidem.
[32] McMullin insurge-se contra os historiadores da ciência que afirmam não se poder usar com propriedade o termo antes de Newton e Galileu.
[33] P. 53.
[34] P. 54.
[35] (New York: Peter Lang, 1996), p. 8. Pedro Nunes é, como aliás todas as outras figuras ligadas à ciência no período dos descobrimentos portugueses, raramente referido na historiografia anglo-saxónica. Mesmo em livros onde seria natural figurar, como por exemplo em Alfred W. Crosby, The Measure of Reality. Quantification and Western Society, 1250-1600 (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), apenas uma vez se lhe faz alusão (p. 236). Em Salomon Bochner, The Role of Mathematics in the Rise of Science (Princeton: Princeton University Press, 1966), como em tantos outros, pura e simplesmente não lhe é feita qualquer referência. Curiosamente, é num livro não propriamente sobre história da ciência, Ceremonies of Possession in Europe's Conquest of the New World, 1492-1640, de Patricia Seed (New York: Cambridge University Press, 1995 ), que um capítulo inteiro é dedicado à actividade científica dos navegadores portugueses, sendo Pedro Nunes repetidamente mencionado. Nesse capítulo, bem como em"Jewish cientists and the origin of modern navigation.", in Paolo Bernardini & Norman Fiering, The Jews and the Expansion of Europe to the West, 1450-1800 (New York: Berghahan Books, 2001), pp. 73-85, Seed acentua a marca judaica de toda a actividade científica realizada em Portugal no período em causa.

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