Os magníficos globos Coronelli


Todos conhecemos globos terrestres. Há-os em escolas, bibliotecas e livrarias. São uma prenda habitual para jovens estudantes, e muita gente gosta de os ter em casa. Os globos celestes, representando os céus, são muito mais raros. No entanto, foram estes os primeiros a ser feitos e, durante séculos, eram instrumentos comuns enquanto os seus homólogos terrestres eram instrumentos raros. Percebe-se a razão. Durante milénios, apenas se conhecia uma parcela do globo centrada no Mediterrâneo, a que se juntavam algumas terras costeiras do Atlântico, Índico e Pacífico. Só no século XVI se começou a ter uma ideia do conjunto de oceanos e continentes do nosso planeta. Para conhecer os céus, contudo, bastava ficar parado no mesmo local e olhar ao longo das noites para o céu nocturno. Um observador situado numa latitude moderada, como por exemplo a de Atenas ou de Alexandria, vê grande parte do céu passar à sua frente. Apenas lhe escapam as estrelas perto do pólo celeste sul, que só são visíveis atravessando o equador.

Em meados do século XVI, começaram a ser feitos pares de globos, apresentando as esferas terrestres e celestes com dimensões e aspectos semelhantes. O cartógrafo flamengo Gerardus Mercator (1512–1594) teve a ideia de comercializar esses pares e começou a ser frequente vê-los em bibliotecas, centros de estudo e palácios. Sintetizavam a ciência geográfica e astronómica da época e, por isso, eram simultaneamente instrumentos de estudo, mapas de referência e símbolos de cultura e de poder. Em Portugal conhecem-se alguns pares de globos, nomeadamente os da oficina de William Blaue (c. 1645) que se encontram em exposição no Museu de Marinha, em Lisboa. Mas os maiores e mais bonitos globos existentes no nosso país são os que se podem apreciar na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Globo celeste de Coronelli pertencente à Sociedade de Geografia de Lisboa. Pormenor onde se vê a constelação do Cruzeiro do Sul.

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Trata-se de dois instrumentos de dimensão apreciável, cada um com diâmetro de 110 cm, construídos em 1693 por Vincenzo Coronelli (1650–1718), cosmógrafo veneziano. O comandante Estácio dos Reis, ilustre especialista na história da instrumentação científica, estudou a sua história. Ficou a saber-se que o Conde de Tarouca os comprou para D. João V e imagina-se que tenham sido destinados à Biblioteca Real. Aí terão sofrido com o Terramoto de 1755, mas não se sabe ao certo qual foi o seu destino imediato. Em 1878 foram reencontrados por Luciano Cordeiro e transportados para a Sociedade de Geografia de Lisboa, onde têm estado. Os dois globos têm uma estrutura de madeira, com um eixo e aduelas recobertas por uma tela. A superfície dessa estrutura é preenchida com papier mâché, sobre que assenta uma argamassa. A forrar a superfície, tornada lisa e esférica por desbaste, há gomos de papel com as constelações ou com os pormenores terrestres artisticamente representados e coloridos. Finalmente, um verniz espesso é colocado sobre o papel.

Com o tempo, os globos atingiram um estado de degradação deplorável. Grande parte das folhas desapareceu, porções da argamassa desagregaram-se e a própria estrutura de madeira ficou danificada. Em 2005 ficou concluída a sua recuperação pelo Instituto Português de Conservação e Restauro. Envolveu métodos modernos, radiografias, reimpressões e reconstruções digitais. Grandes partes das estruturas foram recuperadas. Falhas na argamassa e outros materiais foram supridas. E novas folhas de papel com as estrelas e as constelações, ou com os mares e as terras, tiveram de ser impressas. No globo celeste, aproveitaram-se chapas litográficas originais existentes em Paris. No terrestre, foi necessário reconstruir imagens através de fotografias de globos semelhantes construídos por Coronelli e existentes em Paris.


Globos de Coronelli no decurso dos trabalhos de restauro no IPCR.

A técnica de tratamento das imagens foi curiosa, pois o problema é semelhante ao encontrado pelos cartógrafos ao usarem diversas imagens de satélite para construir representações do globo terrestre. Por isso foi necessário usar uma aplicação informática dedicada ao tratamento de imagens de satélite para construção de um modelo tridimensional. Depois de processadas as fotografias, foi necessário construir imagens bidimensionais, em «gomos» chamados fusos, que permitem aproximar a superfície esférica através de pequenas tiras planas. O resultado de toda esta moderna reconstrução é espectacular. São uma obra da arte e da ciência do século XVII que a ciência e a arte do século XXI conseguiram devolver ao seu esplendor. Vale a pena vê-los.
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Nuno Crato

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