Nunes em Praga
A capital da República Checa orgulha-se justamente dos grandes cientistas que nela trabalharam. Orgulha-se, por exemplo, de ter oferecido a Einstein a sua primeira cátedra, que este aceitou em 1911. Contudo, os homens de ciência mais recordados em Praga são dois astrónomos antigos. O primeiro é o dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), que passou os seus últimos dias nessa cidade, onde foi acolhido pelo imperador Rudolfo II, grande patrono das ciências e das artes. O segundo é o alemão Johannes Kepler (1571-1630), que trabalhou com Tycho e lhe sucedeu como astrónomo imperial.
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Frontispício das «Tabelas Rudolfinas» existente em Praga. Na Biblioteca Nacional, em Lisboa, há também um exemplar das Tabelas.
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Na cidade pode ver-se uma das casas em que Tycho Brahe viveu, numa rua esconsa da parte alta. Pode ver-se também uma das casas de Kepler, perto da célebre ponte Charles, que conserva uma estátua de Santo António de Lisboa. Mais interessante será ver o túmulo de Tycho, na grande igreja de Nossa Senhora de Tyn, na Praça da Cidade Velha. O astrónomo tem aí direito a uma gigantesca pedra tumular, perto do altar central, e a um baixo-relevo numa coluna.
Mais acima, junto ao célebre castelo de Praga, há uma magnífica estátua dos dois astrónomos. Situada no local onde havia uma mansão em que Tycho viveu e morreu, mostra os dois homens lado a lado, olhando para o céu. Tycho traz nas mãos um sextante antigo, semelhante a um conservado no Museu Técnico Nacional, situado numa zona mais moderna da cidade. Ao que tudo indica, o próprio Kepler terá usado esse instrumento, e é possível que Tycho também se tenha servido dele. O astrónomo alemão, por seu turno, tem nas mãos um molho de folhas de papel, naturalmente tabelas astronómicas.
É natural que o escultor tivesse pretendido colocar nas mãos de Kepler as suas célebres Tabelas Rudolfinas, pois esse trabalho representa o culminar da vida científica do astrónomo. Trata-se de um conjunto de tabelas de previsão das posições dos astros, calculadas a partir dos dados pacientemente recolhidos por Tycho e construídas de acordo com a nova teoria do sistema planetário de Kepler. O astrónomo demorou 25 anos, com interrupções, a completar esse trabalho tinha-o prometido ao imperador Rudolfo. Mas foram 25 anos em que aprendeu uma maneira de fazer rapidamente cálculos com logaritmos e em que descobriu a forma elíptica das órbitas dos planetas e outras leis do seu movimento, hoje conhecidas como Leis de Kepler.
As tabelas de Kepler conseguiram uma precisão muito superior à das tabelas da altura. Enquanto, por exemplo, as anteriores previsões falharam o trânsito de Mercúrio de 1631 com um erro de cinco graus, os cálculos de Kepler tinham um erro de apenas um sexto de grau. Esta precisão de resultados significou um gigantesco passo em frente na astronomia, mas representou algo ainda mais importante. Como os cálculos feitos com base no movimento da Terra se mostraram melhores do que as previsões baseadas na Terra parada, as Tabelas de Kepler foram um argumento sólido a favor da teoria heliocêntrica.
Imprimiram-se mil exemplares da obra, o que constituía, na altura, uma tiragem elevada para um livro científico (os Principia de Newton tiveram apenas 300 exemplares). Mas hoje é muito difícil encontrar um exemplar das Tabelas. No entanto, se o visitante de Praga estiver mesmo interessado pode apreciar um desses livros. Ao vivo. É necessária uma autorização especial. Mas o religioso que dirige a antiga biblioteca do mosteiro de Strahov, não longe da estátua dos dois astrónomos, dá-a a quem justificar o interesse. Marca-se uma data e uma hora. Uma funcionária retira o volume de um cofre e coloca-o numa mesa. É possível fotografá-lo, desde que não se use «flash».
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Pormenor que mostra as escalas do nónio no quadrante de Tycho Brahe
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Só por si, o frontispício das Tabelas merece um estudo aturado. Possui uma gravura feita por um amigo de Kepler, Wilhelm Shickard, com que o autor pretendeu representar a construção do templo de Urânia (astronomia). Os grandes astrónomos do passado aparecem nas colunas que sustentam o conhecimento dos astros. Kepler aparece na base, fazendo cálculos num pano de uma mesa. A águia imperial de Habsburgo, no topo, deixa cair algumas moedas, financiando a investigação. Umas poucas vão cair na mesa de Kepler.
O mais interessante para nós, portugueses, é o instrumento situado junto a Tycho Brahe e que se vê bem na gravura de pormenor. Trata-se de um quadrante munido do nónio de Pedro Nunes (1502-1578), tal como um que Tycho Brahe construíra. A essa imagem aqui apresentada a partir da fotografia do livro de Praga mostra as escalas concêntricas, com unidades desfasadas, tal como foi proposto pelo nosso matemático. Não restam dúvidas de que Kepler pretendeu acompanhar o seu mestre de um instrumento. Mas de um instrumento que simbolizava o mais avançado da época na procura da precisão da medida. É curioso encontrar Pedro Nunes em Praga. Mesmo sendo no frontispício de um livro.
Nuno Crato