Henrique Leitão


Os primeiros telescópios em Portugal





Embora o telescópio tenha sido construído e as suas notáveis potencialidades militares rapidamente percebidas desde Setembro de 1608, quando Hans Lipperhey, o seu presumível inventor, o mostrou em den Haag ao Conde de Nassau, comandande-chefe das forças da República [1], só em finais do ano seguinte o seu extraordinário poder como instrumento científico seria demonstrado. Como de um ponto de vista técnico a construção de um telescópio não levantava problemas de maior para um artesão com alguma experiência – toda a dificuldade reduzia-se ao polimento conveniente das lentes – o telescópio teve uma divulgação verdadeiramente explosiva por toda a Europa nos anos imediatamente seguintes a 1609. Estas primeiras lunetas eram certamente muito modestas. Recorde-se brevemente que mesmo os melhores telescópios construídos por Galileu no início de 1610 eram instrumentos de performances muito deficientes - uma observação que torna ainda mais notáveis as excepcionais observações realizadas pelo famoso físico italiano. As características dos melhores telescópios construídos por Galileu nesta altura podem dar uma ideia das dificuldades envolvidas. Tratavam-se de lunetas com aberturas de aproximadamente 40mm e ampliações ligeiramente superiores a 20 vezes. O campo visual andaria pelos 12 minutos e a resolução pelos 1.25 minutos de arco. A estes parâmetros modestos somem-se graves efeitos de aberração cromática e aberração esférica. Galileu aprendeu a minimizar estes últimos colocando um écran em frente da objectiva, mas reduzindo assim as aberturas para cerca de 15-20 mm [2]. Mas mesmo as características muito modestas destes instrumentos eram mais que suficientes para revelar o seu enorme interesse militar e, a partir de 1610, as suas sensacionais potencialidades como instrumento de observação astronómica.

Anjinho astrónomo numa gravura francesa do último quartel do século XVII. O instrumento que o acompanha, pelo menos no seu aspecto exterior, não difere muito dos primeiros telescópios, que chegaram cedo a Portugal.

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Os telescópios circularam em Portugal seguramente desde muito cedo. Yoshio Mikami, um dos mais reputados historiadores da ciência japonesa, afirmou que os telescópios teriam chegado ao Japão em 1613. Se isso aconteceu pela mão dos missionários jesuítas [3], e como todos os missionários europeus que neste período partiam para o Extremo-Oriente tinham obrigatoriamente que sair de Lisboa, numa viagem até ao Japão que demorava entre um e dois anos a realizar, isto significa que já eram conhecidos em Portugal pelo menos por volta de 1611-1612.

Não conheço o fundamento para a datação avançada por Yoshio Mikami, que aqui deixo com base na autoridade do estudioso nipónico; em relação ao Japão, o dado mais concreto de que disponho é o facto de na obra do astrónomo Kobayashi Yoshinobu (1601-1684) intitulada Nigi ryakusetsu [Resumo da teoria dos globos terrestre e celeste], de meados do século XVII já ser feita uma referência a observações telescópicas realizadas no Japão. Mikami fez notar que os primeiros telescópios não terão passado de meras curiosidades, e que só mais tarde vieram a ser empregues como instrumentos científicos – ou seja, o mesmo tipo de difusão que se tinha dado na Europa.

Algumas informações adicionais, provenientes de outras regiões do Mundo na altura sob influência portuguesa, permitem assegurar que os telescópios teriam sido conhecidos em Lisboa pouco depois da sua aparição no panorama europeu. Uma das primeiras notícias relatando o uso de uma luneta vem de um português em terras do Brasil. No relatório da batalha de Guaxanduba, travada a 19 de Novembro de 1614, o Major Diogo de Campos Moreno refere que o comandante Jerónimo de Albuquerque observava o inimigo com “hum oculo de longa vista” [4]. A relativa banalidade com que o assunto é mencionado deixa supor que o instrumento óptico não fosse já uma novidade entre os militares, e o facto de a notícia vir do Brasil leva a concluir que esse óculo tivesse sido conhecido em Lisboa pelo menos alguns meses antes.

A questão da difusão da luneta em Portugal, num contexto não astronómico, mereceria um estudo separado, que até hoje nunca se fez. A avaliar pela documentação sobre o ensino da óptica que chegou até nós, e por várias outras notícias dispersas, é possível concluir que estes estudos foram seguidos com interesse e continuidade nas primeiras décadas do século XVII. É por isso de presumir a existência de círculos de curiosos que tendo sabido do novo instrumento o tenham replicado, ou que o tenham importado de outro país [5]. Mas o estudo da divulgação do telescópio enquanto instrumento militar não é o nosso propósito aqui. As notícias acima relatadas servem apenas para dar como certa a existência de telescópios em Portugal, pouco tempo depois da sua divulgação europeia de 1609-10, e que, tal como sucedeu em muitos outros países, a utilização do telescópio como instrumento de fins militares, ou, mais geralmente, como instrumento de Corte, deve ter antecedido o seu uso como instrumento de observação astronómica. É enquanto instrumento de observação astronómica que o telescópio nos interessa.

As primeiras notícias incontroversas sobre o uso de um telescópio para realizar observações astronómicas em Portugal datam de 1615-17. No curso leccionado durante esses anos lectivos pelo jesuíta italiano Giovanni Paolo Lembo (ca.1570-1618), na Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, encontram-se descritas aquelas que penso terem sido das primeiras observações telescópicas realizadas em Portugal [6]. O professor deste curso fora o construtor dos primeiros telescópios utilizados no Colégio Romano pelos astrónomos jesuítas no ano de 1610, e em Lisboa reproduziu essas observações. Era um observador experimentado, e acompanhara de perto toda evolução do debate em torno das “novidades celestes”. A História da Ciência conhece-o fundamentalmente porque foi um dos quatro signatários, com Christopher Clavius, Christoph Grienberger, e Oddo van Maelcote da famosa resposta que os jesuítas do Colégio Romano enviaram ao Cardeal Roberto Bellarmino, em 24 de Abril de 1611, corroborando as observações telescópicas de Galileu [7]. Quando Lembo veio dar aulas para Lisboa era seguramente um dos homens mais habilitados em toda a Europa para tratar da construção e uso de telescópios.


Henrique Leitão



Este texto foi adaptado de:

LEITÃO, Henrique, "Galileo's Telescopic Observations in Portugal", in José Montesinos, Carlos Solís (eds.), Largo Camino di Filosofare. Eurosymposium Galileo 2001, La Orotava: Fundación Canaria Orotava de la Historia de la Ciencia, 2001, pp. 903-913.

---------- "Os Primeiros Telescópios em Portugal", in Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Ciência e da Técnica, Évora: CEHFC-Universidade de Évora, 2001, pp. 107-118.


Referências

[1] Albert van Helden, The Invention of the Telescope. Transactions of the American Philosophical Society, (Philadelphia: American Philosophical Society, 1977).
[2] Veja-se: Stillman Drake, Galileo at Work. His Scientific Biography, (Chicago, The University of Chicago Press, 1978) pp. 140-153.
[3] O estudo desenvolvido sobre o telescópio no Japão é: Yoshio Mikami, Nihon sokuryo justu shi no kenkyu [História do Telescópio no Japão] (Tokyo, 1948). As informações que apresento neste texto são recolhidas de: Shigeru Nakayama, A History of Japanese Astronomy. Chinese Background and Western Impact, (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969), pp. 98-101.
[4] Diogo de Campos Moreno, “Jornada do Maranhão por ordem de S. Magestade feito o anno de 1614”, Collecção de notícias para a história e geografia das nações ultramanrinas que vivem nos domínios Portuguezes, ou lhes são vizinhas, (Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1814). Veja-se também: Engel Sluiter, “The first known telescopes carried to America, Asia and the Artic, 1614-39”, Journal for the History of Astronomy, 28 (1997) 141-145.
[5] A existência de ensino de óptica no início do século XVII poderia ser abonada pela inspecção dos cursos de matemática do colégio de santo Antão que sobreviveram até aos nossos dias. Na impossibilidade de aqui o fazer, sirva a descrição das matérias leccionadas pelo jesuíta Christopher Grienberger nesse colégio, num excerto de uma carta de 24 de Março de 1601: “Lectio est de prospectiva in qua iam fere 8 menses insumpsi ... Occasionem dedit Prospectivae, Geometriam practica [quam] superiori anno inchoaveram: cum enim multas figuras proponerem in prospectiva, ipsi ... curiositati excitati voluere interrumpere Geometriam Practicam, desiderio prospectivae ...”, in: Christoph Clavius. Corrispondenza. Edizione critica a cura di Ugo Baldini e Pier Daniele Napolitani. 7 voll. In 14 fasc. (Pisa: Università di Pisa, 1992), IV, 1, pp. 136-9.
[6] Este curso é de excepcional importância para a história científica portuguesa. Está preservado no códice: Lisboa, Arquivo Nacional-Torre do Tombo, Ms. Livraria, 1770.
[7] Opere di Galileo Galilei, vol. XI, pp. 92-3

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