O Rinoceronte de Dürer


O Rei Manuel o Grande de Portugal sabia bem o que queria quando presenteou Leão X com um elefante e um rinoceronte. Foi sob estas circunstâncias que se estabeleceram as fundações da zoologia e da botânica científicas.

In Jacob Burckhardt, The Civilization of the Renaissance in Italy, 1878



20 de Maio de 1515. Junto à Torre de Belém, em Lisboa, desembarca a frota de Cristóvão de Brito, recém chegada da Índia. Da nau Nossa Senhora da Ajuda é descido um ser que desde o tempo do império romano não era visto na Europa. A população da cidade e das redondezas acumula-se junto à linha de água, com grande clamor e confusão, na esperança de ver com os seus próprios olhos tão estranho monstro.

O animal, um rinoceronte asiático, fora oferecido pelo Sultão de Cambaia, Modofar II, a uma embaixada do Vice-Rei da Índia Afonso de Albuquerque. Nesta embaixada, que partiu de Goa em Fevereiro de 1514, e onde participaram, entre outros, Diogo Fernandes de Beja, Jaime Teixeira, Francisco Pais e Duarte Vaz foram trocadas oferendas. Do lado português contavam-se inúmeras peças em prata, brocados persas e chineses e uma adaga decorada com rubis. O sultão retribuiu com uma cadeira incrustada a marfim e um portentoso rinoceronte.

Segunda a descrição de Gaspar Correia, que esteve na Índia após 1512, o rinoceronte era: «um animal doce, de corpo baixo, um pouco longo; o couro, os pés e as patas de elefante; a cabeça comprida como a de um porco; os olhos próximos do focinho; e sobre o nariz tem um corno grosso e curto, afiado na ponta. Come erva, palha e arroz cozido».

Os intentos da comitiva portuguesa; obter autorização para construir uma fortaleza na ilha de Diu, não foram satisfeitos por Modofar II. Mas as ofertas foram efectivamente trocadas e o rinoceronte, ou ganda como é chamado na Índia, entregue a Afonso de Albuquerque em Setembro de 1514. Para conveniência do novo dono o animal era acompanhado por um tratador indiano. Foi ainda acorrentado numa das patas. Tendo em mãos esta carga preciosa e sem condições para manter o animal Afonso de Albuquerque decidiu oferecê-lo ao Rei D. Manuel.

Assim, em Janeiro de 1515, a frota de Cristóvão de Brito deixa Cochim rumo a Lisboa, com o rinoceronte a bordo. A travessia oceânica durou 120 dias e teve apenas três paragens: em Madagáscar, na Ilha de S. Helena e nos Açores. Apesar de estar privado da sua iguaria preferida – erva fresca – o ganda indiano terá chegado a Lisboa de boa saúde. Fora alimentado a palha, feno e arroz cozido durante a perigosa viagem.

A surpresa agradou a D. Manuel que já mantinha outros animais exóticos numa espécie de colecção, no Palácio da Ribeira. Aí se podiam encontrar gaiolas de gradeamento metálico construídas à medida dos animais que acomodavam. Uma vez que mantinha um comércio activo com a África e a Ásia D. Manuel pôde reunir uma quantidade considerável de espécies. Em vários edifícios reais mantinha elefantes, gazelas, antílopes, leões, um macaco amestrado e uma grande colecção de aves africanas.

O rinoceronte ficou guardado no Palácio da Ribeira para evitar o contacto com os elefantes, que eram acomodados no Palácio de Estãos. Segundo os autores romanos da antiguidade o rinoceronte e o elefante eram inimigos mortais. Para testar essa ideia D. Manuel decidiu então promover um combate entre ganda e um elefante. A arena escolhida foi um pátio que se estendia entre os aposentos reais e a Casa da Mina, que o Rei mandou fechar com uma vedação de madeira (aproximadamente na região onde hoje se situa o Ministério da Administração Interna, no Terreiro do Paço). 3 de Junho, domingo da Santíssima Trindade, foi a data aprazada para o embate.

O Rei, a Rainha e a corte reuniram-se no pátio e aguardaram com grande expectativa. Parecia que os tempos do coliseu de Roma tinham voltado. O primeiro animal a chegar foi o rinoceronte, acompanhado pelo seu tratador indiano. Nos estábulos reais do palácio de Estãos foi escolhido um elefante muito jovem para defrontar as quatro toneladas de ganda. Com as ruas cheias de gente aos gritos o pobre elefante foi conduzido até à arena, onde chegou já bastante nervoso. À ordem do Rei foi removido o tecido que bloqueava a visão do rinoceronte e este pôde ver o elefante. O avanço de ganda, com um ar ameaçador, em direcção ao outro paquiderme provocou o pânico deste. O elefante fugiu abanando a tromba e acabaria por investiu com a cabeça contra uma abertura que possuía um gradeamento de ferro. Após várias tentativas o elefante conseguiu escapar, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. O rinoceronte, por sua vez, foi aplaudido pela assistência e saiu vitorioso, sem sequer ter entrado em combate.

Na época havia uma considerável comunidade de mercadores estrangeiros, nomeadamente alemães, a residir em Lisboa. É pois natural que as notícias deste animal invulgar tenham chegado rapidamente à Europa central. Está estudada pelos investigadores, por exemplo, uma carta de Valentim Fernandes, natural da Morávia, escrita de Lisboa entre 3 de Junho e 1 de Julho, e endereçada a um mercador de Nuremberga. Apenas sobreviveu uma cópia do documento onde Fernandes relata o que sucedeu com o rinoceronte em Lisboa. Uma outra missiva terá sido enviada por um correspondente português e era acompanhada por um desenho de ganda. Essa missiva chegou às mãos de Albrecht Dürer que desenhou, a partir daí, uma gravura sobre madeira que viria a tornar-se a representação clássica do animal. O artista acrescentaria a data de 1515, a designação latina do paquiderme Rhinocerus e o seu anagrama (A. D.).

Desenho enviado de Lisboa para a Alemanha, em 1515, presumivelmente de autor português. A nota manuscrita, de Dürer, é uma cópia da missiva que originalmente acompanhava o desenho (Museu Britânico, Londres).
Gravura sobre madeira de Albrecht Dürer, baseada no original enviado de Lisboa (1ª edição, Museu Britânico, Londres).

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Prosseguindo Portugal as suas navegações e conquistas para oriente havia a necessidade de obter da Santa Sé mais declarações de direito exclusivo sobre as novas terras. No ano anterior D. Manuel já tinha enviado ao papa Leão X uma faustosa embaixada onde se incluía um raro elefante branco. O sucesso do elefante em Roma foi assinalável e agora o monarca considerava seriamente o envio do rinoceronte numa nova missão diplomática. Finalmente, em Dezembro de 1515 ganda foi embarcado no navio de João de Pina, com outras peças de ourivesaria em prata e antiguidades, com destino a Roma. Infelizmente a viagem acabaria mal, com um naufrágio na costa italiana. O rinoceronte, acorrentado ao convés, teve uma inevitável morte nas águas do Mediterrâneo. O seu corpo seria posteriormente recuperado junto a Villefranche, na costa francesa. O afogamento foi comunicado a D. Manuel que ordenou o empalhamento do animal – que depois foi transportado para Roma, tendo chegado ao Vaticano em Fevereiro de 1516.

Recentemente o investigador norte-americano Silvio Bedini tentou em vão encontrar ganda empalhado nas colecções dos principais museus italianos. A sua busca foi motivada, em particular, por uma nota de rodapé do director do Museu Nacional da Smithsonian Institution (Washington, D.C.) – hoje designado Museu Nacional de História Americana – George Brown Goode que escreveu, em 1892: “provavelmente o espécimen mais antigo existente num museu é um rinoceronte que ainda se preserva no Museu dos Vertebrados em Florença. (…) Data do século XVI.”

A gravura de Dürer conheceu uma difusão tal que condicionaria as representações do rinoceronte asiático, pelo menos até ao início do século XIX. Claro que nos séculos que se seguiram alguns naturalistas visitaram a Índia e corrigiram erros expressos na representação. Mas muitos peritos concordam que no essencial a obra de Dürer, e, num certo sentido, a do artista português anónimo, continuou a influenciar a forma como os ilustradores viram e representaram este extraordinário animal.


Luís Tirapicos

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