Portugal e o eclipse que confirmou a relatividade geral


A 24 de Maio de 1919 dois astrónomos britânicos observaram um eclipse do Sol, na então portuguesa ilha do Príncipe, com a fim de testar os achados de um mal conhecido físico alemão – Albert Einstein (1879-1955). Este publicara, três anos antes, na revista científica «Annalen der Physik», a versão final da teoria da relatividade geral, depois de, em Novembro de 1915, a ter apresentado à Academia das Ciências da Prússia. A expedição foi apoiada pelo Observatório Astronómico de Lisboa, pelas autoridades Portuguesas e pelos colonos da ilha, que tudo fizeram para garantir o sucesso e o conforto dos observadores.

Eddington e Cottingham haviam deixado Liverpool a 8 de Março, no vapor «Anselm», com o fim de observar o eclipse naquela ilha do Golfo da Guiné. Foram acompanhados até à Madeira por Crommelin e Davidson, que seguiam para Sobral, no norte do Brasil, com o mesmo objectivo. No dia 9 de Abril embarcaram no navio «Portugal», da Companhia Nacional de Navegação, com destino a Santo António – no Príncipe – onde chegaram a 23 de Abril.

Devido ao corte de comunicações entre a Alemanha e a Inglaterra, provocado pela I Guerra Mundial, Arthur Eddington (1882-1944) só teve conhecimento do trabalho de Einstein através do astrónomo holandês Willem de Siter (1872-1934), que lhe enviou a cópia de um artigo publicado em 1915. Uma das previsões aí feitas era que um raio de luz proveniente de uma dada estrela, ao passar nas imediações do Sol, sofreria uma ligeira deflexão, com um valor que seria aproximadamente o dobro do previsto pela teoria de Newton. Realizar este teste implicava, dados os meios da época, a observação de um eclipse total do Sol – altura em que o disco aparente da Lua esconde por completo o disco solar, permitindo assim a observação de estrelas numa posição próxima da do Sol.

Foi astrónomo britânico Arthur Eddington que em 1919, na Ilha do Príncipe – na época uma colónia portuguesa – liderou uma das expedições que pôs à prova a teoria da relatividade geral de Einstein.

A comparação de chapas fotográficas obtidas sem a interposição do Sol, e durante o eclipse, deveria permitir a medição do deslocamento da posição aparente das estrelas, provocado pela presença do campo gravitacional do Sol. Numa carta datada de 14 de Outubro de 1913, enviada ao físico solar norte-americano George Hale (1868-1938), Einstein indagava sobre a possibilidade de a deflexão da luz ser medida quando o Sol não estivesse eclipsado. Mas a resposta de Hale foi negativa (hoje, já é possível fazer este teste, usando para o efeito a radioastronomia).

O eclipse de 29 de Maio de 1919 oferecia, de facto, uma excelente oportunidade. Em Março de 1917, o astrónomo real britânico, Frank Dyson (1868-1939), fez incluir na publicação mensal da Royal Astronomical Society um artigo em que chamava a atenção para a circunstância de o eclipse se dar numa zona do céu em que se observam inúmeras estrelas brilhantes. Efectivamente, o observador terrestre veria nas proximidades do Sol o enxame estelar das Híades, na constelação do Touro (um enxame estelar é um grupo de estrelas ligadas entre si pela interacção gravitacional e com uma origem comum). Observar um razoável número de estrelas tornava-se importante pela imperiosa necessidade de fazer um tratamento estatístico das observações.

Os preparativos das expedições britânicas tiveram início em 1917, e em 10 de Novembro desse ano a Comissão Permanente para os Eclipses decidiu nomear uma subcomissão constituída por Dyson, Eddington, Fowler e Turner, com o fim de organizar as expedições. Decidiu igualmente solicitar duas bolsas, uma de cem e outra de mil libras, à Comissão Governamental de Bolsas de Investigação. Em Maio e Junho de 1918, reuniu-se a subcomissão. Foi então atribuído o telescópio astrográfico de Oxford à expedição do Príncipe, enquanto o de Cambridge serviria aos observadores instalados em Sobral. Não obstante todos os preparativos, só o final da I Guerra Mundial viabilizaria a realização das expedições.

Durante a guerra, Eddington, que era «quaker» (membro de uma confissão religiosa adepta da não violência) requereu dispensa do serviço militar, como objector de consciência, mas o Ministério do Serviço Nacional, que necessitava de efectivos, recorreu da isenção. Em 11 de Julho de 1918, Eddington viu confirmada a isenção do serviço militar, depois da intervenção de Frank Dyson, que alegou a importância de Eddington na expedição ao eclipse. Antes de 1919 foram várias as tentativas para testar a previsão de Einstein. Erwin Freundlich (1885-1964), do Observatório de Berlim, e W. Campbell (1862-1938), do Observatório de Lick, nos Estados Unidos, organizaram expedições à Rússia para observar o eclipse de 21 de Agosto de 1914. Freundlich foi feito prisioneiro no início de Agosto, com os restantes membros da expedição, porque eclodiu a I Guerra Mundial – viram ainda confiscado o material. Só seriam libertados em Setembro.

A expedição de Campbell falhou devido ao mau tempo. Outras expedições houve que conheceram o mesmo insucesso, nuns casos porque as condições meteorológicas não ajudaram, noutros porque os resultados foram inconclusivos. Os últimos preparativos das expedições ao Príncipe e a Sobral realizaram-se no Observatório Real de Greenwich, de forma a estar tudo pronto em finais de Fevereiro. Pediram-se instrumentos emprestados, nomeadamente à Academia Real Irlandesa. Com falta de pessoal no Observatório (alguns funcionários ainda mobilizados) conseguiram convencer um engenheiro civil do Colégio Real Marítimo a construir as estruturas das tendas de campanha.

Telescópios e equipamento fotográfico instalados na Ilha do Príncipe pela expedição britânica. O objectivo das observações era medir o desvio na posição aparente de algumas estrelas, provocado pela interposição do campo gravitacional do Sol
Uma segunda expedição dirigiu-se para Sobral, no norte do Brasil, onde o eclipse também foi observado com sucesso, como ilustra esta página da imprensa da época.

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Antes de partir para o Príncipe, Eddington teve necessidade de informações sobre as condições meteorológicas da ilha e de contactos que lhe permitissem obter auxílio. Por isso, manteve correspondência com o Observatório Astronómico de Lisboa que lhe viria a fornecer toda a ajuda necessária. Outro dos responsáveis da expedição, o astrónomo real Frank Dyson, estivera em Portugal a observar o eclipse total do Sol de 1900, e ficara impressionado com o apoio das autoridades portuguesas e do Observatório de Lisboa.

No relatório de Eddington, publicado um ano depois da expedição, está explicito o agradecimento aos portugueses que o ajudaram: «Em Lisboa, o vice-almirante Campos Rodrigues e o Dr. Frederico Oom (Observatório nacional) tinham-nos dado na devida altura, as necessárias cartas de apresentação. Na ilha não se pouparam a esforços para garantir o sucesso e o conforto dos observadores. Ainda a bordo, foram-nos apresentados o administrador em exercício da ilha do Príncipe, o Sr. Carneiro, presidente da Associação de Plantadores, e o Sr. Grageira, representante da Sociedade de Agricultura Colonial, sendo este último quem nos dispensou do exame alfandegário das nossas bagagens.»

Um pouco mais adiante, prossegue: «(…) resolvemos instalar-nos na Roça Sundy, a sede da plantação principal do Sr. Carneiro. Ficámos hospedados em casa deste durante toda a nossa estada e pudemos utilizar amplamente todos os seus consideráveis recursos de mão-de-obra e de material. Soubemos posteriormente que o proprietário tinha adiado a viagem à Europa a fim de nos receber. Muito devemos também ao Sr. Atalaya, capataz da plantação, com quem convivemos durante cinco semanas. O seu auxílio foi-nos precioso.» Este relatório foi, em boa hora, vertido para português por Nunes dos Santos e Christopher Auretta, ambos da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, e pode ser encontrado na obra Eddington e Einstein (Gradiva, Col. Panfletos, 1992).

Escreveu Eddington no seu livro Space, Time and Gravitation, publicado em 1920: «O disco escuro da Lua envolvido pela coroa era visível através das nuvens, tal como naquelas noites em que não se podem observar as estrelas. Nada havia a fazer, a não ser levar por diante o programa estabelecido e esperar que tudo corresse pelo melhor. Um observador mantinha-se ocupado na substituição rápida das chapas, enquanto o outro assegurava as exposições com os devidos tempos de duração, por meio de um anteparo colocado em frente da objectiva, de forma a evitar quaisquer trepidações no telescópio. (…) Há um espectáculo maravilhoso lá em cima, e, como as fotografias revelaram depois, uma magnífica chama-de-protuberância balança-se cento e sessenta mil km acima da superfície do Sol. Nós não temos tempo para lhe prestar atenção. Estamos apenas conscientes da estranha penumbra da paisagem e do silêncio da natureza, quebrado pelas vozes dos observadores e pelo bater do metrónomo marcando os 302 segundos do evento.»

Depois do eclipse, Eddington não pôde efectuar a análise dos resultados na ilha, como pretendia. Uma greve inesperada da companhia de navegação fê-lo regressar no primeiro barco disponível, e, ainda assim, com bilhetes especialmente requisitados pelo Governo português. Apesar disso, teve ainda tempo para revelar as chapas fotográficas e verificar que uma delas apresentava valores coincidentes com as previsões de Einstein. Como referem os biógrafos de Eddington, este terá sido um dos momentos de maior felicidade da sua vida – o próprio Eddington o confessaria mais tarde.

Os resultados das expedições britânicas estiveram longos meses sem uma divulgação alargada. Einstein, em carta enviada a 2 de Setembro, lamentava-se a E. Hartmann pelo facto de ainda não ter recebido notícias. Dez dias mais tarde, quando escreve ao físico holandês Ehrenfest (1880-1933), a declinar um convite para ocupar um lugar na universidade de Leiden, pergunta-lhe se tem notícias das observações inglesas. Ehrenfest fala então com o seu colega Lorentz (1853-1928), que possuía mais contactos no estrangeiro, e, a 27 de Setembro, Einstein recebe um telegrama: «Eddington encontrou deslocamento das estrelas em redor do Sol…»

Einstein deve ter exultado com a notícia, porque no mesmo dia escreve um postal à mãe em que se podia ler: «Boas notícias hoje. H. Lorentz enviou-me um telegrama em que diz que as expedições britânicas confirmaram definitivamente a deflexão da luz pelo Sol (…)» Entretanto continuava a análise cuidadosa dos resultados obtidos no Príncipe. Em 6 de Novembro de 1919, numa reunião conjunta da Royal Society e da Royal Astronomical Society, foram finalmente divulgados os resultados das expedições. Coube a Dyson a apresentação do relatório oficial. A atmosfera de sala, que se encontrava à cunha, parecia própria de uma tragédia grega – segundo as palavras de um dos presentes, o matemático e filósofo Alfred Whitehead (1861-1947). Pendurada na sala, a imagem de Newton lembrava que a maior das generalizações científicas estava agora a sofrer a sua primeira revisão. Em Inglaterra, os grandes jornais fizeram eco imediato do sucesso dos seus astrónomos, bem como das extraordinárias implicações da relatividade geral. Em 15 de Novembro o Times publicava um artigo intitulado «Revolução na Ciência»: «Os ideais de Aristóteles, Euclides e Newton, que são a base das nossas concepções actuais, não correspondem ao que pode ser observado na estrutura do universo (…) Aqui e ali, passado e presente são relativos, não são absolutos, mudam segundo o referencial escolhido (…)»

Em algumas biografias de Einstein, a apresentação dos resultados das expedições ao Príncipe e a Sobral abre um novo capítulo. Como afirma Ronald Clark, na sua extensa biografia de Einstein: «Einstein acordou em Berlim como um homem famoso, na manhã de 7 de Novembro de 1919.»


Luís Tirapicos

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