Vasco Jorge Rosa da Silva


Eclipses solares no Portugal da Idade Média






Tal como os cometas, os eclipses, desaparição temporária de um objecto celeste, causado pela interposição de um outro astro [1], eram vistos pelos Portugueses medievais de uma forma supersticiosa e transmissora de algum sinal divino, proveniente do Céu. Em Portugal e por toda a Europa, os astrólogos relacionavam sempre os eclipses àquilo que se acreditava serem maus agouros. Só compulsando, com precisão, a documentação coeva, se dá conta do verdadeiro pânico que os eclipses solares provocavam na mente dos nossos antepassados. Casos de terror, de pânico e de medo do fim do Mundo eram inevitáveis.

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Gravura de finais do século XV, representando eclipses solares (em cima) e lunares (em baixo)

Gravura de finais do século XV, representando eclipses solares (em cima) e lunares (em baixo), in BENNETT, Jim, MELI, Domenico Bertoloni, Spheara Mundi – Astronomy Books in the Whipple Museum 1478-1600, Cambridge, Whipple Museum of the History of Science, 1994, p. 15.]

Nas fontes medievais existentes no nosso País, encontram-se documentados eclipses solares desde o século XI. Assim, antes da fundação de Portugal, ocorreu um eclipse nas «Calendas de Julho da Era de MCXVII», ou seja, em Junho de 1079 [2]. Durante este fenómeno, o «Sol obscureceu à hora sexta, 12h, e esteve assim durante cerca de duas horas. Surgiram muitas estrelas no Céu, quase como se fosse meia-noite» [3].

Para Inglaterra, por exemplo, detectámos três eclipses que ocorreram no século XII, nomeadamente, em 1133, 1185 e 1191. Para o caso português, ainda antes de terminar o século XII, foram observados pelo menos dois eclipses solares, um em 1192 e outro em 1199. No que diz respeito ao primeiro, somos informados de que o «Sol ficou negro e a Lua e muitas estrelas surgiram no Céu. Parecendo noite, causou um forte temor na populações e, até o Sol se voltar a ver, muitos foram os homens e mulheres, laicos e religiosos, que se dirigiram à Igreja do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Com pavor de uma morte súbita, rezavam e imploravam às entidades divinas» [4]. O cronista Rui de Pina dá-nos conta do segundo eclipse, que ocorreu em 1199 e que teve um grande impacto no seio das populações. Este autor afirma que «na Era de Nosso Senhor de mil cento e noventa e nove, entre a horas sexta e nona do dia», isto é, das 12 às 15h, o «Sol ficou negro como pez. Deste modo, num dia tão claro, tudo ficou escuro, como se fosse noite» [5].

Às três horas da tarde, o Sol estava novamente visível. Durante a ocorrência do fenómeno, sendo «dia, apareceram a Lua e muitas estrelas» [6]. As populações tiveram um tal medo deste fenómeno que, de acordo com o cronista acima citado, deixaram as suas casas e fazendas e recolheram-se às igrejas e casas piedosas. Neste caso, podemos verificar que as pessoas pensavam que estavam a ser acometidas por uma espécie de ira divina. Pouco depois, «as trevas começaram a derramar e o Sol recuperou a sua claridade». A «Lua foi vista sob diversas maneiras» [7]. Este eclipse solar perdurou na memória dos homens para além de 1199, pois, por exemplo, no ano de 1201, ainda se buscava a memória do eclipse para explicitar a crise das sementeiras, que se julgava poder estar relacionada com o fenómeno. Ao consultarmos o catálogo da NASA [8] para o ano de 1199, verificámos que ocorreram dois eclipses solares, sendo um anular e um total. Numa outra fonte, Crónica de Portugal de 1419, as informações que o cronista anónimo nos dá, são idênticas às apresentadas por Rui de Pina, ao referir que «no ano de mil CCXXXVII, 1199, foram vistos sinais entre as horas sexta e nona» [9], e o Sol ficou escuro como pez. No Céu, apareceram a «Lua e as estrelas; pela qual coisa os homens e as mulheres, com grande temor, fugiam para as igrejas, esperando pelo momento da sua morte, bradando a Deus para que os ajudasse, assim aos clérigos como aos leigos. Todos estavam esmorecidos e maravilhados, pensando que o Mundo se queria fundir. E partindo-se aquela noite e trevas e o Sol recuperando a sua claridade, a Lua apareceu sob diversas maneiras, como nunca fora vista. As pessoas ficaram muito maravilhadas» [10]. Assim, no que diz respeito ao século XII, o posicionamento das populações portuguesas face aos eclipses solares era de verdadeiro pânico.

No século XIII, no ano de 1232, quando reinava D. Sancho II (1223–1248), a obra Anais, Crónicas e memórias avulsas de Santa Cruz de Coimbra, dá-nos conta de um outro eclipse solar, ocorrido a 30 de Maio. O relato refere que na «Era de mil CCLXX, a uma sexta-feira, a XXX dias de Maio e à hora sexta, o Sol escureceu e a Lua e muitas estrelas surgiram no Céu, por vontade de Nosso Senhor Deus» [11]. Através deste caso, podemos discernir a quase igualdade das informações relativas aos eclipses solares. Na verdade, relata-se sempre o escurecimento do Sol e o visionamento, durante as horas diurnas, da Lua e das estrelas. Neste eclipse de 1232, nota-se a atribuição do fenómeno aos desígnios divinos, o que nos mostra que, ao contrário do que sucederá mais tarde, no século XIII, os eclipses ainda não são entendidos como um fenómeno natural. Nos Scriptores, dos Portugaliae Monumenta Historica, este eclipse surge narrado exactamente da mesma forma [12]. No catálogo da NASA [13], para o ano de 1232, descobrimos que ocorreram dois eclipses solares. Em suma, na centúria de Duzentos, mantêm-se as superstições e o pavor relativamente aos eclipses.

No século XIV, os Portugueses são confrontados com mais alguns eclipses solares. Deste modo, em 1312, durante o reinado de D. Dinis (1279–1325) «aos XIV dias do mês de Maio, um eclipse do Sol tornou a estrela tão sumida, que mais se parecia com uma Luna Nova, muito pequena». No evoluir do eclipse, o Sol «passou por muitas cores, de forma que o dia ficou muito escuro. E isto ocorreu à hora do meio-dia. O Sol esteve assim durante uma hora e meia» [14]. Novamente, os mesmos factos observados, isto é, o Sol escurecido pela Lua, que tomava diversas cores, tendo, ainda, o fenómeno ocorrido por volta do meio-dia e até às 13:30h. Anos mais tarde, em 1333, quando D. Afonso IV (1325–1357) era rei de Portugal, à «VI.ª feira, XXX dias andados do mês de Maio, o Sol mudou a cor, da manhã até ao Poente, e o ar tornou-se espesso e escuro». Nesta situação, porém, a descrição do provável eclipse não está completa, se tivermos em consideração os casos estudados anteriormente. No último quartel do século XIV, a 13 de Maio de 1378, durante o reinado de D. Fernando (1367–1383), relacionado com a morte de uma pessoa importante, ocorreu um novo eclipse solar. Na realidade, «verificou-se um tão grande eclipse depois do meio-dia, que parecia a todos que era de noite» [15]. Este eclipse é idêntico aos que ocorreram dois séculos antes, até na forma como as populações lidaram com a situação. As pessoas, em pânico, começaram a sair pelos muros dos lugares onde viviam e os mais supersticiosos relacionaram o fenómeno à morte dessa importante personagem. Contudo, nota-se aqui já uma certa evolução na mentalidade e na forma de explicitar estes fenómenos naturais. Fernão Lopes, cronista, elucida-nos que, apesar de muitos verem o fenómeno em causa como algo de irracional e inexplicável, «os entendidos mostravam que os eclipses têm lugar por obra da Natureza em determinadas alturas» [16]. Por esta expressão, podemos discernir que, nos finais do século XIV, em Portugal, certos estudiosos consideravam já os eclipses como um fenómeno natural e, devido ao avanço observacional desde o século XII, sabia-se que este tipo de fenómenos ocorre com regularidade. Em suma, Fernão Lopes conclui «que aquele eclipse não ocorrera devido à morte [dessa pessoa importante], mas que faleceu no tempo em que o eclipse teve lugar» [17]. De reparar ainda num facto interessante, ou seja, no século XII, não detectámos qualquer referência ao vocábulo eclipse, para designar esta tipologia de fenómenos. Pelo contrário, no século XIV, somos já confrontados com os vocábulos eclipse, eclipses e eclipsi. Ainda de acordo com o catálogo da NASA [18], para o ano de 1378 descobrimos que ocorreram três eclipses solares parciais.

No século XV, nos finais da Idade Média, em Portugal, a compreensão relativa aos eclipses vai-se tornando cada vez mais racional. Abraão Zacuto, nos finais da centúria de Quatrocentos, explica que os eclipses solares ocorrem porque a Lua se posiciona entre o Sol e a Terra. O mesmo refere Pedro Nunes, já na Época Moderna.


Vasco Jorge Rosa da Silva
Bolseiro da FCT


Referências bibliográficas

[1] – Philippe de la Cotardière e Jean-Pierre Penot, Dicionário de Astronomia e do Espaço, Lisboa, Plátano Editora, Agosto de 2003, 1.ª edição, p. 141.

[2] – Nas Calendas, sistema de datação romano, tal como nas Nonas e nos Idos, a contagem é feita de uma forma regressiva, ou seja, em vez de se contar para diante, conta-se para trás, para o mês anterior. A última calenda de cada mês é o primeiro dia do mês a que inicialmente se refere. A última calenda de Junho, por exemplo, é o dia 1 de Julho. Cada mês tem 16 calendas. Assim, conta-se 1 de Julho, 30 de Junho, 29 de Junho... E assim sucessivamente. Este sistema foi utilizado em Portugal na Idade Média.

[3] – Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra, introdução de António Cruz, Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1968, p. 75.

[4] – Rui de Pina, Crónicas de D. Sancho I, de D. Afonso II, de D. Afonso III, de D. Dinis, de D. Afonso IV, de D. Duarte, de D. Afonso V e de D. João II, titulação e remissão de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1977, cap. XVI, p. 63.

[5] – Rui de Pina, Ob. cit., cap. XVI, p. 63.

[6] – Ibidem, cap. XVI, p. 63.

[7] – Ibidem, cap. XVI, p. 63.

[8] – http://sunearth.gsfc.nasa.gov/eclipse/SEcat/SEcatalog.html

[9] – Antes de 22 de Agosto de 1422, lei de D. João I (1385-1433), os documentos portugueses estão datados pela designada Era de César ou Hispânica, que tinha um avanço de 38 anos sobre a (nossa) Era Cristã. Tomava-se em consideração não o nascimento de Cristo, mas a concessão do título de imperator a Octávio César Augusto. Isso ocorreu, precisamente, em 38 a.C.

[10] – Crónica de Portugal de 1419, ed. crítica de Adelino de Almeida Calado, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, p. 103.

[11] – Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra..., p. 98.

[12] – Portugaliae Monumenta HistoricaA Saecula Octavo post Christum usque ad quintumdecim – Scriptores, Olisipone, Typis Academicis, MDCCCLVI, vol. 1, fascículo 1, p. 25.

[13] – http://sunearth.gsfc.nasa.gov/eclipse/SEcat/SEcatalog.html

[14] – Anais, Crónicas e Memórias Avulsas de Santa Cruz de Coimbra..., p. 79.

[15] – Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, ed. crítica de Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1975, cap. CX, p. 402.

[16] – Idem, Ibidem, cap. CX, p. 402.

[17] – Idem, Ibidem, cap. CX, p. 402.

[18] – http://sunearth.gsfc.nasa.gov/eclipse/SEcat/SEcatalog.html

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