Os trânsitos de Vénus em Portugal


Terça-feira dia 8 de Junho de 2004, logo ao romper do dia, um pequeno ponto negro colocou-se à frente do Sol. Esse minúsculo ponto entrou no disco solar quando o Sol acabava de se levantar e estava ainda rente ao horizonte, e atravessou-se em frente à nossa estrela durante a manhã, vindo a sair do disco pouco depois do meio-dia. Quem não estivesse preparado para observar o fenómeno nada notaria, pois o ponto negro é diminuto e não pode ser observado sem cuidados especiais.

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Fotografia de Pedro Ré dos momentos do terceiro contacto (começo da saída) do trânsito de Vénus de 8 de Junho de 2004

Fotografia de Pedro Ré dos momentos do terceiro contacto (começo da saída) do trânsito de Vénus de 8 de Junho de 2004.


Foi o planeta Vénus que se interpôs entre nós e o Sol, num raro fenómeno conhecido como trânsito. Desde 1882 que não se observava um trânsito de Vénus e os próximos registam-se em 2012 e 2117, mas nenhum desses é visível em Portugal. Só em 2125 será possível ver de novo no nosso país a pequena sombra de Vénus recortar-se contra o disco solar.

O fenómeno é conhecido como trânsito e não como eclipse, pois o planeta é demasiado pequeno para ocultar significativamente o Sol. Trânsitos sobre o Sol apenas podem acontecer com planetas interiores, colocados entre nós e a nossa estrela. Ou seja, apenas se registam para Mercúrio e Vénus. No caso do primeiro planeta, isso acontece numa média de 13 vezes por século. No caso do segundo, os trânsitos são muito menos frequentes. Ocorrem habitualmente em pares separados por intervalos de 8 anos, mas entre cada par passam, alternadamente, 105,5 e 121,5 anos. Os trânsitos de Vénus são fenómenos astronómicos muito raros.

Os trânsitos são raros porque os planos orbitais da Terra e de Vénus estão inclinados de 3,4º. Regista-se um trânsito quando ambos os planetas passam simultaneamente pela chamada linha dos nodos, que é a intersecção dos dois planos. É o que acontece quando a Terra está em T1 e Vénus no chamado nodo descendente, V1, ou quando a Terra está em T2 e Vénus no nodo ascendente, V2. Se a conjunção de Vénus se registar noutra posição, por exemplo com os planetas em T3 e V3, o alinhamento não é perfeito e não vemos o planeta em trânsito pelo disco solar.

Os trânsitos são raros porque os planos orbitais da Terra e de Vénus estão inclinados de 3,4º. Regista-se um trânsito quando ambos os planetas passam simultaneamente pela chamada linha dos nodos, que é a intersecção dos dois planos. É o que acontece quando a Terra está em T1 e Vénus no chamado nodo descendente, V1, ou quando a Terra está em T2 e Vénus no nodo ascendente, V2. Se a conjunção de Vénus se registar noutra posição, por exemplo com os planetas em T3 e V3, o alinhamento não é perfeito e não vemos o planeta em trânsito pelo disco solar.

Tratando-se apenas de pequenos pontos negros que ocasionalmente se atravessam entre nós e o Sol e sendo necessário estar preparado para os notar, é natural que os trânsitos de Mercúrio e de Vénus apenas tenham começado a ser observados bastante tarde na história da astronomia. Durante séculos, incapazes ainda de prever as datas exactas dos trânsitos, os astrónomos interrogaram-se sobre as razões por que jamais tinham visto um dos planetas interiores atravessar-se frente ao Sol. No século XII, Alpetragius, um conhecido astrónomo árabe que viveu em Sevilha, perguntava-se mesmo se Vénus e Mercúrio não seriam planetas transparentes. Hoje, a ideia pode parecer-nos absurda, mas na altura era uma especulação científica tão válida como qualquer outra.

O primeiro a conseguir prever com algum rigor um trânsito planetário foi o astrónomo alemão Johannes Kepler (1571–1630). Este astrónomo conseguiu ir mais longe do que os seus predecessores no rigor de previsão. Baseava-se em observações muito extensas e rigorosas feitas pelo seu antecessor Tycho Brahe (1546–1601) e, pela primeira vez, entrou em conta com a forma elíptica das órbitas dos planetas — os seus antecessores usavam círculos sobre círculos, que eram apenas aproximações para a verdadeira forma das órbitas.

Kepler previu um trânsito de Vénus e outro de Mercúrio, ambos para 1631. Escreveu um apelo à comunidade astronómica, um Admonitio. Foi um apelo que deixou para a posteridade, pois haveria de falecer um ano antes dos trânsitos. Ao que se sabe, o de Vénus não foi observado por ninguém, pois não foi visível na Europa — era aqui noite quando o planeta se atravessou frente ao Sol. Mas o de Mercúrio foi observado em Paris pelo padre Pierre Gassendi (1592–1655), que respondeu ao apelo de Kepler.

Gassendi, já na altura um homem de ciência conhecido e respeitado, fez as suas observações num apartamento em Paris, onde abriu uma frincha na janela e onde, com ajuda de uma luneta, projectou numa superfície branca uma imagem ampliada do Sol. Dia 7 de Novembro, data prevista por Kepler, Gassendi viu finalmente um pequeno ponto negro sobre a superfície do Sol. O ponto era tão pequeno que o padre francês pensou tratar-se de uma mancha solar. Mas a forma como se movia não deixava dúvidas. Mercúrio estava a atravessar-se frente ao Sol e Gassendi foi o primeiro a observar tal fenómeno. Com ele, ao que se julga, pelo menos três outros observadores notaram o planeta, mas o padre francês foi o único a registar as suas observações.

Poucos anos depois de Gassendi observar o trânsito de Mercúrio, um jovem inglês apaixonado pela astronomia iria tornar-se no primeiro homem a prever e observar um trânsito de Vénus. Jeremiah Horrocks, assim se chamava o jovem inglês, tinha nascido em 1619 e haveria de falecer prematuramente em 1641. Tinha estudado em Cambridge e trabalhava na altura numa igreja a norte de Liverpul. Tinha começado por si só a confrontar as tabelas astronómicas de Kepler com outras igualmente utilizadas na época. Ao fazê-lo, reparou que o astrónomo alemão tinha cometido uma ligeira imprecisão nos seus cálculos: em 4 de Dezembro de 1639 Vénus passaria em frente ao Sol, enquanto Kepler tinha previsto que este não tocaria o disco solar.

Crabtree observando o trânsito de Vénus de 1639, segundo a imaginação de Ford Maddox Brown (1821-1893) em mural pintado no edifício da Câmara Municipal de Manchester.

Crabtree observando o trânsito de Vénus de 1639, segundo a imaginação de Ford Maddox Brown (1821–1893) em mural pintado no edifício da Câmara Municipal de Manchester.

Horrocks escreveu ao irmão e a um amigo de Cambridge, William Crabtree (1610–1644), explicando-lhes a sua previsão e convidando-os a participar no «banquete celestial» que se avizinhava. O irmão não teve sorte com o tempo, mas tanto Horrocks como Crabtree conseguiram ver a imagem de Vénus recortada contra o Sol. O segundo dos jovens ficou tão impressionado com a visão que não conseguiu medir os tempos nem registar os dados científicos necessários. Mas Horrocks conseguiu obter estimativas do diâmetro aparente de Vénus e traçar a sua rota aparente sobre o Sol.

Mais de um século passaria até o próximo trânsito de Vénus ser observado, em 1761. Entretanto, a astronomia e outras ciências desenvolveram-se enormemente. Fazer previsões de trânsitos não era já difícil. Surgiu uma das figuras maiores da história da ciência, o astrónomo Edmond Halley (1656–1742), que haveria de dar o seu nome ao conhecido cometa periódico. Aos 20 anos de idade, no decorrer de uma longa viagem aos mares do Sul, Halley observou o trânsito de Mercúrio de 1677 e teve uma ideia genial. Lembrou-se que esse mesmo trânsito, observado noutro local, não seria visto com Mercúrio exactamente na mesma posição. Halley estava em Santa Helena, a ilha descoberta por portugueses onde Napoleão haveria de passar os seus últimos dias. Se estivesse mais a norte, por exemplo em Londres, veria Mercúrio projectar-se no disco solar um pouco mais abaixo do que em Santa Helena. Pensando melhor no problema, Halley notou que a diferença de posição aparente do planeta contra o disco solar — um exemplo do fenómeno conhecido como paralaxe — podia ser usada para calcular a distância entre a Terra e o Sol. No entanto, para os cálculos terem alguma fiabilidade, Halley verificou que o planeta Mercúrio não seria apropriado por se encontrar demasiado perto do Sol e a paralaxe ser pequena. Teria de se esperar por um trânsito de Vénus.

Tal como Kepler tinha feito em 1629 no seu Admonitio, Halley fez em 1716 um apelo aos astrónomos para que observassem o trânsito de 1761. O astrónomo inglês sabia que não estaria vivo nessa data, mas que outros iriam prosseguir o desenvolvimento da astronomia.

Na altura, o estudo do sistema solar encontrava-se numa situação curiosa. Através de métodos geométricos muitoantigos, iniciados com os Gregos, as distâncias relativas entre os diversos planetas eram conhecidas com bastante precisão. Não se conhecia bem, no entanto, nenhuma distância absoluta que servisse de bitola para o sistema solar. Tudo se passava como se os astrónomos estivessem perante um mapa à escala, mas onde faltasse uma escala. Sabiam, por exemplo, que a distância de Mercúrio ao Sol era cerca de 3/8 da distância da Terra ao Sol e que a distância a que Vénus se encontrava da nossa estrela era cerca de 6/8 desta última. Mas não conseguiam rigor razoável em nenhuma distância absoluta, em quilómetros, por exemplo. Nesta situação, bastava conhecer uma distância planetária para que, de repente, o mapa do sistema solar ficasse completo. Naturalmente, a distância que os astrónomos elegeram como unidade de medida, foi a distância média da Terra ao Sol, a que chamaram Unidade Astronómica.

Em 1761, quase 42 anos depois da morte de Edmond Halley, a comunidade científica internacional estava a postos para observar, pela segunda vez na história, o trânsito de Vénus. Respondendo ao apelo de Halley, renovado pelo astrónomo francês Joseph-Nicolas Delisle (1688–1768), cerca de 120 observadores fizeram viagens aventurosas e espalharam-se pelo mundo, afrontando perigos e climas hostis para poder observar o trânsito em locais muito afastados. Entre esses homens de ciência houve quem morresse doente. Houve quem tentasse penetrar através de linhas inimigas e afrontasse os canhões dos exércitos para poder chegar a locais privilegiados de observação. E houve quem estivesse escondido de governantes hostis e conseguisse participar nesse esforço internacional.

Teodoro de Almeida, o oratoriano português que observou o trânsito de Vénus de 1761 no Porto.

Teodoro de Almeida, o oratoriano português que observou o trânsito de Vénus de 1761 no Porto.

Entre estes últimos destaca-se o padre Teodoro de Almeida (1722–1804), refugiado no Porto e sempre perseguido pelo Marquês de Pombal. Na altura estava na Casa Oratoriana, de que hoje resta a conhecida Igreja dos Congregados, no Porto, frente à Estação de S. Bento. No dia aprazado, o padre Teodoro apontou o seu telescópio ao Sol, muniu-o de um filtro de vidro verde e de outro defumado, e tomou as medidas necessárias. Enviou-as para Paris, onde seriam publicadas nas memórias da academia francesa, como só muito recentemente se redescobriu. Soares de Barros, outro dos portugueses que observou o trânsito, estava na altura na capital francesa. Finalmente, Miguel Ciera, no Colégio dos Nobres, em Lisboa, fez também as suas observações, que seriam publicadas na Academia das Ciências de Lisboa.

A observação do trânsito de 1761 constituiu uma das primeiras, se não a primeira, cooperação científica à escala mundial. Os resultados eram variados e demoraram anos a ser recolhidos e tratados. No entanto, por razões então pouco claras, verificou-se que eram menos precisos do que se tinha pensado ser possível. Estava-se longe do rigor pensado por Halley. Os astrónomos prepararam-se para o próximo trânsito, que ocorreria em 1769. Nessa data, contudo, seria noite na Europa durante o evento, pelo que seria necessário atravessar continentes e oceanos para o observar.

Os ingleses enviaram um dos seus mais famosos heróis, o Capitão Cook, que fez a sua primeira viagem de exploração precisamente para observar o trânsito de Vénus. Foi até ao Taiti onde, depois de inúmeras peripécias, conseguiu obter observações muito completas. Os franceses enviaram outras expedições. O astrónomo Le Gentil, que se mantivera no Índico desde uma falhada expedição sua de 1761, viajou entre a Índia e Manila à procura de bom tempo e acabou por falhar o trânsito. O astrónomo Chappe d’Auteroche, outro francês, teria fim ainda mais trágico. Faleceu nas Américas, devido a ter continuado teimosamente as suas observações quando se encontrava já gravemente doente.

Montagem de desenhos do ingresso de Vénus no Sol durante o trânsito de 1769, feitos pelo Capitão Cook e pelo astrónomo Charles Green que com ele viajava. A gota negra torna difícil marcar claramente os contactos de Vénus com o Sol e confunde os contornos dos astros.

Montagem de desenhos do ingresso de Vénus no Sol durante o trânsito de 1769, feitos pelo Capitão Cook e pelo astrónomo Charles Green que com ele viajava. A gota negra torna difícil marcar claramente os contactos de Vénus com o Sol e confunde os contornos dos astros.


Os esforços heróicos desta geração de astrónomos, no entanto, não conseguiram produzir ainda a precisão que se queria. A medida da distância média da Terra ao Sol, a Unidade Astronómica, continuou a ser obtida com uma imprecisão maior do que a esperada. Desta vez, contudo, percebeu-se a causa dessa imprecisão, um fenómeno óptico que ficou conhecido como «gota negra» e que impediu o registo dos momentos exactos dos contactos entre os bordos de Vénus e do Sol.

A gota negra é um fenómeno óptico complexo cujas causas só agora se começa a conseguir perceber completamente. Revela-se numa espécie de ligamento visual entre os bordos do planeta e do Sol quando esses bordos estão perto. Nessas alturas, em que é essencial saber cronometrar com exactidão o momento de contacto entre os dois bordos, eles parece que se fundem e deformam. O resultado é a acumulação de erros na cronometragem dos contactos, que se tornam difíceis de definir. Estes erros de cronometragem acarretaram incertezas na medida de paralaxe da distância da Terra ao Sol.

Apesar disso, os trânsitos de Vénus permitiram determinar a escala do sistema solar. Enquanto os gregos estimavam a distância da Terra ao Sol em qualquer coisa da ordem dos 10 milhões de quilómetros e o próprio Kepler encontrou estimativas na ordem dos 20 milhões, logo após o primeiro trânsito, de 1639, as estimativas subiram para 90 milhões e, após os trânsitos de 1761 e 1769, acercaram-se dos 150 milhões de quilómetros. Sabe-se hoje, por medições de radar muito precisas, que a Unidade Astronómica é de cerca de 149,597 milhões de quilómetros, muito perto das estimativas dadas pelos trânsitos. Afinal, os trânsitos conseguiram uma aproximação muito razoável que, pela primeira vez, nos mostrou a verdadeira escala do sistema solar.

Os próximos trânsitos de Vénus verificaram-se em 1874 e 1882. Nessa altura os astrónomos tinham já uma nova arma ao seu dispor: a fotografia. Fizeram-se treinos rigorosos para defrontar as incertezas provocadas pela gota negra. O problema, contudo, não foi completamente resolvido. Mesmo na fotografia, continuava a aparecer a infame gota negra, dificultando a cronometragem dos contactos.

Em Portugal, o trânsito de 1882 foi observado em Coimbra e em Lisboa. Em Coimbra as observações foram feitas no Observatório da Universidade, então situado no pátio central da mesma. Um dos aparelhos utilizados, um magnífico telescópio Troughton, encontra-se ainda no Observatório, mas nas suas novas instalações, afastadas do centro de Coimbra. Em Lisboa, as observações foram feitas no Observatório da Ajuda, com o grande telescópio equatorial que ainda hoje aí se encontra.

O trânsito de 2004 continuou a fornecer dados importantes aos astrónomos, tanto pelo estudo indirecto da atmosfera do planeta como pelo esclarecimento das causas da gota negra. Um dos aspectos mais interessantes deste trânsito foi a demonstração no nosso sistema solar de um facto que hoje os astrónomos usam para detectar planetas extra-solares. Sendo impossível visualizar planetas que orbitam outras estrelas, os métodos para a sua detecção são indirectos. Um deles consiste precisamente em procurar reduções periódicas de luminosidade em estrelas longínquas. Quando tais reduções são detectadas, infere-se da presença de um corpo celeste em órbita da estrela. Os trânsitos foram fenómenos cruciais na história da astronomia. Continuam a sê-lo, mas agora no espaço da nossa galáxia, para lá do sistema solar que ajudaram a medir.


Nuno Crato

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© Instituto Camões 2006