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D. Carlos de Bragança, pai da oceanografia portuguesa [1]
«As numerosas investigações oceanographicas, que as nações estrangeiras têem realizado n’estes últimos annos, com tão profícuos resultados, a importancia que esta ordem de estudos tem para a industria da pesca, uma das principaes do nosso paiz, e a excepcional variedade de condições bathymetricas, que apresenta o mar que banha as nossas costas, sugeriram-nos no anno findo a idéa de explorar scientificamente o nosso mar, e o dar a conhecer, por meio de um estudo regular, não só a fauna do nosso plan’alto continental, mas também a dos abysmos, que, exemplo quasi unico na Europa, se encontram em certos pontos, a poucas milhas da costa.»
Com estas palavras o Rei D. Carlos iniciou a publicação (1897) dos resultados preliminares do seu primeiro cruzeiro em Setembro de 1896, a bordo do iate Amélia, assim chamado em honra da sua Rainha.
D. Carlos de Bragança reinou entre 1889 e 1908. Era uma pessoa muito inteligente e sensível, bastante interessado em todos os aspectos do humanismo. Era um pintor talentoso e até publicou um catálogo das aves de Portugal, sumptuosamente ilustrado. Como ele próprio escreveu, nutria desde a infância a passion de la mer [paixão pelo mar], era pois natural que um dos seus interesses fosse o mar e tudo o que aí residia.
Fora fortemente influenciado pelas então recentes conquistas realizadas em águas portuguesas, por diferentes cientistas estrangeiros e navios oceanográficos, como foi o caso de Porcupine, Challenger, Travailleur, Talisman, Hirondelle e de Princesse-Alice (Bragança, 1897, 1902; Ruivo, 1957; Saldanha, 1980, 1996; Deacon, in Saldanha e Ré, 1997; Rice, in Saldanha e Ré, 1997). No entanto, a sua ligação próxima ao Príncipe Alberto do Mónaco, um dos mais brilhantes oceanógrafos desta era de exploração, foi certamente decisiva (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992). É interessante notar que D. Carlos começou o seu primeiro cruzeiro com experiências preliminares na Baía de Cascais, nos finais de Agosto de 1896. Cerca de um mês antes, em Julho de 1896, o banco Princesa Alice tinha sido encontrado acidentalmente pelo Príncipe Alberto, a sul dos Açores. A importância desta descoberta em águas portuguesas foi certamente um factor crucial de encorajamento ao Rei D. Carlos, para que conduzisse as suas próprias pesquisas no mar. O monarca referiu que, de facto, teve muito pouco tempo para preparar o seu iate Amélia para o primeiro cruzeiro oceanográfico (carta ao Príncipe Alberto, de 4 de Outubro, 1896, cf. Carpine-Lancre e Saldanha, 1992). O orgulho nacional terá sido, talvez, um argumento forte para fazer algo rapidamente. Nesta carta percebe-se que ele queria ver as águas portuguesas estudadas por cientistas portugueses, a bordo de navios oceanográficos nacionais. Em 1897 escreveu: Em 1 de Setembro de 1896 tivemos o prazer de começar o primeiro cruzeiro oceanográfico nacional nos mares de Portugal (Bragança, 1897).
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D. Carlos de Bragança a bordo de um dos seus iates
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Realmente todos os factores lhe eram favoráveis: era naturalista, artista e navegador, podia gastar dinheiro e tinha um iate. Acresce que as águas próximas de Cascais, Lisboa, Sesimbra e Setúbal ofereciam uma vasta região a explorar. Não só havia aí estuários e plataformas mas também, e com mais interesse ainda, profundos desfiladeiros submarinos muito perto da costa.
Em anos subsequentes D. Carlos expandiu as suas observações ao Algarve, a costa sul de Portugal, sobretudo para estudar o atum. Acreditava que era necessário o estudo metódico das águas portuguesas para conseguir a sua profunda compreensão. Essa compreensão conduziria à exploração racional das pescas, uma importante actividade económica em Portugal.
Iates e tripulações
D. Carlos usou, sucessivamente, quatro iates entre 1896 e 1907. Os quatro Amelia eram iates de recreio adaptados à investigação oceanográfica, suficientemente grandes para navegarem ao longo da costa portuguesa (Saldanha, 1980, 1996; Carpine-Lancre e Saldanha, 1992).
O primeiro Amélia tinha 35 m de comprimento e era adequado ao trabalho costeiro uma vez que se «comportava» muito mal em alto mar, tornando muito difícil qualquer actividade científica. Acresce que havia pouco espaço no convés para trabalhar convenientemente, não havia lugar para um laboratório e a âncora não era suficientemente forte para a dragagem e arrasto. Por isso o Amélia foi usado apenas no cruzeiro de 1896.
Estas razões levaram D. Carlos a adquirir o Amélia II, de 45 m de comprimento, que foi usado nos cruzeiros de 1897 e 1898. No entanto, também a este navio faltava espaço para um laboratório, bem como quartos para a numerosa tripulação necessária no trabalho em alto mar. O Rei compraria por isso o terceiro Amélia, desta vez com 55 m de comprimento. Estava armado com um canhão-arpão para trabalhar com cetáceos mas, ainda mais importante, havia mais espaço e a casa das máquinas fora transformada num laboratório.
Apesar de todos os melhoramentos para um eficiente trabalho científico no mar, no Amélia III, o Rei ainda não estava satisfeito e em 1901 adquiriu um quarto Amélia, com 70 m de comprimento. Foi usado entre 1902 e 1907 e tinha um perfil totalmente diferente dos seus predecessores (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992; Saldanha, 1996).
Os três primeiros Amélia tinham velas mas, praticamente, não existem registos da sua utilização no decurso dos cruzeiros científicos. Os dois primeiros tinham motores compostos enquanto os Amélia III e IV estavam equipados com motores de expansão tripla de modo a reduzir o consumo de carvão. Outros dispositivos com o mesmo propósito foram instalados no Amélia IV.
As tripulações de todos estes iates eram compostas por elementos da Marinha, escolhidos entre os melhores. Alguns ficaram por muitos anos ao serviço do Rei. Tinham de ser argutos marinheiros, especialistas em missões oceanográficas e pesqueiras, capazes de se comportarem apropriadamente entre a comitiva aristocrática do Rei e os oficiais. Estes últimos pertenciam à Marinha Real e o primeiro capitão do Amélia foi Roberto Ivens, o famoso explorador africano.
Habitualmente não iam médicos a bordo, porque os cruzeiros eram curtos e havia sempre a possibilidade de chegar rapidamente a um porto em caso de acidente ou doença. De facto, poucos casos de doença foram registados e não há memória de acidentes pessoais durante os cruzeiros. O médico do Rei, D. Thomaz de Mello Breyner, participou nos cruzeiros mais longos para o Algarve. Manteve um interessante diário (cf. Mello Breyner Andresen, 1996) onde anota, entre outros aspectos, o enjoo que afectou a maior parte dos passageiros que navegavam com o Rei. Com humor escreveu: «Afortunadamente não estou enjoado e posso almoçar como um abade» (!).
Cientistas e laboratórios
D. Carlos tinha a colaboração de apenas um cientista: Albert Arthur Alexandre Girard (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992). Nasceu em Nova Iorque (1860), no seio de uma família francesa, e veio para Portugal ainda criança. Licenciou-se em Engenharia mas a sua principal paixão era a história Natural. Começou a sua carreira no Museu de Zoologia da Escola Politécnica em Lisboa (actual Museu Bocage). Mais tarde foi nomeado membro da Comissão das Pescas e começou a trabalhar ao serviço de Rei, sendo o curador das colecções reais no Palácio das Necessidades. Esteve sempre com o monarca nas suas investigações no mar. Estudava o material recolhido, organizava as colecções e preparava os resultados para publicação.
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A bordo do Amélia II (da esquerda para a direita) D. Carlos I, Alberto Girard e o conde de Mafra escolhem os exemplares acabados de recolher numa das suas campanhas oceanográficas
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Acresce que organizava exposições em Portugal e no estrangeiro para mostrar os resultados dos cruzeiros oceanográficos do Rei. Ele era, de facto, o seu consultor científico. D. Carlos tinha grande estima por Girard e o sentimento era recíproco. Em várias ocasiões ambos escreveram um sobre o outro nos termos mais elogiosos. De acordo com Girard o Rei estudava e coleccionava especímenes e escrevia as publicações, e quando estava no mar não necessitava de um naturalista para reconhecer a espécie do animal devido à «sua extraordinária memória».
O mérito científico de Girard é evidente nos seus artigos científicos e nas notas manuscritas que deixou. Por exemplo, o seu rascunho «Notas para o estudo científico da costa do Algarve» inclui um plano para o estudo da poluição mineira do estuário do Guadiana e o seu efeito no bioma marinho adjacente. Este plano é certamente o primeiro a surgir em Portugal relativo à poluição marinha (Saldanha, 1996).
Havia uma verdadeira simbiose entre D. Carlos e Girard que conduziu a consideráveis realizações.
Contrastando com o grupo de eminentes cientistas que trabalhavam com o Príncipe Alberto do Mónaco, a colaboração científica de D. Carlos estava limitada a um único homem. Contudo é provável que, baseando-nos numa carta de Louis Joubin para D. Carlos, o monarca tenha pedido, através de Afonso Chaves (Saldanha, 1996), ajuda no estudo das colecções de cefalópodes.
Como os dois primeiros iates não tinham espaço para laboratórios é provável que a conservação e preservação dos especímenes tivesse lugar no convés. Uma vez que os cruzeiros realizados entre 1896 e 1898 tiveram lugar nas proximidades de Cascais, D. Carlos estabeleceu um laboratório na cidadela daquela vila, a sua casa de verão.
Tinha a vantagem de ser relativamente fácil manter vivos os organismos marinhos em baldes de água salgada entre os locais de colheita e o laboratório de Cascais, no máximo três a quatro horas de viagem. Uma vez em Cascais eram realizados, no laboratório, todos os procedimentos de preparação dos especímenes para estudo, onde diversos aquários mantinham os animais vivos. Este material era depois guardado nas colecções reais, no Palácio das Necessidades, onde havia um gabinete de taxidermia.
A bordo do Amelia III existia um laboratório bem equipado que podia ser convertido em sala escura para trabalho fotográfico. Não há registo de ter existido um laboratório no Amélia IV.
No mar
D. Carlos supervisionava pessoalmente todas as operações oceanográficas a bordo dos seus iates. Preferia estudar pequenas áreas da costa portuguesa com algum detalhe, em vez de tentar cobrir áreas maiores mas de forma menos compreensiva. Os mares da embocadura dos estuários do Tejo e do Sado, e as águas adjacentes, foram o seu campo de eleição. Grosso modo, os mares de Cascais, do Cabo Espichel, e de Sesimbra, entre o cabo da Roca e Sines. Como já foi referido, há uma extraordinária variabilidade batimétrica nesta região incluindo desfiladeiros profundos e uma grande variedade de biótopos. A costa do Algarve era estudada sobretudo para as observações do atum. Cada estação começava com uma sondagem, não apenas para registar a profundidade mas também para determinar a natureza do sedimento e para decidir que tipo de aparelhagem usar. Eram recolhidas amostras de água e medida a sua temperatura. Estas operações eram seguidas pela colheita biológica: arrasto, long-line e arrastos de plâncton. O arrasto mais profundo foi levada a cabo em 1899, à profundidade de 1856 m ao largo do Cabo Espichel, onde foram recolhidos espécimenes de Gnathophausia, Pasiphaea, pequenos moluscos, e ainda foraminíferos.
Os primeiros anos de trabalho no mar foram os mais produtivos em termos de número de estações, de número de operações e consequentemente do tempo passado em cruzeiro. A bordo do Amélia IV, nos últimos anos de actividade, o trabalho no mar foi drasticamente reduzido, devido talvez à emaranhada situação política acerca da qual o Rei D. Carlos estava muito preocupado (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992; Saldanha, 1996).
Instrumentos e engenhos
Todas as manobras eram realizadas no convés da proa. Engenhos de recolha como dragas ou arrastos eram colocados na água com a ajuda de uma grua, ligada ao mastro do traquete e eram então rebocadas de um lado do navio. Pelo menos nos três primeiros Amélia não havia tambores para guardar os cabos. Durante os cruzeiros realizados nestes iates D. Carlos não usou cabos de fio como já era comum na época a bordo de outros navios oceanográficos. Guardava 2000 m do cabo principal de agave ao longo de ambos os lados do convés e uns 6000 m adicionais eram armazenados de reserva. D. Carlos preferia estes cabos de 2,3 cm e 3,4 cm de diâmetro que eram tão fortes que alguns foram usados durante quatro anos.
As sondagens eram realizadas no convés da popa, a primeira operação em cada umas das estações. As sondagens durante o cruzeiro de 1896 foram feitas com um guincho manual e uma corda de 1500 polegadas, com um cm de diâmetro, e usando a sonda de Thoulet. Posteriormente D. Carlos usou corda de piano, e diferentes dispositivos de sondagem em diferentes ocasiões, incluindo o de Belloc, o de Sir William Thomson, o de Lucas e um modelo semelhante ao usado no navio americano Fish Hawk. Este último podia também ser usado para trabalhar com garrafas para a recolha de amostras de água ou com termómetros, sobre os baixios.
As sondas usadas por D. Carlos eram as de Sir William Thomson e Lucas. Há, nas colecções do Rei, no Aquário Vasco da Gama em Lisboa, uma sonda Buchanan mas não existem registos da sua utilização durante os cruzeiros.
Para águas superficiais, D. Carlos usava o termómetro Chabaud e vários outros construídos em Lisboa. Para águas profundas eram usados termómetros de inversão, como os de Negretti & Zambra e Chabaud. Segundo o Rei a precisão das medidas era muito boa, o erro nunca excedia um quinto de grau.
Nos primeiros cruzeiros as amostras de água eram recolhidas usando um tubo de latão de volume reduzido. Mais tarde surgiria a garrafa Buchanan conjuntamente com um termómetro de inversão.
Nos vários cruzeiros foi usado um disco de Secchi para medir a transparência das águas.
As correntes eram estudadas usando garrafas de Hautreux, suspensas aos pares numa corda vertical desde a superfície até à profundidade desejada e o flutuador Mitchell (usado por Sigsbee) também composto por dois contentores metálicos, cilíndricos, e instalado da mesma forma que as garrafas Hautreux (Saldanha, 1996).
Correntes e batimetria
Algumas experiências foram realizadas em 1896 ao largo das Berlengas e do Cabo Espichel a partir de um navio da marinha, o Mandovi, usando garrafas de Hautreux. Alguns destes flutuadores foram recuperados e D. Carlos concluiu que entre Novembro e Dezembro desse ano uma corrente superficial fluiu ao longo da costa, para norte, entre o Cabo Espichel e Aveiro.
D. Carlos realizou ainda, em 1899, algumas experiências ao longo da costa do Algarve mas os resultados não são conhecidos, exceptuando a recolha de um ou dois flutuadores.
A preparação da carta batimétrica das águas portuguesas também preocupava D. Carlos. Além disso, em 1905, o Príncipe Alberto do Mónaco publicou a Carte générale bathymétrique des océans e esta iniciativa foi da maior importância para os estudos oceanográficos. Até aqui as sondagens tinham sido obtidas em cada estação mas não eram realizadas de forma coordenada. Em 1905 o Rei decidiu começar o desenho da carta batimétrica, com todas as sondagens conhecidas até às 60 milhas da costa, na escala de 1/10 000. Infelizmente esta nunca foi publicada, existindo apenas um rascunho feito por Girard com as sondagens realizadas entre 1896 e 1907, no arquivo do Aquário Vasco da Gama (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992; Saldanha, 1996).
Colecções biológicas
Tal como todos os biólogos do seu tempo, D. Carlos usava o arrasto. No entanto usava mais amplamente os arrastos de vara, como os utilizados a bordo do Blake e do Hirondelle, porque podiam recolher mais material, em particular animais móveis como peixes ou crustáceos. A cada um dos quatro cantos do arrasto de vara era preso um rolo de fio para pescar pequenos invertebrados. Por vezes, uma rede de plâncton era igualmente presa ao arrasto para recolher pequenos organismos pelágicos. Foram usados vários modelos de armadilhas para peixes, incluindo a armadilha triédrica usada pelo Príncipe Alberto do Mónaco, mas os resultados com este último dispositivo revelaram-se insatisfatórios.
Linhas longas como as usadas pelos pescadores de Setúbal e Sesimbra, para a pesca ao tubarão em águas profundas, também eram usadas habitualmente pelo Rei D. Carlos, com bons resultados. Para lançar e recolher estas linhas o Rei usou barcos de pesca tradicionais e o serviço dos pescadores. Estas operações eram realizadas perto dos iates, quando estavam estacionados. Também foram usadas outras pequenas linhas e dispositivos de pesca mais comuns, de diferentes tamanhos. Nenhumas das técnicas para obter espécimes de diferentes biótopos foram ignoradas. Organismos pelágicos, do plâncton miúdo à grande medusa, foram, claro, capturados com redes superficiais. Consequentemente, D. Carlos conseguiu obter, pela primeira vez em Portugal, fotografias de organismos planctónicos microscópicos.
As zonas litorais, como as costas rochosas e as praias, foram também exploradas pelo monarca e a sua equipa. De dia e de noite: a actividade de colheita não cessava. Animais marinhos e aves não foram esquecidos, contribuindo para colecções excepcionais.
Espécimes recolhidos por pescadores e outros coleccionadores eram bem acolhidos nas colecções e muitos exemplares foram conseguidos desta forma.
Se as colecções de invertebrados não se tivessem perdido, por várias razões, ao longo dos anos o material recolhido por D. Carlos teria permitido estudos valiosos das comunidades bentónicas das áreas exploradas, das quais se conheciam as características sedimentares. As colecções existentes no Aquário Vasco da Gama são um reflexo pálido do material que esteve disponível em tempos.
Pescas
D. Carlos estava principalmente interessado nas pescas, não só por causa do seu interesse científico mas também porque o estudo da biologia podia levar a uma exploração mais racional dos recursos. Ele estava numa posição favorável para o fazer uma vez que tinha Girard como perito da Comissão das Pescas. Por essa altura começou-se a perceber que os, então recentes, arrastões a vapor esgotariam os recursos da plataforma que, no caso dos pescadores portugueses, tinham sido explorados apenas por barcos à vela.
Para investigar o problema, em 1902 alugou o vapor Machado que pescou a diferentes profundidades ao largo de Sesimbra. Foi registada a espécie, abundância e comprimento de cada peixe capturado. Isto não era suficiente, claro, para estudar o possível esgotamento do peixe mas constituiu uma base para o trabalho conduzido vários anos depois.
Também por volta de 1902 tinha começado a crise da sardinha nas costas francesas, atlânticas e mediterrânicas. Segundo a opinião pública francesa as sardinhas tinham desertado das costas de França para as de Portugal! O Príncipe do Mónaco e D. Carlos foram entrevistados sobre o assunto para o Petit Parisien (Fevereiro, 1903). D. Carlos afirmou que nenhum ictiologista poderia dizer alguma coisa sobre o esgotamento da sardinha e que não era a primeira vez que se observava o fenómeno ao largo das costas da Bretanha. Para além do mais, não fora registado nenhum acréscimo na abundância de sardinha em águas portuguesas. Disse ainda que variações na temperatura, a falta de alimento, a presença de cetáceos e o uso de diferentes tipos de aparelhos de pesca podiam ser uma explicação para a diminuição tão dramática das reservas (Carpine-Lancre e Saldanha, 1992; Saldanha, 1996).
Ao estudar a pesca do atum no Algarve, planeou cuidadosamente os seus cruzeiros, de modo a poder relacionar as condições oceanográficas com os movimentos do peixe e as suas abundâncias. Distribuiu formulários para serem preenchidos pelos donos de redes fixas, relatando as datas de aparecimento do atum, as espécies, as abundâncias, as condições da água, etc. No período de um ano obteve os primeiros resultados e publicou-os (Bragança, 1899). Esta publicação incluía a sistemática das diferentes espécies, habitats de alimentação, maturação sexual, ovos de plâncton, migrações, abundâncias e conclusões sobre a influência de parâmetros oceanográficos na biologia do atum. Finalmente, expressava a sua opinião de que os armadores deviam estar equipados com termómetros para medir temperaturas entre a superfície e os 50 m de profundidade, de modo a poderem prever o aparecimento anual dos primeiros atuns na costa algarvia.
Ictiologia
D. Carlos publicou em 1904 um extenso trabalho sobre os tubarões portugueses. Tentou completar, com este artigo, as lacunas existentes no conhecimento, por exemplo, da distribuição geográfica e batimétrica das diferentes espécies. Incluía igualmente técnicas de pesca, sistemática, sinonímia, referências, nomes comuns (em português e francês), a lista dos espécimes recolhidos, com os respectivos comprimentos, conteúdo do estômago, presença ou ausência de fetos, coloração, parasitas e partes do animal com interesse económico. Também eram fornecidas chaves para a identificação de espécies e uma classificação ecológica esquemática de tubarões. Este trabalho teve também o mérito de clarificar a abundância de várias espécies como o Centroscymnus coelolepis. Também registou pela primeira vez em águas portuguesas o Chlamydoselachus anguineus e o Mitsukurina owstoní (com o nome Odontaspis nasutus n.sp.) (Bragança, 1904).
O Rei deixou numerosas notas manuscritas sobre outros grupos de peixes que certamente tencionava publicar no mesmo formato. Para ele a produção de catálogos dos vários grupos de peixes era um objectivo a atingir, não apenas pelos seus méritos científicos mas também pelo interesse que tinha para as pescas. Na realidade D. Carlos apenas produziu dois trabalhos científicos: um sobre o atum no Algarve (Bragança, 1899) e outro sobre os tubarões (Bragança, 1904). Deixou ainda duas publicações contendo os resultados gerais dos seus cruzeiros (1897, 1902).
Exposições
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Exposição das colecções oceanográficas do Rei D. Carlos I, em 1904, na Sociedade de Geografia de Lisboa
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As actividades oceanográficas de D. Carlos foram mostradas ao público em várias exposições nacionais e internacionais. Espécimes, redes, instrumentos e desenhos, tudo foi cuidadosamente preparado por Girard para ser exibido nas exposições de 1897, na Escola Politécnica, 1898 no Aquário Vasco da Gama, 1902 e 1903-1904 no Porto, 1904 na Exposição Oceanográfica Internacional na Sociedade de Geografia de Lisboa e finalmente em 1906 em Milão. Depois da morte do Rei muitas peças foram ainda exibidas no Rio de Janeiro.
D. Carlos também enviou algum material dos seus cruzeiros (peixes e invertebrados) para as colecções do Museu Nacional de História Natural de Paris e para o Museu Britânico (História Natural). Estes espécimes ainda existem.
A actividade oceanográfica do Rei D. Carlos de Bragança abriu as portas a uma disciplina completamente nova em Portugal.
Para um homem sempre preocupado com problemas políticos sérios é notável que tenha encontrado paz de espírito para realizar actividades científicas. Estas foram para ele o «meu repouso e a minha recreação» como escreveu ao Príncipe Alberto.
«O monarca sábio» como lhe chamou o Príncipe do Mónaco, foi sem dúvida o pai da oceanografia portuguesa.
Foi assassinado nas ruas de Lisboa, pelos seus oponentes políticos, em 1 de Fevereiro de 1908, no seu 45º ano de vida uma morte trágica para o campo de exploração que tanto o apaixonou.
[1] O presente texto foi traduzido por Luís Tirapicos, com a amável colaboração do Prof. Pedro Ré (FCUL), do livro: SALDANHA, L. & P. RÉ (Editores) (1997). One Hundred Years of Portuguese Oceanography. In the footsteps of King Carlos de Bragança. Publicações avulsas do Museu Bocage (2ª série), 2, 423 pp.
[2] IMAR Instituto do Mar, Laboratório Marítimo da Guia, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Referências
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BRAGANÇA, C. de (1899). Pescas marítimas, I - A pesca do atum no Algarve em 1898. Resultados das Investigações scientificas feitas a bordo do yacht “Amélia” e sob a direcção de D. Carlos de Bragança. Imprensa Nacional, Lisboa, 104 pp., 3 gravuras, 8 gráficos e mapas.
BRAGANÇA, C. de (1902). Rapport préliminaire sur les Campagnes de 1896 à 1900. I - Introduction, Campagne de 1896. Bulletin des campagnes scientifiques sur le yacht “Amélia” par D. Carlos de Bragança. Imprimerie Nationale, 1, 112 pp., 1 fig., 6 pl., 1 map.
BRAGANÇA, C. de (1904). Ichthyologia. II - Esqualos obtidos nas costas de Portugal durante as campanhas de 1896 a 1903. Resultados das Investigações scientificas feitas a bordo do yacht “Amélia” e sob a direcção de D. Carlos de Bragança. Imprensa Nacional, Lisboa, 115 pp., 2 gravuras a cores.
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