Galileu em Portugal

Galileu nunca esteve em Portugal, mas as suas ideias chegaram ao nosso país surpreendentemente cedo, como só agora foi descoberto

O sistema de Tycho Brahe
O sistema heliocêntrico de Copérnico

Até há pouco, pensava-se que o debate cosmológico despoletado pelas descobertas astronómicas de Galileu tinha demorado a chegar ao nosso país. De acordo com uma opinião muito difundida, a morte de Pedro Nunes (1502-1578) teria terminado um período de ouro do desenvolvimento científico português, a que se seguiram muitos anos de atraso. Na realidade, talvez se exagere a apreciação do estado da ciência em Portugal no século XVI, pois Pedro Nunes, certamente um dos maiores vultos matemáticos da Europa da época, trabalhou sempre sozinho, não tendo deixado escola nem se tendo inserido num movimento científico nacional.

No século XVI não há no nosso país um despertar científico significativo - pelo menos nada acontece de semelhante ao que se registava então em Itália e na Europa central.

Mas tampouco é verdade que as trevas da ignorância tenham atingido Portugal nessa altura crítica em que a morte de Camões e de Pedro Nunes coincide com o início do reinado de Filipe de Espanha. Lisboa continuou a ser o ponto de partida das carreiras para a Índia, e uma cidade frequentada pelos cientistas da época. Era por Lisboa que passavam aventureiros e mercadores. E era também por Lisboa que passavam os homens cultos de uma ordem religiosa que era, na altura, um dos centros do saber científico. Essa ordem era a dos jesuítas, membros da Igreja Católica que se destacavam pela importância dada ao conhecimento científico. A sua universidade, o Colégio Romano, acompanhava de perto as grandes descobertas e as grandes polémicas científicas da época. Era aí que estava o padre Cristóvão Clavius (1538-1612), amigo de Galileu (1564-1642) e, ao tempo, autoridade em cosmologia e matemática respeitada por toda a Europa.

Foi aí que Galileu se dirigiu quando descobriu os satélites de Júpiter e as fases de Vénus, procurando divulgar as suas descobertas telescópicas e conquistar aliados. Os jesuítas confirmaram as observações de Galileu, que implicaram a queda do sistema geocêntrico de Ptolemeu, mas mantiveram-se reticentes em aderir ao sistema heliocêntrico de Copérnico.

O grande objectivo das missões dos jesuítas era a evangelização da China, iniciada por Matteo Ricci (1552-1610), um italiano de famílias nobres que tinha partido para o Oriente em 1578, equipado de uma vasta cultura científica. Ricci percebera o grande interesse chinês pelos conhecimentos científicos que os ocidentais possuíam e foi o primeiro europeu a conseguir conquistar a confiança de altos dignitários do Império do Meio. Na sua esteira, os missionários jesuítas, muitos dos quais portugueses, conseguiram pouco a pouco ter uma posição influente em Pequim, chegando a presidir ao Tribunal das Matemáticas, que era um conselho imperial para matérias científicas, nomeadamente para a organização do calendário, para a previsão de eclipses e para a observação astronómica. Na sua correspondência com o Vaticano, Ricci e os seus companheiros insistiam frequentemente na importância da ciência. «Enviem-nos matemáticos!», pedia Ricci, «enviem-nos livros!»

Ao passarem por Lisboa a caminho do Oriente, os jesuítas quedavam-se na cidade. Os mais preparados davam aulas e traziam as novidades científicas mais recentes. Os mais jovens completavam em Portugal a sua educação científica, e partiam preparados para a transmissão de conhecimentos. Era vulgar que os jovens padres, ou apenas futuros padres, passassem vários meses ou anos em Lisboa, em Évora ou em Coimbra, adquirindo conhecimentos matemáticos e astronómicos. Os estudos continuavam ininterruptamente a bordo dos navios, nas longas viagens da carreira para a Índia, com paragem de outros tantos meses em Goa. Ricci, que chegou a Portugal em 1577 já com estudos científicos muito completos feitos em Itália, actualizou alguns conhecimentos no Colégio de Coimbra e partiu para Goa no ano seguinte. Passou três anos nessa cidade, completando aí os seus estudos teológicos até ser ordenado padre. Os seus estudos científicos precederam os religiosos.

Lisboa estava pois num dos centros de comunicação do saber entre o Ocidente e o Oriente. No Colégio de Santo Antão, onde é hoje o Hospital de São José, era leccionada a famosa Aula da Esfera, onde se revia aprofundadamente a cosmologia da época. Ora, os professores jesuítas, em contacto constante com o Colégio Romano e os centros científicos da época, não podiam deixar de estar a par das grandes polémicas cosmológicas da altura. Devido à situação de Lisboa no trânsito de missionários, alguns dos mais competentes professores do Colégio Romano, tais como Christopher Grienberger, vieram por algum tempo para Portugal, com o objectivo de ensinar no Colégio de Santo Antão.

Esta correia de transmissão de conhecimentos funcionava com tal eficiência que, em 1614, o padre Manuel Dias publicou na China o «Tien wen lueh», descrevendo já as observações astronómicas que Galileu tinha feito em 1609 e 1610. Numa altura em que as cartas de Pequim para Roma chegavam a demorar oito anos a chegar ao destino, quatro anos bastaram, mesmo com os longos meses da carreira da Índia, somados à paragem em Goa e aos meses da viagem até Macau, para que a Companhia de Jesus tivesse feito chegar ao Oriente as mais recentes e mais polémicas observações científicas da época. Esta medida da rapidez da difusão científica leva a crer que Portugal não possa ter ficado imune à circulação da informação. No entanto, não eram até há pouco conhecidos documentos históricos que provassem a penetração rápida da astronomia galileana no nosso país.

Discussão das observações das fases de Vénus no manuscrito das aulas de G.P. Lembo, na Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, 1615/16: Vénus tem de orbitar em torno de Sol.

Em 1943, Joaquim de Carvalho, professor de Coimbra a quem a história da ciência em Portugal muito deve, escreveu um artigo, intitulado «Galileu e a cultura portuguesa sua contemporânea», em que fixou o conhecimento das descobertas de Galileu só em 1631, por volta da publicação da «Collecta astronomica» de Cristóvão Borri, ele próprio professor no Colégio de Santo Antão. Essa referência de Joaquim de Carvalho tornou-se canónica na historiografia portuguesa, que sempre a tem repetido e tomado como evidência histórica do nosso atraso científico na época filipina.

É por isso que a descoberta recente de documentos que contradizem a tese de Joaquim de Carvalho está a despertar o maior interesse entre os historiadores. Segundo Henrique Leitão, um físico teórico da Universidade de Lisboa que tem investigado estas questões, tudo terá começado com observações dispersas do padre João Pereira Gomes. Esse erudito jesuíta nunca acreditou que as teorias de Galileu tivessem aparecido em Portugal apenas em 1631. Tinha a intuição de que tal não seria possível e foi o primeiro a referir que Giovanni Paolo Lembo (1570?-1618), jesuíta italiano que ensinou em Lisboa a Aula da Esfera entre 1615 e 1617, conhecera pessoalmente Galileu. Na realidade, Lembo tinha construído em 1610 os telescópios do Colégio Romano e tinha subscrito o célebre parecer de quatro matemáticos de 1611, documento que tinha confirmado às autoridades eclesiásticas a justeza das observações de Galileu.

Ugo Baldini, a maior autoridade mundial sobre a ciência dos jesuítas, e Henrique Leitão observaram recentemente os apontamentos das aulas de Lembo e de outros professores do Colégio de Santo Antão, depositados na Torre do Tombo, e concluíram que a discussão sobre as observações e teorias de Galileu tinha chegado a Portugal com surpreendente rapidez. Estes investigadores, que trabalharam independentemente, conseguiram ainda detectar os vínculos estreitos existentes entre o Colégio de Santo Antão e o Colégio Romano e determinar que a construção de telescópios no nosso país se terá iniciado em 1616, ou ainda antes. Galileu nunca esteve em Portugal, mas a sua ciência chegou cedo ao nosso país.

Nos princípios do século XVII assistiu-se a um dramático debate cosmológico em que se defrontavam diversos sistemas do mundo. A visão geocêntrica, herdada de Ptolomeu (século II d.C.), aparece representada numa gravura da «Crónica de Nuremberga» de 1493. Ao centro aparece a Terra, cercada das sete esferas planetárias e do firmamento. No século XVI, esta visão foi posta em causa. Tycho Brahe (1546-1601) sugeriu um outro sistema, em que a Terra estava parada no centro do Universo. O Sol e a Lua rodavam em torno da Terra, e os planetas em torno do Sol. Galileu (1564-1642) defendeu o sistema heliocêntrico de Copérnico (1473-1543), representado numa gravura retirada do seu «Diálogo dos Grandes Sistemas do Mundo» (1632). Os matemáticos jesuítas perceberam que as observações astronómicas de Galileu, nomeadamente das luas de Júpiter e das fases de Vénus, tinham destruído o sistema de Ptolomeu. Mas não quiseram abandonar a visão geocêntrica e aderiram ao sistema de Tycho Brahe, que era também compatível com as novas observações.


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