O Calendário Medieval Português
O Calendário Medieval Português apresenta algumas particularidades curiosas. Se hoje a calendarização se baseia na designada Era Cristã, no Portugal medievo encontrava-se em vigor a denominada Era de César. Na realidade, foi em 38 a.C. que se concedeu o título de Imperator, Imperador, a Octávio César Augusto. Assim, até 22 de Agosto de 1422, no reinado de D. João I (1385-1433), os documentos vêm datados pela Era de César [1]. Para acertar a data com a que usamos actualmente, basta subtrair 38 anos. Ou seja, num texto datado de 1338 e assinado por D. Dinis (1279-1325), El Rey, ficamos com:
1338 38 = 1300.
No Portugal Medievo, a semana não tinha qualquer referência às entidades celestiais, que eram utilizadas para designar astros conhecidos: Lua, Sol, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. As outras línguas europeias mantêm ainda, para designar os dias da semana, os nomes destes corpos celestes. No castelhano, por exemplo, lunes (Lua) é segunda-feira, martes (Marte) terça-feira, miércoles (Mercúrio) quarta-feira, jueves (Júpiter) quinta-feira, viernes (Vénus) sexta-feira. Analogamente, no francês temos: lundi (Lua) para segunda-feira, mardi (Marte) para terça-feira, mercredi (Mercúrio) para quarta-feira, jeudi (Júpiter) para quinta-feira, vendredi (Vénus) para sexta-feira. Mesmo no inglês Monday (Segunda-feira) é o dia da Lua, Saturday (Sábado) o dia de Saturno e Sunday (domingo) o dia do Sol. No alemão, Montag, segunda-feira, é o dia da Lua. Todavia, este sistema aplica-se fundamentalmente às línguas latinas, uma vez que as germânicas, como o inglês, o alemão, o sueco e o dinamarquês, incorporam, nalguns dos seus dias semanais, nomes de divindades da mitologia Viking. Por exemplo, o rei dos deuses suecos, Odin, designa o dia Onsdag, quarta-feira.
Os nomes dos meses eram grafados em Latim ou em Português. Cada mês tinha (e tem) um significado próprio. O Ano Romano iniciava-se em Março e não em Janeiro, daí que se fale em September, de 7 (Septem), October, de 8, (Octo), November, de 9, (Nouem), e December, de 10 (Decem). Numa fase posterior, foram acrescentados os meses de Janeiro e de Fevereiro. Janeiro vem da “deusa” Jano, enquanto que Fevereiro, Februarius, era o designado «Mês das Purificações». Interessantes são os meses de Julho, em honra do General Romano Júlio César (10144 a.C.) [2], e Agosto, em honra de Octávio César Augusto, 1.º Imperador Romano (63 a.C.14 d.C.) [3].
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Gravura do Apocalipse de Lorvão, onde se podem visualizar duas das actividades agrícolas mais importantes no período medieval português: as vindimas e o fazer do vinho (respectivamente, na parte superior e inferior direita), e a sega, ou colheita dos cereais, no canto inferior esquerdo. Anne de Egry, Um estudo de “O Apocalipse de Lorvão”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972
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Na Idade Média, a quase totalidade da população estava relacionada com as actividades agrícolas. Da terra e da floresta obtinha-se tudo. Deste modo, aos vários trabalhos no campo, associou-se cada uma das 12 divisões artificiais do ano, ou seja, cada mês estava relacionado com uma actividade específica. Janeiro e Fevereiro eram os meses do descanso invernal. Em Março pescava-se, e podavam-se as videiras. Em Abril e Maio, renascia a vegetação e germinavam as plantas. Nos meses de Junho, Julho e Agosto procedia-se à sega dos cereais. A vindima e as sementeiras iniciavam-se em Setembro. Estas prolongavam-se por Outubro. Os suínos eram engordados com bolotas. No mês de Novembro recolhia-se e armazenava-se a lenha e, no final do ciclo, em Dezembro, procedia-se à matança do porco, à caça ao javali e a alguns trabalhos produtivos [4].
Cada mês do ano estava dividido no número de dias de hoje. Todavia, a sua contagem, pelo menos para períodos mais recuados da História de Portugal, ou em certa documentação, não era feita de uma forma progressiva, isto é, do primeiro para o último dia de cada mês, mas sim de uma forma regressiva, através do sistema romano. Cada mês estava dividido em Nonas, Idos e Calendas. Nos meses de Janeiro, Fevereiro, Abril, Junho, Agosto, Setembro, Novembro e Dezembro, as Nonas iam do dia 2 ao dia 5, enquanto que os Idos começavam a 6 e terminavam a 13. Os restantes dias eram as Calendas. A última Calenda era o primeiro dia do mês seguinte. Nos meses de Março, Maio, Julho e Outubro, as Nonas iam de 2 a 7, os Idos de 7 a 15 e as Calendas ocupavam a restante parcela [5]. Assim, a contagem faz-se sempre para o mês anterior. Para fazer a reconversão das datas, basta utilizar as fórmulas que se seguem:
IV.° Nonas Januari [6] = 5 (IV.º 1) = 5 3 = 2 de Janeiro [7].
VI.° Idus Augusti = 13 (VI.º 1) = 13 5 = 8 de Agosto.
XVI.° Kal. Julii = 30 de Junho (XVI.° 2) = 30 14 = 16 de Junho [8].
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Grelha de conversão. As Nonas e os Idos calham no mesmo mês, enquanto que para determinar as Calendas, é necessário recuar-se ao mês anterior.
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Os dias de cada mês eram desigados em Latim e em Português. Escreviam-se em numeração romana, com letras maiúsculas (I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, etc.) ou minúsculas (i, ii/ij, iii, iiii/iiij/iv, v/b, vi, vii, viii/viij, ix, etc.) [9].
I = i = j = 1;
V = v = b = 5.
Os algarismos só começam a ser utilizados nos finais da Idade Média. Ao dia 1 dava-se, por vezes, o nome de «primeiro dia», enquanto que ao último (2829, 30 ou 31), atribuía-se o termo «postumeiro».
A divisão do dia era feita através do recurso às horas canónicas, também de origem romana. Em Roma, o dia dividia-se em dois períodos de doze horas: Prima, Secunda, Tertia, Quarta, Quinta, Sexta, Septima, Octaua, Nona, Decima, Undecima e Duodecima [10]. Destas, as mais importantes eram a Prima, 6:00h, a Tertia, 9:00h, a Sexta, 12:00h, e a Nona, 15:00h. Da palavra latina sexta, provém o conceito “dormir a sesta”, isto é, dormir junto ao meio-dia.
Os primeiros relógios mecânicos, que surgem nos séculos XIII e XIV, quando o Tempo se começa a laicizar, eram extremamente imprecisos e só tinham o ponteiro das horas [11]. Estes estavam localizados essencialmente nos edifícios religiosos e marcavam o tempo, pelo som, de 15 em 15 minutos. Esta tradição manteve-se até aos nossos dias, razão pela qual os sinos só tocam em cada quarto de hora. Os relógios solares eram muito raros. Havia também clepsidras e ampulhetas, para medir pequenas fracções de tempo.
Na Idade Média não se utilizava os conceitos de “século” e “milénio” para designar, respectivamente, períodos de 100 e 1 000 anos. Estas são noções temporais que só se desenvolvem na Época Moderna. No período medieval, um século era apenas um lapso de tempo, maior ou menor. Por outro lado, as pessoas não sabiam em que século viviam. A verdade é que as populações somente nos finais do século XVIII, passam a adoptar, gradualmente, este conceito. A contagem medieva fazia-se apenas por anos, e não por séculos ou milénios [12].
Vasco Jorge Rosa da Silva
Bolseiro da FCT
Referências
[1] Avelino Jesus da Costa, Normas Gerais de Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos, Braga, Tipografia do Minho, 1993, p. 21-22.
[2] Pierre Grimal, A Civilização Romana, Lisboa, Edições 70, 1993, pp. 288-289.
[3] Idem, Ibidem, p. 285.
[4] Teresa PérezHiguera, Calendarios Medievales: La representación del Tiempo en outros tiempos, s.l., Encuentro Ediciones, Julho de 1997, 1.ª edição.
[5] Avelino Jesus da Costa, Ob. cit., p. 25.
[6] 4 das Nonas de Janeiro.
[7] Janeiro só tem 5 Nonas e subtrai-se sempre um número às Nonas, isto é, 5 de Janeiro (número de Nonas) (IV.º Nona 1) = 5 3 = 2 de Janeiro. O número de subtracção, o 1, é uma constante.
[8] Nas Calendas, por sua vez, a constante é o algarismo. Assim, XVI.° Kal. Julii = 30 de Junho (número de dias do mês anterior) (XVI.° 2) = 30 14 = 16 de Junho.
[9] Em Latim, as letras U / V e I / J têm o mesmo significado. Utilizava-se o V e o J nos inícios das palavras e frases. No meio dos vocábulos, o V era substituído pelo o U e o J pelo I. Por exemplo, deve escrever-se Curriculum uitae e não Curriculum vitae.
[10] Ou seja, Primeira, Segunda, Terceira, Quarta, Quinta, Sexta, Sétima, Oitava, Nona, Décima, Décima Primeira e Décima Segunda.
[11] Aron I. Gurevitch, As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa, Caminho, p. 175.
[12] Vasco Jorge Rosa da Silva, O documento escrito como base do Conhecimento Histórico, trabalho de investigação, Coimbra, Outubro de 2002, pp. 29-30. Palestra de Fernando José de Almeida Catroga sobre a transição do ano 1999 para 2000.
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