Joaquim Filippe Nery da Encarnação Delgado (1835-1908)

Joaquim Filippe Nery da Encarnação Delgado
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Nasceu em Elvas, a 26 de Maio de 1835, filho do Tenente-Coronel José Miguel Delgado, Governador do Forte de Nossa Senhora da Graça.

Aos sete anos ficou órfão de pai, pelo que foi viver com uma irmã casada com o engenheiro militar Gilberto Rolla, activista político de orientação republicana.

Em 1844, entrou para o Colégio Militar, completando o curso, em 1850, com aprovação plena no exame de preparatórios e distinções nas disciplinas dos dois últimos anos. Em seguida, frequentou a Escola Politécnica, concluindo o curso em 1853, obtendo prémios pecuniários nas cadeiras de astronomia e de mineralogia e geologia. Em 1855, concluiu o curso de engenharia militar na Escola do Exército, obtendo distinção nas cadeiras de topografia e desenho e de hidráulica. Frequentou ainda, durante um ano, um curso de minas e docimasia, entretanto criado na Escola Politécnica, que concluiu com distinção.

Em 1856, obtém o posto de subtenente de engenharia no Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, tendo integrado uma comissão encarregada de estudar a regularização das cheias do Mondego.

No quadro do Ministério das Obras Públicas, é criada, em 1857, a Comissão Geológica de Portugal, incorporada na Comissão dos Trabalhos Geodésicos, organismos que em Portugal materializaram o “imperativo territorial” que dominou o século XIX. Nery Delgado foi então nomeado adjunto da Comissão Geológica, liderada pelo engenheiro militar Carlos Ribeiro (1813-1882) e por Pereira da Costa (1809-1888), professor da Escola Politécnica. Devido a dissenções profundas entre os dois directores, a Comissão Geológica foi dissolvida, em 1868, para ser restabelecida um ano depois como Secção da Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos. Nery Delgado retoma assim as suas funções de adjunto, e Carlos Ribeiro as de director, cargo que desempenhará até à sua morte, ocorrida em 1882. Nessa altura, Nery Delgado sucede ao seu mestre e amigo na direcção da Comissão Geológica, onde permanecerá até 1908.

Em 1860, Nery Delgado casou com Maria Ricardina Augusta da Fonseca, oriunda da Figueira da Foz, de quem teve três filhas – Ricardina Adelaide, Virgínia Palmira e Amélia Beatriz – que frequentemente o auxiliaram em tarefas de tradução e cópia. No Verão de 1908, de regresso de uma saída de campo na região do Buçaco, Nery Delgado, então com 73 anos, sofreu uma congestão pulmonar que lhe foi fatal.

Nery Delgado está entre os pioneiros da geologia portuguesa, conjuntamente com Carlos Ribeiro. Ambos inauguraram uma tradição de trabalho de campo, até aí quase inexistente no panorama científico da geologia portuguesa, ainda arreigada ao trabalho de gabinete e presa ao espírito coleccionista característico do século XVIII, que privilegiava a mineralogia e a paleontologia, esta última praticada ainda na óptica da história natural. Mercê das suas contribuições científicas, Nery Delgado participou, no plano internacional, dos principais desenvolvimentos da geologia do século XIX. Correspondeu-se intensamente com os mais eminentes especialistas da época e foi membro do Congresso Internacional de Geologia, organização fundada em 1878, com o intuito de normalizar a linguagem verbal e visual da geologia e de superintender à elaboração do mapa geológico da Europa.

Foi membro de várias sociedades científicas, portuguesas e estrangeiras, e galardoado com diversas condecorações nacionais e internacionais.


Contribuições científicas

Embora a actividade de Nery Delgado tenha incidido, principalmente, sobre o estudo do Paleozóico efectuou investigações sobre as formações cenozóicas e antropozóicas, desenvolvendo também trabalho nos domínios da paleontologia e arqueologia, bem ainda como da geologia aplicada.

Em 1876, na sequência dos trabalhos de levantamento geológico efectuados por ele e Carlos Ribeiro, publicou com este o mapa geológico de Portugal (escala 1:500 000), a primeira tentativa de um mapa geológico de conjunto. Este mapa viria a ser revisto, completado e actualizado, desta feita em parceria com o geólogo suíço contratado pelos serviços geológicos, Paul Choffat (1849-1919). Esta nova versão, publicada em 1899, viria a revelar-se imprescindível a uma visão geral da constituição geológica do país, sendo a sua importância acrescida pelo facto da reedição seguinte, ter ocorrido, apenas, em 1972.

Os trabalhos mais relevantes de Nery Delgado centraram-se no reconhecimento geral dos terrenos do Paleozóico de Portugal e sua classificação estratigráfica. Estes estudos estão longe de constituir meras descrições, já que contêm interpretações originais, são estabelecidas relações com outros terrenos e feitas comparações com formações semelhantes de outras regiões.

Um dos aspectos mais importantes dos trabalhos de Nery Delgado foi a descoberta da fauna câmbrica de Vila Boim, constituída por trilobites e outros fósseis que foram por ele descritos e classificados, sendo que a cronologia então estabelecida (Georgiano) ainda hoje se mantém. A sua obra fundamental, talvez a mais conhecida, é a monografia sobre o Sistema Silúrico de Portugal. Trata-se de um estudo exaustivo, contendo listagens de fósseis, mapas e cortes geológicos. Nery Delgado começa por apresentar uma introdução histórica sobre o sistema silúrico do país, seguida do estudo de estratigrafia paleontológica do mesmo sistema, partindo da bacia hidrográfica do Mondego, passando depois às bacias do Tejo, do Douro e, finalmente, do Guadiana. As amostras litológicas e paleontológicas recolhidas por Nery Delgado encontram-se depositadas no Museu do Instituto Geológico e Mineiro, instituição que sucedeu aos Serviços Geológicos.

No domínio da geologia aplicada, Nery Delgado trabalhou com Carlos Ribeiro nas prospecções hidrogeológicas com vista ao abastecimento de água a Lisboa em 1857 e, em 1868, por solicitação do Instituto Geográfico, publicou com Carlos Ribeiro um estudo sobre a arborização geral do país, cuja utilidade continuou a ser reconhecida no século XX.

Na área da arqueologia, os seus trabalhos mais significativos são o estudo das grutas da Cesareda que descreveu em 1867, e da gruta da Furninha, Peniche, em 1880. A descrição e morfologia desta última foram apresentadas no Congresso Internacional de Arqueologia e Antropologia Pré-Históricas, realizado em Lisboa em 1880, em cuja organização se empenhou, conjuntamente com Carlos Ribeiro. Ambos deram um importante contributo para que a Arqueologia portuguesa saísse da esfera das práticas do coleccionador-antiquário, em virtude de privilegiarem uma abordagem de base científica, pela convergência de áreas como a geologia, a paleontologia, e a antropologia física.

Ana Carneiro


Publicações

Da vasta produção de Nery Delgado, destacam-se as seguintes obras:

• Nery Delgado, Noticia Acerca das Grutas da Cesareda, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1867.

• Carlos Ribeiro; Nery Delgado, Relatorio acerca da Arborisação Geral do Paiz, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1868.

• Nery Delgado, Terrenos Paleozoicos de Portugal. Sobre a Existencia do Terreno Siluriano no Baixo Alemtejo (Memoria Apresentada à Academia Real das Sciencias de Lisboa), Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1876.

• Carlos Ribeiro; Nery Delgado, Carta Geológica de Portugal (escala 1:500 000), 1876

• Nery Delgado, “Apontamentos para servirem de base ao estudo do projecto de abastecimento de aguas da villa de Figueira”, Revista de Obras Publicas e Minas, 10 (1879), 269-277.

• Nery Delgado, Estudo sobre os Bilobites e outros Fosseis das Quartzites da Base do Systema Silurico de Portugal, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1886.

• Nery Delgado, Estudo sobre os Bilobites e outros Fosseis das Quartzites da Base do Systema Silurico de Portugal, Supplemento, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1887.

• Nery Delgado, “Chronica: Jazigos de Marmore e Alabastro e grutas respectivas dos concelhos de Vimioso e Miranda do Douro,” Revista de Obras Publicas e Minas, 19 (1888), 81-89.

• Nery Delgado, Fauna Silurica de Portugal. Descrição de uma nova forma de Trilobite, Lichas (Uralichas) Riberoi, Lisboa, Comissão dos Trabalhos Geologicos de Portugal/Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892.

• Nery Delgado, “As Aguas de Bellas. Reflexões acerca do artigo ‘As Aguas de Lisboa’, publicado no vol. 24 d’esta ‘Revista’”, Revista de Obras Publicas e Minas, 25 (1894), 72-81.

• Nery Delgado; Paul Choffat, Carta Geológica de Portugal (escala 1:500 000), 1899

• Nery Delgado, Système Silurique du Portugal. Étude de Stratigraphie Paléontologique, Lisbonne, Imprimerie de l'Académie Royale des Sciences, 1908

• Nery Delgado, Terrains Paléozoïques du Portugal. Étude sur les Fossiles des Schistes à Néréites de San Domingos et des Schistes à Néréites et à Graptolites de Barrancos (Ouvrage Posthume), Lisbonne, Commission du Services Géologique du Portugal/Imprimerie Nationale, 1910


Bibliografia

• Paul Choffat, "Notice Nécrologique sur J. F. Nery Delgado (1835-1908)," Communicações da Commissão do Serviço Geologico de Portugal, 7 (1909), VI-XXI.

• Paul Choffat, “La Géologie Portugaise et l’Oeuvre de Nery Delgado,” Bulletin de la Société Portugaise des Sciences Naturelles, 3 (1909), 1-35.

• S/a, “O General de Divisão Joaquim Filippe Nery da Encarnação Delgado,” Revista Militar, 11 (1908), 741-743.

• Carlos Teixeira, “A Figura e Obra de Nery Delgado,” Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, 12 (1968-1969), 45-54.

• David Oldroyd, Thinking about the Earth: A History of Ideas in Geology, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1996.

• João Luís Cardoso, “As Investigações de Carlos Ribeiro e de Nery Delgado sobre o ‘Homem do Terciário:’ Resultados e Consequências na Época e para além dela,” Estudos Arqueológicos de Oeiras, 8 (1999-2000), 33-54.

• Ana Carneiro, “The Travels of Nery Delgado (1835-1908) in the Context of the Portuguese Geological Survey,” Comunicações dos Instituto Geológico e Mineiro, 88 (2001), 277-292.

• Ana Carneiro, “Outside Government Science, ‘Not a Single Tiny Bone to Cheer Us Up!’ The Geological Survey of Portugal (1857-1908), the Involvement of Common Men, and the Reaction of Civil Society to Geological Research,” Annals of Science, 62 (2005), 141-204.

• Ana Carneiro, Ana Carneiro, “The Museum of the Geological Survey of Portugal: The Role of the ‘Bilobites’ Collection in a 19th-century Palaeoichnological Controversy,” in Marco Beretta, ed., From Private to Public, Natural Collections and Museums, New York, Science History Publications/USA, 2005, pp. 189-234.


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