José Anastácio da Cunha (1744-1787)

Matemático e poeta, nasceu em Lisboa a 11 de Maio de 1744. De ascendência humilde, o seu pai, Lourenço da Cunha, era um pintor com alguma notoriedade, que passou um curto período em Roma de forma a melhorar a sua técnica. A sua mãe, Jacinta Inês foi criada e recebeu educação elementar. José Anastácio da Cunha foi educado em Lisboa, no Convento de Nossa Senhora das Necessidades que pertencia à Congregação do Oratório. Segundo testemunhos do próprio Anastácio da Cunha à Inquisição, os Oratorianos ensinaram-lhe Gramática, Retórica e Lógica até aos 19 anos. No que diz respeito à Física e à Matemática foi um autodidacta.
Em 1764 foi colocado nomeado Tenente do Regimento de Artilharia do Porto e colocado na praça de Valença do Minho. O Regimento de Artilharia do Porto era constituído por uma maioria de oficiais estrangeiros, muitos deles protestantes, que influenciaram Anastácio da Cunha. Terá então aderido a ideais como a tolerância, o deísmo e o racionalismo, que vieram a integrar a sua produção científica e poética.

Devido à sua relação de amizade com os oficiais britânicos, aprendeu a falar inglês fluentemente o que, juntamente com os conhecimentos que tinha de outras línguas como o francês, latim, grego e italiano, lhe permitiu traduzir autores como Voltaire, Pope, Otway, Horácio, Rousseau, Holbach, Helvetius e outros. Pensa-se que foi neste período que aderiu à maçonaria, por influência dos seus amigos estrangeiros.

Em 1769 fez, a pedido do Major Simon Frazer, uma memória sobre balística, intitulada Carta Fisico-Mathematica sobre a Tehoria da Polvora em geral e a determinação do melhor comprimento das peças em particular, onde apontava erros e falta de precisão que encontrou em alguns trabalhos sobre artilharia. Em 1773 o Marquês de Pombal nomeou-o lente de Geometria na Universidade de Coimbra, na sequência da Reforma da Universidade levada a efeito em 1772. Anastácio da Cunha não encontrou ambiente propício ao desenvolvimento e aplicação das suas capacidades e após a morte de D. José I, em 1777, foi denunciado à Inquisição, preso em 1 de Julho de 1778 e acusado de envolvimento com os protestantes ingleses em Valença, de ler Voltaire, Rousseau, Hobbes e outros autores perigosos e de corromper as gerações mais novas através da sua eloquência. Foi considerado culpado das acusações e excomungado, afastado do seu cargo na Universidade, dos seus títulos e viu confiscados os seus bens. Foi ainda condenado a participar num auto-da-fé e a ficar encerrado na Congregação do Oratório em Lisboa, após o que seria deportado para a cidade de Évora durante 4 anos. Foi ainda proibido de voltar a Valença e a Coimbra. Após dois anos nos Oratorianos a sua pena foi reduzida a residência obrigatória nos Oratorianos.

Entre 1778 e 1781 teve que se dedicar ao ensino privado para subsistir e em 1783 foi contratado pelo Intendente Pina Manique para o Colégio de S. Lucas da Casa Pia como professor de Matemática, tendo aí elaborado o programa pedagógico da Casa Pia. Enquanto esteve na Casa Pia concluiu a sua obra Princípios Mathematicos Por volta de 1785-86 perdeu a sua posição na Casa Pia, por razões que se desconhecem. Morreu a 1 de Janeiro de 1787.


Obras

Principios mathemáticos para instrucção dos alunos do Colégio de S. Lucas da Real Casa Pia do Castello de S. Jorge, acabados em 1786 poucos dias antes da sua morte e publicados em 1790 em Lisboa. A redacção desta obra teria sido iniciada em 1786, concluída uma primeira versão em 1771, que foi apresentada ao Conselho da Faculdade de Matemática, não tendo obtido resposta sobre o seu valor. Há informação de que os primeiros capítulos impressos já circulavam em Lisboa em 1782, mas a sua revisão final foi concluída na véspera da sua morte pelo próprio Anastácio da Cunha. É considerada a sua obra mais importante e embora tenha sido publicada como livro didáctico, a sua elaboração terá sido iniciada quando Cunha era lente em Coimbra e a sua importância ultrapassa muito os aspectos didácticos.

Carta Fisico-Mathematica sobre a Theoria da Polvora em geral e a determinação do melhor comprimento das peças em particular, elaborada em 1769, mas publicada apenas em 1838, no Porto.

Ensaio sobre os Principios de Mechanica, de que não se conhecem exemplares, mas que terá sido publicado por Domingos de Sousa Coutinho em Londres em 1807. Existe apenas uma versão publicada na revista O Instituto, de Coimbra, em 1856.
Ensaio sobre as Minas, manuscrito inédito existente no Arquivo Distrital de Braga e publicado em 1994 numa iniciativa conjunta do Arquivo Distrital de Braga e do Departamento de Matemática da Universidade do Minho. Este manuscrito era destinado à instrução de oficiais do Regimento de Artilharia do Porto aquartelado na Praça de Valença do Minho.

Como poeta não publicou nada em vida e apenas em 1839 os seus poemas foram publicados por Inocêncio da Silva sob o título: Composições poéticas do Doutor José Anastácio da Cunha. Por ter feito esta edição Inocêncio da Silva foi acusado de «abuso de liberdade de imprensa em matéria religiosa», e os exemplares à venda foram apreendidos pelo poder judicial. Só em 1930 um reedição destas poesias, acrescida de outras entretanto descobertas foi levada a efeito por Hernâni Cidade sob o título A obra poética do Dr. José Anastácio da Cunha: com um estudo sobre o anglo-germanismo nos proto-românticos portugueses. A sua obra poética é considerada como percursora do romantismo.


Principais contributos científicos

Anastácio da Cunha tem como obra mais relevante os Principios Matemathicos, onde revela uma criatividade assinalável e os seus grandes conhecimentos. Aqui ele reformula a Geometria de Euclides e foi dos primeiros a notar que o axioma de Euclides sobre a igualdade de todos os ângulos rectos não é independente dos outros axiomas.

Cunha terá precedido Cauchy na apresentação clara da noção de infinito e de infinitésimo: "A variável que podér sempre admittir valor maior que qualquer grandeza que se proponha chamar-se-ha infinita; e a variavel que podér sempre admittir valor menor que qualquer grandeza que se proponha, chamar-se-há infinitesima" Definição II, Livro XV). Infelizmente não se conhece o seu manuscrito intitulado Sobre o infinito matemático, que não chegou a ser publicado e se perdeu. Esta noção parece, no entanto, corresponder à noção clássica de infinito potencial, que se traduz pela possibilidade de se ir sempre mais longe, sem contudo se atingir um elemento último e é traduzida na obra pelo símbolo &c., que indica sempre uma expressão finita, mas que se pode continuar "quanto for necessário" ou "quanto se queira".

No que se refere à teoria das séries, precede os trabalhos de Augustin Louis Cauchy (1789-1857) e Bernard Bolzano (1781-1848). O princípio geral da convergência das séries numéricas é tomado pela primeira vez como questão fundamental e enunciado rigorosamente:

"Série convergente chamam os Mathematicos àquela cujos termos são semelhantemente determinados, cada hum pelo numero dos termos precedentes, de sorte que sempre a serie se possa continuar, e finalmente venha a ser indifferente o continua-la ou não, por se poder desprezar sem erro notavel a soma de quantos termos se quizesse ajuntar aos já escritos ou indicados: e estes ultimos indicam-se escrevendo &c. depois dos primeiros dois, ou tres, ou quantos se quizer: he porém necessario que os termos escritos mostrem como se poderia continuar a serie, ou que isso se saiba por outra via". (Definição I, Livro IX)

São de realçar também os seus contributos inovadores no que diz respeito ao cálculo diferencial, tendo pela primeira vez formulado uma definição analítica rigorosa de diferencial, chamada então de fluxão. Cunha apresenta ainda uma definição de exponencial que vem demonstrar o seu mérito e originalidade para a época.

Merece referência ainda o seu "Ensaio sobre os princípios de Mechanica" onde defende que a mecânica, embora servindo-se de métodos matemáticos, é física e não simplesmente matemática. Nas palavras de José Francisco Rodrigues, "Cultura e Ciência em Portugal no Século das Luzes", Colóquio/Ciências, 1, Fev. 1988, p. 84: "É em português, uma vez mais pela pena de José Anastácio da Cunha que, pela primeira vez, se estabelece uma distinção tão clara quanto actual da Mecânica Racional e da Mecânica Física, e que se anuncia a separação axiomática da cinemática da dinâmica, aspecto fundamental no futuro desenvolvimento das ciências físico-matemáticas".


Fernando Reis

Apontadores:

José Anastácio da Cunha uma tragédia eterna
História das Matemáticas em Portugal - Anastácio da Cunha
José Anastácio da Cunha - Biography
Projecto Vercial - Anastácio da Cunha
A História da Matemática no Ensino da Matemática
João Filipe Queiró - Minas: da prática à teoria
João Filipe Queiró - José Anastácio da Cunha: Um Matemático a Recordar, 200 Anos Depois

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Luís de, "Cunha, José Anastácio da", in Dicionário de História de Portugal, Porto, Figueirinhas, 1981, vol. II, p. 256.
Subcomissão de Lisboa para a Exposição de Homenagem a José Anastácio da Cunha, José Anastácio da Cunha: 1744-1787: matemático e poeta, Catálogo da exposição, Lisboa, Bib. Nacional, 1987.
Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Univ. de Coimbra, Em homenagem a José Anastácio da Cunha, Coimbra, F.C.T.D.M., 1989.
FERRAZ, Maria de Lurdes, RODRIGUES, José Francisco, SARAIVA, Luís, coord. Anastácio da Cunha: 1744-1787: o matemático e o poeta, actas / Colóquio Internacional, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
FERRO, Joäo Pedro, introdução, transcrição e notas de, O processo de José Anastácio da Cunha na Inquisição de Coimbra, 1778, Lisboa, Palas, 1987.
QUEIRÓ, Joäo Filipe, "José Anastácio da Cunha: um matemático a recordar, 200 anos depois", Boletim da SPM, n.º 29, Setembro 1994, pp. 1-18.
QUEIRÓ, Joäo Filipe, "Minas: da prática à teoria", Boletim da SPM, n.º 30, Dezembro 1994, pp. 79-80.
RODRIGUES, José Francisco, "Cultura e ciência em Portugal no século das luzes: a obra matemática de José Anastácio da Cunha", Colóquio/Ciências, nº 1, Fev. 1988, pp. 74-86.
SILVA, Inocencio da, ARANHA, Brito, Diccionario Bibliographico Portuguez, Lisboa, Imprensa Nacional, T. IV, pp. 221-231.
Universidade de Évora, Bicentenário da morte de Anastácio da Cunha: matemático e poeta, Évora, Universidade, 1988.


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