Canção X





Leitura de Os Lusíadas e poemas de Camões.
Canção X de Camões por António Mega Ferreira.

Centro Cultural de Belém | Sala Fernando Pessoa Comemoração do Dia da Poesia, 22 de Março de 2009.


Canção X

Vinde cá, meu tão certo secretário
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
Acenda-se com gritos um tormento
Que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
A Deus, ao Mundo, à gente e, enfim, ao vento,
A quem já muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora;
Mas, já que pera errores fui nascido,
Vir este a ser um deles não duvido.
Que pois já de acertar estou tão fora,
Não me culpem também se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
Falar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
Não se alcança remédio; mas quem pena,
Forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
A voz pera poder desabafar-me,
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará, sequer, que fora mande
Lágrimas e suspiros infinitos,
Iguais ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pode algua hora
Medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
A ira, a mágoa, e delas a lembrança,
Que é outra dor por si mais dura e firme.
Chegai, desesperados, pera ouvir-me,
E fujam os que vivem de esperança
Ou aqueles que nela se imaginam,
Porque Amor e Fortuna determinam
De lhe darem poder pera entenderem,
À medida dos males que tiverem.

[Quando vim da materna sepultura
De novo ao Mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado;
Com ter livre arbítrio, mo não deram,
Que eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e pior segui, forçado.
E, pera que o tormento conformado
Me desse co'a idade, quando abrisse
Inda menino, os olhos, brandamente,
Mandam que, diligente,
Um Menino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
Co'ua saudade namorada;
O som dos gritos que no berço dava,
Já como de suspiros me soava.
Co'a idade o Fado estava concertado;
Porque, quando, por caso, me embalavam,
Se versos de amor tristes me cantavam,
Logo me adormecia a natureza,
Que tão conforme estava co'a tristeza].

Foi minha ama ua fera; que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome pera mim; nem a haveria.
Assim criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso, de menino,
Que na maior idade beberia,
E, por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
Daquela humana fera tão fermosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi despois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
Mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista dela; a sombra, co'a viveza,
Excedia o poder da Natureza.

Que género tão novo de tormento
Teve Amor, que não fosse, não somente
Provado em mim, mas todo executado!
Implacáveis durezas, que o fervente
Desejo, que dá força ao pensamento,
Tinham de seu propósito abalado,
E de se ver corrido e injuriado;
Aqui, sombras fantásticas, trazidas
De alguas temerárias esperanças;
As bem-aventuranças
Nelas também pintadas e fingidas.
Mas a dor do desprezo recebido,
Que a fantasia me desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto.
Aqui o adevinhar, e o ter por certo
Que era verdade quanto adevinhava,
E logo o desdizer-me, de corrido;
Dar às cousas que via outro sentido,
E pera tudo, enfim, buscar razões;
Mas eram muitas mais as sem-razões.

[Não sei como sabia estar roubando,
Co'os raios, as entranhas, que fugiam
Pera ela pelos olhos, subtilmente!
Pouco a pouco, invencíveis me saíam,
Bem como do véu húmido exalando
Está o subtil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
Pera quem fica baixo e sem valia
Este nome de belo e de fermoso;
O doce e piedoso
Mover de olhos, que as almas suspendia,
Foram as ervas mágicas que o Céu
Me fez beber; as quais, por longos anos,
Noutro ser me tiveram transformado,
E tão contente de me ver trocado
Que as mágoas enganava co'os enganos;
E diante dos olhos punha o véu
Que me encobrisse o mal, que assim cresceu,
Como quem com afagos se criava
Daquele para quem crescido estava].

Pois quem pode pintar a vida ausente,
Com um descontentar-me quanto via,
E aquele estar tão longe donde estava;
O falar sem saber o que dizia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal me atormentava,
E aquela dor que das tartáreas águas
Saiu ao Mundo, e mais que todas dói,
Que tantas vezes sói
Duas iras tornar em brandas mágoas?
Agora, co'o furor da mágoa irado,
Querer e não querer deixar de amar;
E mudar noutra parte, por vingança,
O desejo, privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar?
Agora a saudade do passado
Tormento, puro, doce e magoado.
Fazia converter estes furores
Em magoadas lágrimas de amores?

Que desculpas comigo que buscava,
Quando o suave Amor me não sofria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
O medo do tormento, que ensinava
A vida a sustentar-se de enganada.
Nisto ua parte dela foi passada,
Na qual, se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, tímido, indecente,
Não foi senão semente
De comprido e amaríssimo tormento.
Este curso contínuo de tristeza,
Estes passos tão vãmente espalhados
Me foram apagando o ardente gosto,
Que tão de siso na alma tinha posto,
Daqueles pensamentos namorados
Em que eu criei a tenra natureza,
Que, do longo costume da aspereza,
Contra quem força humana não resiste,
Se converteu no gosto de ser triste.

Destarte a vida noutra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado,
Que eu, inda assim, por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara,
Agora exprimentando a fúria rara
De Marte, que co'os olhos quis que logo
Visse e tocasse o acerbo fruto seu
(E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo);
Agora peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhe diante
Ua esperança em vista de diamante,
Mas, quando das mãos cai, se conhece
Que é frágil vidro aquilo que aparece.

A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contrária via,
No primeiro perigo; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me falecia,
Ar pera respirar-se me negava,
E faltavam-me, enfim, o Tempo e o Mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
Nascer pera viver, e pera a vida
Faltar-me quanto o Mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
Estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de Fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daqueles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos,
Que eu não passasse, atado à fiel coluna
Do sofrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez, à força de seus braços.

Não conto tanto os males como aquele
Que, depois da tormenta procelosa,
Os casos dela conta em porto ledo;
Que ainda agora a Fortuna flutuosa
A tamanhas misérias me compele,
Que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me faleça já pretendo,
Que pera mim não vale astúcia humana;
De força soberana,
Da Providência, enfim, divina pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
Pera consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memória dos passados anos,
As águas que então bebo e o pão que como,
Lágrimas tristes são, que eu nunca domo
Senão com fabricar na fantasia
Fantásticas pinturas de alegria.

Que se possível fosse, que tornasse
O tempo pera trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,
Onde ua e outra chave
De meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A fermosura, os olhos, a brandura,
A graça, a mansidão, a cortesia,
A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra algua não vi mais...
Ah! vãs memórias! onde me levais
O fraco coração, que inda não posso
Domar este tão vão desejo vosso?

Não mais, Canção, não mais; que irei falando,
Sem o sentir, mil anos. E se acaso
Te culparem de larga e de pesada,
– Não pode ser – lhe dize – limitada
A água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!