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Kapapa “Pássaros e Peixes”

by José Luandino Vieira

Kapapa “Pássaros e Peixes”

José Luandino Vieira

Esta narrativa fez parte do romance, Águas-do-Mar, o Guerrilheiro, inédito por incineração.

© 1998, José Luandino Vieira e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-43-0

Lisboa, Maio de 1998

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

KAPAPA

A VERA V.

Kapapa, meu nome de agora e sempre – eu, e meus peixes. Isto era: ele. Porque chegou a hora de emboscar aquele medo da manhã de fevereiro que eu tinha de ir quebrar as algemas de meu remo, procurar sereia ou peixe-mulher, fugir na mata.

Acordei o dia, o ano era de sessenta-e-cinco, um céu azul demais, meu coração embranqueceu. Verifiquei os largos pés do Kapapa, o pescador, as asas da arraia do nome que me nasceram naquelas águas, e vi a minha enorme sombra escorrer como um rio para dentro da maré. A cor do céu faiscava, o sol era branco -empurrei a canoa; eu tinha de ir dar encontro o que o sonho tinha falado, o que andava dormir no meu coração. E levantei o remo emendado de duas metades, meti o punho dele no dormente do fundo, mestre Zé-Nogueira tinha-lhe pregado lá para eu poder embora içar vela. Era meu mastro, de ir nos fundões, nas pedras. Encaixei-lhe bem; levantei, a pá vi lhe enegrecer, arder no sol por cima dos morros vermelhos, longe, para onde que assentava a cidade. Mas estiquei firme, dei amarração de cegos e corridos, nós nos brandais de mateba bem entrançalhada. Vela, os sacos-de-açúcar emendados cosidos, sem testa nem valuma, redonda; pau caranguejo e seu moitão de madeira de mufuma; adriças e escotas de sisai -leme nada, só meu pau de ximbicar, um bordão das margens de lagoa, no Kalumbu tinha comprado por troca de peixe meia-cura. E senti o sal no ar ia começar a se endoçar, as ondas arrefeciam aquele azulão, a água amarelava para cá as espumas brancas, roubava para lá a areia de meus pés de raia. Um soprar quente, saído nos capins do cimo da praia, escameou a cava duma ondazinha, descanso de duas diquimbas mais fortes e se levantou a voar: azulinos, os peixagulhas fugiam a macoa submarinha. «Tão perto da praia?...» interroguei aquele voo de pássaros do mar e senti formigar nas minhas pernas as escamas das matonas-burras, na fuga para cima da rebentação. As águas vungutavam, a canoa já dava de dançar, aproada; saltei, ximbiquei só de passar aqueles sete dibucos, ondas de senga do baixio, até a canoa ficar menguenando no princípio do mar: o céu, por cima, esbranquiçava de lento; para lá, acinzentava. Vi sol amarelar no ar, minhas mãos tremiam quando levantei a vela e um vento de oessudoeste, muito húmido, ainda não soprava, se sentia era só no nariz. «Kene Vua...», eu pensei, não há azar, vai rondar para norte, para terra, posso correr com ele e a praia à vista, entrar a barra, dar encontro com o que eu quero pescar em vida minha, despedida: dicunji, o peixe-mulher. No arranque do vento, meu coração se encheu de ar bazófio: eu era o Kapapa, o que sabia muito bem o que não era peixe agulha...

«Sabes lá o que é peixe-agulha?!....» – emendava minhas mãos indígenas se baralhando ainda num simples nó de três voltas. Mas nunca me bateu, sempre só sô meu mestre de cabotagem, o Lopo Cravinho. Que, com ele e seu cachimbo é que eu amarinhei todas as águas de rio, de mar e ar, a carta de marear, agulha e arte de marinhar toda a vela mas, mais tarde, o vento dera de refrescar, encarneirava a superfície da onda larga e enrijava as escotas, meu leme de ximbico já não riscava os quissequeles do fundo. As tainhas-largas, da foz de rio, correram por fora do pau de ximbicar se dividindo, o rebanho delas desencardumava, certo sinal de trovoada e raio. Para sotavento, nosso céu perdia a branquez, o cinzento dera de correr com depressa no rasto do vento do mar e as macoetas, em bando, refulgiam nas águas, em fuga para mais longe. Fimbavam os agulhas-voadores, ficou o ar sem asas de peixe. As barracudas afiadas que andavam muito fundo, de onde vinha o vento, de novo, agora em curtas rajadas de sacudir o caranguejo de bordo a bordo. Não se via vivave, nem um esvoaçar de penas, o ar se enchia de salsugem, a canoa corria na esteira do vento, meu esforço no ximbico era só de lhe levar, num largo, para o largo muxito que espreitava por cima da ondulação. Por um bater de pano, desenfunanço, o sol se apagou e a escuridade me torceu meu coração -eu não dera conta o negro de mar e céu em minhas costas, isto é: à popa, meus olhos fixos no rumo do rio, onde que o peixe-mulher estava me esperar, do sonho. E eu não queria nem essas ver em anzol, as macanhas, de finíssima escama, facas de cortar os olhos em criança descarnadora do peixe a seco, sem cuidado de acrescentar areia ou água de beira praia; os linguados areentos, espinhosos; muito menos as bundas redondas do peixe-mataco, comida só mesmo de dia de fome e chuva. Esqueci corvinas, aqueles espalmados malessos, com seus primos deles, os galos, peixes de mufetar que Deus fez, vi se esvaziar o mar de seus pássaros em minha cabeça assustada: o vento dera então de soprar rijo, e as nuvens quase negras baixavam as grossas copas enoitecendo as águas e chupando a chuva. Nem pungos nem pratas, era fevereiro, peixes de cacimbo ainda longe dos massanganos de mar e rio -só o dicunji eu queria, o que tem mamas e chora lágrimas por cima de seus bigodes, olhos de cachorro batido, boi.

«Só o mar é que maravilha na minha vida...» -abria o outro livro de bordo, o das gravuras, ele lia aquelas palavras duma língua que serve só para falar com deus e chamar a peixes e pássaros.

Apontava: «zeus faber» -o que outro deus tinha feito; fazia, ou que fazia ele mesmo esse deus, era? O peixe-galo, era esse seu nome de guerra? Meu pai reclamava, do leme, que ele estragava a minha cabeça com essa ignorância de latim; que galo era mais é dicolombolo, desde o princípio das águas. O caximbo do outro fumejava à popa o não -que dicolombolo podia ser tudo o que ele queria: galo de capoeira; cata-vento de telhado; cabaça de malavo, mas que nunca que podia ser ave…Mestre Lopinho só perdia a palavra à proa, levadas no vento verde da mata, ficavam as do profeta simples marinheiro, avançando para a guerra santa: «Os peixes foram feitos para voar, só que a maioria parte deles só sabe nadar…» E que eu era diferente; eu era peixe, eu era o Kapapa, eu era dos que ia voar, um belo dia. E se você, seu Lopito, queria saber, não tenho medo a guerra dos sete mares, a batalha dos sete nomes. Que começava toda a viagem e de novo ali assim na cara de meus ouvidos, o Ndalagando tossindo a asma de subir o rio:

1.º) - Gravinho, O Lopo de Caminha e dos mares: que não era nada disso, qual mão esquerda, qual mão direita. Que isso é mas é em terra, nesse pó bíblico que a gente todos vamos ser com nossa ignorância das águas -estibordo, é como se dizia, sim; bombordo é que era; bordos, sim, nada de lados, ou isto é lá assunto de quadrado e isósceles? De través, e bolina; vante; amuras, popa-e-proa-e-meia-nau…Que se deixasse cá de ignorentar o miúdo!

2.°) - Kimôngua, o Paka da ilha do Cabo e das cabras: que, por que, por quanto, como que, já que…-virava lhe meu pai, um sábio iletrado com seu segundo-grau e que andou na escola com Agostinho Neto: «Ignorentear, eu?...Tu é que és mas é um desconvencido! O senhor já viu que para vocês tudo é só mar? É mar alto; é mar bravo; é mar chão; é mar oceano, mar vazio, mar cheio…»

3.°) - Eu, o ao-tempo Diamantininho, afiava a inteligência, batia palmas no escuro do meu coração dividido.

Soavam então, de novo, as cornetas de metal amarelo dos botões da farda, Lopo do peito feito: «Maré, meu homem! Não é trabalho do mar a encher-e-esvaziar. É maré!» Rolava os ás como a onda rola as conchas na praia. «Preamar!» -gritava. E ele, eu: «Kizezu!» E ele: «Baixamar!» E ele: «Kukuboloka!» Renhiam, batiam de punho e caneca, o marufo entornava, o Ndalagando, fundeado frente ao esteiro da Muxima, via passar os jacarés. E eu ouvia o que pelejava contra os latins do meu coração, o doce sotaque do marujo, contramestre, imediato, piloto, pau-para-toda-a-carga Kimôngua Paka, o falso bêbado com seu dicionário dos mares todos numa só palavra: Kalunga -o que é infinito e dono do mundo da terra, das águas da morte, do vácuo dos abismos...

Mais tarde, sol-pôr, aceitava bandeira-branca: kalemba, era mar feroz, o bravo, o lutador, o que só vem de sete em sete ondas do ano; e o manso, largo, sem fim para teus olhos e canoa-dikanga; pacífico, o mbonge; e o grande mar oceano, kizanga, o nosso comandante.

Sete mares, sete ventos, o oitavo me perseguia agora, rondava mais a oeste, a canoa corria quase à popa, acautelei: que é velejar de muita dança no lombo de lã de espuma daquela encarne irada calema que estava vir na chuva. De folga fininha e em bátegas de agulha fui orçando, medo de cambar a carangueja, aí estava, consegui de arriar a vela, recolhi o mastro, i. e. o remo, e senti a dança livre do dongo na cacunda da ondulação admirei o mar ali dum amarelo de fundo curto, a senga da praia decorria até lá adiante onde que a arrebentação denunciava o falso canal de entrar a foz. Ximbiquei, senti no meu corpo o suave mengueno da canoa, aproava certo, o fafuar da água por baixo da quilha que ela não tinha, harmonia de água e rumo.

Foi quando lhe vi.

E olhei o céu, de primeiro. Banzo. Não podia ser. Todo o horizonte, toda a volta da manhã que nascera limpa e clara, que era só uma nuvem única, sem intervalo nem descanso, ou buraco de azul em cinzento de pérola, o sol se evadira -sombra de nuvem negra em fundo de mar de areia nunca que ia poder ser. O banco das algas, a mata submarinha? Honga de mil mibangas dessa planta tinham virado escuridão, sem a luz do verde dançante que raios do sol mergulha nesses fundos de areia? Uma enorme mancha de óleo negro colada no fundo do mar, por volta tudo tranquila areia nua? Nova rajada de vento que assobiou na ponta do ximbico, desviou meu olhar para cima do rio. Outro vento vinha, mal ouvido ainda, no meio da chuva que enchia meus olhos já e a canoa deu de correr na crista da onda para lá, chupada pela nuvem negra enterrada no fundo do mar, um zuir de motor-de-popa eu ainda senti, abafado, rugir, o eco nas baixas nuvens sobre o canal de entrar o Kwanza. O trovão se escavacou por cima da minha cabeça, a teia de aranha do raio dele apagou mar e margens. Caiu o vento. Uma coluna de chuva se esborrifou toda na nova rajada, outro vento veio encher o céu esvaziado de trovão e relâmpago, senti a canoa me fugir nos largos pés de raia que o meu nome calçava. Sem aviso, minhas costas me doeram no banco do meio, rodopiou o meu pau de ximbicar, meu nariz, minha cara, e o sangue ficou nos dedos que eu vou pôr, de admiração na minha boca sem areia: de dentro da tarde, explodindo a toalha da chuva grossa em mil chuvinhiscos que musicaram o vento, na surdina e silêncio do ar, o fundo do mar se levantou todo na minha frente. E a horta das algas negras respirou seu ar em milhões de gotas, ouvi lhe suspirar como quem rasga um pano de velho enxoval, subiu. Cresceu, subiu, saiu a voar, sombra negra na minha pequena vida, larga cara de escuridão do mar arrancado na areia dos fundos, esvoinhando o terrível uivo do longo chicote a desfazer em aparas a proa do meu dongo e meu berro de terror: a jamanta-negra, voava, eu ia morrer.

Voo da jamanta-negra no ar da chuva… – meu avô me ensina a sentença da minha vida, meu pai nunca quis me dizer a verdade que agora estava no meu céu, meu mar, me maravilha na minha estória. E que era, pelas trepadeiras da chuva daquela mata de nuvens negras que se sopravam na tarde, eu voltar a ver a gravura de duas páginas de mar inteiro, um só azul, e aquele pássaro luminoso em seu esvoaçar o sonho e voltar a querer o rouco da voz do meu velho amigo nas margens pacíficas do Kwanza, sublinhar com a unha encardida do óleo do motor avariado: miliobatiformes!

Que o corpo gela tino delas era enorme de largo, e estreito. Maravilhado, meus braços de criança queriam medir. E ele negava; se levantava, passos a pé descalço, da popa ao castelo da proa. Três fumaças de cachimbo era o comprimento, com chicote e tudo. Eu admirava, aceitava; meu pai, franzia o sobrancelho, não acreditava; voltava-lhe: «Só quem morreu é que viu: e quem viu, é quem morreu. Como é você podes saber isso, Gouvinho, se estás vivo?» Nem lhe ouvia, só me ouvia: que família era mobilídeas, porque até peixe tem família. «Peixe?» – tresmungo de Kimôngua Paka. «Nem tudo que tem no mar é peixe…» O sangue, de sangue; sem escamas, pele de gente; dentes nos ambos os queixos. «Então é pássaro!...» ria o comandante. Já que as asas eram mas é as grandes barbatanas do peito; mas que vivem é nas águas muito profundas. «Epipelágica, Ó Paka! se consegues pronunciar...» Que ele, Lopo Gavinho, patrão da costa e dos vários mares, chegara de ver uma abrir um rombo na esteira de um caíque que eu comanditei, na corrente junto da costa, para lá da arriba do farol, frente do Kikombo, e que tinha cinco metros e vinte e cinco centímetros de extremo a extremo dos vértices do ângulo externo muito agudo das barbatanas negróides… «Castanho-escuro», ainda quero ouvir meu pai me dar uma demão, mas tudo se sacode de água no ar de chuva que está cair pesadamente, o ronco do motor dos fuzileiros faz ecos nos perigos da tarde…

Que só se aproxima da costa, epipelágica como ele disse que a jamanta era, quando alguém lhe quer ver antes de cair embora nesses fundos e pedras onde que sereia quituta mora e espera, e cobra, e paga, e exige, manda e não adianta pedir perdão: se revens, se regressas na superfície do mundo é com boca cheia de água, para não adiantar falar o que vistes; ou a cabeça cheia de fumo, para falar só por nuvens e ar e cinzas do teu juízo…Como avô meu, Kinhoka Nzaji, o que enfrentou o Kingandu nas altas terras de Ambaka, encostou o general português com as costas no rio Lombiji, ao meio-dia, cortou todas as cabeças de todas as sentinelas: «Sai-ku ima itatu ia mu ngidiuanesa, o kia kauana ki nga K' ijiia...»? o caminho do barco no mar, o caminho das águas nas sombras das verdes palmeiras na água acastanhada de vermelho por cima do rio, as águas passam, sombras que permanecem…

Passavam as águas, a elas eu tinha ido encontrar: a vida é muito teimosa.

Fimbei no fundo com a pancada da canoa, sua sombra sem leme girava por cima, rodopiava no buraco do mar a jamanta é que fizera com seu fugir do fundo. O sangue bolhobolou pelo pescoço, senti esse escorrer quente em meio do escuro do mergulho, na superfície. E voltei, trazia ainda o que o meu amigo, o americano, chamava de pagaia, agarrada na minha mão, dedos não queriam lhe largar. E que era do barco que eu tomava conta, na Barra, -eu ainda pensei para não lhe deixar ir, o Guilherme Faulkner era muito dono, e advogado das tartarugas das Palmeirinhas, desovadoras. Com pagaia então, em canoa cheia e virada, eu ia era me cansar e não chegar nunca. Nem servia de boiar. Soltei, deixei ir, pedi desculpa no bote dele; nadei; me agarrei de duas mãos na popa, as barbatanas eram meus pés. No peso de chumbo das calças molhadas, senti a vida que fugia no sangue inchado do lábio, e a água da nuca se afastava, vermelha, sem depressa. Do fundo do meu medo os fuzileiros avançavam, eu não podia lhes ver, meu horizonte era só de muxito negro descendo e baixando na calema, o céu se derretendo de chuva forte. O vento tinha se afogado, uma água grossa se escorria das nuvens despejadas, amansava a calema do mar. Voguei, primeiro; quis depois subir na cacunda da canoa, ela emborcou a boca para o fundo, meu sem-jeito de cansado. E, daí, bati a cara no que tinha sido a bela mafumeira e meus dentes só guardaram aquele desgosto cheirento do alcatrão, sangue correu de novo. A canoa girava à toa, nem proa nem ré o que me segurava. E a corrente começava de aumentar força e espuma, do fundo da areia nas quissengas da barra, paradas. Os meus pés me fugiam em baixo do casco naufragado, as pernas subiam, resvalei os braços com as mãos, meus dedos, as dez unhas até no fim e lhe vi ir boiando na corrente fora. A rebentação, lá na senga da boca do rio, baloiçava cocos, espumejava as flores dos jacintos-d'água, luandos e canas, troncos, folhas verdes, para lá, a maré lhes saía para subir o Kwanza até nas pedras que tem por baixo das ruínas do rio da prata. Boiei atrás das águas. Minha cabeça era só eco do surdo bater da calema. Para norte, para lá das sengas onde que eu tinha saído, o universo da chuva fechava o tempo naquele mundo de águas vivas, que nasciam de céu e mar, subiam de remoinho para as nuvens e, depois, se bategavam em peso cá em baixo sobre as ondas. Longe, outra vez o motor do bote dos fuzileiros roncou. Eles me farejavam, agora tinha toda a certeza que o medo dá: naquela manhã de luz -quando? -uma vela tinha sido vista; a solidão de sozinho de um pescador em pescaria solitária, tinha sido binoculada; minha arte de navegar, desconfiada pelo rádio; mau dia, aquele dia de fevereiro, saíram só dois de patrulha extra e urgente -era um ano perigoso, esvoaçavam, navegavam, cortavam mato, patrulhavam noite e dia e todas as madrugadas, a boca de nossa mãe Kwanza tapada com boca das gê-três, dois camuflados, um bote de borracha e seu motor de fumo queimado de óleo. Podiam me acaçar, hoje, então, dia de pescar peixe-mulher, cumprir o sonho ou sair na mata?

Ainda não sabia que sabia que tinha medo. Pois nem tremi, tive só. Olhei para lá, para o novo silêncio do céu -trovão calado, corrente calada na calmaria de virar a maré; parados, deixando garrar, os fuzileiros longe, ampliando os horizontes com as lentes dos binóculos. De novo boiei, me deixei, via o céu como um rio em sua corrente de nuvens e ar; e bati os pés descalços numa dura casca asfaltada, terrorizei. Quieta, cheia, afogada de cava para o fundo de areia negra na senga, amarela, minha canoa de novo -e ali era já rio ou era mar? Me pus pouco de pé, me quis fazer folha achatada, boiante, a água gotejava minha boca, batia na parede do meu peito, queixo abaixo. Apalpei nuca, sangue nem molhou meus dedos. Canoa, nem de lento ondulava. Eu sabia: por um ir e vir de nuvem, essas águas iam ficar assim, dormindo por cima da quissenga da foz, do lado daquela margem de capim salgado, entre muije e muxito, água salobra na areia da maré. Quietas, em círculo parado depois, as folhas de espuma estudavam a corrente do mar, ouvindo a calema, sentindo as águas doutras chuvas vindo por meu rio abaixo.

Até começar a sentir o que eram os finíssimos grãos de areia me cocegarem no fundo. A meia perna a água esfriava, descia; subia um quente rasteiro, junto do fundo -a água tinha vindo, agora ia ir. Tinha descido rio acima, ia subir para baixo. E todos os luminosos grãos de areia subiam, eram uma chuva para cima, tempestade de areia no deserto fundo das águas, cegavam mãos, meus joelhos se dobravam para ajoelhar, rezar, para mim aceitar mergulho de cara e coração, acreditar no segredo: o oceano não é um mar. Todo o mar do mundo regressava, era afinal só meu rio, meu mãe, nosso Kwanza.

«Pòtamós?» -mas só o eco ficou nos meus ouvidos de búzio: as futuras palavras do César, cuaxa e camionista, me atiraram na água funda do que ainda não sabia. Um dia, no frente-a-frente da vida, vai me explicar que o oceano não é água talássica, como dizem outros brancos numa língua de muitos ós, abrindo os às no espanto dos dez mil retirados. Que era um rio, só, único e sempre potâmico. E que no seu andar fundo e impetuoso, só ele mesmo é que é assim, que nem a cobra moma-jibóia, a que não deixa rasto no pó da pedra, pode imitar essas águas: entrar em sua própria boca, voltar por dentro de si próprio para fora de si próprio, eternamente subindo e descendo em si mesmo…

Porque nunca mais lembrarei a palavra que o César falou, tinha lhe ouvido em quem revelou lhe esse segredo -um grego, que nunca confessou que se chamava Kiriakos Papa-Leopardos, só o Kirie, como assinava nas guias do posto, desangariador de contratados. Não era um mar, era um rio; e abraçava então toda a terra angolana -a Kwanza, minha mãe.

Eu ainda não tinha desertado para todos os fundos da terra nossa, era muito semipátria nesse mundo, muito sedentado, sentado só em fundo de canoa e pesca. E as águas que eram vivas, quando o princípio do mundo começou. Ondas e marés e correntes sempre reviravam na funda cama de nosso rio; e envolviam por cima descendo na boca do mar, por baixo na escuridão da nascente -as três lágrimas de água perto do céu, no Txisuala, quimbo que um dia vai me amigar, os morros por lá são serras, são altas, e o riso dessas mulheres piladoras de milho, molha para sempre o sal da nossa pele. Lá, naquela montanha, lado contrário da Katota, depois de muitos mortos e muitas mortes, vou aprender: naquelas lágrimas do Kwanza, ali nasciam os oceanos.

Sombras das águas no fundo do mar, eu vi.

Que as suas correntes entravam de rompente por meu rio acima, minha sombra de água doce se despedia comigo, arrastada nos grãos de areia para dentro do mar escurentado. O vento rondara de vez. Sopro cansado, um nor-noroeste do lado da terra estava chegar, morno e sujo dos cimos da cidade, mais calor que água -o que era a ilhota na minha frente e suas negras mulembeiras ou sombras dos muxitos trazidos na chuva, um zuído de marimbondo dos fuzileiros do outro lado, no largo muije da Kisama. E doía minha boca, doía minha nuca, meu coração doía, o formigar da areia nos pés ia me atirar no canal, vou deixar eu ir de costas, em cristo, no calvário da tempestade -que sou também é canoa-da-terra, tirei a camisa.

E a verdade bateu nos meus dedos enruguecidos: eu tinha esquecido os entes passados? -meu lunga, meu feitiço de autoridade, meu malunga pendurado no pescoço, tinha o peso do mundo e do medo. Leve, molhado, lhe segurei, rezei palavras de um solidário avô, redentor de quimbos, sanzalas e arimos, aldeias, regedorias até: Mazozo, por exemplo; ou Kindambiri, se se quiser; ou, ou, ou…Que ele velheceu profeta pelas margens dos rios, por aqui. «Quem segue os velhos, chega a velho…» Que «kioso ki kulumuka adiakimi…» (seguir = subir ou descer com a corrente) e quem que segue os novos, chega longe.

Eu quis chegar a velho, ser um mais-velho, quem sabe mesmo: o Velho.

Fechei meus olhos, não vi a camisa se afundar, braços abertos, a medrosa alma gasta dentro dela, pela corrente subia e se perdia: eu era muito antigo, já; vinha com minha gente e meus peixes; parei nas colinas; desci naqueles vales de terra verde e vermelha, de céu azul e chuva grená: nós viemos com Ngola Inene, ouvi Kinhoka Nzaji, o meu avô salmista me dizer, sabemos usar os poderes, mas nunca que andámos de cabeça para baixo: «Nós viemos do mar… Etu tuadilusa!...»

E ele pendurou nos meus sete anos, na minha raia espetada na ponta do arpão, na minha tosca vaidade no pescoço –, a trouxinha. Com fio de couro de rabo de raia seca, costurada a trouxinha com tendão de dicunji numa quimbanda de Kababa, margens acima, engaiolou o mar no meu lunga. Um minúsculo frasquinho de sal do mar, não sou dos do-ferro, das montanhas para lá, para lá: eu sou só o sal do mar e nunca posso gastar para fazer comida, tenho de morrer de fome.

Tirei minhas calças, atirei; meu corpo se afundou, senti bater a trouxinha por baixo do meu queixo, tremi, mas eles não iam nunca me acaçar. Sei que vou chegar nas matas do Kalukala, e é o Vòstóque que vai querer dizer o meu nome e só eu vou adiantar: «Ulungu! O que quero me chamar» -e, ali, não era o camarada comandante Andiki-Ndia, esse que foi o espírito dum tetravô dele, libertador de Pernambuco contra os mafulos anteontem, contra os tugas amanhã. U1ungo, o que foi meu azar naquela tarde, canoa comprida de mais. Ou, então: Dongo, o que foi reino, que era barco, que era feira que foi presídio, ou missangas perdidas por esse rio acima até nas Pedras Grandes…

Só que o comissário Mingo vai rir o riso cambuta dele, ouve minha travessia de águas, minha vida sobrada na pesca e tempestade e me aprisiona na muzúa da própria estória: sem azar eu era, está claro; não dava, não tinha azar; comigo e de mim, tudo sem maca; não era mais e melhor, mais simples me chamar Kene Divua? «Kene Nvua?!» -já estava lá quem adivinhava, sentado no escuro da cubata, por perto do Kalukala, naquele dia, naquela base, aquele, o Amba-Tuloza? Pois ainda agora ouvi seu sotaque vir do fundo do escuro, desafinar o meu coração tranquilo: fiz o que tinha de ser feito, e sempre não quis nada para mim. E não sou pessoa de estar sentado nas margens do meu rio vendo desaparecer a água que leva todas as águas, lava todas as tréguas – não sou eterno, vou na corrente enxurrada e em branca paz nunca disparei…

E nunca que ouvimos a nossa vida em nós, só ouvimos é quando chega o seu silêncio…o que a gente ouvimos é o escorregar do sangue, seu ritimo, a alma é calada.

E a ilha estava lá, sempre está lá, me recebeu de areia e lodo, mangais me aprisionaram nu, as quicandas dos podrecidos mábus, as aranhas das raízes dos jacintos, cuspi o azedo dos bolbos dos dentes abertos, e capins e paus, ramos espumados entre as folhas mortas; mas estava lá a salvição, estava onde que meu lunga me levava embora são e salvo e temente a tudo, a escuridade da noite nascia no meio da chuvarada, de novo.

Agora aqui estou, depois das tempestades e não sei mais o tanto que isso dormiu comigo e se foi o fumo dos cigarros meu despertador. Ou os estalos dos troncos, ramos finos quebrados na corrente engrossada da chuva, eu sonhava era a rajada do morteiro do trovão. Estalos e estouros de pau-podre se rachando em meio do relâmpago, nem ouvi; minha cabeça era um só estrondo escorrido: as águas deslizando, o fumo quente na noite que chegava.

Saltei, tropecei, chapinhei, xapinhei. Comigo esvoaçaram se as garças pousadas em seu sono de fim da tarde, um restolho perigoso Ouvi eis e óis e o cantar de meia rajada nervosa a bater capim. Percebi: um que vinha de um lado, outro que de outro lado vinha o bote de borracha tinha ficado parado de poita ou ferro, ponto-morto de ralentim, tinham encalhado pouco silencioso para me cuatarem, o barulho de sentinela. Batiam a quadrícula pé a pé, grão a grão, cada fio de capim limpavam de seus caracóis, orquestravam trilo de grilo e sapo, cheiravam a chuva -gente treinada, nada de boina castanha e ração de combate…

Calei xapinho; deixei que o xuaxo das penas das aves brancas se pousasse de novo, nem mãos mexi -mergulhei de prego meu corpo, ajoelhei na barriga da minha mãe, me encolhi todo. E jurei de vou chegar lá, não pode se morrer dentro da água de um dia de fevereiro – despi cuecas, deixei-lhes ir por ali branquejando na paisagem verde. Nu eu queria estar de me nascer, morrer e matar; afundei o fôlego todo, fui sair na mata de raízes do mangal, sem tremer já mais, jacaré era do outro lado onde que cheiravam as gentes e os animais e senga de dormir no sol. Me fiz barro de lodo cinzento com meus pés, com a mão cobri cara e carapinha, dessa pemba. Eu virava o caranguejo-pirata, magro, seco, escanzelado, sem carne, só caixa dura de guardar a vida, viver camuflado, e os fuzileiros esses estão reservados a cadáver esbranquelado que meu rio nem mais vai querer, só inchar. Eu é quem ia lhes roer os olhos.

Me preparei só, rateiro, para roer a corda de amarrar a pedra da poita, soltar o bote, ali a menos de cinquenta pés dos meus pés: o barco de borracha esverdinhava mais, virava sombra negra do lado dos espíritos da ilha, mas o bombordo brilhava, dourado e limpo, luminoso dum sol nascente. Para lá, por cima do rugir batucado da corrente das águas, o mar enverdecera no esbranquiçar de um céu que o vento lavava. Vi as escamas de ouro rebrilharem de repente na ondulação, as escumas se dourarem e subir as areias agora limpas de limos. Um céu amarelo caiava o fim da terra e eu podia cheirar meu Kwanza em seu entrar o mar oceano, seus baixos e sengas, quissequeles marcados de conchas e pés de asas de pássaro, o desencontrado ir e rir da corrente, tudo se maravilhar no pó da luz, treluzir num sol novo. Percebi que era a hora, esse poente sol nascente...

«Kene Nvua, a sétima boa razão, então?» – camarada comandante Andiki-Ndia, nome dele de candomblé brasileiro, mas espírito angolar – era muito disciplinador, abaixo o liberalismo -que sete razões eu invocara, portanto nada de só seis mais uma...

Aceitei, fizemos a reunião sem acta, só de palavra de ordem: primeiro, ele; eu, depois; ele, na conclusão.

Então:

Ele: - Kene Nvua! Você, camarada, está longe, longínquo desse mar, estás fora…

(só que isso não tinha problema, não era mais caso de demanda, inquérito ou comissão para ouvir de relator, não tinha azar, o mar do mussulo será sempre dentro de mim, portanto que, concluindo: não havia azar, o nome era de continuar).

Eu: Camarada Comandante, licença: é por isso mesmo, Kapapa eu sou, desde essa areia do mar...

(mostrei meus pés, largos, estreitos, chatos, de ângulos agudos muito fechados, as puras asas da raia voadora e meu avô Kinhoka Nzaji, o que brilhou seus relâmpagos de quinjango nas cabeças das colunas de pacificação se ria os dentes inteiros dele, seus únicos octogenários - ele despejou a água da cabaça-de-múcua do fundo da canoa em minhas carapinhas salariadas e disse: kapapinha, meu neto!, falava a primeira raia que eu atravessava com ela, em meu arpão de prego-e-bordão desde sempre)

Ele: - Kene Nvua, Kalunga também é mar...

(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, òquei, seguro, narmal: Kalunga até seria sei cadavez, um dia outro; mas meu mar ainda estava morar é dentro de mim, mesmo que sofro de maré-vazia de saudade, ainda tenho meus ocos e sengas, buracos e pedras -são sombras vivas de mais, precisava ainda, para lhe merecer, encher esses ecos de muitas mortes e muitas noites, muita luta, mais mar, tudo o que esse nome esconde e homem vivo só encontra no pambo final de sua estrada: «…a quarta não na conheço: o caminho do homem na morte...»)

Eu: Eu espero. Para cobra, um dia são seus seis meses de mudar a pele…

Kapapa eu sou, hoje diante de mim: esfrego meus olhos ensonarados – minhas vidas não me dão berrida, não me cuatam. Nesta, só os fuzileiros contam os grãos de areia da pegada que a maré não quis arredondar, meu passado sempre está no altar da frente da casa do meu corpo, meu dilombe onde que brilham de vavô suas catanadas, de meu pai um cigarro apagado no escorregar do quimbundo em peleja de jacob com o anjo português, rio abaixo, mar acima. Que o futuro é o que vem atrás, me persegue sempre, nossa luta -um dia, sei, vai me agarrar: morrerei.

Mas no hoje, aqui, noutras matas do tempo onde que bamboleia o corpo enforcado do que nem era um ar de pessoa, por entre as folhas da mata do Kialelu, árvores de elevada estatura a cujo abrigo e sombra vegeta o cafeeiro-bravo – («Muriambambe!» ainda teima meu pai seu pé de café espontâneo; «Cófia canéfora... » e que nomenclatura era de terriherbosa e savana, já por perto de Tonh'a Xidi -ele, o corrigidor Lopo) -, longe dos rios que vão por Massangano, nos acocorámos, eu e comandante Ndiki-Ndia; e fumando, nos lembrámos de Luanda; e numa quibaba-roxa que tem no meio dela, pendurámos as nossas calaxes, caladas -mesmo que aqueles que nos têm cativos nos peçam uma canção de berros e rajadas, hoje não, só vamos cantar na hora da terra prometida.

O dia nasce.

«-Kapapa toda a vida, eu vou ser, um dia!» – gritei, o meu comandante já nem estava ali a escutar, ia lá em cima, caminho da nossa base. Minha vida de Kapapa se levantou então na minha frente: esfreguei os olhos de mão aberta, de punho fechado, não saiu. O mar lhe colou é com sua clara água e cristalina, não vai sair sem lhe ver de novo, longe desses rios e muíjes, esteiros, canais e braços, massanganos -essas lagoas e cacimbas, charcos e pântanos, o mundo das águas verdes de gosto gordo…

«Kapapa!...» rezei todos os ás, missangas de meu nome.

E vi de novo o voo da jamanta-negra na tarde de nuvens e chuva, por cima do bote de borracha dos fuzileiros, rasgar o céu como um negro relâmpago, descolor, um brilho negro picado de estrelas tracejantes das rajadas das gê-três, para sempre desviadas do meu rasto.

«Kapapa!», eu berrei, salvo. E mergulhei na quicanda dos luandos, era meu enorme colarinho verde, subia a corrente, eu ainda não tinha vestido a corda no pescoço do Amba-Tuloza, podia sentir o doce do meu enforcamento, a alegria. O bote zunia na perseguição da nuvem saída no fundo do meu mar, voando silenciosa e invisível na escuridão da noite mal nascida.

O dia renasce.

Amanhã, na madrugada de ir enforcar o Batuloza, tenho de recomeçar meu ximbicanço. O Ndalagando naufragou na memória; rio acima de minha estória, o Kwanza rodeia a pátria da nossa vida. Missão, agora, era de lhe dar encontro, o princípio desse rio, nos seus três fios de água, lá nas altas serras do Bié – onde o mundo acaba e todas as águas começam.

Peregrino de meu novo nome, ganhei direito de recusa: fiz o que tinha de ser feito, sempre não quis nada para mim -eu, o Águas do Mar…

? Três coisas me maravilham, a quarta não a conheço ... (Prov.30, 18)