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O Viúvo

by David Mourão-Ferreira

O Viúvo

David Mourão-Ferreira

O conto O Viúvo, aqui publicado, foi extraído do livro Os Amantes e Outros Contos, da autoria de David Mourão-Ferreira e editado pela Editorial Presença, que gentilmente autorizaram a sua publicação.

© 1996, David Mourão-Ferreira e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-45-6

Lisboa, Agosto de 1996

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

O VIÚVO

Voltou a tocar a campainha. Desta vez, já um toque insistente, mal-humorado, em dois tempos consecutivos: de chamada, de protesto. Recuou três passos, a sondar o efeito: nada! Nem uma réstia de luz nas janelas cerradas... Tudo escuro por dentro.

Num arrepio, ergueu a gola do sobretudo. Depois, rodando ligeiramente a cabeça e os ombros, olhou de novo para trás: naquela direcção adivinhava-se, por entre as pregas húmidas da noite, o dorso extenso da praia; mais adiante, em rápidos fulgores, a linha de espuma da rebentação. Continuamente, ressoavam as ondas.

Tinha deixado acesos os faróis do carro, a perscrutarem a frontaria do hotel. Mas vinha de mais longe do meio do mar -a luz intermitente que por instantes banhava o edifício, que lhe aclarava, a espaços, o rosto impenetrável. Do meio do mar? Devia ser o farol das Berlengas.

Retrocedeu, a caminho da porta; e preparava-se para tocar uma vez mais, quando enfim distinguiu, através do vidro fosco do postigo, uma ténue claridade. Logo a seguir, um rumor de passos, um correr de fechos. E dois olhos de sono: o porteiro.

-Boa noite -murmurou Adriano. -Telefonei ontem a reservar um quarto.

Dentro, no pequeno vestíbulo, cheirava mais a mar do que lá fora. Dir-se-ia mesmo ter-se conservado (embora a ponto de ganhar bafio) um pouco do hálito do Verão... Do Verão? De quantos verões? Talvez houvesse algum vestígio, ainda, do último que ali passara.

-Sim, está no carro. - (O porteiro perguntava-lhe se trazia bagagem.) -Aqui tem a chave.

Pelas paredes, as mesmas estampas: mapas antigos e gravuras de caça. Mas o balcão da portaria tinha mudado de lugar: dezassete, dezoito anos antes, era logo à entrada, do lado direito; presentemente, ocupava a parede do fundo, quase à ilharga da escada que conduzia ao segundo piso. A meio da escada, uma lâmpada mortiça. Ah! as luzes do carro... Voltou atrás, ao umbral da porta entreaberta, para recomendar ao porteiro que as apagasse.

E quedou-se um instante no patim, soletrando, no escuro, o ruído das ondas. Para a esquerda, quase na lomba da estrada, revelava-se, a cada passagem do facho das Berlengas, uma empena de pedra: era a casa dos Bandeiras. Continuava a ser a habitação mais próxima do hotel. E a mais antiga, também, de quantas existiam em redor.

Retornava o porteiro, carregando a mala. Reentraram no vestíbulo. O homenzinho, estremunhado, tratava de correr os fechos da porta. Adriano começou, pausadamente, a descalçar as luvas. Já não sabia, ao certo, se eram aquelas as luvas que a Paula lhe oferecera.

A despeito da porta fechada, não cessara, por inteiro, o ruído do mar: apenas se enrolava, mais confuso como dentro de um búzio de cimento.

O porteiro, que entretanto se esgueirara para trás do balcão, apresentava-lhe, agora, o livro de registo dos hóspedes; e rosnava, pegajoso de sono:

-Se vossa excelência se quer dar ao incómodo...

-Muita gente? -indagou Adriano, pegando na caneta.

-Nem por isso... É sempre uma época muito fraca.

Adriano examinou a folha em que o livro se encontrava aberto: com a mesma data de 23, figuravam apenas, ao alto da página, dois nomes estrangeiros. Ingleses, provenientes de Bristol. Marido e mulher, ao que parecia. De qualquer modo, dois nomes escritos por uma só pessoa, reunidos na mesma caligrafia rápida e segura, amparando-se mutuamente, formando bloco.

Principiou a preencher a linha que o porteiro lhe designara: nome, idade, morada, profissão. Mas, de súbito, suspendendo a caneta no ar:

-Seria possível arranjar-me uma bebida? Um whisky, por exemplo...

-Agora? -espantou-se o homem. -Bem...Só se eu for acordar o chefe de mesa...-Via-se que a perspectiva o inquietava.

-Então, deixe lá. Não vale a pena.

Mordiscou, de leve, a tampa da caneta. E, na coluna respeitante ao estado civil, vagarosamente escreveu a palavra «viúvo».

No dia seguinte, ao sair do quarto, depois do pequeno-almoço, encontrou o porteiro a limpar-lhe o automóvel.

-O senhor doutor desculpe, mas parece-me que o carrinho estava precisado…

Agora, perto do meio-dia, era outro homem o porteiro: bem disposto, jovial, talvez um bocadinho adulador, sem nada de comum, de qualquer forma, com aquele paspalho pesadão que na véspera toscanejava, sob o capuz do sono. Também Adriano se sentia mais leve: não que tivesse dormido muito, nem muito profundamente; mas soubera-lhe bem a escuridão do quarto, com grossas portadas de madeira a vedarem toda a claridade, a deixarem filtrar apenas o ruído das ondas... Era como se houvesse passado a noite no bojo de um navio. De entre a escuridão adivinhara, no entanto, que o tempo tinha melhorado.

-Nem parece que estamos em Dezembro! -exclamava o porteiro. -Muito menos na véspera de Natal... Lá para Janeiro, para os fins de Janeiro, é que costuma haver uns dias assim...

Estava frio, apesar de tudo. Mas era um frio salutar. E o Sol, depois de dissipar a humidade, se desistira, por agora, de aquecer o mundo, teimava em suavemente iluminá-lo. Na praia, que logo adiante se estendia, nas dunas, que para o fundo se elevavam, a areia começara a ganhar um tom açafroado -o mesmo que fulgurava, mais perto, na empena de pedra da casa dos Bandeiras. Apontando-a, Adriano perguntou ao porteiro:

-Já cá está a Senhora Dona Rita?

Mas foi preciso repetir a pergunta, porque o homenzinho não o esperara decerto familiarizado com habitantes das redondezas.

-Está sim, senhor doutor -respondeu, por fim. A Senhora Dona Rita vive cá todo o ano.

-Todo o ano?!

-Pois. E é muito raro sair de casa desde que morreu o senhor general.

Adriano começava a compreender:

-Eu queria dizer a filha... -esclareceu, sorrindo.

-Ah! a menina Rita ... -Os olhinhos do porteiro brilharam, cúmplices: -O senhor doutor conhece então a menina Rita?

-Conheço, sim -respondeu Adriano, com secura. Não lhe agradara a expressão do homem. -Conheço toda a família da Senhora Dona Rita. Somos velhos amigos. E achou-se ridículo, de tão enfático e solene. Paciência!

-Ah! não sabia ... -murmurou o porteiro, em voz sumida, como que a desculpar-se; e agachou-se à beira do automóvel, para limpar, com esmero, o próprio rebordo do guarda-lama.

Adriano sente-se, de súbito, vagamente nauseado. Rodeia o carro e fica de costas para o homem, olhando a praia, as dunas e o mar. De que mistura de episódios, reais ou irreais, se fora criando, também ali, a respeito da Rita, a lenda que a envolve e que a persegue...? Não seriam, com certeza, muito diversos na essência, apenas na dosagem, daqueles que em Lisboa se contavam e que faziam dela, mesmo em Lisboa, uma figura quase fabulosa.

Imperceptivelmente, aproximara-se o porteiro. Com a maior desfaçatez (era melhor assim, apesar de tudo), tratava de responder à pergunta que ficara em suspenso:

-Bem... Que eu saiba... Que eu saiba ainda não chegou. Mas deve estar por aí a aparecer. Nestas alturas nunca falta! Vem sempre passar o Natal com a mãe. Nunca falta, lá isso... Muito amiga da mãe!

-Eu sei, eu sei.

Só não sabia se havia de rir ou de se indignar com a sabujice do homenzinho. Sem mais palavras, disparou pela estrada acima. Apetecia-lhe um passeio a pé, um bom passeio até à hora do almoço.

Notou, de relance, que estavam fechadas todas as janelas em casa dos Bandeiras.

Pareceu-lhe que tinham aberto, expressamente para ele, o salão de jantar. A boa vontade fora ao ponto de colocarem toalhas em todas as mesas, embora somente seis ou sete (as que ficavam mais perto das janelas) apresentassem o completo equipamento de pratos, de copos, de talheres. Mas não conseguiam, mesmo assim, criar a ilusão de aguardarem mais gente. Nem do casal inglês havia rastro: ou já tinham partido, ou não tomavam as refeições no hotel. Ao almoço, pelo menos, fora Adriano o único hóspede.

Esperava agora, no bar, que lhe trouxessem o café.

E foi o próprio chefe de mesa quem o trouxe. Aproveitou, então, para pedir um conhaque ligeiramente aquecido. E o chefe de mesa fez questão em ser também ele a servir-lho. Já durante o almoço, aliás, o chefe de mesa o rodeara de atenções. Mas pacientara decerto até esse momento para dizer enfim a Adriano que logo de entrada o tinha reconhecido:

-Vossa excelência é que certamente já não se recorda de mim. Era eu, nessa altura, o empregado aqui do bar...

-Sim, sim... Tenho uma ideia... -murmurou Adriano, sem convicção.

-É provável que não se recorde... Já lá vão tantos anos! -E rodava o copo de balão sobre a chama da lamparina. -Para cima de vinte, com certeza... Desse tempo (imagine vossa excelência!) sou eu o único, em todo o pessoal do hotel... Mas lembro-me muito bem de vossa excelência, da mãe e do pai de vossa excelência... Durante a guerra (parece que os estou a ver!), o pai de vossa excelência e o senhor general Bandeira (nessa altura, era ele coronel, se não me engano) ficavam aqui, até altas horas, a ouvir as notícias pela telefonia... E o «grupo» de vossa excelência! Tinham um grupo tão animado…Eram todos tão divertidos!

Curvou-se sobre a mesa, apagando, num sopro, a chama da lamparina.

-Espere! Estou-me a lembrar... Já me lembro de si! E até do seu nome... Alberto, não é?

-Adalberto... -corrigiu o outro, sorrindo.

-Isso: Adalberto. Tem graça! Agora estou a recordar-me perfeitamente... A paciência que você tinha para nos aturar!...

-Paciência? Não diga isso, senhor doutor! -Treme-lhe a mão ligeiramente, ao estender o copo a Adriano. Nunca mais houve, depois, um grupo como aquele... Talvez vossa excelência não acredite -e baixa a voz, emocionado –, mas, quando me ponho a pensar nos meus tempos de rapaz, lembro-me mais desse grupo... do que propriamente de mim, de como eu era, ou até mesmo dos amigos que eu tinha... -Depois, endireitando-se: -Vossa excelência desculpe... Nem eu percebo porque estou para aqui a dizer estas coisas.

E Adriano sente vontade de responder-lhe, também em voz baixa, quase em surdina: «Porque é Natal…» Mas, em vez disso, bebe um trago de conhaque e limita-se a comentar:

-Se não me engano, nós devíamos ser... Devemos ser todos da mesma idade.

-Acho que sim, senhor doutor. Eu vou fazer quarenta.

-Também eu.

E ficam ambos em silêncio. Volta a ouvir-se, surdamente, o ruído das ondas.

-Vossa excelência dá-me licença que me retire? Acabou de arrumar, sobre a bandeja, a chávena, a lamparina, a garrafa de conhaque.

-Faça favor.

Adriano pensa, por um instante, que deve dizer-lhe mais algumas palavras: que gostou de o reencontrar, que teve gosto em o reconhecer…Mas, discretamente, já o outro saiu.

A sala do bar tem uma única janela, emoldurada de pesadas sanefas. Para lá das vidraças amontoam-se, decerto sobre o mar, umas nuvens de feltro alaranjado. Da poltrona onde se afundou, de costas para a porta, é que a penumbra parece crescer, com largos braços de flor carnívora. Bastaria talvez ter repetido, familiarmente, o nome do outro; nem seria preciso ter dito mais nada.

E há um ano? Precisamente há um ano, mas um pouco mais tarde (já então as rasgadas janelas do bar do hotel se afogueavam, por entre a chuva do crepúsculo, com o revérbero das luzes de Lisboa...), há um ano, precisamente há um ano, tudo teria sido porventura diferente -se houvesse chegado a murmurar, a sussurrar, a arremessar, de qualquer modo, o nome da Paula.

Mas eis que nesse instante, atrás das suas costas, como se a penumbra, de repente, ganhasse pés e pernas, afirma-se, progride, do felpo da alcatifa, um leve rumor de passos. E duas mãos, devagar, pousam-lhe nos ombros.

Esperava tudo, confesso... menos que me aparecesses desta maneira.

-É para que saibas, meu querido... Estou muito modificada.

-E cada vez mais bonita!

-Que bom! Dito por ti, nem parece mentira.

-Não é.

-Melhor ainda! Vês?... Já estou convencida. Continuas a ter o segredo de convencer toda a gente.

-Nem toda.

-Mas ficaste admirado?...Não me digas que preferias que eu tivesse aparecido como dantes... num pé-de-vento!

-O importante é que tenhas aparecido.

-Tive logo um palpite que eras tu. E olha que não era muito fácil... O palerma do porteiro deu-me umas indicações tão baralhadas que nem fazes ideia! Advogado, de Lisboa, com uma cicatriz na cara (fica-te muito bem a cicatriz, descansa!), a perguntar por mim... devias ser tu! Mas de mistura com tudo isto... queria convencer-me, à viva força, que eras viúvo! Viúvo, imagina!...

-Quem sabe?...

-Deixa-te de fitas. Ainda anteontem vi a Elsa.

-E quem te garante que ela não morreu?

-Depois disso?...

-Ou antes.

-Continuas a ser um grande ponto.

-Pois olha: estou a falar a sério. Tenho a impressão de que morreram, em Lisboa, todas as pessoas minhas conhecidas. Por isso mesmo vim até aqui... à procura do único ser vivo que conheço.

-Sou eu?!

-És.

-Oh! querido ... Não sei como agradecer-te... É o que eu digo: continuas com o tal segredo... Mas apesar de tudo acho-te diferente.

-É natural... E se nos sentássemos?

-Sentemo-nos.

«Não era assim que ela dantes se sentava», pensou Adriano. Mas os joelhos continuavam a irradiar a luz inquietante de outros tempos.

-Conta, conta... Estou interessadíssima! Isto parece o regresso do filho pródigo... Vieste sozinho?

-O mais só que é possível.

-E a Elsa?

-Recolheu ao jazigo de família.

-Ou seja...

-... a casa dos meus sogros, evidentemente. É o grande recurso dos enterros de primeira classe.

-Abençoadas sejam as famílias!

-Abençoadas sejam! E a propósito: ainda não te perguntei pela tua mãe...

-Na forma do costume: santa, silenciosa e surda, como dizia o meu pai.

-E tu? Vieste sozinha? Ou trouxeste algum apaixonado no teu rasto?

-Não! Que ideia! Estes dias festivos são sagrados...Não há sequer apaixonados disponíveis. De repente, descobrem que têm pai, que têm mãe, uma irmã, uns sobrinhos... com quem não podem deixar de passar o Natal.

-Às vezes até descobrem que têm mulher.

-Isso não sei, meu querido. Felizmente, sou muito pouco versada no género conjugal.

-Por amor de Deus! Não estou a insinuar coisa nenhuma. Eu falava de mim. De mim... noutros tempos.

-Ah! Se bem entendo, só agora chegaste à conclusão de que podes estar disponível...

-Exactamente. E já é tarde.

-Nunca se sabe! Tens de me contar tudo isso em pormenor. -Olhando o relógio: -Mas agora não. Prometi levar a minha mãe a Óbidos. A Óbidos, imagina!... Vim só aqui ao hotel para telefonar. Mal sabia eu...

-... que me vinhas encontrar viúvo!

-Muito gostas tu de ser fiteiro! -exclamou ela, rindo. E pôs-se de pé, num salto. -Não, desculpa, não é bem isso... Tu gostas é de fazer a fita de ser fiteiro.

-Não percebo... -murmurou ele, levantando-se também.

-Percebes, sim. Ouve: queres jantar lá em casa? Não, espera... É melhor apareceres depois do jantar, para não fazer confusão à minha mãe. E assim passamos juntos a meia-noite. Vai ser o Natal dos desamparados... Que dizes?

-Acho óptimo. Esperava justamente que me convidasses.

Acompanhou-a depois, até à porta do hotel. A tarde declinava: já o sol se infiltrava por entre a barragem de nuvens do poente; e empalidecia, friorenta, a areia das dunas. Junto da casa dos Bandeiras, permanecia agora estacionado um automóvel de sport, cor de fogo.

-Compraste outro carro? -perguntou Adriano.

-Há que tempos! Em Outubro do ano passado.

-Não sabia...

-Isso só prova, meu querido, que não nos víamos há uma eternidade... Espera! A última vez, acho eu, foi precisamente no Verão desse ano.

-Foi. No Estoril.

-É verdade! Que é feito daquela jovem que estava contigo? Como é que ela se chama? Vocês, se não me engano, andavam muito in love…

-Chamava-se Paula.

-Ah! Acabou? É então isso?...

-Acabou. Ela morreu há quase um ano, num desastre de automóvel.

-Palavra?

-Justamente na véspera de Ano Novo.

-Oh! Adriano... Desculpa! Agora vejo perfeitamente que não estás a brincar.

-Até logo, Rita! -E voltou para dentro do hotel.

Só faltavam três horas e meia para o jantar. Aproveitou o tempo o melhor possível: bebeu outro conhaque, três whiskies, leu dois jornais, uma revista e o começo de um romance policial. Ah!... E conversou com o Adalberto: recordaram, um por um, os componentes do grupo de há vinte anos. («A menina Rita era a mais endiabrada ... Mas uma jóia, uma jóia!») Isto, evidentemente, depois do segundo whisky; ou, com maior precisão, já no decurso do terceiro.

Tocou, de leve, a campainha. E o facho das Berlengas, ao passar nesse instante, pareceu erguê-lo, erguer a casa. A noite estava menos húmida que na véspera; mas muito mais fria. Pesava-lhe a roupa, sem todavia o aquecer; era como se tivesse, em vez do sobretudo, um capote de pedra sobre os ombros.

Veio abrir uma criada, novita e feia, assarapantada como uma borboleta. Na sala de entrada sobressaía, ao centro, um calorífero de petróleo, que a rapariga rodeou uma, duas vezes, num esvoaçar assustadiço, chamuscando quase as asas do avental. Por fim sumiu-se, numa balbúcie de sons ininteligíveis. Devia ser grande acontecimento um homem ali em casa.

Devagar, meteu as luvas no bolso do sobretudo. Todo o mobiliário, em redor, testemunhava largamente a passagem do falecido general pelas paragens da Índia e de Macau: biombos, mesinhas, cofres, um contador de laca. Mas a atenção de Adriano concentrou-se, apenas, num pormenor que nada tinha a ver com o Oriente: era o retrato de uma rapariguinha de olhos vivos, de cabelos compridos, de semblante ao mesmo tempo agaiatado e grave, com o pescoço delgado a emergir de entre folhos de organza... Tinham-na fixado numa pose de tocante mau gosto, a segurar nos dedos um botão de rosa.

-Já estou farta de dizer à mãe para tirar daí essa pirosice...

-Pois fazes mal! -protestou Adriano, voltando-se. Isto já é «histórico» …Tão «histórico», no fim de contas, como esse contador de laca, como este biombo de bambu... São imagens de vários passados que já não voltam de maneira nenhuma! Podes crer: é simplesmente precioso este teu retrato dos dezoito anos...

-Dezassete... -emendou Rita.

-Está aqui tudo: o mundo em que nós crescemos, a ingenuidade, a pieguice, o idealismo dos anos trinta... Talvez te pareça estúpido, mas este retrato fez-me lembrar que ainda apanhámos a época do tango...

-Tens saudades?

-Tenho -respondeu, sombrio. Logo a seguir, bruscamente: -Mas não entendo, cada vez entendo menos, essa fauna que veio depois de nós.

-Não digas isso! São muito mais directos, muito mais francos... E até mais inteiros. -Depois, reconsiderando: Há de tudo, de resto.

E Adriano, com volubilidade, evoluindo por entre os móveis:

-Lembras-te do sobrinho da Elsa? O Vasco. O Vasquinho. Um fedelho alourado que ainda gatinhava, nesta altura... -Apontou o retrato.

-Lembro-me, sim. Era um bebé amoroso.

-Pois bem: esse bebé amoroso cresceu, formou-se em Direito, esteve a estagiar lá no meu escritório. É para mim o tipo perfeito desta nova camada... Tinha a chave de casa aos catorze anos, um outboard aos dezasseis, automóvel aos dezoito. E é o sujeito mais anódino, mais inepto que possas calcular! Só me deu chatices! Só me deu chatices!

-Não te irrites, meu querido... Não vale a pena! E olha que estás a generalizar a partir de um caso...

-Tens razão. Desculpa. Mas fico fora de mim quando falo nesse tipo... -e passou, devagar, a mão pelo rosto, pela nuca.

-Não queres tirar o sobretudo?

-Sim, claro que sim. Onde é que o deixo?

-Aí, numa cadeira. E vamos até lá dentro, que está mais agradável.

Seguiram pelo corredor e entraram na casa de jantar. Era outro mundo: aqui evocava-se, pelo contrário, a longa permanência do general em guarnições da província. A mobília escura, sólida, encerada, já devia ser dos seus tempos de subalterno. De um dos lados, um grande arcaz encostado à parede; do outro, o fogão de pedra e de tijolo, com duas achas a crepitarem, por entre montões de cinza incandescente.

-Perfeito! Nem tu calculas!...Era isto mesmo que eu desejava... -E aproximou-se da lareira. Só então descortinou, no cadeirão da esquerda, o vulto sumido, todo de roxo e negro, com uma capinha de malha pelas costas. -Oh! Senhora Dona Rita... -murmurou, beijando-lhe a mão.

-Há tanto tempo! Há tanto tempo! -exclamou ela, brandamente, na sua voz cautelosa, de surda.

-É verdade, Senhora Dona Rita... -E começou, quase aos berros, a perguntar-lhe pelo estado de saúde, se gostara de nessa tarde ter ido a Óbidos, se havia muito tempo que não ia a Lisboa... Mas a velha senhora limitava-se a menear a cabeça, ora num sentido ora noutro, sem apreensível relação, geralmente, com as perguntas que ele ia fazendo.

-Pronto! -decidiu Rita. -Já cumpriste o teu dever. Ela não entendeu patavina do que disseste (agora já não ouve nada de nada), mas ficou-te grata até ao fim da vida. Nos próximos seis meses, em todas as cartas, há-de perguntar-me por ti. E de acrescentar, invariavelmente, que és uma pessoa muito educada.

-Óptimo! Quem me dera viver assim na recordação de toda a gente!

Sentaram-se em dois cadeirões, do outro lado do fogão.

-Desculpa, meu querido, mas parece-me que não tenho nada para te dar de beber. Quando muito, talvez se arranje vinho do Porto...

-Não, não, de maneira nenhuma! Já bebi de mais durante a tarde.

-Bem me parecia...

-Porquê?

-Ora! todo aquele saudosismo, a época do tango, a raiva aos novos... Mas já mandei fazer chá. Não, não foi por tua causa. A mãe gosta sempre de tomar chá depois do jantar.

-Tem graça! É justamente o que me apetece.

No fogão, uma das achas resvalou, com um ruído seco, espalhando cinza em derredor. Rita levantou-se, pegou no ferro e tratou de a repor no seu lugar. Por um instante, flamejaram-lhe os cabelos, cintilaram-lhe as mãos, incendiou-se-lhe o perfil, debruçado no fogo...

-Oh! Rita... -E o próprio nome parecia crepitar amargamente. Pensar que andámos sempre desencontrados!...

Ela soergueu-se, endireitou-se vagarosamente:

-Deixa lá... Isso pertence à história antiga. -Depois, voltando a sentar-se, pousou-lhe ao de leve a mão no braço: -Lembras-te do nosso compromisso, há quinze anos...? Lembras-te? Anda... Fala-me de ti. De ti... e da Paula. Era Paula que se chamava, não era? -E, sem esperar confirmação, mudando logo de tom: -Se não te importas, podes até começar por me dizer... o que tem a ver com tudo isso o sobrinho da Elsa.

-Mas...

-Escusas de negar. Já te conheço muito bem. Só não cheguei a perceber que espécie de relação...

-Relação...? Toda e nenhuma, ao fim de contas... Foi de facto por intermédio do Vasco que eu conheci a Paula. -Em seguida, baixando a voz: -E foi no carro dele que ela morreu.

Entrou a criadita com o tabuleiro do chá. Lá conseguiu por fim depô-lo na mesinha baixa, diante da lareira, depois de ter esboçado, uma vez mais, a sua dança de borboleta atarantada. Rita, com um gesto, mandou-a embora. E voltando-se para Adriano, enquanto começava a servir o chá, perguntou:

-Mas havia qualquer coisa entre eles?

-Não, que ideia! De maneira nenhuma! Já me basta que ele tenha desempenhado, em tudo isto, um papel tão estúpido como o Destino. Por muito estranho que te pareça, tenho a certeza de que não houve nada, nunca! Eram amigos, tinham sido colegas na Faculdade... E ela aparecia de vez em quando lá no escritório: iam muitas vezes jantar juntos, depois dançar... Mas não havia nada, tenho a certeza!

-Acredito! Acredito perfeitamente. E já estou a adivinhar o resto.

-Poderás quando muito adivinhar o que se passou. E apoiou a nuca no espaldar da cadeira. -Mas o mais importante foi o que não chegou a acontecer. Ela era talvez a única pessoa capaz de me salvar; isto é: de não me deixar envelhecer muito depressa... E eu era, com certeza (noutro sentido, é claro), a única pessoa capaz de a ter salvo.

-Isso, meu querido, são coisas que nunca se sabem...

-Pois não. Até posso pensar que ela estaria condenada a morrer cedo, já antes de me conhecer. De qualquer modo, o Destino deu-lhe uma chance. E a mim também. Baixando a cabeça, acrescentou, com um leve sorriso: O Destino... Como havia eu de o ter reconhecido, sob o aspecto idiota de um playboy?

-Não me repugna acreditar -começou Rita -que o Destino seja, de facto, um playboy. -Depois, tocando-lhe no braço: -Queres que te sirva de açúcar?

-Não, obrigado. Eu sirvo-me. Vês como estou calmo? É tão bom desculparmo-nos com o Destino, fazermos entrar a Transcendência nos nossos problemas de trazer por casa...

-Ou por fora de casa...

Mas Adriano prosseguiu, sem a ouvir:

-Eu podia lá resistir à tentação de me ver a lidar com o Destino, tu cá, tu lá, ainda que para isso me fosse necessário emprestar-lhe as feições de um sujeito perfeitamente inepto!... Uma semana depois da última conversa que tivemos (e que foi praticamente uma ruptura), o Destino (sempre o Destino!) encarregou-se de a destruir de encontro a uma árvore...

-Era o sobrinho da Elsa quem ia a guiar?

-Era. Iam passar o réveillon a Sintra, a casa de uns amigos.

-E a ele? Não lhe aconteceu nada?

-Absolutamente nada.

-Agora compreendo: é motivo de sobra para lhe teres rancor.

-Rancor? Sei lá se lhe tenho rancor... Então ele não era o Destino? O Destino que ma trouxe e a quem eu depois a entreguei...? Repara: posso ainda arranjar outra explicação: a de que o Vasco foi apenas o instrumento, o cego instrumento, de uma espécie de vingança, inconsciente, claro…da família da minha mulher.

-Disparate, meu querido...

-É outro modo, repara, de dar a tudo isto um sentido transcendente... -Levantou-se, rodeou as duas cadeiras e pousou a chávena sobre o tabuleiro.

-A Elsa sabia do caso? -perguntou Rita. -Não. Só veio a saber uns meses depois. E porque eu lho contei. Porque não fui capaz de o ocultar. Custa muito esconder uma pessoa morta... quando por fim descobrimos que essa pessoa era o nosso futuro. Era? Ou seria? Já não me entendo com os tempos dos verbos.

-O futuro... O presente... O passado... -murmurou Rita. -A Paula... A Elsa... Estou a concluir que sou eu o teu passado.

-Vês? Acabamos por nos distrair com estes jogos. São passatempos... -E encontrou, nesse instante, os olhos de Dona Rita, que brandamente lhe sorria. Sorriu também.

-De que julgará a tua mãe que nós estamos a falar?

-Do Menino Jesus, provavelmente.

Adriano continuava de pé, e, em vez de voltar a sentar-se, apoiou os braços no espaldar da cadeira de Rita. Assim, via-lhe apenas os cabelos, mais adiante o fogo...

-Aí está: para nós, o difícil é ver as coisas com inocência, com toda a simplicidade que elas tiveram. Faz hoje um ano que me encontrei com a Paula pela última vez. E eu estava longe de supor que seria a última vez. Encontrámo-nos, ao fim da tarde, antes do jantar, no bar de um hotel... Eu já não ia muito bem disposto: tinha tido um dia horrível, sobrecarregado de trabalho... E depois, sabes, o ambiente de Lisboa, na véspera de Natal, é sempre uma coisa que me complica com os nervos...

-Também a mim.

-Mas não quis, apesar de tudo, deixar de aparecer. Tinha-lhe comprado uma lembrança...

-E ela outra, para ti... É o costume.

-Exacto. Um par de luvas... foi o que ela me deu.

-Estou a ver a cena: principiaram por oferecer um ao outro as prendas de Natal... E, depois, sem saberem porquê, começaram a discutir.

-Não foi bem assim. Eu não cheguei a dizer nada.

Mas a Paula, que geralmente falava pouco, lançou-se, de repente, numa tremenda diatribe, num cerrado requisitório. Não era propriamente contra mim... Antes fosse! Nesse caso talvez eu tivesse reagido. Era mais contra o absurdo, dizia ela, o absurdo da nossa situação. Que não se sentia disposta a partilhar-me com mais ninguém. Que eu precisava de escolher. Etecétera, etecétera... Ora o caso durava há perto de seis meses: nunca se tinha posto sequer o problema de alterar o que estava estabelecido. E ela descobria, de um momento para o outro que afinal de contas andava tudo errado!

-Sei muito bem o que isso é, meu querido...E Adriano teve a sensação de que ela teria fechado os olhos, pela maneira como as palavras lhe saíram. De olhos fechados continuaria, talvez, ao prosseguir: -É o grande defeito do Natal: essa vertigem que nos dá... Essa vertigem de sermos puros, de sermos inteiros...

-O pior de tudo é que eu sentia a mesma coisa confessou Adriano, afastando-se da cadeira e recuando quase até ao meio do aposento. Notou que a Dona Rita o seguiu com um olhar apreensivo. -E creio que nessa altura principiava mesmo a gostar dela. Que te parece? Não acreditas? Não consegues acreditar? -Rita não respondeu. -Mas calei-me: com medo de ser fraco, de ceder, de começar a transigir... Ela então levantou-se, à espera que eu dissesse alguma coisa... Mas eu não disse nada. (Bastava, se calhar, ter dito o nome dela.) E foi-se embora.

Terá ele próprio esboçado o gesto de ir-se-embora? Assim, pelo menos, o interpretou a Dona Rita. E toda ela se afligiu, a ponto de lhe cair dos ombros a capinha de malha: então não ficava até à meia-noite? Tinha mandado fazer filhós, umas rabanadas…E haviam broas, bolo-rei. Tudo na maior simplicidade. Mas fazia muito gosto em que ele ficasse. Que sim, que ficava! -tranquilizou-a Adriano, sorrindo, com larga exuberância de gestos afirmativos. E Rita comentou:

-Há muito tempo que eu não a ouvia falar tanto! Hoje enquanto fomos a Óbidos, deve ter dito ao todo três palavras.

Já passava da uma quando se despediu. Rita acompanhou-o, de novo, à sala de entrada, de onde desaparecera, entretanto, o calorífero de petróleo.

-O sobretudo? Onde deixaste o sobretudo?

-Está aqui.

E só então Adriano reparou como fulgia, a um canto, em cima de uma arca, uma grande braçada de aloés. Agressivos, rútilos... todavia começavam a secar. Mas não inspiravam piedade nem ternura: quanto mais secos, mais sobre si próprios se curvavam. Em contrapartida, confrangiam, noutra jarra, umas pobres pétalas modestas, arroxeadas, murchas de frio e de penumbra.

-Como diabo se chamam estas flores? -perguntou Adriano.

-Despedidas-de-verão.

-De Verão? Ainda?

-Duram mais tempo do que a gente julga. -E ajudando-o a vestir o sobretudo: -Agasalha-te bem. Daqui até ao hotel ainda vais apanhar bastante frio.

Ouvia-se outra vez, enrolado e confuso, o ruído das ondas.

-Tem graça! -exclamou Adriano. -Enquanto estivemos lá dentro, deixei por completo de ouvir o mar. Foi a primeira vez... desde ontem à noite, desde que cheguei.

Rita não disse nada. Mas ele, ao voltar-se, descobriu-lhe um véu nos olhos claros, uma sombra crispada na boca entreaberta... Em silêncio, aproximou os lábios.

-Aqui, meu querido... -murmurou, apontando e oferecendo-lhe a face. A seguir, beijou-o ela, também no rosto. -Até amanhã?

-Até amanhã.

-Está combinado, hem? Temos ainda muito que conversar. Temos de pôr muita coisa em dia...

-Claro que sim.

E é Adriano quem abre a porta. São ambos envolvidos pelo frio, pela névoa, pela súbita amplificação do barulho das ondas.

-Vai para dentro -recomenda ele, já no patamar.

Mas Rita permanece, entre portas, encostada à ombreira. E Adriano resmoneia, de cabeça baixa, enquanto começa a calçar as luvas:

-São estas, se não me engano...

-São essas, são...

-O quê? -pergunta ele, erguendo os olhos, espantado de ela o ter entendido.

-São essas as luvas que a Paula te ofereceu. Vê-se bem pelo modo como lhes pegaste...

Ficou por um instante iluminada. Foi a passagem do facho das Berlengas -que logo adiante acende um muro de pedra, a esquina do hotel, rochas, dunas... até mais uma vez se desfazer no mar.

-Oh! Rita... -E o nome vem suspenso na crista de uma onda.

Ela estende dois dedos, a aflorar-lhe o rosto. Ou a selar-lhe os lábios?

-Gostavas muito dela. Gostas ainda muito dela.

-Oh! Rita... Era isto mesmo que eu precisava de te ouvir.

-E fez-te bem, sabes? -prossegue, em surdina. -Estás outra vez igual a ti... ao que tu eras... há vinte anos. -Depois, como se apenas falasse para si própria: -Viúvo?...Tens muito mais o aspecto de um órfão.

Surge, outra vez, rompendo a névoa, o braço aéreo do farol. Rita, entretanto, fechou a porta. Mas tão devagar que nem se ouviu.

1962