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Primeiro Corso (1946)
Vitorino Nemésio
A publicação de Primeiro Corso, extraído do livro Corsário das Ilhas, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros de Vitorino Nemésio.
© 1996, Herdeiros de Vitorino Nemésio e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-51-0
Lisboa, Outubro de 1996
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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PRIMEIRO CORSO
I. «Isolamento»: Solidão de Ilha
Tovim, 24 de Julho de 1946
Uma cabrinha de barro (escreve Mateus Queimado), um paliteiro de Barcelos que o acaso me pôs, de pesa-papéis, na pilha de papel extra-strong ao lado da máquina de escrever, parece dizer-me do alto da sua pêra preta e do assobio de barro:
-Então, vais-nos deixar? Que vais tu lá fazer?
«Lá» -são as ilhas. “Cá” -é o país da cabra de Barcelos: «o Continente», como diz todo o ilhéu, fazendo ressoar neste nome aquilo que ignora e que não é capaz de tirar aos seus horizontes movediços, cheios de nuvens estáticas, de velas excessivas, de algum antigo cavername cinzento de destroyer passando, e do jogo diário do Sol que nasce para morrer.
Claro que o boneco de barro não me diz nada disto. É um estúpido e ameno bibelot que aqui tenho. Eu é que atiro para cima das coisas circundantes a cobardia de partir para as Ilhas em viagem sentimental. e faço falar as pedras e as cabras de barro no estilo do velho do Restelo.
Fecho os olhos e, nas teclas da máquina, encalorado, antecipo-me. O próprio dactilografar, um tudo-nada excitado pela minha primeira inspiração de longo curso, imita a pulsação do paquete largando. Mais um dia, umas horas e ficará para trás o Restelo da prudência com a sua bela torre branca e a curva do rio das Aventuras (como se diz: «rio das Amazonas»). Talvez de aqui partisse o primeiro Queimado para as Ilhas... Talvez eu esteja repetindo, desmemoriado por duas séries de dez anos de ausência, a experiência virginal de meu tetravô Queimado: colono, deportado ou emigrante de meio caminho.
Mas não. Nem esse meu longínquo e hipotético progenitor se chamaria Queimado, nem o meu despaisamento das ilhas dos Açores é tamanho que eu não saiba de antemão tudo o que lá vou ver. Fecho os olhos de novo e toco nas coisas todas. Uma por uma levantam-se as ilhas no arco do horizonte como navios à capa, disfarçados uns dos outros pela cortina de mormaço.
Aqui, Santa Maria, na sua solidão compacta, hoje quebrada pela colossal plataforma de um aeródromo. Nas ilhas de Baixo conhecíamo-la apenas pelos seus potes de barro, pelos grandes e bojudos «talhões» onde o Inverno ilhéu vertia, nas escorra lhas dos beirais, as reservas de água de Verão. Dali se importava, em barcos de boca aberta, o magma de barro que ia reforçar em qualidade a olaria rudimentar dos outros portos islenhos, sobretudo os «telhais» que fabricavam o tijolo de forno e a telha-vã.
Ali, São Miguel, com as suas lombas pardas e as suas povoações castiças, os seus latifúndios e os seus parques. Diziam os madrugadores que São Miguel se avista da ilha Terceira em dias límpidos. Um negro a avistou das alturas de Santa Maria (se Frutuoso não mente), lá pelas brumas da memória e do descobrimento... O nome dele, porém, não figura entre os Velhos, os Zarcos, os Teixeiras. Preto não ter cabidela entre heróis... Mas seria o seu olho fino que tirou São Miguel da negaça das nuvens? A sua dentuça branca a primeira que se arreganhou de surpresa e alegria ao ver terra? Pobre preto sem nome!
Raul Brandão escreve, n'As Ilhas Desconhecidas: «Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente: o Corvo as Flores, Faial o Pico, o Pico São Jorge, São Jorge a Terceira e a Graciosa…» Esta verdade de panorama começou por ser simplesmente uma verdade de «achamento». As ilhas descobriram-se, por assim dizer, umas às outras, pouco faltando para que ficassem conhecidas por um seco e simples número, como uma flotilha de contratorpedeiros estacados no mar.
Assim, é com uma espécie de orgulho de marujo perdido numa rua de bares que respondo à curiosidade geográfica de alguém: «Sou da Terceira... Como quem diz: «Home Fleet, terceira linha..... Ou: «Terceiro couraçado da Armada do Atlântico... E posso precisar: latitude norte 38° 38' 33“; longitude oeste (Greenwich) 27° 12' 48”.
Tudo, para o ilhéu, se resume em longitude e apartamento. A solidão é o âmago do que está separado e distante. Quando eu era garoto via apenas, da vila de lavradores e de pescadores onde nasci, o minúsculo e alcantilado ilhéu do Norte; e, ainda assim, precisava subir à serra do Facho e deitar homens e casas para trás das costas. Resvés do Zimbral -uma rocha medonha –, aquele penedo emerso era a primeira amostra de terra fora do nosso pé. Mas era tão perto aquele país da craca, que uma bateira do Joaneta, a remos de tolete, o alcançava em coisa de uma hora de bordejo e de contorno da Má Merenda.
Tudo é relativo neste mundo absurdo e absoluto... já houve, é claro, a circum-navegação de Magalhães, o périplo de África e as tentativas do pólo. Dos próprios Açores (e a partir da Terceira) se tentaram, em barcos frágeis e em tempo de rotas duras, a Terra do Bacalhau e a Terra do Labrador. Os do Pico iam aos «Mares Japanis», e ao Arioche (Arctic Ocean) como quem bebe um copo de água. O certo é que ir ao ilhéu do Norte, do varadoiro da Praia, não era para qualquer. Como dizia o Macetinha: eram «três tantos» do Poção -o pacato pesqueiro do chicharro e da cavala miúda, fronteiro ao casario da vila e ao estendedoiro das redes. De pé à popa, com o facão do engodo nas unhas, os mestres de barco ouviam do Poção as trindades da noite, desbarretavam-se e acendiam o lampiãozinho de proa, fanal de uma braça de água...
Para se ir ao ilhéu do Norte dobrava-se a ponta da Má Merenda, entrava-se na sombra azul-ferrete da rocha do Zimbral, que, de escura, parecia o tinteiro revirado de um polvo monstruoso. E só então, entre as escarpas da ilha e as ravinas do ilhéu, começava a peripécia da apanha da craca a picão -a craca de três válvulas, forte como um castelo e suave, ao chupar, como mamilo de sereia...
Depois, estendendo para sul e para oeste, com as promoções do liceu, as minhas andadas de ilhéu, subi uns furos na experiência e no gosto da solidão. Até mais de meio caminho de Angra ainda se não viam ilhas. Mas os ilhéus das Cabras eram já outra coisa, quebr ados pelo meio como um pão mal tendido, suficientemente afastados da terra para que pudessem passar por um país estranho... -em todo o caso, outra plataforma talvez só própria para bichos (os do seu nome), embora uma lenda rezasse que ali tinha estado de castigo um amante infeliz ou um traidor.
Os ilhéus das Cabras não tinham cabra alguma, mas uma cisterna salobra e meia dúzia de carneiros. Eu, que tinha a mania da geografia fantástica, chamava-lhes a Terra do Perrexil -a plantazinha rasteira, de folha carnuda como a da beldroega, que se curtia num frasco e nos servia de pickles. Mas a grande lição dos Ilhéus não era nem o perrexil, nem o carneiro: era a prova provada do nosso emparedamento num vasto calhau atlântico: por assim dizer, a estátua da nossa solidão arrancada das nossas entranhas e ali posta, junto ao Porto Judeu, como o símbolo de um destino e o padrão de uma vida interior.
Do espectáculo dos ilhéus das Cabras, a que uns cachopos mais longínquos davam projecção e tristeza, passávamos à visão diuturna das primeiras ilhas de Baixo. Angra, como velha «cabeça e corte das mais ilhas», no dizer de Frutuoso, tinha São Jorge e o Pico ao alcance dos torreões do seu castelo hispânico, ele próprio torreado num istmo, como que no flanco de outra ilha -o tríplice e taciturno Monte Brasil dos facheiros. Do Torreão dos Mosquitos via-se, para lá das quintas ribeirinhas do Caminho de Baixo, a grande barra verde, roxa, gris, azulada da ilha de São Jorge, tão sensível às manobras do sol como um toiro puro à capa do matador. Por detrás, como uma cabeça à espreita, surgia a agulha irreal e esbranquiçada do Pico.
Em dias luminosos e nítidos (garantiam alguns) via-se roupa a corar... Com mais forte razão se avistaria uma casa ou outra, se as houvesse na falésia áspera e feia, como que cortada a cutelo, que é o lado de São Jorge visível da banda de cá. Mas já estes «diz-se» e «consta» da visibilidade entre as ilhas eram uma senha misteriosa. Aprendíamos pelos olhos a existência de mais mundo, mas mal queríamos crer... tão pequeno era o espaço em que nos movíamos da vida à morte e tamanho e tão salgado o mar que nos rodeava e enchia.
Uns quilómetros mais para oeste, no sentido das rochas inabordáveis da ilha, e divisava-se outro calhau longínquo: a Graciosa. Esse ficava espaldado pela hóstia do Sol ao morrer -um Sol encarnado e redondo, cujo cobiçado e raro raio verde parecia tirado às tintas dos pinhais da Serreta e das algas do mar do Peneireiro.
Ilhéu do Norte (o sugestivo Espartel das cartas de marear)... ilhéus das Cabras ... São Jorge ... o Pico a meio busto e coroado de nuvens perpétuas... enfim, o pão preto da Graciosa no extremo oeste ... -e estava fechado o aro do nosso confinamento atlântico, a que aquelas amostras de rocha esmaltadas de pasto e de cores búcias davam uma promessa de convívio.
Oh, solidão das ilhas! ... Conquista da terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e recuo a tempo no muito que se deseja ... Portos fechados, ilhas à vista ... Entre nós e o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra ... Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo... Extensão... Extensão... (E, por mais que embirremos com reticências, que são espasmos tipográficos, a coisa é assim mesmo. . . Tem de exprimir-se nesta dose exacta de exaltação e de pouca sintaxe ... ) Ilhas pontuadas naque la brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida -o mar do nosso segredo... a volubilidade do nosso ardor que nada estanca... esta inconsistência de projectos humanos (mas desumano é o lógico, o ético, o inflexível!). Além disso, o vapor da carreira ... o boletim meteorológico (grau de humidade à saturação cem ... ), e o acostamento de Santos com a bandeira de saída... Oiço os rebocadores.
Mas, por ora, as cigarras da Beira ainda cantam na calma. Uma borboleta amarela acidenta a paisagem de olivais que me circunda. Hesito diante do calor e da luz peninsular a que me afiz. Vou? Não vou? Pelo sim, pelo não, vou colando os rótulos nas malas e dizendo com não sei que autor bem-falante e avisado: «É sempre tempo de recolher a vela a uma desilusão ... »
II. «Agarra: é Ilhéu!»
15 de Setembro de 1948
As Ilhas, para mim, são aquela fita de estrada entre Angra e a Praia, na Terceira, onde logo aos dez anos, como tecedeira que mete uma lançadeira nova ao tear, a vida me ensinou uma saudade e o apartamento. Porque até se pode estar desterrado a vinte quilómetros de casa sem se sair de um palmo quadrado de ilha -que (dizia-mo a Corografía) é «uma porção de terra rodeada de mar por todos os lados».
É certo que, seguindo esse já melancólico itinerário dos meus dez anos, quase sempre feito sob um borralho de nuvens e com as orelhas do macho húmidas do relento açoriano, eu me dava conta de que: terra, se a tinha, não podia acabar muito longe. Seguíamos uma espécie de plataforma saibrenta a um ou dois quilómetros do mar. Trepada a Presa do Ferrão, à Fonte Bastarda, percorríamos a linha alta da vertente sul da ilha onde assentam as principais povoações. Dir-se-ia que o homem se fora cansando do mar, procurando silêncio e assento no interior. Daí também, em montes à alentejana, vigiava melhor as culturas.
À nossa esquerda ficava uma linha de povoados mais pobres, mas mais antigos: o Porto Martim, com o 'Seu Canto da Câmara, onde parece se juntara a primeira vereança municipal daquele penhasco de Cristo; a Ribeira Seca de Baixo e a de Cima, onde os Anais da ilha davam como nascido o primeiro filho dela; e, enfim, com licença de alguns caprichos e voltas daquilo que por lá se chama a rocha do mar -o Porto Judeu de Baixo (que pelo nome não perca!) e cuja atlântica judiaria um ninho de casas alvas e de portas escancaradas imediatamente desmentia.
Essa primeira linha de fogos da ilha Terceira parecia-me a raiz daquilo, daquela espécie de inchume emborralhado que em a terra dos nossos, misteriosa e velha quanto o quisessem os geólogos, mas nova para o bicho homem, que se implantou tarde e a más horas ali. Terra remoçada, de história recente: terra que as próprias entranhas, sob a forma de sismos e erupções, se davam ao luxo de revolver e remodelar, ao menos de século em século. Ali nascíamos, ali vivíamos -ali estávamos. E «estar» é muito mais verbo para ilhéu do que «viver».
Sempre que, já crescidos, nos chegávamos a um cabeço, como o do Pico do Capitão ou o da Fonte das Amoreiras, e descobríamos, não o aro da ilha, que esse só se mostra da serra de Santa Bárbara, mas um lado inteiro dela, um flanco, sentíamos o que há de vulnerável e frágil em ser-se ilha, e, com muito mais forte razão, em ser-se ilhéu. Os continentais, sempre um pouco malignos connosco , bem davam a imagem do nosso estreitamento neste mundo, dizendo: «Vocês, quando acordam, não estendem as pernas, com medo de que o mar vos molhe as pontas dos pés…»
Ora, se isto não é fisicamente verdade -nem no Corvo, onde o Chactas de Chateaubriand se pôde espreguiçar à vontade -, tem todavia uma certa razão interior: traduz caricatural mente a nossa sensação insular de solidão e de limite. Nós não temos medo de que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o mundo é curto, e o tempo mais curto ainda.
Mas contra o que se poderia tirar da área apertada que nos coube no berço, quanto à nossa equação com o mundo e à nossa maneira de respirar a verdade é que ninguém mais do que o ilhéu, a não ser talvez o homem da planície, possui o instinto da amplidão. É com os próprios olhos que tiramos do mar a terra que nos faltou. Ilhéus do que, de São Miguel para oeste, chamamos as ilhas de Baixo, o dispositivo em que se encontram as ilhas do grupo central favorece essa impressão de mobilidade, de terras sonhadas, que as ilhas dão umas às outras. O clima, húmido e baço, torna-se cúmplice da ilusão.
Os naturais da costa sudoeste da Terceira, os da Graciosa, os das duas vertentes da serra única e longitudinal de São Jorge, o Picaroto do Norte e o de Oeste, o Faialense, acostumam-se de meninos ao palpite e à sondagem do horizonte: são naturalmente vigias ou velas. A atitude radical do ilhéu é chegar à porta de casa e interrogar o mar. A relativa frequência do nome «fanal», na toponímia açoriana não só atesta a necessidade de sinalização nocturna, como a rede de atalaias que se forma naturalmente em torno de cada ilha e que, de umas às outras, se tece de postos fixos ou acidentais de espera e de observação. O nome de Vila das Velas, que coube à cabeça de povoamento de São Jorge, põe na ilha alpestre essa espécie de divisa do destino islenho -que é vigiar, velar.
Ora ... Sempre que penso nos mistérios do isolamento lembra-me a história do Esteves do Correio e dos cagarros da ponta da Má Merenda ...
Esteves era transmontano. Esteves era chefe de estação telégrafo-postal de terceira classe. Mas Esteves também era carrancudo e repontão. De modo que considero (um pouco gratuitamente) a chegada de Esteves às ilhas de Baixo, na qualidade de funcionário das comunicações normais e aceleradas, como o resultado de uma indisposição pública entre ele e a sua forçada clientela postal de Trás-os-Montes.
A suficiência, o despotismo, a tirania telégrafo-postal do Esteves do Correio é uma das admirações mais profundas da minha infância e da minha adolescência de ilhéu. Oh!, manhãs inteiras passadas à espera de um selo, à grade do expediente, fitando os carimbos pousados na almofada ressequida como a fisionomia do Esteves, enquanto ele, na sala fronteira da estação, gritando um «espere!» de domador de feras ao meu atrevimento de bater com uma moeda no balcão, se ocupava de não sei que misteriosas escritas ou conferências de verbas.
Do outro lado da grade e para lá dos carimbos pousados, as rodinhas denteadas do aparelho Hughes, estremecendo àquela excitação linear que vinha de Angra, esperavam também. Bem se importava Esteves com o telégrafo el&e