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Viagem para Delos e Myconos “Um Adeus aos Deuses”

by Ruben A.

Viagem para Delos e Myconos “Um Adeus aos Deuses”

Ruben A.

A publicação de Viagem para Delos e Myconos, extraída do livro Um Adeus aos Deuses, foi gentilmente autorizada por Nicolau Andresen Leitão.

© 1997, Nicolau Andresen Leitão e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-93-6

Lisboa, Junho de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

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VIAGEM PAEA DELOS

E MYCONOS

Capitão desta vida que é uma incoerência navego à proa de Ulisses -sulcando azul vejo a espuma dilatar naus vincadas no rastro pelas travessias heróicas do mar Egeu -deito pandas as velas dos meus maiores e da gávea altiva saúdo este povo de navegadores vagabundos -pequeno marulhar espalha ao delírio o viajar incógnito da minha descoberta. Um ser poderoso e imortal ouve as vozes marinhas a trocarem calmaria infinita ao longo de uma profundidade ainda mais azul. Da Grécia me apodero no seu maior campo de glória, recordando, à raiz suspensa do meu mastro, as falas contínuas do espaço silencioso que vai do azul mediterrânico ao celestial de Zeus.

Estendido a bombordo, como quem perscruta a brisa do meio-dia, encho-me de ramelas de ar que colocam nos pulmões da ânsia a dor ferida das águas. Perco-me de ilhas peladas pela brutalidade de um sol aferido pelo gume do fogo, seus nomes não recordo para respeitar intacta a riqueza da sua solidão.

Vejo meus promontórios em outras costas, dobrados cabos agrestes e abrindo mundos de imensidões virgens à avidez dos astrolábios. Tributo pesado de dois irmãos que buscam no mar o elemento natural da sua história e o contar de toda a tragédia -raças tão díspares que encontraram semelhanças no arriscado das tempestades. Ergo as pesadas gaivotas da certeza dada pela sua distância equitativa e, miúdas no aproximar da vista, estampam-se grandiosas no fundo da paisagem, companheiras silenciosas da imensa solidão que me abarca. Odes marítimas, Odisseias, Poemas Ibéricos, lendas de viagens numa busca ilimitada de perfeições em sonhos imperfeitos todo o bombordo vê terra da Ática estirada ainda nos recortes limados pelo lamber goloso das marés, para de repente a vigia de quarto tributar às colunas dóricas do cabo Súnion a lembrança dos padrões espalhados cautelosamente pela esperança de aos poucos ir além mar.

A estibordo estende-se o mar sem fim, o mar tormentoso de Ulisses, a recordação infinita do abismo desejado -caminha em mim a paisagem imaculada de uma fé humana, cheia de destinos míticos, forte do indomável arrojo na aventura. Rumo sempre no encantamento dos templos que miragens de verdade erguem em fantasias ao reflexo da tona prateada. Recorto no horizonte silhuetas de semideuses e semibichos, vozes andantes de ninfas, cavalos-marinhos de sentir anfíbio, medusas mestras sem cortiço, Acrópoles onde velhos do Restelo eram oráculos a falar, avisos à navegação desmedida, versos escritos na memória perpétua de olhos mergulhados no mar. Ah! Todo este ilimitado de saudades definindo ao decrescente do sol o meu sincero verídico de viver. Barlaventos e sotaventos ouvindo de Posídon o contar das histórias trágico-marítimas que séculos de outrora e de antes repetiram em façanhas dignas de contar -ilhas de amor protegidas de Afrodite, pitonisas vestidas de nereidas, Nereus irmanados à invocação épica da bonança, de ventos alísios. Mananciais de azul que correm parados, como de repente o pensamento, segredos tornados indómitos às nesgas dos mostrengos que habitam vizinho às cidades dos peixes. Deita-se a alma horizontal na corografia ondeada de espaços assimétricos, passeia no seu descanso ambíguo, e atenta, escuta os contrapontos de guelras muito bem limpas.

Cargueiro do tempo troquei a vela nívea pelo fumo arrebatado de negro, como deixando a Éolo o luto involuntário de um progresso marchetado à minha indiferença. Transporto as mesmas especiarias da ilusão, ouvindo o troar dos sentimentos nas suas cavernas efémeras de tempestade. Respeito a sua forte nortada que me finca mais na ancoragem do meu ser e veste de aprumo o cipreste de floresta que cresce depois de ter dado a coluna limpa do mastro que me norteia. Senhor sem fronteiras, movido pela combustão inata de querer libertar-me civicamente, é nos deuses antigos que encontro a fiel companhia à desmedida ambição do cósmico que me alimenta.

Cidades do destino, ilhas desertas de árvores e bichos, povoadas de deuses, feras mal domesticadas à flor da água -que se revoltam quando os tempos teimam em furtar-lhes a sua posição feudal de rebanho tresmalhado pela ausência de pastor. Ilhas cujo dicionário a fauna limitou à cabra e ao burro, ao branco da cal e ao azul do mar, ao castanho-hipopótamo e ao escarpado cavernoso. Cabeças erguidas de corpos presos à criação do mundo sentem apenas as hecatombes das suas dores internas, ficando testemunhas sem se importarem dos que escarafuncham as gretas por onde passam os piolhos, as formigas e as cigarras que cada um encrosta à sua maneira.

Navegador solitário, sem condecorações ganhas em repartições públicas, sinto-me almirante do frágil escale r que vai à bolina na calmaria imaculada de um dia em que o mar resolveu fechar para descanso. Aporto à ilha de Siros para o meu abastecimento e na panorâmica do porto o pulsar recuado das amarras faz-me atracagem bordejada a juzante. Todos no cais miram a chegada deste tributário dos mares e eu olho o cimo que em cone se espiritualiza gatejando na montanha. Meto vitualhas, água doce, bolacha seca -estico as pernas ao longo da capital do reino de Eumeu, o célebre porqueiro de Ulisses. Passeio sem me verem -risco no horizonte a rota famosa de Tróia e compro doces especializados na Grécia pela fama de Siros. São hóstias para deuses, de tamanho semitonal, brancas como as casas amarelas, amarelas como as mesquitas e doces como só os doces o são na Grécia. Não enjoo em terra, estava com medo que ao pisar Siros a minha alma vacilasse de encontro às cadeiras e mesas que em cada porto esperam o visitante ao espectáculo da chegada. Cadeiras e mesas sempre vazias, numa hospitalidade servida na bandeja natural de um tipo de anfitrião, bem casual, e de que o grego é dono absoluto.

De Siros navego rumo a Tinos, santuário de Nossa Senhora dos Gregos, que à luz das pequenas lâmpadas parece uma cascata alegrando santos populares de Junho. O mar torna-se imenso de nocturno, cheio de recônditos, albergue de histórias em bibliotecas submersas nas cidades dos homens -os meus olhos miram Tinos como lendo uma constelação distraída sobre a Terra e da gávea alta o piloto ruma à barra saudando a Senhora de tanta crença. Quero chegar. É uma fome ilimitada de apetite. Chegar a um destino em vão, destino de dias que recordará anos sem tempo no perdido da sensibilidade. Quero chegar para sofrer, masoquismo terrível de quem sente pulsações ritmadas de acabar. Fala-me uma voz precoce, imberbe, ingénua, uma voz de mim que foi outrora, voz de busca que caminha de derradeiro sofrimento em contínuo acidente de dor. Quero ancorar em Myconos para à luz da noite ver o branco de casas arrumadas como prateleiras em desalinho. É agora que tudo me recorda Ulisses -a gente boa que fala um grego que se entende já nos olhos, o porqueiro que veio ver a família, os animais e os frutos que no convés manifestam uma existência precária.

A noite queima-se de essências, arde de imaginação e o navegador solitário fala comum a uma lua bizantina em quarto crescente. Meu destino errado tenta evitar os leixões da entrada e recortar o resto da meia lua que Myconos alumiado me oferece à abordagem. Sensação de tranquilidade recorda um vácuo passeado na memória e sem exagero ou fantasia fixo-me indestrutível ao meu júbilo renunciado de tristeza. Abro ao meu arremesso um amor indulgente de certo dia, e conto convalescente a tradução do seu texto integral. Ouço os cabos prenderem-me ao cais e transponho o fosso de um novo acaso na minha vida.

Quero Delos - a ilha sagrada. É aí que os deuses me esperam no seu concílio ecuménico de religiosidade.

DELOS -De caíque levado pela vela do desejo entro à companhia de um velho lobo do mar - Luigio Guarouni - no seu domínio que me há-de levar à ilha sagrada -a ilha tão extraordinária que fez os atenienses proibirem que aí se nascesse ou morresse! Saio a barra de Myconos, vou à proa sulcando a forte nortada para no quebrar das águas ir ouvindo Posídon contar as aventuras dos que mais alegres o visitam. Vou no antiquar dos séculos, vou na distância de um azul que se apodera do caíque dando-lhe apenas a conversa de umas brancas espumas no vogar a nascente - é uma viagem feliz, parada de sentimentos, cheia da descoberta ávida que pressentia ao longo de ilhas incólumes à existência humana.

Delos está por detrás do horizonte, fica num ninho de ilhas que a defendem do profano, não se deixa abordar em tonelagens, só os caíques medidos em igual aos antigos triremes podem tocar-lhe em escala. Hoje não vou como peregrino nem como artista, o meu sentir é apenas o de ver, a existência de tantos milhões de seres que numa antiguidade perdida nos baralhos normais da encadernação cronológica quiseram ter uma ilha indefesa a definição religiosa de todo o mundo.

Em Delos há de imediato a existência viva de duas cidades separadas, divididas no absoluto que abisma os deuses dos homens. A Delos sagrada transita-se em três estilos -arcaico, clássico e helenístico, não me esquecendo de muitos vestígios micénicos deixados pela esquadra de Agamémnon no seu viajar para Tróia. Homero deve aqui ter estado, Ulisses aparece por toda a parte, tanto a tomar banho na cidade profana, como a ser conduzido pelos deuses aos templos dos Maiores, sobretudo de Apolo, Senhor Absoluto de toda a condução dos destinos do mundo grego. A história de Delos está contada, a sua topografia bem desenhada, os livros já espiolharam os fundos do lago sagrado, guardado para toda uma eternidade pelos leões de mármore que ficaram a defender, no rugir do silêncio, a mínima profanação feita à divindade. O mármore branco de Naxos em que os leões estão definidos, o seu tamanho branco assente da terra, o enfileirar de ferocidade, mete medo a quem não sabe praticar os sacrifícios votados ao culto de Zeus, pai divino de Apolo e Ártemis. São leões de uma nobreza tal que simbolizam o que de mais respeitoso existia na fauna arcaica. Estão ali como reis, evitando o aproximar de qualquer homem que ainda tente exprimir-se como animal -seu reino está fixado na terra, nos limites do respeito, para que ninguém se torne homo homini lupus. São os Leões de Delos um dos respeitos mais bem cumpridos ao desejo de Apolo.

Olhei-os do meu estático. Olhei na certeza de estar a tocar o mármore branco, purificado de consciência. Não sabia quem era mais importante, se o mármore em que eles se esculpiam se a figura que representavam. Uma luta de rugir cá por dentro, um falar preso na minha jaula a meia ração, um sol a pino na lombada dos que ainda não sabiam da sua fama de reis da selva, dialogava comigo. -Os meus leões até esta data eram todos de circo e de jardim zoológico -foi a primeira vez na vida que vi leões ao natural, perpetuados no genial escopro do artista, libertos das grades do enjaular ou dos calores da selva. Leões com a medida nobre de uma raça de cabeça picada em direcção às alturas, de corpo esguio pela elegância das formas. Leões amigos dos deuses, feitos mármore para na ilha deserta de Delos reinarem a seu lado, como guardas avançados.

A cidade sagrada de Delos fica numa planície de pequenos socalcos murada dos silêncios próprios das respostas dos deuses e cheia desta lição dada aos homens: é preciso primeiro sacrificar para depois poder comunicar, ao contrário da tendência dos tempos modernos, da vã promessa cumprida depois de beneficiado pelo destino. Mais uma lição dos Gregos, alheios no espírito à efémera promessa, indigna do homem que cumpre apenas por ter achado. O sacrifício dos Gregos é a tentativa nobre de entrar no âmbito dos deuses, de lhes dar pureza antes de lhes pedir convívio. A promessa para se cumprir no depois é a desculpa fácil dos fracos, o ultraje à divindade. Em Delos aprende-se a religiosidade que move o homem ao encontro do infinito que o Criador lhe deu para fim de imortalidade. Aprende-se a achar Deus nos intermédios difíceis dos templos que descendem e ascendem a Ele.

É a mais completa e profunda impressão que me aproxima de Deus -a cidade sagrada -e o sol inundando de inexplicável o mistério da Criação. Quantos vieram a Delos pagar o sacrifício de irem a Deus, neste oásis do cosmos que durou tantos séculos!? Parco tributo o meu, mas grande perante a contínua busca que aflige meus caminhos no dia-a-dia do amor que tento comunicar a verdades de há muito profanadas. Vou de templo em templo, de dor em dor, pisando os sacrifícios de tantos que mais piamente aqui se recolheram em holocausto das suas oferendas. Pobre lusíada coitado! Que pode mais fazer do que transformar-se em transeunte de pegadas ao lado das falas bem ouvidas de tantos imortais?

Sento-me na imensidão. Penso o que não penso. Avanço em mim sem provocar o mínimo murmúrio. Os círculos à minha volta tornam-se garantia de uma angústia, a doçura imóvel do ar respira-se cheia de incenso, subtileza sem raciocínio, arrepio à distância lastimada pelo vício, interminável disposição de súbito exalada de música. Poros permeáveis, desequilíbrio comovente de um adeus que perdura. Sem presságios ou leis, miro a sensação de infinito, de um interminável em todos os sentidos. Apodera-se agora, no já imediato, a visão estranha de que me transporto à terra da promissão. É a loucura de um sol nos confins do episódico.

Almoço no único templo gastronómico da ilha, visito o museu e vejo a mão perfeita de Deus Apolo, a mão mais bonita que ficou de toda aquela estátua monumental, de que o torso ainda recebe o sol num dos socalcos da cidade sagrada. Sinto a sensação espantosa de, na ilha, a esta hora da tarde só o guarda e eu a estarmos a cumprimentar. Ele entusiasma-se com o meu farejar, aprecia quem reconhece os deuses e passeia entre o limbo que divide a cidade sagrada da profana. Esta ergue aos mortais os seus ninhos pobres e os restos de palácios dos viajantes mais ricos, deslumbro-me a ver as casas cheias de mosaicos onde uma medusa fixa atentamente os olhos ressuscitando entre cavalos alados e um Dioniso poderoso. Ao lado enfileiram os bairros económicos desses tempos, até um hotel para 45 hóspedes existia mesmo ao pé de um teatro que albergava a comédia e a tragédia de sete mil peregrinos. Ruas estreitas, compridas passagens sempre em ângulo recto num domínio em que a curva ainda não era necessária. Mais palmilhava, mais sentia o peso vindo lá do alto onde os Egípcios construíram a sua cidade sagrada, para não longe os Sírios também irmanarem os desejos da protecção implorada em cidade murada a seu favor. Cada povo tinha o seu templo de veneração em Delos, capital das divindades, centro das Cíclades e do mundo que no Oriente vinha encontrar nos deuses ocidentais o alimento mais avançado às suas confissões íntimas.

Salto na História, percorro anos de alegria e sofrimento, passo agora ao helenístico rico dos senhores romanos que deixaram a Delos o luxo dos seus aposentos -mas o que é isto comparado com o torso de Apolo instalado como dono do cosmos e possuidor daquela mão que se gravou para sempre na minha memória? Volto ao torso de Apolo, é a mais perfeita ruína de Delos, a única que pede meças à tranquilidade dos leões instalados imortalmente no caminho sagrado. A cidade profana prolonga-se, é um de mais deixado em vida. Estou-me a vacilar, um medo terrível de que o guarda me mostre qualquer coisa parecida com o antigo bordel -apetece-me deixar Delos -ir ao meu caíque e fechar à chave o segredo não desvendado dos deuses. A Eles a ilha pertence e serão Eles que lá ficarão, para na memória dos homens recordarem os momentos em que o infinito é convite à participação divina.

A bordo, na baía minúscula olho para aquilo tudo como quem teve a grande certeza de passear-se um dia pela eternidade. Deito-me no convés, vejo o Sol a inclinar-se sobre Delos e os deuses a saírem dos templos para resolverem qual o destino de quem os veio visitar de tributo purificado pelo sacrifício burocrático de viver.

Vejo o capitão preocupado com a vela no caíque afastado de terra e olhando o Sol absorvido de azul. despeço-me dos deuses acenando à visão única de quem parte roído de saudades o momento exacto da miragem de homens a transformarem-se em deuses e crescerem ao infinito saídos da terra e dirigindo-se ao Sol para não mais serem perceptíveis. Parto arrombado de saudades -umas saudades de especiarias longínquas. umas saudades da ilha dos Amores dos deuses. De súbito os deuses tornam-se incandescentes -deixaram de estar fincados na terra para se identificarem com os elementos. São agora absorvidos pelo Deus-Sol, inflamados na ascensão que se perde precipitada numa esguia perpendicularidade. O Sol esfuma o humano de Apolo no divino de Zeus.

Prendo-me à liberdade erguendo no pensamento o pairar de uma vivência mística que me sulca cá por dentro -Delos vai-se afastando, os deuses tornam-se cativos da sua imortalidade, sou quem permaneço na minha ilha flutuante, nova Cíclade para venerar o sagrado daquele mausoléu de templos. Sucedo-me em imagens de terra cada vez mais pequenas e mais e mais intensas no seu estirar subido até ao Sol. Delos, quando isolada pelos humanos ao fim do seu dia estafado de ser mostrada a tantos ímpios, deve subir ao céu para o descanso eterno do merecimento. E o milagre de Delos é desaparecer, submergir-se dos homens, ir ao Olimpo tagarelar as ventanias dos encontros brutais de tanta e tanta bagatela religiosa. A ilha sagrada significa para mim a mais consumada resposta com que os Gregos quiseram aspirar à convivência dos deuses -depois do Oráculo de Delfos voz uníssona a sair das entranhas telúricas, a sensação de Delfos é completada pelo culto isolado de deuses habitando a parte que na terra lhes pertence.

Acabaram-se os fantasmas, as almas do outro mundo, as bruxas com mesas de pé de galo, as mezinhas, os curandeiros, os diabos à solta, as crendices da superstição, em mim agora a fala é directa, sem espectros. Enfrento as quatro estações moldando-as à alegria dos deuses e a minha confissão será aquela do homem que sente que Deus é Quem merece ser o único dono absoluto do Mundo.

Precisava desta barrela divina, os meus banhos místicos têm sofrido de um excesso de liturgia. Horroriza -me pensar que Deus tem sido afastado dos homens. E é esta Grécia sagrada que faz ultrapassar a crença para se enraizar o pensamento na certeza de que o dialogar, quer seja pelos oráculos ou pelos Santos, continua.

MYCONOS -As histórias contam-se no cais -a ilha vive para quem vem. Chegar é ser recebido de braços abertos como tendo há pouco partido -a língua que se fala não importa, uma pessoa senta-se à mesa e aparece logo quem oferece uma roda de resina ou de anis mergulhado em gelo, talvez mesmo estejam sentados os que só bebem água gelada, copos cheios a acompanhar o café turco, melado, doce de azedar o paladar. A vida é ali no cais que está e a ilha vem à baía ver quem chega. Quando não há visitantes a ilha descansa, alguns trabalham e outros falam. Na Grécia está sempre tudo a falar, percebe-se que gostam de falar e não dizer nada, falam, falam. Toda a gente fala e bebe qualquer coisa, fuma, oferece, dá.

Quando chegam as carradas, ou melhor as barcadas de turistas, só se vêem os turistas, os de Myconos vão a correr abrir as lojas, pôr o estenda I dos teares colado às janelas, às portas e escadas -as célebres escadas de Myconos que são todas exteriores. Vivem então os de Myconos dentro de casa e continuam a oferecer café, água, anis, cigarros a todo aquele que lá entra, mesmo que não compre nada, que não perceba patavina do artigo. Os de Myconos dão-se de amizade, de imediato, sem rodeios, sem protocolo. O único protocolo da ilha é não haver protocolos! Tudo é simples, corrido falado, acolhedor em grande escala. Há aqui em absoluto uma grande felicidade de viver, de contar, em troca de nada, de não ligar importância à vida. Tudo é muito simples, tudo se faz, tudo se arranja. Um par de calças e uma camisola encomendados às sete da tarde no célebre Joseph - o Jupien de Proust - está pronto certo, à medida e perfeito, ali às onze e um quarto da manhã do dia seguinte e entregue no hotel para maior conforto da prova final.

Myconos é uma ilha sem horário, está sempre aberta a tudo, fechada só quando os turistas embarcam para outros rumos. Nessa altura fecham-se as casas e na correnteza de todo o cais -que é avenida, rua, praça, monumento, santuário -a ilha continua a falar, a criar estilo, e das ruas estreitíssimas e em labirintos sai a fauna misturada a três sexos -os dois da ilha e um de importação recente, poliglota, hermafrodita e que de juba por tosquiar se ademana aos grupos em boutiques fantasques.

Misturo-me no branco caiado das ruas as primeiras ruas caiadas e caiadas todas as semanas de lés a lés, ruas e casas vestidas de branco, tudo com degraus brancos numa apoteose em que o colorido dos habitantes sobressai como faúlha em forno de cal. O que me interessa em Myconos é a realidade visível da fé nas suas trezentas e sessenta igrejas e capelas, número magno para quatro mil habitantes. Num largo branco, pequeno, frente ao mar, com o único plátano da ilha, há cinco capelas com uma igreja no cento, tudo atento para branquear a alma. Passeio mais, ruas de uma Alfama imaculada, mais estreitas no cada vez, a um de frente, em bicha, sem cruzamentos. Chega nova barcada de turistas e salpicam momentaneamente a ilha de encarnados, amarelos, azuis, pretos, calças listradas, sacos multicolores. E o branco resiste, é forte, cromático. Continuo estático, indiferente aos que chegam ou partem.

Joseph aparece. Acabou de cortar mais meia dúzia de calças. Aparece e senta-se na ponta da baía, na primeira taberna com mesas e cadeiras frente ao semicírculo do cais. Senta-se e logo uma roda de amigos faz companhia, manda oferecer, -oferece anis com gelo, café turco, oferece o que se quiser tomar. Manda vir um prato com várias tiras de rostbeef com batatas fritas a fazerem de girassol. Um prato, uma faca e cinco garfos. O grande Joseph -Jupien faz o corte da carne e cada um de garfo em punho vai tirando uma lasca. A qualquer hora do dia, tanto faz, Joseph começa numa ponta do cais, às quatro horas já está a meio, e ao fim da tarde acaba no outro extremo, sempre numa mesa grande recheada de amigos e estranhos -melhor, os estranhos também são os amigos em Myconos. Amigos sempre diferentes, de nova colheita, de outros mundos. Ali, sentado como soba da ilha -Joseph, o único católico de Myconos, afirma que é ele quem tem a chave da igreja -ele é tudo -padre, sacristão, confessor, santo missal e a água benta. E é ali, em minoria de um, que a religião católica tem o seu defensor mais acérrimo, o único ser da ilha que pede ao padre de Tinos para três a quatro vezes por ano vir dizer missa à sua capela.

Joseph manda vir outra rodada e de garfo em punho todos metem o bedelho no prato. Começam a chegar os turistas, são seis da tarde, Joseph está na ponta da ilha por onde eles entram. Primeiro olha à distância, depois fixa-se nas calças e de olho caído por uma leve distracção nem as persegue. «Calças de terceira classe» -digo eu. -«Nem de quarta», responde-me com ar de ligeira constipação. Passam mais turistas e Joseph continua a olhar para as calças com interesse clínico, repara no corte da rabada, «mal feitas», «pouca altura de anca», «estreitas no rabo». Joseph comanda o andamento da ilha, todos o adoram, todos vêm ter com ele. A casa de Joseph é um museu de dedicatórias de todos os costureiros de Paris, de todas as mulheres célebres do universo. E ele é um homem simples, o único na ilha de Myconos que usa colete. Se alguém passa de calças mais bem feitas, Jupien levanta-se da cadeira, olha atento, e devagar vai à sua loja. É ele que tem a chave no bolso e a bicha de pessoas espera o curandeiro, o homem que indiferente à celebridade, corta as melhores calças do mundo. Na loja manda logo vir café para todos, dá cigarros, faz preços para voltar, corta logo, risca e começa a trabalhar, depois entrega o resto às costureiras. Terminada a operação, as enfermeiras que se divirtam com os restos dos clientes -ele nada mais faz. Volta à baía. Senta-se. Manda vir nova rodada de anis, café e um prato de tiras de perna de carneiro e batatas fritas. Outra vez muitos garfos e ele comanda novamente. Faz o corte, risca os bocados e oferece o garfo para cada um provar o original.

É uma ilha em que cada homem tem uma história e cada casa é branca e só branca. Português de paleio, em carne e osso, que quisesse provar o sabor de Myconos, só eu ainda tinha por lá pairado! Novos amigos sentam-se à mesa: gregos que viajaram oceanos e passaram por Lisboa. Contam histórias em várias línguas. São famílias sobre famílias, primos todos uns dos outros -o capitão Luigio Guarouni que me tinha levado a Delos era sogro de um personagem de Ulisses -um homenzarrão que estava no cais quando eu cheguei. Estava a receber malas e carregar fruta. De aspecto brutal. Depois encontrei um tipo parecido, sentado numa mesa da baía, olhei, passei e continuei. A seguir entrei numa boutique e apareceu-me esse homem já transformado em capitão de barco, proprietário do melhor caíque que leva a Delos. Cada homem naquela terra é tudo -carregador, capitão de barco, amigo, e nesta palavra vai a melhor gratidão aos Gregos -eles são amigos, acolhedores, benvindos. Perdidos em arquipélagos sentem-se reconfortados pelos bens de outras gentes que os vêm visitar.

Na ilha há três táxis e uma camioneta há várias praias, há vento e moinhos brancos, há capelinhas por toda a parte. Dá a impressão de que em certo momento da vida deste povo de Myconos logo que nascia alguém pagavam de tributo uma capelinha, erguiam a Deus o seu agradecimento.

Vou tomar banho a uma praia defendida do vento e a água é cristalina e pura, quase fria, sem ondas. Estendo-me na praia e oiço Debussy, a mais completa imagem-som que senti na vida -oiço o piano de muitos prelúdios a ritmarem-se em escalas diferentes. Vêm quase silenciosos, falam em frases muito curtas, aparecem e desaparecem, vêem-se no desdobrar de sons minúsculos trazidos por uma onda que se recolhe cada vez que se abre. É uma praia deserta onde um barco lembra a existência de qualquer coisa parecida com a raça do Homem. É um barco que me liga de som à existência, é a única imagem que tem nome. Oiço mais atentamente, oiço horizontal, para sentir o som vindo da melodia que se esvai e renasce naquele portinho tão cheio de tonalidades perceptíveis. Uma grandeza enche-me, completa-se na alvura da ilha -estou horas a ouvir qualquer coisa de extraordinário que fica gravado na minha imaginação como o recordar harmonioso de um piano afinado pelo próprio teclado da natureza. É um Debussy monstro que se agiganta no microcosmos, trânsito de uma nota cromática que penetra suave nos poros audíveis da minha sensibilidade.

Volto a pé a Myconos. Volto à baía, ver os amigos que nas mesas me esperam. Ainda não chegaram os turistas, os ilhéus andam todos cá por fora e o palhabote nem entra na baía, as lanchas vão fora da barra apinhadas de gente. Basta o barco uivar para ser uma correria. Não consigo cabine. Nada tem importância, não há dificuldades, tudo se arranja. É tudo fácil e simples. A minha partida da ilha tem de ser clandestina, pela calada da noite, com senha e contra-senha. Escala um barco grande de turistas -entra às seis e sai à meia-noite. Da ilha só vêem o cais, e alguns o branco, mas, como turistas, lêem de cor a natureza. Pela lei dos códigos marítimos não pode receber passageiros em portos intermediários. Mas tudo se arranja. Metem-me num grupo de excursionistas, e um dos gregos amigos escreve logo uma carta para o comissário de bordo e fornece-me um bilhete de visita ao navio. A bagagem lá irá parar -eu que não me preocupe, nada de agitação. Calma, conversa e mais um anis com gelo. Nada de pressas, mais um cigarro. O grego confia, posso pagar quando quiser, a bordo ou à chegada a Atenas, ou mandar o dinheiro de Portugal. Não há pressas, tudo é à base de confiança.

A minha saída de Myconos reveste-se de aspectos rocambolescos, sou metido a bordo em manada de excursionistas com guia à frente -cá vou eu de cabeça baixa, clandestino na igualdade de direitos humanos dada pelos Gregos a todos os homens.

Antes da última aventura fui despedir-me de Joseph à sua mesa, já batida pela lua oscilando entre restos de batatas fritas e um molho prateado de combustível oleoso. Abraçou-se, deu-me um beijo, e comunicou a todos os estranhos e aos já conhecidos a minha partida. Mirou-me de alto a baixo e em francês disse-me apenas -au revoir et bonne santé -toujours bonne santé! -Fiquei com a língua enjaulada. Mas no súbito lembrei-me a estupenda palavra grega para o saudar: IASÚI

Ao subir a escada daquele portaló de luxo olhei para a correnteza de casario e mirei emocionado toda a simplicidade que o branco deixara pendurado na noite prateada da baía. Olhei mais. Vi que todos eram amigos e agarrado à manada, sentindo as varas dos picadores, de saco debaixo do braço, ouvia a voz do intérprete que divagava ao som da orquestra de bordo, mal sonhando que levava mais um no rebanho, parido de geração espontânea, ali em Myconos ao pé da ilha sagrada. Misturado como choca em praça de touros flutuante, dei entrada nos salões como agente clandestino dos deuses. Arrepiavam-me os ossos, sentia tonturas ao ouvir palmas de fim de dança. No entanto tudo se passava normal, os gregos amigos, e amigos dos deuses lá puseram a minha bagagem, a carta entregue e logo a cabine pronta para me acolher até ao Pireu. Simples, sem complicações, sem nada, tudo branco. Posso dizer que abandonei a ilha como mais poderia desejar, mas como nunca havia pensado.

O breu imergia-me no azul, caldeado na imagem branca do balouçar via calças e mais calças a serem cortadas para os deuses e a afogarem os últimos sons que Debussy lançava num S.O.S. à minha procura.

E Petrus? É um conto que pertence a Myconos e irei contar.

Quem é Petrus?

Indiferente ao ruído, passeando-se numa quietude onde o corpo acompanha um queixo esguio, Petrus é o rei de Myconos. Solene, ao mesmo tempo dado, a sua cor-de-rosa reflecte nas paredes caiadas das casas e no azul tranquilo da baía a imagem verdadeira de um pelicano.

Os homens, as mesas, os barcos, as lojas, a geografia da ilha, os pescadores de pequeno curso, quem entra ou sai do porto, o peixe coberto de sangue e já sem remorsos, as cadeiras desalinhadas na esplanada, os sentimentos que cruzam outros sentimentos, distraem a vida do ser mais solitário da ilha.

Eram cinco. O Verão passara-se naqueles lagos da Finlândia, perto das terras da Lapónia onde o Sol não se deita, na companhia de bandos de amigos que na pesca se entretêm para tirar a sobrevivência. Ao sinal de que Agosto já anuncia Inverno, os pelicanos levantaram voo rumo ao Egipto para hibernarem junto dos faraós e do calor. Ao sobrevoarem Myconos, os cinco desceram para comboiarem um deles que, de bico partido, necessitava cuidados. Ficaram. Sentiram-se acarinhados, mas três não resistiram à nostalgia e morreram. O quarto -o de bico partido -foi cuidadosamente tratado pelo dentista da ilha que lhe colocou um bico de plástico. Ficou como novo. O médico, cirurgião, dentista, veterinário, proprietário destas múltiplas funções, conseguiu restabelecer assim coragem no amigo de Petrus. Eram ainda dois. No entanto foi de pouca dura tão grande carinho. Triste, mal aclimatado, com dificuldade de engolir o peixe que vinha na babugem, este pelicano anónimo morreu discretamente, talvez mesmo para deixar Petrus rei da ilha.

Ficou Petrus -rei.

Petrus vivia satisfeito. O comer aparecia-lhe abundante -pescava na baía e recebia as dádivas dos súbditos que sentiam obrigação de o alimentar. Aos poucos afeiçoara-se e os habitantes de Myconos retribuíam essa simpatia abrigando-o ao calor da lareira nos meses de Inverno. Então, de casa em casa, usando mais as patas do que as asas, Petrus visitava os seus vassalos na calma de um silêncio bem animal. Aguardava a Primavera para voar. Escolhia as pequenas enseadas, espairecia das longas noites de um resplendor fingido, ia ter com algum pescador que o mimava com peixe vivo. Outra vez voava mais longe, à procura de um isolamento para conversar sem distracção. Mas ao cair da tarde, quando a sombra oblíqua corta em meia laranja a luz da baía, Petrus passeava-se na esplanada de Myconos, emprestando uma cor que confundia os reflexos roxos ainda pendurados na cal das paredes, com uma plumagem que se cambiava do rosa para o matiz branco da presença. Recebia carícias, caminhava entre barquitos estacionados no plano inclinado do cais e na sua compostura era um verdadeiro rei.

Um dia, como nas histórias que não parecem reais, Petrus teve aquela intuição muito especial de que só os bichos são capazes -ao voar sobre Myconos sentiu que na ilha vizinha de Tinos aterrara uma pelicana. De novo a vida tomava outro encanto. Olhou para a baía, sacudiu as asas num sentido majestoso de liberdade, deixou-se fotografar, não disse nada e sumiu-se em direcção a Tinos.

Aí esqueceu-se de Myconos. O entretenimento parara-lhe as saudades. O amor distraía-o e distraía os habitantes de Tinos, bisbilhoteiros à espera de ninhada, na certeza de que um rei cumpriria o seu dever.

Como Petrus tardasse em voltar a Myconos, o povo desta ilha reclamou-o aos tinenses que se negaram terminantemente a devolvê-lo, alegando que tinha ido para lá de livre vontade. Estabeleceu-se um clima de imprudência -a guerra dominava as insónias, a rota sagrada de Delos, ali mesmo em frente, dava bons agouros, um rei merecia todos os sacrifícios. Assaltaram Tinos como outrora fora o cerco de Tróia, e em barcos de pesca de todos os tamanhos e feitios o combate naval manteve-se, indeciso da vitória. O conflito prolongava-se. A assembleia de Atenas, avisada, fez avançar as tréguas à incerteza da luta.

Petrus voltou, mas foi um regresso que não pôde compreender. Mesmo rei de uma ilha, senhor de toda a paisagem, pelicano de cor ímpar, ao seu espírito lúcido o amor importava mais do que a majestade.