Ar do MarJ?iXI>I>TEXtREAd4†”” ”0”@”P”k»Title: Ar do Mar Author: Joaquim Canas Cardim CreationDate: Mon Jun 22 12:22:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Feb 25 14:20:00 GMT 1970 Genre: Description: Ar do Mar Joaquim Canas Cardim A publicação do excerto Ar do Mar, extraído do livro Na Esteira do Nordeste, foi gentilmente autorizada por Maria Beatriz Drummond Cardim. © 1997, Maria Beatriz Drummond Cardim e Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8396-24-4 Lisboa, Novembro de 1997 Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** AR DO MAR Vamos agora apanhar um pouco de ar do mar. Também na superfície líquida marinha fui caçador. Para tanto, adquiri duas espingardas de fogo central, de calibre vinte e de culatra móvel, da marca Hurricane-Meteor. O projéctil era constituído por um arpão, dividido em duas partes distintas, uma vara que entrava dentro do cano e o arpão propriamente dito que se acoplava à extremidade desta vara. Este conjunto pesava cerca de oitocentos gramas e o cartucho, depois de disparado, que impulsionava o projéctil, era como disse de calibre vinte, só com pólvora e por isso extremamente curto. Cada espingarda dava um tiro de cada vez e para que o tiro disparado correspondesse à eficácia desejada, havia duas pequenas hastes do lado direito da espingarda onde se bobinava uma linha de nylon de quatro milímetros de espessura. As hastes distanciavam-se uma da outra cerca de quarenta centímetros e muito embora elas estivessem fixadas no sentido vertical em relação à arma, sempre que o tiro era disparado, elas, por um mecanismo acoplado ao gatilho, ficavam flutuantes, permitindo que a linha bobinada presa a dois pequenos olhais que havia no arpão saísse em conjunto no momento do disparo. O que fazia a compressão dentro do cano da espingarda e muito perto do cartucho, era uma anilha rudimentar de sola, feita por mim a canivete, porque por cada tiro que se dava ficava destruída, por isso eu tinha que ter sempre uma boa reserva numa lata. A anilha em referência não podia estar muito justa dentro da alma do cano, nem muito frouxa, porque no primeiro caso representaria um enorme recuo que nos podia atirar para o fundo do barco ou inclusivamente para dentro da água; e no segundo caso representaria uma ineficácia total para o potencial do projéctil, fazendo-o cair muito perto da borda do barco. Das espécies que eu procurava atirar para capturar, eram na sua maioria constituídas por um mamífero cetáceo, conhecido vulgarmente por <>, que em França tem o nome de marsouin e não é mais do que uma variedade de golfinho. Também atirei às toninhas, aos albafazes, ou olho-branco, conhecido por <>, pertencente à sua família, mas não possuindo dentes que pudessem pôr em perigo qualquer ser humano. Igualmente atirei a roazes, designadamente àqueles que, vivendo quase sempre nos estuários dos rios, como o nosso rio Tejo, faziam pequenos passeios até à costa do Estoril. Também foram minhas vítimas alguns espadartes, que a partir de certa altura deixei de atirar por determinado motivo que oportunamente explicarei. Todos os tiros que fazia a estas espécies eram praticamente feitos à superfície da água, ou mesmo fora de água quando alguns dos mencionados cetáceos davam o seu habitual salto para de novo mergulharem. Eram tiros extremamente difíceis e com consequências imprevisíveis. A distância variava entre três e doze metros. No caso dos cetáceos era necessário, quando o tiro partia e acertava, estarmos muito atentos ao desbobinar da linha da espingarda que por sua vez na sua extremidade estava ligada a outra ainda mais forte e bem desembaraçada no fundo do barco, para poder acompanhar o arranque que a vítima fazia uma vez atingida, começando a rebocar-nos se o seu ferimento não fosse mortal, ou então sendo por morte imediata a confusão era muito menor, e a captura mais fácil. Era praticamente uma caça à baleia em miniatura, porquanto os botos não pesavam mais do que cento e quarenta a cento e sessenta quilos. Quando ficavam só feridos e já estavam cansados, para lhes acabar com o sofrimento extinguia-os com uma bala certeira de calibre vinte e dois de uma carabina que tinha sempre a bordo. Caçava-se esta espécie baleando e aguardando pela direcção do mergulho que viessem a aflorar à superfície em local para onde nos tínhamos deslocado com o barco previamente, por intuição, ou ficávamos à espera parados que qualquer uma dessas presas nos aparecesse. Era um tiro muito difícil por ter de se observar as regras elementares no disparo e evitar que a linha, quando projectada, se prendesse a um braço, ou pé, ou até a qualquer parte do barco; mas muito mais difícil era o tiro às toninhas, que só poderia ser realizado à perseguição paralelamente à manada e em alta velocidade, das quais apenas capturei três, sendo duas da mesma manada e um double, porque atirei com as duas espingardas, uma após a outra, acertando-lhes e atando as extremidades das linhas correspondentes a cada arpão certeiro uma à outra e colocando bóias de superfície para melhor localizar e evitar um reboque descontrolado do barco, uma vez que cada qual se dirigia na sua direcção. Acabei por as recuperar e trazê-las mortas para bordo, o que representou um momento épico pela forma como foi conseguido. A outra que capturei foi de forma isolada e, consequentemente, deixei-me rebocar, dando-lhe a maioria de cabo possível para evitar que se soltasse. Qualquer destes mamíferos cetáceos, uma vez atingidos pelo arpão, são difíceis de escapar; a sua estrutura óssea era muito forte e como o arpão tem na extremidade duas guias que depois de entrar no corpo do animal se abrem por tracção, normalmente nenhum destes troféus se perde, ao contrário do que sucede com os espadartes por serem peixes e o seu esqueleto ser cartilagíneo. Caçando espadartes, estes representavam para mim um valioso troféu para além do seu valor gastronómico, mas emocionalmente ficavam muito àquem das presas que capturei e descrevi anteriormente. O espadarte era por mim procurado à superfície das águas, sonolento, nos fins de Agosto e grande parte do mês de Setembro. O mar tinha que estar absolutamente calmo para se ver a extremidade das suas barbatanas, dorsal e caudal. Quando os localizávamos à distância, aproximávamo-nos com toda a prudência para que não despertassem com facilidade, uma vez que a razão de estarem à superfície se devia a terem-se superalimentado, afastando-se das profundezas para apanhar -quem sabe -um pouco de sol, embora o corpo fusiforme ficasse submerso, mas visível de muito perto. O tiro devia ser efectuado de preferência lateralmente, pondo claramente em risco sermos observados pela visão lateral do referido peixe, mas mais eficaz do que um tiro de frente ou de cauda, porque o seu alvo era menor como se pode deduzir. O tiro, para ser eficaz, tinha de ser disparado com um desconto em função da sua barbatana dorsal, por medida visual e a mais dois terços dessa medida para baixo da linha de água onde se via a barbatana, porque caso contrário o tiro passava-lhe por cima e não o atingia. Devia-se isto ao facto da refracção da água nos provocar um erro tremendo se atirássemos praticamente ao que estávamos a ver, porque ele nos parecia perto da superfície, quando estava mergulhado mais de meio metro. Os processos seguidos para a sua captura eram completamente diferentes dos utilizados para os golfinhos; o peixe atingido dirigia-se para o fundo rapidamente e tínhamos de lhe dar o máximo de cabo para evitar que se desprendesse por força da tracção que se fazia no cabo no momento da sua descida em velocidade tresloucada. Cheguei a ter de desenrolar cerca de noventa braças de cabo, e na sua extremidade colocar um bidão de cinquenta litros vazio, para não perder o seu local. O bidão era pintado de cores berrantes para melhor localização, embora o perseguíssemos sem nunca o perder de vista. No trajecto dessas noventa braças estavam pequenas bóias de cortiça pintadas de branco e vermelho, não só para dificultar um pouco a descida do peixe para as profundezas, mas também para caso ele morresse mais rapidamente ou se soltasse, as referidas bóias servissem de localização para a sua recuperação, ou apenas para o conjunto do projéctil e linha que era bastante caro. Lembro-me de uma vez um espadarte ter-se desferrado e uma dessas bóias que estava bem pintadinha, só pela fricção da água e pressão subaquática, quando veio ao de cima não trazia qualquer reminiscência de tinta. O processo de captura era bem diferente daquele com que se procedia com os mamíferos cetáceos; tínhamos que aguardar com paciência que o peixe morresse no fundo do mar e só depois de experimentarmos a linha, puxando-o vagarosamente e não sentindo qualquer tracção para o fundo, é que continuávamos lentamente a puxá-la até que se começava a vislumbrar à transparência da água o nosso troféu que tanto desejávamos. O peixe, quando era metido a bordo estava morto. Esta variante de caça e especialmente ao espadarte, pratiquei-a durante poucos anos. Dois factos, para mim de grande relevância, fizeram-me abdicar quase que simultaneamente deste desporto. Quanto ao espadarte, havia acesa polémica em jornais e revistas de caça mencionando o meu nome, porque na opinião dos pescadores conceituados, mais conhecidos por pescadores desportivos, o espadarte não devia ser caçado, mas sim pescado, com o que concordava, mas nas nossas águas ainda ninguém tinha conseguido pescar nenhum, nem ao corripo, nem à profundidade com isca, com grandes carretos, cana e linhas apropriadas. Quando fiz a declaração para os órgãos de informação de que quando fosse pescado desportivamente o primeiro espadarte (porque as barcas de Sesimbra apanhavam com arpão manual vários indivíduos desta espécie), renunciaria a este tipo de caçada. Um grande pescador desportivo muito conhecido conseguiu-o e eu de imediato cumpri a minha palavra, ficando apenas a caçar botos até que também me apareceu o dia <> e desisti de tudo. Uma fêmea desta espécie, já morta e dentro do meu barco, deu à luz um feto, que nasceu vivo; ainda lhe fiz a circuncisão umbilical e consegui chegar com ele vivo ao Aquário do Dafundo, mas morreu dias depois e então renunciei definitivamente a este tipo de caça. Antes de terminar, quero contar dois casos que foram verdadeiramente épicos e únicos. O primeiro, foi porque ao fim da tarde, em Cascais, arpoei um roaz que mais tarde vim a saber que pesava 1200 quilos. Fui rebocado de popa até Carcavelos, o que me ia afundando o barco, tal era a sua força, e aí, por a linha ter encostado a algumas rochas, partiu-se, tendo perdido o arpão completo e grande parte da linha. O roaz prosseguiu na sua rota e eu voltei para o Clube Naval de Cascais. No dia seguinte pus um anúncio no Diário de Notícias, dando alvíssaras para que se algum pescador encontrasse o roaz a dar à costa moribundo me telefonasse. Eu tinha apenas por objectivo recuperar o arpão e apreciar o animal. No dia seguinte à publicação do anúncio, alguns amigos meus responderam-me de brincadeira, que tinham o roaz lá em casa. Um até me perguntou se o roaz se chamava <>, até que me chegou a chamada desejada. Era da Costa de Caparica, onde o roaz se encontrava exposto em plena praia e onde os marítimos cobravam dez tostões por pessoa para o ver de perto, tendo instalado uma grande corda quadrangular para que ninguém se aproximasse a mais do que o necessário. Dei mil escudos de recompensa, o roaz foi desmanchado, mas primeiramente pesado. O outro caso passou-se ao largo do cabo da Roca, com o qual me assustei verdadeiramente. De súbito, vejo quatro monstros marinhos muito perto do meu barco e dada a sua dimensão nem sequer tentei aproximar-me porque sabia da ineficácia da minha linha, a qual tinha sido experimentada por mim e cuja tracção não suportava mais do que cinco mil quilos. Eles deveriam ter muito mais. Eram quatro lindos exemplares de roazes de bandeira, conhecidos no estrangeiro por <> ou <>, como é denominada por grandes investigadores marítimos e estudada profundamente por Mr. Bird no seu livro Bird no Pólo Sul. Um destes grandes animais tinha uma enorme ferida dorsal, certamente produzida por grande luta que tivera, e dada a sua enorme capacidade respiratória que permite a esta espécie permanecer debaixo de água cerca de vinte minutos sem respirar, conseguem em pequenos grupos afogar uma enorme baleia, que não tem capacidade respiratória para mais de cinco minutos em imersão, com o único objectivo de comer a língua e deixar todo o resto do corpo como despojo. Segundo Mr. Bird, trata-se do único animal marinho mamífero cetáceo, que, se puder, ataca o homem. Os seus dentes enormes, do tamanho de grandes bananas e em mais do que uma fileira, são altamente perigosos e o mesmo Mr: Bird afirma que nas superfícies geladas dos pólos perfuram o gelo a tentar encontrar algum urso ou foca que por acaso descuidadamente esteja deitado sobre o gelo flutuante. Tive muita sorte, porque uma destas orcas passou a rasar por debaixo do meu barco sem o ter virado, mas entortou-me de tal maneira o veio do hélice que só consegui chegar a Cascais muito vagarosamente e com o perigo de não chegar por estar muito afastado da costa. O barco que sempre utilizei nestas digressões era feito de aglomerado de madeira e envernizado, com motor a gasolina dentro de bordo, com a potência de 180 HP, que consumia 25 litros de gasolina por hora, à velocidade de trinta e cinco a quarenta milhas quando era necessário. Mais tarde utilizei uma pequena traineira que mandei construir, mas rapidamente cheguei à conclusão de que não era eficaz e necessitava sempre de levar a reboque o meu gasolina para ter maior facilidade de manobra e inversão de marcha. A carne dos botos e das toninhas tinha bom aproveitamento, bem como os espadartes. A carne dos primeiros era equivalente à carne da baleia, mas mais tenra e por isso de valor comercial assaz razoável, entregando o produto da sua venda na lota aos meus arrais e por vezes à Misericórdia de Cascais. Com os espadartes, os resultados financeiros eram muito superiores, mas nunca fiquei com um centavo do produto da sua venda, reservando-o sempre para os fins que mencionei anteriormente. Assisti a várias lutas marinhas, designadamente entre o tubarão-martelo e o peixe-frade, verdadeiramente sangrentas, mas o espadarte, a despeito da sua enorme espada, que eu saiba só causou uma vítima humana, que foi em Sesimbra quando era puxado para bordo de uma traineira e que devido a duas forças concorrentes, constituídas pelo puxar do pescador e o impulso que o peixe deu ao exalar o último suspiro, fez com que acidentalmente a espada frontal do espadarte entrasse pela barriga dentro do pescador, que veio a falecer no hospital. Noutros rumos, mas apenas na qualidade de observador numa tripulação, tomei parte durante oito dias na caça à baleia. Foi durante a última Grande Guerra Mundial, mais propriamente em 1942. Embarquei em Sesimbra, no Persistência, que deslocava trezentas toneladas e fazia parte de um trio de barcos de uma companhia piscatória, que tinha em Tróia o seu plano inc1inado para desmanchar as baleias, cujo aproveitamento é certamente conhecido por todos e àquele tempo extremamente rentável. Os outros dois barcos chamavam-se Ruth e Alt e havia ainda um rebocador que servia para levar as baleias capturadas por qualquer desses barcos para o cais do plano inclinado de Tróia. Andámos a mais de quarenta milhas da costa. No tombadilho do Persistência estavam pintadas as cores da nossa bandeira nacional e luzes de código para demonstrar que pertencíamos a um país neutral. Não podíamos utilizar receptores ou transmissores de rádio, mas tão-somente uma pequena galena donde recebíamos instruções de um vigia que estava no cabo Sardão e que de binóculo em punho nos informava, tanto quanto possível, da zona mais adequada para encontrar baleias. Durante esta semana embarcados vi mais de cem baleias, podendo algumas ser repetidas; nunca vi nenhuma isolada, cheguei a vê-las aos pares e por vezes quatro ao mesmo tempo. Quando iniciávamos a sua perseguição tresmalhavam-se, como é natural, e o mestre da caça decidia a qual se poderia tentar atirar em função da sua dimensão, por haver uma lei que proibia que se capturassem baleias com menos de vinte metros de comprimento e duzentas e cinquenta toneladas de peso. Por este facto sempre se escolhia a maior ou se rejeitavam por não terem as proporções adequadas. À proa do barco havia um canhão de calibre quatro e meio, que também disparava por pólvora, mas o seu projéctil era constituído pelo arpão propriamente dito e uma carga explosiva na ponta final, para, uma vez dentro do animal, rebentar e abrir as hastes terminais; pesava ao todo trinta e dois quilos em vez dos oitocentos gramas que pesava o arpão completo das minhas espingardas. A eficácia do tiro rondava a distância entre a proa do barco e o animal num máximo de vinte metros, o que representava ser a baleia um animal de muito boa vontade para oferecer a sua vida e só correr esse risco muito perto do barco. Por isso, muitos fracassos ocorreram, porque a maior parte das vezes o artilheiro não tinha hipótese de disparar. O quadro técnico para a caça da baleia era constituído pelo comandante do barco, o mestre da caça, que no meu barco era açoriano, o artilheiro e o vigia, que ia quase sempre no cesto da gávea. O primeiro tiro que nos foi possível disparar apanhou de raspão a cabeça de uma grande baleia, arrancando-lhe a mandíbula e não ficou presa. O bater da sua cauda na água e o remoinho que fez à volta do barco foi de tal envergadura que julgámos ser o último dia da nossa vida; até a água entrou nos porões vinda de cima do tombadilho. Por casualidade nenhum de nós foi parar ao mar, com excepção do gato de bordo que morreu afogado. Errámos um cachalote ao quarto dia de faina e na mesma noite arpoámos ao entardecer uma enorme baleia que, segundo opinião do comandante do barco, tinha sido um erro porque a noite se aproximava. A baleia arpoada pelo dorso não morreu. O cabo de sisal que se desenrolou já tinha mais comprimento do que quatrocentos metros e no início da sua desbobinagem tinha que estar a ser regado com mangueira para evitar as faíscas que saltavam por fricção de cabo contra cabo no enorme guincho onde estava bobinado. Assim andámos toda a noite sem dormir, na expectativa de que a baleia cansasse, o que não aconteceu. Com o motor do barco parado andámos horas e horas à deriva, rebocados pela baleia, até que ao raiar da manhã um contratorpedeiro alemão perguntou por sinais luminosos de código, por que estávamos constantemente a mudar de rumo. O comandante do contratorpedeiro, depois de inteirado do que se estava a passar e como estava de proa entre o nosso barco e a baleia e queria atravessar rapidamente, ordenou-nos que cortássemos imediatamente o cabo para que não viesse a ensarilhar-se no seu hélice, ao que tivemos que obedecer, perdendo uma presa que deveria vir a render mais de trezentos contos. Ainda não refeitos do que tinha acontecido na noite e madrugada, no dia seguinte, por volta do meio-dia, com vaga larga assistimos a um duelo entre um avião stuka alemão e uma traineira inglesa armada. A luta foi curta e não houve vítimas a lamentar. Assisti ao espectáculo mais fabuloso que se possa imaginar, que é a corte e cópula entre um casal de baleias. Elas saem na vertical de dentro do mar, em corpo inteiro, como dois foguetões e em pleno ar existe uma aproximação bem calculada dos órgãos genitais, a ponto de quando caem na água quase sempre o acto está consumado, mas têm sempre que repetir esta proeza se não o conseguirem à primeira vez. Também é muito curioso descrever como nos apercebemos da aproximação, perto do barco, da baleia que perseguimos. O pescador açoriano chamava-lhe <>. A razão era simples. A aproximação da baleia à superfície na zona equivalente ao seu corpo, dava uma transparência à água diferente da restante, fazendo um risco esmeralda como se fosse um local menos profundo, enquanto o pescador açoriano, de joelhos, quando a via surgir à superfície, pedia a Nossa Senhora que ela desse mais do que um <> para ter tempo de dar ordem ao artilheiro para disparar. Normalmente, não era à primeira respiração que se atirava, quase sempre se aguardava pela segunda ou terceira, visto a primeira atrapalhar o artilheiro, dado que o buraco respiratório da baleia no alto da cabeça, ao abrir a sua válvula saía ar quente que pelo contacto com a superfície da água mais parecia um enorme repuxo. Muitas vezes a baleia só dava dois ou três <> e como não estava em boas condições para ser atirada, o mestre da caça ou da pesca, em vez de soltar um palavrão, só dizia: <>. Os pescadores e caçadores de baleias açorianos são muito educados. Até que chegou o dia, o penúltimo da nossa digressão, em que se conseguiu arpoar e apanhar uma baleia. Media vinte e três metros e pesava cerca de trezentas toneladas, tendo-lhe sido içada a cauda com um guindaste e o focinho com outro, para lhe podermos começar a insuflar o ar comprimido, através de lanças próprias, necessário para ela poder flutuar. O cheiro que as baleias exalam da sua válvula respiratória é qualquer coisa de nauseabundo, mas curiosamente uma espécie de gelatina que cobre toda a sua pele, é um dos melhores produtos que conheço para lavar seja o que for. Não cheira mal e é um detergente de primeira ordem. Colhemos vários baldes dele para lavarmos a roupa e as mãos, como autêntico sabonete líquido. Entretanto, o rebocador contactou-nos por galena, veio recolher a nossa baleia para nos libertar os movimentos, levou-a para Tróia e nós regressámos a Sesimbra e a nossa última refeição teve de ser extremamente racionada. Assim se passaram oito dias no alto mar, que recordo com grande saudade os momentos fantásticos que vivemos e sobretudo porque mais dois companheiros, que comigo fizeram parte dessa tripulação, já faleceram há muito tempo. É difícil de imaginar e de descrever, independentemente do perigo em que andámos, das belezas de que desfrutámos. As auroras e os crepúsculos foi o que mais me impressionou. Eram momentos em que o mar se apresentava na sua imensidão e quietude como um gigante silencioso e aparentemente inofensivo. Os saltos de alguns peixes que por vezes saíam muito fora de água, as primeiras aves marinhas que apareciam logo ao raiar da manhã e antes que as tarefas de bordo começassem a ter a sua maior expressão, vinham-nos saudar com o seu bom-dia, enchendo-nos de esperanças, eliminando o silêncio da noite por vezes bem angustioso. As cabriolas dos peixes e os voos airosos das variedades de gaivotas e alcatrazes também ao cair do dia se repetiam como se viessem despedir-se de nós até ao dia seguinte. Só uma única noite foi passada na companhia de outros barcos quando nos aproximámos mais de terra, por coincidir terem sido detectados naquele local vários cardumes de sardinha e estarmos já nas nossas águas territoriais, muitas traineiras ali estacionaram, lançaram os seus cercos e então foi por nós presenciado um fenómeno invulgar. Por estarmos estacionados durante algum tempo entre os barcos de pesca e a terra, deu-nos a sensação momentânea de que a terra estava do lado oposto à realidade. As vozes dos pescadores, as luzes dos barcos de pesca, que eram muitos e algumas telefonias tocando para os distrair, davam a sensação de termos à nossa frente uma pequena aldeia em que toda a sua população passava a noite acordada e a terra é que nos parecia o mar em toda a sua imensidão, porque apesar de estarmos em águas em que o perigo da guerra não existia, para o nascente não se via qualquer luz nem vida aparente. Também recordo que numa tarde em que havia um pouco de nevoeiro ter passado a uma certa distância do nosso barco, uma enorme manada de falsas orcas, nome por que são designados estes mamíferos cetáceos, por serem de muito menores dimensões do que a orca gladiator. Estes animais em fúria desordenada, mataram enorme quantidade de peixes na sua passagem, subaproveitando-os, porquanto à superfície apareceram enormes bocados de variedades piscatórias, tais como corvinas, pescadas, etc., a boiarem, que estavam todas mutiladas. Este tipo de golfinho também é descrito pelo cientista Bird de uma forma exaustiva e até certo ponto macabra. À medida que vão nascendo e já não necessitam da companhia das mães, juntam-se em grupos de idades semelhantes e, ao que parece, percorrem todos os mares do nosso planeta. A sua vida é relatada como sendo proporcionalmente efémera, porquanto quando atingem a maturidade e se reproduzem, o ciclo de agrupamentos novos prossegue, e aos grupos velhos advém-lhes uma nostalgia que os leva ao suicídio colectivo. Assim, já deve ter sido observado por muitas pessoas que vão ao cinema, em jornais de actualidades, grupos destes monstros marinhos lançarem-se sobre as praias sem quererem voltar para o mar, apesar de muitos guardas costeiros com competentes cordas os puxarem e meterem dentro de água. Voltam sempre para terra para morrerem. Depois de permanecerem algumas horas sobre a areia, dada a sua estrutura óssea que foi calculada pela Natureza para suportar a dimensão do seu corpo, mas dentro de água, uma vez que estacionam em terra e apesar de poderem respirar livremente, falta-lhes o meio aquático para diminuir o seu peso e consequentemente as costelas começam a cravar-se-lhes nos pulmões, provocando-lhes hemorragias que lhes trazem a morte desejada. Pessoalmente nunca constatei este fenómeno; quero-me referir ao suicídio colectivo e não à sua passagem desencabrestada por esse mar fora como se estivessem a cumprir uma obrigação, de darem a volta do Mundo, conhecendo todos os mares e depois morrerem. Claro que isto leva anos a acontecer, porquanto só se suicidam depois de adultos e de procriarem e não é com facilidade em tempo que se percorre os mares de todo o nosso planeta, havendo um certo sincronismo entre o tempo que levam a percorrê-los e a sua maturidade. Ao finalizar estes apontamentos sobre a caça marítima de superfície, cumpre-me mais uma vez mencionar que ela só se torna viável em dias de mar calmo, com ou sem vaga larga e por este facto só é escolhida como data e época ideal os fins de Agosto e mês de Setembro, que é quando há praticamente ausência de vento de qualquer quadrante, permitindo-nos ver, por vezes a grandes distâncias, uma pequena rolha de cortiça a flutuar abandonada por qualquer barco na sua passagem, juntamente com outros detritos. Os ventos continentais, designadamente do quadrante de nordeste, começam a ser pouco frequentes e de uma maneira geral só tornam o mar encapelado até poucas milhas da costa, tendo constatado muitas vezes que ao afastar-me de barco, embora com um pouco de mar encapelado motivado pelo referido vento, a cerca de cinco a seis milhas praticamente não há vento nesta época do ano.