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Contrabandista

by Jorge Amado

Contrabandista

Jorge Amado

A publicação dos excertos aqui publicados, extraídos do livro Mar Morto, foi gentilmente autorizada por Jorge Amado.

© 1998, Jorge Amado e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-45-7

Lisboa, Março de 1998

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

CONTRABANDISTA

Contrabandista

Agora o filho começava a andar, brincava com barcos que o velho Francisco fazia. Abandonados num canto, sem um olhar do garoto sequer, um trem de ferro que Rodolfo trouxera, o ursinho barato que Lívia comprara, o palhaço que era presente dos tios de Lívia. O barco feito de um pedaço de mastro que o velho dera valia por tudo. Na bacia onde Lívia lavava roupa ele navegava sob os olhares encantados do garoto e do ancião. Ia sem leme, ia sem guia, por isso nunca alcançava um porto, ou ficava parado no meio da água, ou andava sem destino. O menino falava na sua língua que lembrava a de Toufick, o árabe:

-Vovô, fá petá.

O velho Francisco sabia que ele queria que a tempestade desencadeasse sobre a bacia. Como Iemanjá, que fazia o vento cair sobre o mar, o velho Francisco inchava as bochechas e desencadeava o nordeste sobre a bacia. O pobre barco rodava sobre si mesmo, andava ao léu do vento rapidamente, o garoto batia palmas com as mãozinhas sujas. O velho Francisco inchava mais as bochechas, fazia o vento mais forte. Assoviava imitando aquela canção de morte do Nordeste. As águas da bacia, calmas como as de um lago, se agitavam, ondas varriam o barco, que terminava por se encher de água e afundar lentamente. O garoto batia palmas, o velho Francisco via sempre com tristeza o barco ir ao fundo. Apesar de ser uma miniatura, feita pelas suas próprias mãos, era de qualquer maneira um saveiro que afundava. As ondas da bacia serenavam. Ficava tudo como se fosse um lago. O saveiro no fundo virado de um lado. O garoto metia a mão na bacia e trazia o barco. O brinquedo recomeçava e assim criança e velho passavam a tarde, debruçados sobre uma miniatura do mar, sobre um saveiro em miniatura, sobre o verdadeiro destino dos homens do mar e dos barcos.

Lívia olhava com medo o urso, o palhaço, o trem abandonados. Nunca o garoto fizera o trem descarrilar no passeio da casa. Nunca fizera o urso matar o palhaço. Os destinos da terra não lhe interessavam. Seus olhos vivos seguiam o pequeno saveiro na sua luta contra a tempestade que saía das bochechas do velho Francisco. O urso, o palhaço, o trem abandonados. Uma vez uma esperança encheu o coração de Lívia. Foi no dia em que Frederico (se chamava Frederico) largou a bacia em meio à mais furiosa tempestade e foi procurar o palhaço. Quando o encontrou, pegou nele com cuidado. Lívia seguia atenta. Teria ele se cansado das tempestades e naufrágios? Teria somente se interessado pela sorte do bote enquanto aquilo era uma novidade? Voltava agora, cansado, para os outros brinquedos esquecidos? Mas não. Ele levou o palhaço para o barco. Queria era transformá-lo em mestre de saveiro, um mestre de saveiro bem esquisito, na verdade, com aquelas bombachas amarelas e azuis. Mas aparece tanto marinheiro de estranhas vestimentas que ninguém se admiraria de um vestido de bombachas. E daquele dia em diante todas as vezes que o saveiro naufragava, o palhação (lutara contra a tempestade até ao último momento) se afogava, morria como um mestre de saveiro. No fundo da bacia seu corpo de pano inchava como se estivesse cheio de siris. O garoto batia palmas, ria para o avô. Francisco ria também, o brinquedo recomeçava.

Naufragou tanto o barco, tantas vezes se afogou o seu mestre, que o pano foi apodrecendo e um dia ele ficou aleijado de uma perna. Mas um homem do mar não pede esmola. E o estranho marinheiro de bombachas continuou a lutar contra as tempestades com uma perna só, encostado no mastro do seu barco. O garoto dizia para o velho Francisco:

-Babá meu ele.

O tubarão tinha comido a perna dele, o velho Francisco entendia. Depois comeu a cabeça, que se desprendeu do corpo no meio de uma tempestade braba. E mesmo sem cabeça (era o marinheiro mais estranho de todos os mares) continuou no leme do seu saveiro, atravessando com ele as tempestades. O garoto ria, o velho ria. Para eles o mar é amigo, é doce amigo.

Só Lívia não ria. Olhava o urso, o trem abandonados. Para ela o mar é inimigo, o mais terrível dos inimigos. E os homens que vivem no mar são como aquele palhaço de bombachas amarelas e azuis, que a sorte fez marinheiro: mesmo sem perna, mesmo aleijado, lutava contra a fúria do mar, sem um gesto de ódio.

O garoto e o velho riam. A tempestade soprava furiosa sobre a bacia, o barco corria ao sabor do vento, o marinheiro sem cabeça e sem perna procurava governar seu saveiro.

O Roncador tinha-se transformado no Paquete Voador e fora pintado de novo. Também se fizeram necessárias novas velas e o barco ficou um dos mais velozes do cais da Baía. Dr. Rodrigo entrara com a metade para Guma pagar quando terminasse o pagamento da outra parte a João Caçula. Foi dividida essa parte em dez prestações mensais. O dinheiro que tinha em casa ele empregou no conserto do barco. E se atirou ao mar, com firmeza. O ano de prazo que pedira a Lívia, para conseguir algum dinheiro com que entrar como sócio do tio dela, ele o estendeu a dois anos. Porém no fim do primeiro ano ainda devia quase tudo a João Caçula e não começara sequer a pagar a parte do Dr. Rodrigo. A vida para os canoeiros e mestres de saveiro tinha piorado muito. Além de haver pouca carga, era época de paradeiro, as tabelas estavam muito por baixo, devido às lanchas de gasolina que faziam o transporte mais rápido e mais barato. Pouco dinheiro se ganhava e o cais nunca ouvira tanta maldição.

Lívia já desanimara de conseguir que Guma abandonasse a vida do mar nesse ano. Trabalhava agora para que ele pudesse pagar o que devia, pudesse ficar com o saveiro livre. João Caçula andava em cima, as prestações estavam atrasadas, João Caçula também não ia bem com os batelões que comprara. Dr. Rodrigo não reclamava, mas João Caçula vivia em cima deles, quase não saía da porta de Guma, ia esperá-lo de volta das viagens. Porém não eram muitas as viagens agora. Os mestres de saveiro e os canoeiros passavam grande parte do tempo na frente do cais do Mercado comentando a vida difícil, o paradeiro do fim do ano. Quando não, iam matar as mágoas no Farol das Estrelas, onde seu Babau ainda fiava cachaça, anotando os débitos num caderno velho de capa esverdeada. Guma estava aceitando todas as viagens, mesmo quando só havia carga para levar, aceitava mesmo viagens pequenas para Itaparica, mas nem assim sobrava dinheiro no fim do mês para dar a João Caçula. Lívia ajudava o velho Francisco no conserto das velas. Passava grande parte do dia curvada sobre o pano grosso da vela rebentada pela tempestade, a agulha na mão. Mas quase todo esse trabalho era fiado, que as coisas estavam ruins para todos os da beira do cais. Estavam tão ruins que os estivadores falavam mesmo em entrar em greve. Guma vivia procurando serviço, fazia as viagens o mais rápido que podia, para ficar com o freguês. Vários mestres do saveiro venderam seus barcos e pegaram outros trabalhos no porto: docas, navios de longo roteiro, transporte de malas e objectos de viajantes.

E, como pouco tinham que fazer, cantavam e bebiam.

-Seu João Caçula teve aqui...

Guma sacudiu o saco de viagem na cama. Olhou o filho, que brincava com Francisco. Era fim de mês e ele prometera pagar alguma coisa a João Caçula. Mas não tinha sobrado nada, essa última viagem rendera uma ninharia, era uma viagem a Itaparica. O menino brincava junto a bacia de água. Guma não quis jantar, saiu logo. Não tinham passado ainda cinco minutos quando João Caçula bateu na porta:

-Guma chegou, sinhá Lívia?

-Chegou mas já saiu, seu João.

João Caçula ainda olhou desconfiado para dentro:

-Não sabe pra que lados se botou?

-Não sei, seu João. Tava lá dentro.

-Então boa noite.

-Boa noite, seu João.

João Caçula desceu a rua puxando o bigode. Candeeiros nas casas iluminavam salas pobres. Um homem ia entrando embriagado numa delas e João Caçula ouviu uma mulher que dizia:

-É assim que tu chega, não é... Como se não bastasse...

No cais grupos conversavam. João Caçula perguntava por Guma. Não o haviam visto. Na frente do Mercado, porém, alguém informou que Guma estava no Farol das Estrelas.

-Tá esquecendo as mágoas...

Outro perguntou:

-Como tá indo com teus batelão, Joãozinho?

-Como podia tá indo? Quem é que tá indo bem?

Aquilo só dá despesa...

Continuou a sua caminhada. Encontrou Dr. Rodrigo que descia fumando.

-Boa noite.

-Boa noite, doutor. Eu até queria dar duas palavras a vosmecê...

-Que é, João?

-É a respeito daquela doença da patroa. Vosmecê foi lá uma porção de vez, botou ela em pé. Abaixo de Deus foi vosmecê que salvou ela. E eu não lhe paguei ainda.

-Não tem nada, João. Eu sei que as coisas não vão bem...

-Tão ruim mesmo, doutor. Mas o senhor precisa de receber. O senhor não vive de brisa. Logo que melhore...

-Não se preocupe com isso. Eu me arranjo.

-Obrigado, doutor.

Rodrigo se foi com o seu cigarro. João Caçula pensou em Guma. Quis voltar (os tempos estavam ruins...), chegou mesmo a virar o corpo, mas tomou uma resolução e embicou para o Farol das Estrelas.

Viu logo Guma numa mesa diante de um copo de cachaça. Mestre Manuel estava com ele. Do alto do seu balcão seu Babau olhava com tristeza os fregueses, estava com urna cara de sono. João Caçula viu mestre Manuel suspender a mão num gesto de desânimo. Ficou quase sem coragem de entrar. Olhou Guma com pena. Os longos cabelos morenos do mestre de saveiro caíam-lhe na frente da cara e os olhos pareciam amedrontados. Ele está com medo pensou João Caçula -e tentou recuar novamente. Mas tinha que pagar aos canoeiros dos batelões e se adiantou. Alguns fregueses do Farol das Estrelas o cumprimentaram. Ele respondia com gestos, se deixou cair numa cadeira junto a Manuel. Este disse:

-Como vai? -Parecia ter arrancado o cumprimento com dificuldade.

-Seu João... -disse Guma.

João Caçula puxou o bigode, pediu urna cachaça. Mestre Manuel parecia muito desanimado, estava mudo, olhando o interior do copo vazio. E ficaram os três em silêncio algum tempo. Ouviram um freguês gritar num canto:

-Olhe se essa pinga sai ou não...

E seu Babau anotando nomes no caderno. De repente Guma levantou o corpo, passou a mão na cabeça botando o cabelo para trás e falou:

-Ainda nada, seu João. As coisas tão ruins.

Mestre Manuel repetiu como um eco:

-Tão ruins...

E perguntou em voz mais alta:

-Quanto tempo isso vai demorar?

Seu Babau olhou, suspendeu a mão do caderno, ficou com o lápis parado no ar. João Caçula começou a ouvir a modinha que o cego cantava na porta. Era triste, sem dúvida. A modinha vinha devagarinho e ia se apossando de João Caçula. Mestre Manuel respondeu à própria pergunta:

-Eu acho que isso nunca mais acaba. E a gente morre de fome...

Seu Babau baixou o lápis. Coçou a cabeça e sorriu sem saber de quê. Dobrou o caderno e deixou de tomar nota das despesas. Agora encostara a cabeça no braço e parecia dormir.

-Arriou as velas -comentou alguém.

-Tão ruins... -disse João Caçula se referindo aos meses que passavam.

A modinha do cego se arrastava lá fora. Não se ouvia o ruído de nenhuma moeda pingando na sua lata. Mas ele cantava. E João Caçula tinha que ouvir aquela modinha mesmo que não quisesse. Guma tornou a falar...

-Tava pra dar a vosmecê dinheiro esse mês, mas tou limpo. Não fiz nada, não fiz mesmo nada, seu João.

Uma mulher entrava, era Madalena. Olhou para as mesas. Ninguém a convidou. Ela riu, gritou com sua voz cheia:

-Tem enterro aqui?

Quase todos olharam para ela. Mestre Manuel estendeu a mão, já tinham sido amantes. Mas foi por causa de João Caçula que ela veio para a mesa.

-Me paga uma cachaça, João.

O menino trouxe a cachaça.

A modinha do cego (falava na pobreza dele, pedia uma caridade) se eternizava lá fora. Guma continuou:

-Seu João, o senhor vai ter paciência. Deixar essa coisa melhorá...

Mestre Manuel duvidou:

-E isso melhora algum dia?

Madalena espiou para eles. Depois gritou para seu Babau:

-Não bota a vitrola hoje, Babau?

Babau levantou a cabeça do braço, olhou em torno, foi dar corda na antiquada vitrola. Um samba começou a encher a sala. Ainda assim era a modinha do cego que João Caçula ouvia.

-Só que tem, Guma, que eu também tou atrapalhado. Atrapalhado como o diabo. Tenho três canoeiros para pagar. Os batelão não tem dado nada, só despesa.

Fitou mestre Manuel, depois Madalena abanou as mãos:

-Só despesa...

-Eu sei, seu João. Eu tou querendo pagar, mas cadê?

-Tou sem jeito, Guma. Ou arranjo dinheiro ou tenho que torrar um batelão nos cobres pra pagar as dívidas...

A modinha do cego penetrava apesar do samba. Guma baixou a cabeça. Seu Babau voltara a dormir em cima do caderno. Madalena acompanhava a conversa com interesse.

-Tava pensando... -Seu João Caçula não continuou.

-O quê?

-A gente vendia o barco, tu recebia tua parte, eu me arranjava com o resto. Se tu quisesse a gente podia fazer uma combinação, você vinha trabalhar nos batelão.

-Vender o Paquete?

A modinha do cego dominava inteiramente o samba. Esse era mais alto, mais forte, porém eles só ouviam o que o cego cantava:

Tenha dó de quem perdeu

a luz dos olhos.

Mestre Manuel também não compreendia:

-Vender o Paquete Voador?

Madalena botou a mão na mesa:

-É um barco tão bonito...

-Sinão, como é que a gente vai se arranjar? -João Caçula perguntava.

Repetiu:

-Como é?

-Seu João, espere mais um mês, eu arranjo dinheiro. Nem que tenha que passar fome este mês...

-Não é por mim, Guma. Eu também tenho que pagar. Estava com medo que pensassem que era usura dele. A música do cego o torturava. -Tu bem sabe que eu não sou capaz de me aproveitar de uma má ocasião pra esfolar um companheiro. Mas a coisa tá preta, eu não vejo outro jeito...

-Para o mês...

-Se eu não pagar os homens amanhã, eles larga as canoas.

Mestre Manuel perguntou:

-Não se pode dar um jeito?

-Como?

-Arranjar um dinheiro emprestado?

Ficaram pensando em quem poderia emprestar. Manuel lembrou mesmo Dr. Rodrigo. Mas tanto Guma como João Caçula deviam a ele. Foi posto de lado, João Caçula continuava a se desculpar:

-Pergunta pró velho Francisco se sou homem pra essas coisas. Ele me conhece faz muito tempo... (Tinha vontade de pedir ao cego que se calasse.)

Madalena lembrou seu Babau:

-Quem sabe se ele pode emprestar?

-É mesmo... -disse Manuel.

Guma os olhava tímido, como que suplicando que eles o salvassem. E João Caçula continuava a se desculpar, tinha vontade de dar o saveiro de presente a Guma e depois se jogar na água porque não tinha coragem de olhar os canoeiros atrasados no salário. Mestre Manuel levantou-se, foi até o balcão, subiu, pegou devagarinho no braço de seu Babau. E o trouxe para a mesa. Seu Babau sentou-se:

-O que é?

Guma coçou a cabeça. João Caçula estava inteiramente voltado para a modinha do cego. Foi mesmo mestre Manuel quem falou:

-Tu como vai de dinheiro?

-Quando receber tudo que me devem de cachaça tou rico -riu seu Babau.

-Mas tu tem algum que possa emprestar?

-Quanto tu quer?

-Não sou eu. É aqui seu João e Guma. -Virou-se para João Caçula. -Quanto você precisa com mais pressa?

João Caçula continuava a ouvir o gemer do cego. Explicou:

-É para pagar meus canoeiros. Tou com um dinheiro com Guma, tu sabe como as coisas tão ruim...

Guma atalhou:

-Eu fico devendo, pago assim que arranje um dinheirinho. Tá tudo difícil.

Seu Babau perguntou:

-Mas quanto é?

João Caçula fez cálculos:

-Com cento e cinquenta eu me arranjava...

-Não tenho nem a metade aí. Posso abrir o cofre pra você ver...

Reflectiu:

-Se ainda fosse negócio de cinquenta mil-réis...

-Tu não te arranja com cinquenta? -Manuel olhou para João Caçula.

-Cinquenta mal vai dar para um. Os cento e cinquenta mil-réis assim mesmo só paga parte.

-Quanto tu tinha que dar, Guma?

-Cem por mês... Mas tou atrasado no pagamento.

Seu Babau levantou-se, desapareceu no fundo no botequim. Madalena declarou:

-Se eu tivesse...

A vitrola parara. Ficaram em silêncio ouvindo o cego. Seu Babau voltou com cinquenta mil-réis em notas de dez e cinco. Deu a Guma:

-Tu me paga na primeira viagem, tá certo?

Guma entregou o dinheiro a João Caçula. Mestre Manuel pousou a mão no ombro de Madalena:

-Arranje um coronel que empreste cem mil à gente.

Ela sorriu:

-Se arranjar cincão hoje, tou feliz...

Guma disse a João Caçula:

-Espere mais uns dias. Vou ver se arranjo pra completar.

João Caçula fez um gesto concordando. Madalena suspirou descansada e começou a falar muito:

-Vocês conhece a Joana Doca? Tu conhece, não é, Manuel? Pois ela hoje tava na janela quando viu um cara espiando muito. Foi e...

Mas Guma interrompeu:

-Vocês sabe que eu não tenho nada tirando aquele barco, que nem é meu direito, devo ele quase inteirinho. Devo a você e ao doutor Rodrigo. Se eu ficar sem o barco o que é que deixo pra meu filho? A gente não vive muito, um dia cai um temporal, a gente vai embora. Ainda quem não tem filho nem mulher...

-Vida desgraçada -fez Manuel. -Por isso não quero filho. -A patroa bem que quer...

-É uma mulher bonita a tua -disse Madalena a Guma.

-Tu conhece ela?

-Já vi andando com você.

A música do cego continuava na porta. Veio mais cachaça. João Caçula falou:

-Se eu arranjasse mais dez, dava vinte a cada homem... Talvez a gente pudesse ficar mais descansado.

-Dez eu arranjo amanhã de manhã -respondeu Manuel. -A patroa deve ter.

-Ela se parece com a mulher que tá morando lá em casa agora -fez Madalena.

-Tem gado novo em tua casa?

-Se aquilo é novo... Deus te livre.

-Quem é?

-Uma velhusca. Diz que foi mulher do Xavier.

-Do Xavier? O mestre do Cabaré?

-Desse mesmo.

-Uma vez ele contou umas coisas dela -disse Guma.

-Eu tava -concordou mestre Manuel.

-Ele gostava um bocado dela. Ela deu o fora nele, ele botou ainda o nome no barco... Ela chamava ele de Caboré.

-Êta sujeito esquisito. -Madalena fez um muxoxo com a boca. -Nunca vi outro. Todo não sei como...

-Tu era muito amigo de Rufino, não era? -João Caçula virou-se para Guma.

-Porque pergunta? – Ouviu agora distintamente a canção do cego.

-Diz que aí que ele matou a mulher, ela tava botando os chifres nele com um marinheiro de um navio.

-Já ouvi falar -apoiou Madalena.

-Tou sabendo disso agora. E se fez foi bem feito. Era um negro direito.

-Não tinha dois canoeiros igual a ele nesse cais -fez Manuel.

Guma ouvia Rufino dizendo: «Seu mano, seu mano.»

Mas se consolava porque pensava que Rufino morrera sem saber que ele também o traíra. João Caçula encerrava a conversa:

-Se fosse eu, matava o cabro também...

Maneca Mãozinha ia entrando. Juntou-se ao grupo, mas falou prà sala toda:

-Vocês sabe o que se deu?

Ficaram esperando. Maneca Mãozinha cantou...

-Xavier vendeu o barco a Pedroca por uma porcaria, engajou naquele grego que tava com falta de um marinheiro.

-Que tá dizendo?

-É como digo. Não falou com ninguém. Saiu há coisa de meia hora...

-Foi a mulher -murmurou Madalena.

-Diz que a bóia dos barco grego é uma misera -comentou um negro.

Saíram. Na porta o cego cantava. Estendeu a meia cuia de queijo e João Caçula deixou cair uma moeda de dois tostões. Não compraria fumo para seu cachimbo naquela noite.

Toufick, o árabe, sofreu um grande abalo com a fuga de Xavier. Um navio entraria dentro de cinco dias com um carregamento grande de sedas de contrabando. Como tirá-lo do barco sem um saveiro, sem um mestre em quem confiasse? Explicou para F. Murad:

-Era um cachaceiro, foi por isso. Sujeito que bebe não serve. Agora vou arranjar um homem sério.

-Trate de arranjar logo. É preciso desembarcar o carregamento.

Toufick veio para o cais. Tratou de indagar com seu Babau das finanças dos diversos mestres de saveiro. Soube do caso da véspera, do empréstimo feito a Guma, da quase venda do Paquete Voador. Perguntou:

-É um sujeito sério?

-Guma?

-Sim.

-Não há homem mais direito no cais.

Foi certo para a casa de Guma. Foi Lívia quem atendeu:

-Guma saiu mas não demora, seu Toufick. Quer esperar?

Ele disse que sim. Ficou sentado na sala, rolando o chapéu na mão, olhando a criança que nos fundos da casa se sujava numa poça de água. E Toufick ficou se lembrando do que o Rodolfo lhe dissera certa vez (Toufick o procurara, era credor de uma roupa de Rodolfo, para saber se Guma queria se meter no negócio de contrabando): «Meu cunhado não é o homem que você precisa, turco.» Dissera que Guma não era homem para se meter em negócios assim. E Toufick pensava se valia a pena estar ali esperando. Tinham que substituir Xavier com urgência. Guma era o homem indicado: estava endividado, era um dos melhores mestres de saveiro do cais, tinha um barco bom e veloz. Mas teria coragem de se meter naquele negócio? Em escrúpulos Toufick não pensou. Levantou-se, espiou na janela. Guma apontava na rua. Quando o viu apressou o passo:

-Que há de bom, seu Toufick?

-Queria conversar com o senhor.

-Tou às ordens...

Lívia veio espiar lá de dentro. Guma perguntou:

-Toma uma cachacinha, seu Toufick?

-Um pouco, quase nada.

-Uma cachaça, Lívia, pra seu Toufick.

Toufick apontou a criança no quintal:

-Seu filho?

-É sim.

Lívia veio com a cachaça. Toufick bebeu. Quando Lívia desapareceu no interior da casa, ele chegou a cadeira furada para junto do caixão de Guma:

-Desculpe, seu Guma, mas como vai o senhor de dinheiro?

-Não tou indo bem não, seu Toufick. O paradeiro tá danado, porquê?

-Eu sabia. Os tempos estão maus, muito maus. Mas assim mesmo um homem decidido ainda pode ganhar muito dinheiro.

-Tá aí uma coisa difícil...

-O senhor não acabou de pagar seu saveiro novo.

-Tou atrasado. Como é que se pode ganhar dinheiro?

-O senhor já soube que Xavier foi embora?

-Soube. Foi a mulher dele que apareceu.

-Que mulher?

-A dele. Era casado.

-Então foi por isso. Pois ele trabalhava pra mim, o senhor sabia?

-Tinha ouvido dizer.

-Pois ele deixou Toufick na mão, como vocês dizem. E o trabalho dele era de deixar muito dinheiro.

-Recebia os contrabandos.

-Umas encomendas que vinham a bordo e...

-Não gaste sua finura comigo, seu Toufick. Todo mundo no cais tá farto de saber. E agora o senhor quer fazer negócio comigo?

-O senhor pode pagar seu saveiro em dois ou três meses. É negócio que dá. Pode ganhar de uma vez só até quinhentos mil-réis.

-Mas se a Polícia mete o olho o camarada tá naufragado.

-Como a gente faz nunca se descobre. Já se descobriu?

Olhou Guma indeciso:

-Quarta-feira entra um barco alemão. Traz um carregamento grande. É negócio para dar... -Suspendeu a frase. -Quanto ainda está devendo do seu saveiro? Muito dinheiro?

-Uns oitocentos mil-réis, mais ou menos.

-Pois é negócio para dar de uma bolada uns quinhentos mil-réis. Negócio grande, para umas três viagens do saveiro. Em menos de uma noite você pode botar mão nesse dinheiro.

Agora falava com a cabeça bem encostada na de Guma, falava em segredo, como um conspirador para outro. Guma pensava que podia fazer aquele serviço uma ou duas vezes, o necessário para pagar o barco, depois dava o fora em Toufick. Mas o árabe parecia adivinhar:

-Com dois ou três negócios você pode pagar o barco e até dar o fora se quiser. Eu me desaperto, pois estou sem ninguém. Você se livra das dívidas. E demais é um ou dois carregamentos por mês. O resto do mês você viaja, nem dá na vista.

Toufick ficou esperando a resposta. Guma pensava. Faria aquilo uma ou duas vezes. Pagaria o barco, daria o fora. O próprio Toufick o dissera. Não tinha medo. Até gostava das empresas arriscadas. Mas temia o desgosto de Lívia se ele fosse preso. Ela já sofria tanto pelo irmão... Ouviu a voz de Toufick.

-Está precisando de dinheiro?

Viu João Caçula sem poder pagar aos canoeiros, querendo vender o saveiro:

-Senhor me adianta cem mil-réis? Topo o negócio.

O árabe meteu a mão no bolso da calça, tirou um embrulho de papéis. Eram cartas, recibos, vales. E dinheiro misturado com aquela papelada suja:

-Você sabe onde Xavier desembarcava as sedas?

-Onde era?

-No porto de Santo António.

-Perto do farol da Barra?

-Era.

-Tá bem.

Recebeu os cem mil-réis. O velho Francisco entrava. Toufick se despediu, disse em voz baixa a Guma:

-Quarta-feira, às dez horas, esteja com o saveiro preparado.

O velho Francisco cumprimentou quando ele passou:

-Bom dia, seu Toufick.

Lívia veio saber:

-O que é que ele queria?

-Saber umas coisas do Xavier, que foi embora. Parece que Xavier ficou devendo a ele.

O velho Francisco olhou sem acreditar. Lívia ainda comentou:

-Pensei que ele não saísse mais.

O filho no quintal chorou. Guma foi buscá-lo.

A noite estava quente sobre a terra. Mas no mar corria uma brisa fresca que dava um dengue aos corpos. No céu de estrelas havia uma Lua enorme e amarela. O mar estava calmo e só as canções que vinham de toda parte cortavam o silêncio. Pouco distante do Paquete Voador estava o Viajante sem Porto e Guma ouvia os gemidos de amor de Maria Clara. Mestre Manuel amava no seu saveiro mesmo, atracado ao cais nas noites de lua. O mar prateado se estendia por baixo deles. Guma pensou em Lívia, que a estas horas estaria em casa angustiada. Ela nunca se pudera conformar com a vida dele. Principalmente depois do desastre do Valente, vivia numa eterna agonia, esperando ver Guma chegar morto no fim de cada viagem. Se então ela soubesse que ele estava de agora em diante metido no contrabando de sedas, nunca mais teria um momento de sossego, porque ao receio da morte no mar se juntaria o medo de uma prisão. Guma jura que abandonará o negócio logo que pague o saveiro. Hoje será a primeira noite e mais tarde ele receberá quinhentos mil-réis. Irá pagar tudo que deve a João Caçula, dirá que arranjou emprestado. Depois só restará o Dr. Rodrigo e esse não o importunava. Com duas viagens mais terá pago o barco. Então ganhará algum dinheiro, venderá o Paquete Voador, entrará como sócio num armazém com o tio de Lívia. Venderá mesmo o Paquete Voador? Depois de tantos sacrifícios para adquiri-lo é uma pena vendê-lo para ser sócio de um pequeno armazém. Deixar o mar, os saveiros, o seu porto. Isso é coisa que dói a um marinheiro principalmente quando a noite está assim bonita, cheia de estrelas e com uma Lua tão bela. Já passa das dez horas e Toufick ainda não chegou.

Guma viu quando o cargueiro alemão entrou. Eram três horas da tarde, ele estava no saveiro. O cargueiro não atracou, era enorme para o cais, ficou lá fora, soltando rolos de fumaça. De cima do Paquete Voador Guma enxergava as luzes do navio. Lívia pensa que Guma já viajou, está cortando agora as águas do rio, levando um carregamento para Mar Grande. Ela o espera ao romper da madrugada. Estará ansiosa, cheia de medo, e quando ele chegar perguntará quando se mudarão do mar. Um armazém... Vender seu barco, deixar seu porto. Pensara nisso quando traíra Rufino, quando perdera o Valente. Mas agora não quer. Tanto se morre no mar como em terra, é besteira de Lívia. Mas estão cantando agora mesmo aquela velha moda que diz que «desgraçado é o destino das mulheres dos marítimos». Guma alisa o casco do Paquete Voador. Veloz como nenhum. Para pegar com ele nesse cais só o Viajante sem Porto. Assim mesmo porque tem um mestre como Manuel. Também o Valente era um saveiro bom. Não tão bom, no entanto, como o Paquete Voador. O próprio velho Francisco, com sua longa experiência de saveiros e embarcações, dizia que não vira ainda nenhum como este. E agora iria vendê-lo...

Ouve o salto de Toufick. Vem outro árabe com ele. Este traz um cachecol enrolado ao pescoço, apesar do calor. Toufick apresenta.

-Senhor Haddad.

-Mestre Guma.

O árabe bate a mão na cabeça numa espécie de continência. Guma diz:

-Boa noite.

Toufick examina o saveiro.

-É bem grande, hem?

-Maior nesse porto não tem.

-Acho que duas viagens você leva tudo.

Haddad assentiu com a cabeça. Guma perguntou:

-Vamos largar agora?

-Vamos esperar. Ainda é cedo.

Os dois árabes sentaram no madeirame do saveiro e começaram a trocar língua. Guma fumava silenciosamente ouvindo a canção que vinha do forte velho:

Ele ficou nas ondas,

ele se foi a afogar.

Os árabes continuavam a conversar. Guma se lembrava de Lívia. Ela o pensava em viagens, atravessando a boca da barra a estas horas. De repente Toufick virou-se e disse:

-Bonita música, não é?

- É.

-Muito linda.

O outro árabe ficou calado. Fechou o paletó, disse qualquer coisa em árabe, Toufick riu. Guma olhava para eles. A voz se extinguiu no forte velho e puderam ouvir perfeitamente o embolar dos corpos no saveiro de mestre Manuel.

Meia-noite mais ou menos Toufick disse:

-Podemos ir.

Suspendeu a âncora do saveiro (Haddad ficou olhando as suas tatuagens), levantou as velas. O barco, depois da manobra, ganhou velocidade. As luzes do navio apareciam. Recomeçou a toada no forte velho. Naturalmente Jeremias cantava para a Lua nessa noite de tantas estrelas. Iam silenciosos no saveiro. Já estavam bem perto do navio quando Toufick disse:

-Pare.

O Paquete Voador parou. A uma ordem de Toufick, Guma arriou as velas. O casco do saveiro jogava lentamente. Haddad assoviou de um modo especial. Não obteve resposta. Tentou novamente. Da terceira vez ouviram um assovio que respondia.

-Podemos ir -disse Haddad.

Guma tomou os remos e não levantou as velas. O saveiro contornou o navio, foi atracar no seu casco, do lado que dava para Itapagige. Uma cabeça apareceu. Conversou com Haddad numa língua também estranha para Guma. Logo desapareceu. Depois veio outro. Nova conversa. Haddad mandou que o saveiro se adiantasse um pouco mais. Foram encostar junto a uma larga abertura. E dois homens começaram a descer peças de seda, que Guma e Toufick iam arrumando no porão do saveiro. Não foram perturbados.

Se afastou lentamente do navio. Já longe, depois de ter atravessado o quebra-mar, abriu as velas e correu de lanterna apagada. O vento o ajudava, chegou rapidamente ao porto de Santo António. Apenas as ondas eram bem mais altas, o mar menos calmo. Mas o Paquete Voador era um saveiro grande e resistia bem. Toufick comentou:

-Chegamos depressa.

Homens já esperavam o saveiro. Um deles bem vestido se adiantou:

-Tudo bem?

-Quantas viagens mais?

-Com este saveiro somente mais uma.

-O homem bem vestido atentou em Guma, que ajudava a descarga. As sedas iam para uma casa cujos fundos davam para o porto.

-É esse o rapaz?

-É, senhor Murad.

Guma olhou para o ricaço. Era um sujeito gordo, bem barbeado, vestido de preto. Ele botou a mão no ombro de Guma:

-Rapaz, você pode ganhar muito dinheiro comigo. É andar direito.

Deu mais uma olhadela para o serviço, disse a Toufick:

-Veja que tudo ande direito. Agora vou embora, que António está doente.

António era o seu filho, estudante de Direito. Tinha paixão por aquele filho literato e farrista. Desculpava tudo nele. Gostava de ver o nome do filho nos jornais assinando coisas. Foi por isso que Haddad perguntou:

-António está doente? Faça uma visita para ele.

F. Murad, antes de sair, ainda tocou no ombro de Guma:

-Ande direito comigo, que não se arrepende.

-Deixe estar.

O automóvel o esperava duas esquinas depois.

Acabada a descarga, o saveiro voltou. Novamente o porão se encheu de fardos de seda. Guma já tinha perdido a conta de quantos fardos tinham sido desembarcados. Toufick entregou um maço de dinheiro a um dos homens, que o contou à luz de uma lanterna de bolso:

-Está certo -disse o que estava por detrás, com uma pronúncia horrível.

O saveiro saiu, novamente pegaram o vento, abriram as velas e chegaram sem incidentes ao porto de Santo António. Desta vez Toufick lhe ofereceu um gole de cachaça. O saveiro foi descarregado. Haddad tinha desaparecido dentro da casa. Guma acendeu o cachimbo. Toufick veio para ele:

-Depois lhe aviso quando vou precisar de novo de você.

Tirou duas notas de duzentos, lhe deu.

-Você nunca viu esta casa, está ouvindo?

-Tá falando com um marítimo.

Toufick sorriu:

-Bonita canção aquela, não era?

Abotoou o casaco, se meteu pela casa adentro. Guma apertou as duas cédulas na mão. Manobrou o saveiro, partiu na madrugada que rompia. E só no meio da água sentiu as pernas e os braços cansados. Se estendeu no saveiro, murmurou:

-Tá parecendo que tive medo o tempo todo.

O farol da Barra piscava na madrugada.

João Caçula lhe disse:

-Tu é um homem direito.

-Arranjei de empréstimo com o tio de minha mulher. Agora vou pagando a ele. A quitanda tem dado, parece que ele vai botar um armazém. Até me chamou para sócio.

-Já vi ele uma vez em tua casa.

-Um homem bom.

-Tá se vendo.

Rodolfo apareceu uns dez dias depois. Guma tinha chegado na véspera de uma viagem a Cachoeira, ainda dormia. O velho Francisco saíra para fazer umas compras. Rodolfo ficou brincando com o sobrinho, conversando com Lívia:

-Tu ainda tá muito medrosa?

-Um dia me acostumo...

-Tá demorando chegar esse dia.

Olhou para o sobrinho, que o puxava para ver o saveiro de brinquedo na bacia de água. Falou para a irmã:

-Tu não queria que ele fosse prà quitanda dos velhos?

-Gostava, sim.

-Pois tá em tempo...

-O que é que tu tá querendo dizer? -perguntou ansiosa.

Ele a espiou por debaixo dos olhos. Se ela soubesse ainda sofreria mais:

-Não é por nada. Pelo menino. Tá crescendo, acaba gostando daqui.

Ela ainda estava desconfiada, mas serenou um pouco:

-Pensei que tinha alguma coisa.

De repente perguntou:

-Onde foi que tu arranjou o dinheiro que emprestou a Guma?

-Eu? -Mas compreendeu logo. -Eu tinha cavado um troço bom. Ia gastar mesmo aquele dinheiro...

Ela veio alisar a sua cabeça:

-Você é tão bom.

Guma levantava. Enquanto Lívia botava o café, Rodolfo falou:

-Tu tá metido no negócio de contrabando, não tá?

-Como você veio a saber?

-Eu sei disso tudo. Uma vez até já vim aqui a mando de Toufick, mas não falei nada de pena de Lívia.

-Daquela vez?

-Sim.

-Mas não vou demorar. É tempo de pagar o saveiro. E falta pouco.

-Toma cuidado. Se esse negócio rebentar, é um escândalo danado. Com Murad não acontece nada, ele tem mais de dez mil contos, se arranja. Mas o pau vai rolar nas costas dos pobres como tu. Toma cuidado.

-Não demoro nesse negócio. Não quero que Lívia...

-Mais dia menos dia há-de saber. Que dinheiro tu me tomou?

Guma riu:

-Você guentou a mão?

-Mas quase me atrapalho. Toma cuidado. Isso é um troço perigoso.

Lívia entrava com o café e uma talhada de cuscuz. Desconfiou daquela conversa em voz baixa:

-Que segredo é esse?

-Não tem segredo. A gente tava falando do garoto.

-Rodolfo também é de parecer que você deve se mudar pra junto de ti tio.

-Por causa do menino -fez Rodolfo.

-Deixa eu acabar de pagar o Paquete, negra. Ganho uns cobres, a gente faz o negócio. E agora já tá tão perto.

Pegou a mulher pela cintura. Ela se sentou no seu colo:

-Tenho tanto medo...

Rodolfo baixou a cabeça.

A segunda vez foi um carregamento pequeno de meias francesas para senhoras e perfumes. Guma recebeu cem mil-réis. Tudo correra bem. Desta vez F. Murad fora no saveiro e tivera uma longa palestra com um cavalheiro do navio. Depois pagou uma grande quantia em dinheiro. Quando voltaram F. Murad lhe disse, fazendo uma cara séria:

-Você nunca me viu ir a bordo de navio nenhum, rapaz.

-Não precisa avisar.

-Tive sabendo umas coisas de você. Dizem que é um rapaz de coragem. Quanto ainda deve do seu saveiro?

-Pagando esses cem, fico devendo só trezentos e cinquenta.

-Com mais umas poucas viagens você está com o saveiro livre. Depois vai nos deixar?

-Deixar de trabalhar para o senhor? Acho que vou, sim.

-Vai?

-Foi o que disse a seu Toufick. Entrava nisso mas podia sair na hora que quisesse. Entrei só pra pagar meu barco.

-Ninguém lhe impede de sair.

-Não tenha medo que minha boca não se abre pra contar nada.

-Não tenho medo disso. Sei que você é um rapaz direito. Mas acho que se você ficasse com a gente podia ganhar muito dinheiro.

Botou a mão no ombro de Guma:

-Acha o serviço muito perigoso?

-Tenho mulher e filho. Amanhã a Polícia dá em cima... (se lembrava das palavras de Rodolfo)... ao senhor não vai acontecer nada. O senhor é podre de rico. A coisa cai é em cima de mim.

F. Murad baixou mais a voz:

-Você pensa que ninguém sabe que eu contrabandeio? Na Polícia tem gente comprada. Vai ser difícil arranjar um rapaz como você.

Continuaram a viagem em silêncio. Quando estavam chegando F. Murad ainda o aconselhou:

-Se você quiser continuar, vai ganhar muito dinheiro.

-Vou matutar. Se decidir...

Toufick lhe avisou que daí a um mês chegava um carregamento grande. Talvez ele ganhasse uns duzentos mil-réis ou mais.

No outro dia foi levar os cem mil-réis ao Dr. Rodrigo. Ganhara naquela viagem, dissera. Caíra no jogo em Cachoeira. Uma roletazinha, fora apostar uns cinco mil-réis, acabara ganhando cento e vinte. E como já acabara de pagar a parte de João Caçula, vinha pagar a do doutor. Rodrigo, a princípio, não quis receber. Disse que Guma podia estar precisando. Mas Guma insistiu. Quanto antes pagasse o saveiro, melhor.

Saiu dali para acertar uma viagem para Santo Amaro. Ia buscar um carregamento de cachaça. Vivia das viagens, o dinheiro do contrabando era para pagar o saveiro. Depois de tudo pago podia demorar mais um pouco no negócio até ganhar uns quinhentos mil-réis. Então poderia satisfazer o desejo de Lívia. Iria para a cidade, abriria o armazém com os tios dela. Até talvez nem precisasse vender o Paquete Voador. Podia entregá-lo de sociedade a mestre Manuel ou a Maneca Mãozinha. Qualquer um deles gostaria de ficar com dois saveiros. Maneca Mãozinha, aliás, possuía era uma canoa. Ficaria bem contente se pudesse tomar conta do Paquete Voador, ganharia muito mais dinheiro. E Guma não precisava se afastar completamente do cais. Poderia vir de vez em quando, dar suas viagens também. Continuaria a ser um marítimo, a ter interesse no mar, a navegar. Satisfaria Lívia e ficaria satisfeito também, não se mudaria por completo. Aquilo é que era um bom plano. Mas para realizá-lo tinha que demorar mais tempo no negócio de contrabando para fazer o dinheiro necessário para entrar corno sócio do tio de Lívia. Mais uns meses, urnas tantas viagens, teria juntado o suficiente. Era um negócio rendoso aquele. Pena que tivesse o perigo de acabar de repente e eles todos baterem com os costados na cadeia. Se tudo fosse descoberto, iria ser um escândalo horrível. F. Murad tinha dez mil contos, as suas costas eram largas, nada lhe aconteceria. Mas a Guma, que mal tinha um saveiro...

Ele não tinha medo. Se pensava nos perigos do contrabando, era por Lívia e pelo filho. Via o filho brincando junto à bacia de água. Brincava de saveiro. Gostava das coisas do mar, era bem um filho do cais. Quando ele crescer, guiará também o Paquete Voador, andará nessas águas. Dirá que seu pai foi um dos melhores mestres de saveiro que até hoje apareceram nesse cais, e mesmo quando se mudou para a cidade não vendeu seu saveiro, de quando em vez vinha viajar também. Guma passa a mão com carinho no casco do Paquete Voador.

Foi olhar o porão. Viu o corte de seda. Tinha-se esquecido completamente daquilo. Na véspera F. Murad dera aquele corte de seda:

-Para você dar à sua esposa.

Com a pressa de ir para casa ele se esquecera da seda. Lívia havia de ficar contente. Ela tinha raros vestidos e vestidos pobres. Agora ficaria com um vestido bom, vestido de senhora chique.

Aprontou o saveiro e se dirigiu para casa. Sairia depois do almoço. Lívia o esperava na janela com o filho ao lado. Ele foi logo mostrando a seda:

-Tinha-me esquecido no saveiro.

-Que é isso?

-Veja...

Entrou. Ela saiu da janela, botou o filho no chão. Examinou a seda:

-Mas isso é seda cara -e tinha uma interrogação nos olhos.

-Ganhei numa quermesse em Cachoeira.

-Tu tá mentindo. Porque tu não me diz?

-Dizer o quê? Ganhei na quermesse, sim.

Ela dobrou a seda. Ficou em silêncio um minuto, de repente falou:

-Pra que tu deixa que eu vá saber pela boca dos outros?

-Mas o quê?

-É pior.

-Tu tá é gira...

-Tu pensa que eu não já soube? Coisa ruim a gente sabe logo. Tu tá metido em contrabando, não é?

-Foi Rodolfo que contou a você?

-Faz tempo que não ponho os olhos nele. Mas todo mundo no cais sabe que você está no lugar de Xavier…

-É mentira.

Mas era impossível negar. Era melhor contar tudo:

-Tu não vê que a gente não tinha outro jeito de se desenterrar? João Caçula já tava querendo vender o Paquete Voador, a gente ficava na mão. Eu tinha que me alugar como canoeiro, nunca que saía do cais como tu quer...

Lívia ouvia em silêncio. O garoto veio correndo lá de dentro, se agarrou nas saias dela. Guma continuou:

-Tu vê... Só fiz três viagens pra eles, já paguei quase todo o saveiro. Com mais um mês tenho o dinheiro para a gente se estabelecer com seu tio.

Arrancou com esforço.

-Se tou metido nisso, é por causa de você e do menino.

-Eu tenho é medo, Guma. Não é um dinheiro bem ganho. Um dia isso vira, a gente fica na casa do sem jeito. Eu já tinha tanto medo, quanto mais agora...

-Mas dura pouco. Ninguém descobre, quem vai descobrir? Mesmo você pensa que a Polícia não sabe? Pois tá farta de saber e de comer dinheiro do seu Murad.

-É capaz de só ser uns dois que sabe, um dia muda, vem um sério de verdade, acaba tudo.

-Nesse tempo não tou mais. Não duro mais que uns três ou quatro meses. Se chegar a isso. É o tempo de fazer um dinheirinho...

-Mesmo agora não tem mais remédio -fez ela com desalento. -Mas tu promete que larga logo que possa? Que vai comigo prà cidade alta?

-Te garanto.

Então ela desdobrou o embrulho da seda. Era uma fazenda bonita. Experimentou em cima do corpo, sorriu:

-Só faço quando você largar esse sócio.

-Não demora.

E Guma começou a contar as peripécias da passagem de contrabando.

O novo trabalho não deu a Guma o que Toufick prometera. Não viera a quantidade que eles estavam esperando, o sujeito do navio explicava naquela língua desconhecida para Guma, numa conversa interminável. Guma só recebeu cento e cinquenta mil-réis. Toufick noticiou que esperava outra carga ainda essa semana. Mas foi quando rebentou a greve dos estivadores. Os mestres de saveiro e grande parte dos canoeiros fizeram causa comum com os homens da estiva. Os estivadores venceram, as tabelas para transporte em saveiro e canoa também aumentaram. Mas houve perseguições e um estivador de nome Armando teve de fugir e foi no saveiro de Guma, que saía naquela noite já levando carga pela nova tabela. E na noite estrelada o estivador lhe contou muita coisa. Para Guma não era de noite, era a madrugada que surgia.

Dr. Rodrigo prestou grande assistência aos estivadores. Depois de tudo acabado fez um poema, em que terminava dizendo que o milagre que D. Dulce tanto esperava tinha começado a se realizar. Ela concordou, sorrindo. Estava cada vez mais curva, mas alteou o peito ao ouvir o poema. E sorria feliz. Aprendera uma nova palavra para dizer nas casas pobres do cais. Agora podiam-na chamar de boa e de amiga. Ela sabia como lhes agradecer. Tinha novamente fé. Apenas agora era diferente.

No céu de Santo Amaro a estrela de Besouro tinha desaparecido. Estava com os estivadores.

Guma fez várias outras viagens para Toufick. Pagou o saveiro. E tomou amizade ao árabe, muito gentil sempre. Haddad era que continuava calado, o cachecol desfiado em volta do pescoço. Murad aparecia raras vezes, só quando tinha algo de mais importante a tratar com homens de bordo. Agora Guma tinha duzentos e cinquenta mil-réis em casa e estava livre de dívidas. Lívia já falava do dia em que se mudariam para a cidade alta, como de coisa muito próxima. Quando ele tivesse ganho um conto de réis podia entrar para a quitanda do tio dela. E descansaria o velho, que já não dava para o trabalho. O saveiro ficaria com Maneca Mãozinha, que pagaria todo mês uma certa quantia ao velho Francisco. Lívia quase não tinha mais medo, esperava mais serena, sua agonia diminuíra de muito. Tudo estava correndo bem nos últimos tempos. Até as tabelas tinham subido, a vida do cais voltara ao normal, tinham conseguido atravessar a crise.

E gostava de ir ao saveiro nas noites em que o filho ia passear na casa dos tios dela. Ficava estirada ao lado de Guma, ouvindo as canções do cais, vendo a Lua amarela, as estrelas inúmeras, sentindo a presença de Iemanjá, que estirava os cabelos na água. Pensava que o mar é amigo, é doce amigo. E sentia pena de Guma, que ia deixar o cais, ia largar seu destino. Mas não venderia o saveiro, uma vez por outra, quando o mar estivesse assim calmo, haveriam de vir passear sobre as águas, olhar as estrelas e a Lua do mar, ouvir essas canções tristes do cais. Amariam então mais uma vez a bordo do saveiro. As ondas banhariam os corpos, o amor seria ainda melhor. As carnes teriam gosto de água salgada, os ouvidos ouviriam o murmurar do vento, o gemer dos negros nas violas e harmónicas, a voz de Jeremias cantando no forte velho. Só não ouviriam a voz de Rufino porque ele se matara por uma mulata traidora. Olhariam os tubarões atravessando a água, achariam belos os cabelos de Iemanjá, a dona dos mares e dos saveiros. Teriam saudades, teriam saudades de tudo. Guma passaria a mão no casco fiel do Paquete Voador. Se recordariam do Valente. Mas a lembrança do filho crescendo nas ruas da cidade, crescendo para um destino melhor, consolaria os corações do sacrifício feito. Mas assim mesmo teriam saudades, teriam imensas saudades, como se têm saudades de um ente amado. Porque ninguém pode nascer ou morar no mar sem o amar como amante ou amigo. Pode-se amar o oceano com amargura. Pode esse amor ser medo ou ódio. Mas é um amor que não se pode trair, que nunca se abandona. Porque o mar é amigo, é doce amigo. E talvez seja o próprio mar a terra de Aiocá, que é a pátria dos marítimos.

Terras de Aiocá

Rosa Palmeirão não traz mais navalha na saia, nem punhal no peito. O recado de Guma a alcançou em terras do pensão de última ordem onde não pagava porque o proprietário a temia. Quando o marujo a encontrou e lhe disse: «Guma mandou dizer que teu neto já nasceu», ela atirou fora a navalha da saia, o punhal do peito. Antes, porém, se utilizou deles mais uma vez, para arranjar a passagem de volta.

Lívia a recebeu como a uma amiga que não via há muito:

-Essa casa é sua.

Rosa baixou a cabeça, se apertou muito contra a criança, que a princípio fugira dela, depois tentou sorrir: -Guma foi um bicho de sorte.

O garoto perguntou se ela era mulher de Francisco, já que era sua avó. Ela pôde então chorar, já não tinha a navalha na saia, o punhal no peito. Vestiu roupas sem espalhafato, sentava na porta da casa com o menino no colo. Havia noites em que ouvia cantarem no cais o seu ABC e o escutava enleada como se fosse o ABC de outra pessoa. Só o mar dá desses presentes a seus filhos.

Pela primeira vez Guma ia pegar um temporal na passagem de contrabando. Mas viu que Lívia não estava preocupada (ela andava calma, tudo estava tão próximo de acabar) e saiu satisfeito. Toufick esperava no saveiro e desta vez, além de Haddad, havia um outro árabe jovem. Era António, o filho de F. Murad, estudante e literato, que tivera curiosidade de ver como se passava um contrabando.

As nuvens se acumulavam no céu, o vento soprava furioso. O navio ao largo era vagamente enxergado de bordo do saveiro. Toufick disse:

-Acha que vai haver temporal?

-Dos brabos...

O árabe virou-se para o filho de F. Murad:

-É melhor o senhor ir para casa, seu António.

-Deixe disso. Assim é até mais gostoso. Fica completo.

Voltou-se para Guma:

-Acha que vai haver perigo, mestre?

-Há sempre perigo.

-Então melhor.

O saveiro saiu, porém ainda não haviam chegado ao quebra-mar quando a chuva caiu. Assim mesmo Guma conseguiu arriar as velas e esperar que do navio dessem sinal. Se aproximaram com dificuldade, à força do remo. Toufick estava nervoso, Haddad apertava o cachecol contra o pescoço. António assoviava bancando uma despreocupação que na verdade não sentia. O saveiro encostou o navio, os fardos de seda começaram a aparecer. Mas o trabalho se fazia difícil porque as ondas eram muitas, a chuva caía com violência e o saveiro subia e descia, se afastava de junto do navio. Afinal concluíram o serviço, Guma manobrou, atravessaram o quebra-mar, rumaram para o porto de Santo António.

Mas o vento furioso os puxava. Não havia uma embarcação no mar, apenas uma canoa que atracara mesmo no forte velho, sem coragem de continuar a viagem. O vento desviava o Paquete Voador da sua rota. O saveiro ia muito carregado, as manobras se faziam difíceis. Guma ia agarrado ao leme, as ondas varriam o barco. Haddad murmurou:

-As sedas vão chegar inutilizadas.

Procurou umas tábuas com que cobrir o porão. Não via a tempestade, não via a morte, só enxergava as sedas se molhando. Guma o olhou com admiração. Toufick ia nervoso, temia pelo filho do patrão. Este estava pálido e se chegara para o mastro. Certa hora perguntou a Guma:

-Acha que a gente morre?

-Às vezes a gente escapa. Tudo é sorte.

Continuaram em silêncio. Iam na rota certa, mas muito para o largo, muito para um mar que não era o dos saveiros. Guma viajava para o mar dos grandes navios, era como se realizasse o seu sonho de viajar para terras distantes, como Chico Tristeza. Viam o farol da Barra iluminando como uma salvação. Mas estavam indo muito para o largo, para um mar desconhecido, aquele mar oceano das histórias das grandes aventuras que contam no cais.

Bem defronte é o porto de Santo António. Mas estão muito ao largo, Guma manobra para embicar para o porto. Pouco adiante os arrecifes cobertos de água. Manobra com felicidade, mas as águas se levantam em ondas colossais, atiram o saveiro para os arrecifes. Estava carregado de mais. Virou como se fosse um brinquedo na mão do mar. Os tubarões vieram de alguma parte, eles estão sempre próximos dos naufrágios.

Guma viu Toufick se debatendo. Pegou o árabe pelo braço, e jogou nas suas costas. E nadou para o cais. Uma luz fraca brilhava no porto de Santo António. Mas veio uma réstia de luz do farol da Barra e iluminou o caminho para Guma. Olhando para trás, ele viu os tubarões em torno do saveiro. E uns braços se agitando.

Depôs Toufick na praia e mal se levantava ouviu a voz de F. Murad:

-E meu filho? Meu António? Ele foi com vocês, não foi? Vá salvar ele. Vá. Lhe dou tudo que quiser.

Guma mal se aguentava em pé. Murad suplicava de mãos postas:

-Você também tem um filho. Vá, pelo amor de seu filho.

Guma se recordou de Godofredo no dia do Canavieiras. Todos que têm um filho suplicam assim. Ele também tem um filho. E se atira novamente na água.

É com dificuldade que nada. Já vinha cansado da travessia difícil, sob o temporal. Depois nadara com Toufick sobre as costas, nadara contra as águas e contra o vento. Agora as forças lhe faltam a cada momento. Mas continua. E chega a tempo de ver António ainda seguro no casco do saveiro que está virado, parecendo o corpo de uma baleia. Pega o rapaz pelos cabelos e recomeça a travessia. O mar o impede. Os tubarões, que já devoraram Haddad, vêm no seu rastro. Guma traz a faca na boca, António seguro pelos cabelos. Na sua frente ele vê Lívia, Lívia quase tranquila, Lívia esperando que tudo mude para melhor. Lívia, que tem um filho dele, Lívia, a mulher mais bonita do cais. E os tubarões vêm atrás, se aproximam, ele esgota as forças. Mesmo Lívia ele não vê mais. Sabe apenas que tem que nadar porque leva um filho pelos cabelos, filho de F. Murad ou seu filho, ele não distingue mais. Lívia, Lívia vai na sua frente. As águas do mar são fortes, o vento assovia. Mas ele nada, ele corta as ondas. Leva um filho, será seu filho?

Perto da areia suja do porto de Santo António ele não aguenta mais. Solta o rapaz. Porém já estão de tal maneira próximos que a água leva António para os braços de F. Murad, que exclama: "Meu filho!» E diz:

-Um médico depressa...

Guma quer ir também. Mas a rabanada do tubarão o obriga a voltar-se a faca na mão. E luta ainda, inda fere um, o sangue se espalha na água revolta. Os tubarões o levam para junto do casco emborcado do Paquete Voador.

Algum tempo depois a tempestade serenou. A lua apareceu e Iemanjá estendeu seus cabelos sobre o lugar onde Guma desaparecera. E o levou para as viagens misteriosas das terras misteriosas de Aiocá, para onde vão os valentes, os mais valentes do cais.

O vento havia jogado o Paquete Voador na areia do porto.