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Embarque em Brindisi

by Agustina Bessa-Luís

Embarque em Brindisi

Agustina Bessa-Luís

Embarque em Brindisi resulta de uma compilação de textos extraídos dos livros Alegria do Mundo I, A Brusca e Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, de Agustina Bessa-Luís, que gentilmente autorizou esta publicação.

© 1998, Agustina Bessa-Luís e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-46-5

Lisboa, Abril de 1998

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

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EMBARQUE

EM BRINDISI

ALEGRIA DO MUNDO

Julo e Pompílio

Todas as terras litorais do Alto Minho parecem emergir, como pequenas Atlântidas pedregosas e crismadas de ventos, do fundo da sua história orientalista. Foram quase todas florescentes portos onde se ouvia o repique dos martelos nos estaleiros e onde o cavername dos lugres e dos navios se levantava como uma ossada antediluviana entre as paredes dum quintal de armador, com latada de miúdo cacho coríntio. Porque sucede aos portugueses misturarem, de mente nem judiciosa nem útil, mas em monção de simples azar, as coisas grandes com as pequenas, as naus e as figuras de proa com a caldeirada de safio. Gente há por aqui que se chama ainda Pompílio ou Julo, que os tempos não subornaram jamais e que possuem, atrás da casa de barro caiada, uma oficina de barcos onde fabricam, lentamente, com intervalos pingueiros e sonolentos, obras-primas anavalhadas de siglas, pintadas de rosa e preto, com olhos ciclópicos na linha de flutuação. Em monção de azar os talham e saem-lhes malaios esses olhos antigos. Donde os copiam ou recordam não o sabem; mas têm a precedência da própria palavra monção, trazida pelos marítimos portugueses dos mares das Índias. «O tempo ou monson, como eles o chamam, em que vêm os barcos, é o mês de Julho, e permanecem em Bassora até fins de Outubro, passada cuja época não podiam sair do rio, por causa dos ventos contrários.» Este significado passou ao português monção, adaptando-o os nossos mareantes ao dizer «tempo para navegar pera tal parte». Mousin berat e mousin timor traduz-se por vento do Poente e vento do Levante. Isto informa um velho livro que por aqui guardo, propício aos interregnos da inspiração e onde aprendo ciências fabulosas e inteligentes, como a de Salvador Roca, autor de obras estimadas, entre elas a Sanidade del caballo e otros animales suje tos ai arte de albeiteria, ilustrada con el arte de herrar.

Pompílio e Julo desbastam tranquilamente o pinheiro e a acácia brava. São homens muito diferentes e ambos se dedicam ao mesmo mester. O primeiro é tartamudo e sombrio, trabalha a ocultas, finge-se umas vezes louco, outras vezes ofendido, e ninguém sabe se ganha ou perde com os seus belos barcos; não gosta de se desfazer deles, mira-os com desgosto transpor a paliçada de canas da sua horta e projecta afundá-los no rio, enchendo-os de pedras, vazando-lhes o flanco. Odeia os compradores, olha-os como inimigos, e às vezes, com um pouco de vinho, concede uma das suas obras, com um cuidado de empregá-la bem, com um esmero de recomendações, como se, em vez de entregar um barco de pesca ou de sargaço, casasse uma filha virgem e bem ourada. E quando entra no seu terreiro juncado de serrim e lascas claras, sente no ar o cheiro do verniz ou do alcatrão, vê no chão as ferramentas, os pregos tortos e que não serviram, e uma galinha que os debica com curiosidade e gula, enche-se de fúria, ameaça matar alguém e diz: «Gilinho, quem te roubou, gilinho?», -que assim chama o barco, seu caixão de canseiras, sua arca de poderes, sua fortuna de lealdade.

Julo é um homem arteiro e rabicho, sabe e usa de vaidades, carrega de banda o boné, é tão leviano quanto comunicativo. Os seus barcos têm uma alma de galeras do Nilo, quase lhes vemos toldos de seda escarlate e flâmulas bifurcadas. Mente e ilude a toda a gente, o velho Julo; vai de noite às matas injectar com ácidos as árvores para que sequem e depois lhas vendam mais baratas. As suas lanchas são leves e velozes, mas não duram, a primeira invernia as desconjunta, e, se lhe atribuem culpas, Julo diz: «Faço barcos para ricos, que servem para tirar retratos.» E havia dantes barcos encalhados na areia, que se fretavam para um passeio à barra e que tinham essa frescura convidativa e folclórica dos barcos de Julo. Saltavam nas ondas como toninhas, gemiam os remos cortando a água verde. Um terror, quase uma saudade fatalista e desatinada, apontava-nos o olhar para terra; e a grande vela cor de saibro com remendos brancos pregava-se nos ares pronta a tomar a direcção das ilhas, de Samatra ou de Bornéu. Era a autêntica mousin kering, a estação seca, ou a monção de Julho, que nos impelia nos finos, elegantes, aventurosos barcos de Julo.

Porém só os barcos de Pompílio resistiam à estação fria e chuvosa. Mousin dingin, chamavam-lhe os índios do arquipélago malaio. Esses sim, eram barcos maciços e solenes, com uma vocação de adversidade pesando na armação, vigiando na popa o leme. Que uns não são outros. Fabricam os Julos embarcações ribeiras, grande enfeite de rosetas e cruzes solimanas; e os Pompílios, na tartamuda sagacidade do seu génio, adereçam aqueles loucos e briguentos lanchões pesqueiros que se lhes vão das mãos artistas e do coração sinistro pelas águas profundas, de mar em mar.

Destas praias do Alto Minho ambos ainda se produzem os da monção de Julho, os da monção de Outubro, ambos. Aparecem eles atrás dos casebres, atrás das sebes de dálias podres e de malmequeres que cheiram a açafrão ou que cheiram simplesmente mal. Os barcos de Julo e os barcos de Pompílio - ambos.

Isto me sugerem os abrigos costeiros que foram já lugares de fama onde aportavam as naus. Riem-se-lhes os olhos malaios dos barcos novos que ali se aprontam lentamente; e o salgado vento sopra amontoando as negras algas.

15 de Julho de 1965

Thubal, O Homem

«Maravilhosas são as cousas que dizem os teólogos.» Começa assim António Vieira numa das suas orações engastadas de prudências fantásticas e revoltosas que lhe valeram cárcere, processo e faina de espírito. Esse formidável homem de letras teve de português o engenho fácil e do primeiro Adão a arte da desobediência. Muitas são as imaginações em que se meteu por prazer messiânico e gosto de confundir os pastores de leis do seu tempo. Conta ele, supomos que com escândalo razoável dos homens de meias conversas, que, tendo Japhet sete filhos, o quinto se chamou Thubal e foi o primeiro português do mundo. Caetus Thubal, com a corrupção dos anos, deu o que hoje se chama Setúbal. E consta que nesse Thubal se cumpriria o melhor da bênção de Noé; o nome profético de Thubal significa o que parece «homem de todo o mundo» , e isto sim é estado, carácter e solicitude de português.

Adianta-se António Vieira numas divagações que o Santo Ofício atalhou com comedimento e que outras mesas de juízo hoje lhe haviam de rebater não com menos reserva. De tudo, sobra-nos esse Thubal que teve do avô a fantasia marinheira, a sensibilidade da vinha embardada, e não sei que languidez estreme, entre a piedade e o zelo, coisas de proveito para a definição de cultura. Thubal, com que Japhet quis significar orbis ou mundanus, é ainda o que vós conheceis de lento repassador dos campos da terra, um homem que convive largamente e não se aperfeiçoa demasiado nos bens deste mundo. É por temperamento pródigo, cavalheiresco e desorganizado; mas vigilante em cumprir a sua razão no reino do provável, já que não lançado a fiar-se nela, mesmo depois de jurada.

Thubal, o português, vê-se que nasceu de Japhet que era um moço murcho de risos quando a piedade lhe tocava o coração. O primeiro habitante deste Ocidente tem exactamente, como os seus filhos, uma certa propensão costeira, a queda para se instalar à beira-mar e construir a esmo povoações feias, gotosas, paradas, que o desiludam depressa do lugar e lhe tragam inspirações absortas doutros azares e caminhos. Não sei se Thubal guardou no sangue a saga do avô, muito precatado cidadão e decerto razoável corredor de aventuras. Porque o Juízo Final é uma constante da mente humana; é o esbanjamento do horror perante a saturação da pequena vileza a que se sujeita o homem quotidiano. E dizemos: «Assim o mundo soçobra e se afunda, e nada sobreviverá na iniquidade; mas um justo entra numa arca que ele próprio construiu, e permanece a salvo.» Assim acreditamos no imperecível, leve, resistente, ao sabor das águas. Thubal imagino que herdou, com o melhor da bênção de Noé, aquilo de abrir estaleiro na costa e barrar de pez os barcos. Lá está Caetus Thubal construindo eternamente a arca de salvação, e bebendo goladas de vinho morno. Satírico e tristonho, com olhos azulados, pensa sem pensar, adivinha sem prever o seu Juízo Final.

Não sei se o conhecem, o tal, pintado na Capela Sistina. Grandes adamastores acobreados pairam nos ares turbulentos; os mortos ressuscitam, os pecadores precipitam-se, as almas eleitas avizinham-se do trono de Deus. Miguel Ângelo tinha do homem uma ideia catastrófica; era ainda um discípulo de Savonarola pintando a nudez monumental como uma forma de indignação. Onde está Thubal, ou Japhet, martelando cuidadosamente as pontes da arca? Não levam eles um casal de cada espécie de animais? Que espécies, senão espirituais? Que formas, senão propostas a mudança? Agora paramécias, depois pombas perfeitas. Thubal, o homem, continua a construir a sua nave que albergará todos os seres da criação. Ali tem guarida não só a inteligência ou a mansidão, como também o que é astuto e lutador; e certas espécies rasteiras, a toupeira cega e o escaravelho empurrando a sua bola de excremento se resguardam do dilúvio e esperam melhores dias. Thubal não os escolhe, guarda-os apenas como obediência e respeito. O Juízo Final da Capela Sistina não descreve esse lento vogar da arca no escuro dia da sentença divina; pinta com ardor a condenação dos pecadores, carregando-os nos braços dos seus demónios; e vê-se a chegada dos justos ao claro trono de luz, recebidos com distinção, preparando-se para lavar as mãos das misérias dos seus irmãos. Thubal, o homem, não está decerto entre eles. Está lá em baixo, na cidade onde acampou, vindo do mundo e através do mundo, através das suas próprias ruínas, procurando sempre, não escolhendo excessivamente o lugar da sua casa, o tempo do seu amigo, a nobreza da sua vocação.

O homem de todo o mundo é, de certo modo, o português tímido e concreto, saudável em resignar de muitas grandezas, convivente mais do que genial, durável mais do que imortal. Thubal, o homem, estende o juízo crítico à própria fatalidade e vai pregando as tábuas da arca, enquanto a civilização apodrece, cheira e se abisma. Guardara com respeito um casal de cada espécie, os voadores e os munidos de cascos, os que têm escamas nos olhos, os carnívoros, o símio triste, a preguiça que dorme de cabeça para baixo, os monos sábios, as rãs de ventre grande e que gritam nos charcos quietos. E todos, no silêncio da arca, esperam melhores dias. Isso enquanto soam os passos de Thubal que transporta um pequeno balde de alcatrão, isso enquanto uma claridade se apercebe aqui e além e não se perde mais na profundidade dos olhos, porque quem vê deveras a luz não reconhece mais a escuridão. Thubal, o homem de todo o mundo, senta-se no convés da sua tosca embarcação e pensa em coisas imediatas, no perigo corrente, no riso da mulher, numa jarra de vinho. Não sabe se ama tudo isso, mas não esquece, e isso é importante. Espera entregar a salvo uma espécie de cada casal; para isso construiu a arca e anda à deriva sobre os negros mares. Não se lhe pode exigir melhor.

19 Agosto 1965

Palamedes

Qualquer dia volto a Náuplia. Pelo caminho de Argos cheguei lá, e era noite. O forte veneziano estava iluminado no meio do mar, como um grande barco ancorado. As sereias de Ulisses deviam nadar em volta dele, ouvia-se o trinado das suas vozes vesperais. Na margem nós ficámos, num largo pobre onde a poeira de Argos vinha cair, rolando pela estrada da planície seca, morta, pisada. O forte de Náuplia ficou-nos na memória como um lugar brilhante, meio submerso, talvez pousado no eixo da Atlântida -um lugar inabordável. O barqueiro, de bigodes murchos e grisalhos, ofereceu-se para nos transportar. Mas do forte falaram, e repeliram a nossa presença. Parecia uma história de Kafka, a grande fortaleza no meio do mar, engrinaldada de luzes, com a multidão de criados vestidos de branco; a voz que nos proibia a entrada -e nós sedentos e empoeirados naquele cais de Náuplia. Cerca dali partiu a esquadra de Agamémnon para Tróia. Tinham víveres e vinho resinado, e cantavam levantando as âncoras. Vemos ainda as muralhas da sua cidadela, donde se descortinavam as planas terras de Argos.

Palamedes foi uma figura lendária que não teve as honras de uma tragédia. Perseguido por Ulisses, que o acusou de aliança com os troianos, acabou lapidado em hora de desgraça. Era um sábio, inventou dizem que o alfabeto, o jogo de xadrez, os pesos e medidas, o calendário e a moeda. O que não inventou Palamedes, os chineses imaginaram depois. É possível que fosse ele o autor do projecto do cavalo de Tróia, e que prometesse também aos inimigos o segredo da estratégia dos argonautas. Esse homem ambíguo e fantástico, mais grego do que qualquer dos heróis e semideuses, tem uma dimensão mais acessível hoje, e sobretudo romanesca. Podemos adivinhá-lo no seu observatório, pois foi também astrónomo e explicou os eclipses, podemos vê-lo abordado pelo rei Agamémnon, carniceiro rei e alma obscura. Palamedes era erudito, não sei se prudente. O campo de batalha, as divergências das nações não o interessavam; mas a mudança dos homens nas suas paixões talvez o convencesse a aproximar-se e a segui-los. Palamedes embarcou para Tróia com o seu tabuleiro de xadrez e as suas tabuinhas escritas em caracteres misteriosos. Deviam achá-lo louco e fútil, ou até suspeito, os companheiros de Ulisses, e ele próprio, Ulisses, o engenhoso. Palamedes saía de noite pelos campos, e mais de uma vez penetrou nas linhas inimigas, por distracção e despreocupação de toda a arte bíblica. Ulisses, que todo o tempo levava em prodígios de manha e sagacidade, viu com indignação Palamedes, que falava alto na escuridão dos campos. «Atraiçoa-nos» -dizia. E murmurava dele.

É bem possível que Palamedes tivesse um dia um encontro com Páris, que lhe chamou mestre e lhe pediu um pequeno favor, como, por exemplo, distribuir a água nos banhos ou fazer obra de engenharia nas fontes e cascatas nos seus jardins. Em dez anos de cerco criam-se relações. Ulisses não compreendia isto, e bem o demonstrou no seu regresso ao lar, quando viu o seu próprio palácio cheio de pretendentes. «Atraiçoam-me» -dizia. Tinha um génio agressivo, todavia melífluo, o que fazia com que Minerva o protegesse; ela gostava dos homens um pouco pueris, permitia-lhes sobreviver nos infortúnios, sem contudo os fazer felizes. Ulisses venerava os deuses adulando-os e servindo-se deles. Palamedes servia os homens, mesmo se os ignorava. Não podia acabar bem uma história assim. Se eu fosse dramaturgo, escrevia a vida de Palamedes, ou só o tempo decorrido nos campos de Agamémnon. Pobre rei sábio! Ainda depois de morto, foi o farol inventado por ele, o que deu a notícia da queda de Tróia e acordou em Micenas a infame Clitemnestra. Nos jardins da cidade vencida crepitavam as fontes de Palamedes, juntamente com os incêndios.

Volto a Náuplia, ainda que seja terrível o seu caminho de pó, as suas vinhas pardas, as eiras onde secam os corintos. Verei outra vez o forte veneziano no meio do mar, preto e dourado, com um sussurro de vozes de aves da água. Sereias ou gaivotas, não sei. Mas volto a Náuplia. O palácio de Palamedes soterrado, seu muro de desprezo, desfeito; seu rosto glabro, esquecido. E os criados das pensões descarnadas, e onde zumbem ainda de noite as abelhas, chamam os hóspedes com largos gestos servis. A pracinha, com aquele ar de cenário apodrecido, a voz que chega da fortaleza e pergunta, com entoação cúpida, pergunta se somos americanos. E o barqueiro mísero, de pé no barco que baloiça. «Americano?» -pergunta, ansioso, já desprendendo amarras, soltando remos. E nós ficámos. Os balõezinhos venezianos dançavam na água. Era insólito, e triste, e ignóbil, e não sei que mais. Não volto a Náuplia, estamos entendidos.

29 Junho 1967

Como o poeta Lentz

Voltei às praias antiquíssimas e, se profanadas, ainda tão encobertas e apenas molestadas pela mão do vento. Apagou-se um tanto a pegada do banhista, que não vem, porque acha frio, acha caro, acha triste. E as dunas refazem-se, os juncos crescem; a beleza da montanha de espinhaço seco converte-se numa beleza virtuosa e recatada.

Eu lembro-me. No primeiro ano, era assim de solidão e frescura. Os jovens padres, ainda de batina preta, cantavam contra o vento cantos gregorianos. Era antes do diálogo, da espécie nova de conversadores. A tolerância é, disseram já, a virtude dos cépticos. Quando a indiferença assenta arraiais nos campos todos do génesis, tornamo-nos sorridentes como um pastor aburguesado. A víbora e o lacrau não o incomodam, o lobo não uiva às suas portas, a peste não lhe leva a Corisca nem a Pinta. É um pastor nem alegre nem pesado, prestes a julgar-se bom entre os homens. Não é a glória de Javé que enche a terra, mas a satisfação do homem que nela se obstina. A subtil palavra da lei «não porás o teu Deus à prova» deixou de ser entendida. Ninguém a reconhece mais no seu coração; e a vil lamentação dos que discutem a felicidade dos ímpios apodera-se daqueles para quem a luta não era esse pequeno despeito de mendigo.

Esta longa praia vazia reconduz a gente ao pensamento sem templos e sem teorias. Como se de novo a terra se formasse e, vindo do mar, o homem prometido ao sofrimento e, no entanto, portador da boa nova, enraizasse humilde e sem decepção.

Orgulhoso e decepcionado o tempo em que clamamos. Contra todas as montanhas nos ocultamos, e a pequena rocha nos faz prever a catástrofe. Nas coisas insignificantes usamos de força e no coração sombrio perdemos a coragem.

O vasto campo do mar suspira, e, ao retirar-se, a água deixa na areia unhadas fundas. Tudo é feito para produzir transformação, tudo o que é verdade é uma forma de intolerância. Veio hoje uma peixeira velha, oracular, negra. Traz na fímbria da saia o dinheiro guardado. A sua linguagem é violenta e poética; noutra seria obscena, nela é como uma tranquila faculdade de gerar o seu próprio idioma, e não o desafio de o interpretar. Nenhum teatro a podia adoptar nem viver. Ela é tão fielmente escoltada pelas suas qualidades, humilde e sem decepção, que a inteligência descritiva não consegue submetê-la. Diz coisas tão vivas, que em cada imagem está o rito do nascimento e da morte. Reproduzir isso é torná-lo impuro.

E é esta a praia; e é este o tempo. Como as almas penadas criando, do nada que não sentem, um olhar sem profecias, volto aqui. Aqui invento perplexidades e motivos. E assim vou vivendo, como o poeta Lentz, exactamente como se fosse importante. Exactamente.

4 de Julho de 1969

A BRUSCA

Uma Pescaria

Não sei no que a Vieira se pode ter tornado, mas nesse tempo era ainda uma aldeia de pescadores, com burros à as varandas de madeira e um mercado insólito onde duas ou três pescadeiras velhas ponderavam as suas vidas, vendendo, por desfastio, uma quarta de pilritos e de camarinhas. As dunas eram altas, com baluartes de camarinheiras dum verde azedo e duro. O estuário do Lis abria-se em faixas lavradas na praia. Um fumo rosa, de evaporação, flutuava de manhã. Puxavam-se as redes com juntas de bois, e ao mar faziam-se os barcos deslizando em pranchas de pinho. Tudo era quase agressivo na doçura fria dos lugares e das gentes. Havia apenas uma pensão pobre, com colchões de palha fermentada; a locandeira revistava as malas dos hóspedes, com honesta curiosidade, e amuava, nos seus setenta anos de menina, se, precavidos, as aferrolhavam. Achava-os desconfiados e, por suposto, de más contas. Não sei se tinha razão.

Ninguém de juízo se alojava na aldeia. Um professor de línguas cafres, que enroupava o carro como se o defendesse de catarros ou de olhares sem decoro, instalara-se na vila. Da profissão que tinha, ensinando a linguagem dos Balantas, insinuara-se-lhe um africanismo esteta, pois se apresentava em estilo safari, com calções curtos e meias de linho. Creio que usava capacete colonial e binóculos de campanha, mas não o afirmo. Era uma dessas pessoas que, por terem um ofício raro, se fazem elas próprias excêntricas e um pouco marciais. Todavia, a sensação de serem diferentes torna-as comunicativas e prestáveis com a insignificância das demais espécies humanas. Andava por toda a parte com extremo à-vontade, tratava por tu a cozinheira e ia de vez em quando preparar um prato especial, com gindungo e farinha de suruí. A mulher olhava para ele com complacência não isenta de inquietação. Era um Tartarin do gentílico - e ela sabia-o.

Mas nós, propriamente, estávamos na praia. Acordava e o mar já nos chamava do fundo da escada, com aquele respirar de quem tem enfisema. Os cachopos comiam pêssegos verdes e peixe seco. Sobre grelhas de canas, via-se o carapau a curtir ao sol. Ouvia-se de súbito um motor de lancha; os ricos desciam o rio, com a sua equipagem de desporto, e vinham experimentar a água do estuário. Regressavam logo, levando às vezes com eles um amigo abrutado, de olhos garços e que sabia colocar as redes e navegar no rio.

As pescarias faziam-se em Setembro, em manhãs em geral brumosas e frescas. O método era simples, limitava-se a uma estacada que retinha o peixe em cardume suficiente para uma caldeirada. Mas às vezes era escasso ou tardio, e traziam-no de São Pedro de Muel e até de Buarcos; peixe de escama verde e ventre claro, ou o safio como um tronco de afogado; o tamboril e o lavagante, tudo com um punhado de gengibre e sopas de pão moreno. Às vezes chuviscava e o rio cobria-se duma pele crivada, dum negro denso. Os hóspedes corriam pelas margens e, de longe, aquilo parecia a cena de um desastre, como quando se vira um bote e não se sabe se acudir ou chamar. Só o professor de línguas cafres não arredava pé, e continuava a documentar-se, fazendo sugestões extremamente racionais. Ele representava ali o progresso, contra as forças enigmáticas do costume; costume que era já um rito, que atingia o significado duma leal pendência com o destino e que merecia o respeito mais submisso. Não era por ignorância, com certeza, que a saída para o mar se fazia em tão precárias condições, os barcos quase carregados pelos homens, esperando o favor da onda. E uma longa manhã se perdia naquele diálogo com a recusa do mar. Dez ou vinte vezes o barco era devolvido à praia; os homens tentavam de novo, destemidos e inermes, com o terror sagrado nos valentes corações. O professor achava que um pouco de técnica como ajuda, uma engrenagem, um nada, podiam poupar aquele esforço e conduzir a resultados mais eficazes. Surdamente, um ácido sentimento se levantou contra ele. Incauto, absorvido pela sua inteligência divulgadora, o professor não se apercebia daquela ingrata consciência dos que chamava seus discípulos. Remadores de grossos braços e veias pretas sob a pele, moços de cabelos anelados pelo sal, as velhas de saiotes franjados na orla pelo uso, olhavam-no friamente. E interrompiam o trabalho quando ele chegava, fosse o de remendar redes, fosse o de pintar um olho de Argos na proa dum barco. Não eram doidos nem sábios; não queriam corromper aquela estreita aliança com as coisas do seu mundo, coisas a que deviam tudo o que eram, a raça de luto, o pão da liberdade.

Nessa manhã de pescaria, o professor apresentou-se protegido com um casaco de pano especial, impenetrável à água e ao vento. O capuz caído para as costas deixava ver que era revestido de material sintético, igualmente fino e invulnerável. Nesse dia ele estava particularmente minucioso nos conselhos que dava e acabrunhante nas opiniões que emitia. Achava os métodos de pesca extraordinariamente primitivos. Quando toda a gente debandava, como gaivotas, abrindo grandes asas sobre a cabeça, improvisadas com lenços e toalhas, ele ficava, timonando um pequeno barco de borracha. A corrente arrastava-o para a estacada, e, como o vento era forte, ele corria na água de maneira impressionante. O peixe mergulhava para o fundo.

-Que quer ele? -perguntou um dos convidados, que tinha voltado para trás para esperar uma desconhecida com a qual pensava travar conversa. Viu na relva um livro, que era o diário de férias do professor, e abriu-o. «Os povos falhados são os que sobrevivem», leu ele. E fechou o livro. Nessa altura, o professor aproximava-se da linha de estacas, perante o silêncio dos pescadores que o olhavam da margem; o barco rasgou-se como se fosse feito de papel, ao ser atirado pela corrente contra as puas de madeira.

-Santo nome! -disse a desconhecida. Começou a soluçar, sem compreender bem o que se passava. O convidado afastou-se dela, com uma espécie de repugnância, pois a morte violenta não é boa condutora dos amantes. O professor foi retirado s redes, juntamente com algum peixe miúdo e detritos.

-Este ano não prestou a pescaria -disseram os ricos. Em compensação, a caldeirada, essa foi excelente. Tinha robalo e tinha pescada e algum pedaço de lagosta semicrua, rangente, fina. Tomou-se café sob as ramadas, que abrigavam do vento; e as crianças corriam como gatos debaixo das mesas, entornando os restos de vinho. Não sei que deserto morno era o do caminho por onde voltámos; mas pareceu-me a natureza aplacada, e um silêncio nobre e glauco era o do mar. Do professor já não havia memória. As mulheres não falaram dele no seu mesquinho mercado, na manhã seguinte; falaram de uma pita morta por um carro, e dos fiados que assentavam no livro da loja. Loja sobrenatural, com maços de velas tatuados pelas moscas, que comércio de almas e de tempo se fazia lá! «Não, não vivo disto; morro disto», disse-nos uma vez o dono, fatalista, meio letrado, amargo como salmoura. Tinha a paixão de negociar com a ruína dos outros, como se negociasse com promessas.

-Não podes pagar, juro-te que não me podes pagar nunca mais em dias da tua vida.

-Então não levo, então não como.

-Isso podes levar, isso podes comer. Mas pagar, não penses que pagas, porque não podes.

O contrato era assim. Loucos ou sábios, como o saberemos? Consolávamos o inquieto coração pousando os olhos na linha imaginária do horizonte, e vivíamos.

CONVERSAÇOES COM DMITRI E OUTRAS FANTASIAS

Embarque em Brindisi

Escrever uma página inspirada não acontece todos os dias. Às vezes movemos o pensamento pelos atribulados caminhos do doméstico, que corrompem a subtileza e a graça; outras vezes pomos na cabeça o nosso gorro sábio, e resulta uma enfadonha tabuada de sentimentos. Mas pode suceder também que o longo tempo de submissão às condições da vida prepare a revelação de um momento excepcional. Como hoje, em que, subitamente, sem desígnio celeste, nem interpretação moral, nos inscrevemos na hospedaria do desencontro, onde nada se acha do que nos sucede, mas só a poeira dos pequenos incidentes humanos que não tiveram história.

Em Brindisi, foi em Brindisi. Comércio portuário, silêncio suplicante no crepúsculo de Brindisi; grandes bonecas de rosto alarve e sonso abrem os olhos de esmalte dentro das suas caixas de cartão. A poeira do cais adere como um trapo no cimento, um barco parte de Brindisi ao anoitecer. Estudantes ingleses, byronianos e errantes, sobem para a popa onde passarão a noite, sob as estrelas. Usam longos cabelos como pajens, e, porque não são belos, isso parece-nos indecente. Pois a excentricidade é a beatitude de um privilégio, não é a missão dos espíritos pobres. Como não são belos os jovens ingleses, com os seus lábios carnudos e cor-de-rosa, com os seus caracóis de diva, causam-nos desgosto e medíocre impressão. Não estão alegres nem tristes partindo de Brindisi ao partir da noite; provavelmente estão apenas cansados e sem interesse pela aventura que escolheram. Entre eles, como um grande anjo andrógino e convalescente, anda uma rapariga que bebe devagar uma laranjada. O rosto faminto e inexpressivo é apenas uma caracterização. Não sem surpresa, verificamos que os homens e as mulheres novas teatralizam a sua consciência, não se informam dela. Um rosto humano é feito de horas minuciosas, não surge de repente aberto e realizado perante a façanha de viver. Justamente em Brindisi, que não era já a cidade de Virgílio, onde, na sua liteira, prostrado pelas febres solares, ele morreu, havia um rosto humano.

Era uma mulher já um pouco distraída da sua juventude, mas bela. Era pobre. A maneira como ela perguntava o preço da passagem para Patras absorvia todo o seu espírito, dava-lhe uma expressão quase demente, como só os pobres têm quando tratam de dinheiro. Não conhecem a ganância, não conhecem o significado do lucro; medem e pesam, com um desprendimento inumano de tudo aquilo que não é o preço da sua necessidade. Naquela mulher que comprava um bilhete de convés para Patras, havia uma tal paixão de convencer a escassez a ser-lhe bastante, que todos nós sentimos que ela era capaz de ignorar a fortuna, a cidade propícia, os convites obscuros e leais, para só persuadir aquele momento a ser-lhe útil. Não queria seduzir ninguém; no entanto, seria quase louvável que o fizesse, porque a sua beleza comunicava espanto, e gratidão e também crueldade. Não sabemos porque a beleza incide sobre a jazida da crueldade, mas assim é. Era magra e escura, tinha uns olhos sérios, grandes, com pestanas como penas molhadas. E trazia pela mão um rapazinho feio e desengonçado, um desses meninos arrevesados e trágicos que não sabemos de que promessas nasceram, que pátrias lhes deram nome; e que representam para uma mãe formosa uma pobreza mais. Ela queria partir no barco dessa noite, e contava com sofreguidão e empenho o seu dinheiro, que era pouco e que não chegava. Sob a burocrática indiferença do empregado da agência de viagens, havia uma pequena desordem do coração, despeito e infâmia, não se sabe o quê. De repente, todos nós vimos isso, a veemência absurda daquela mulher que queria partir e que trazia pela mão um rapazinho meio vadio e que ela arrastava consigo com desespero, provocou um fenómeno inexprimível. O empregado da agência apaixonou-se por ela. Era um homem inteligente e cínico; tinha um sorriso intrépido e fino quando ouvia as reclamações das ricas americanas. E, de repente, apaixonou-se. Ficou morto o seu rosto pálido, só se descobria nele a crueldade. E quando lhe seria tão fácil ignorar a falta de algumas moedas, a insignificante quantia que a mulher necessitava para partir, ele insistiu em avolumar a impossibilidade, e o seu rosto morto enfrentou a magia que ela tinha trazido àquele lugar, em Brindisi. A crueldade dominou-o, e nada pôde fazer pela mulher. E também nós tememos fazer por ela algo de bom.

Ela saiu da agência. Era de facto muito bela, escura, vestida de preto, com olhos inquietos e sérios. Parecia perseguida e conformada; arrastava consigo o filho com um ardor que comovia mais do que se demonstrasse por ele ternura.

Foi em Brindisi. Não sei se me expliquei bem, as letras não servem às vezes ao coração da realidade. Mas penso que um rosto humano é feito de momentos assim, de continuidade, de paixão que não serve aos homens senão para que resistam ao seu grande espanto de viver. Assim é. Vejo Brindisi ao cair da tarde, cidade portuária e desenganada, com grandes bonecas encaixadas às portas, vestidas de azul e rosa. Como meretrizes honestas e sem alma. E os inglesinhos de compridos cabelos, de queixos agudos, feios. A excentricidade deles, os moços de bordo em mangas de camisa, a fuligem nos bancos do convés, a partida de Brindisi à noite e o rulho do mar à noite. E aquele imóvel rosto, aquela recusa fria, o sádico encanto do amor que resistia a participar e a ser. E a beleza, prodígio para sempre pobre e desamparado, não embarcara em Brindisi. Não embarcava em parte alguma, eu tinha a certeza disso.