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Embarque em Brindisi
Agustina Bessa-Luís
Embarque em Brindisi resulta de uma compilação de textos extraídos dos livros Alegria do Mundo I, A Brusca e Conversações com Dmitri e Outras Fantasias, de Agustina Bessa-Luís, que gentilmente autorizou esta publicação.
© 1998, Agustina Bessa-Luís e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8396-46-5
Lisboa, Abril de 1998
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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EMBARQUE
EM BRINDISI
ALEGRIA DO MUNDO
Julo e Pompílio
Todas as terras litorais do Alto Minho parecem emergir, como pequenas Atlântidas pedregosas e crismadas de ventos, do fundo da sua história orientalista. Foram quase todas florescentes portos onde se ouvia o repique dos martelos nos estaleiros e onde o cavername dos lugres e dos navios se levantava como uma ossada antediluviana entre as paredes dum quintal de armador, com latada de miúdo cacho coríntio. Porque sucede aos portugueses misturarem, de mente nem judiciosa nem útil, mas em monção de simples azar, as coisas grandes com as pequenas, as naus e as figuras de proa com a caldeirada de safio. Gente há por aqui que se chama ainda Pompílio ou Julo, que os tempos não subornaram jamais e que possuem, atrás da casa de barro caiada, uma oficina de barcos onde fabricam, lentamente, com intervalos pingueiros e sonolentos, obras-primas anavalhadas de siglas, pintadas de rosa e preto, com olhos ciclópicos na linha de flutuação. Em monção de azar os talham e saem-lhes malaios esses olhos antigos. Donde os copiam ou recordam não o sabem; mas têm a precedência da própria palavra monção, trazida pelos marítimos portugueses dos mares das Índias. «O tempo ou monson, como eles o chamam, em que vêm os barcos, é o mês de Julho, e permanecem em Bassora até fins de Outubro, passada cuja época não podiam sair do rio, por causa dos ventos contrários.» Este significado passou ao português monção, adaptando-o os nossos mareantes ao dizer «tempo para navegar pera tal parte». Mousin berat e mousin timor traduz-se por vento do Poente e vento do Levante. Isto informa um velho livro que por aqui guardo, propício aos interregnos da inspiração e onde aprendo ciências fabulosas e inteligentes, como a de Salvador Roca, autor de obras estimadas, entre elas a Sanidade del caballo e otros animales suje tos ai arte de albeiteria, ilustrada con el arte de herrar.
Pompílio e Julo desbastam tranquilamente o pinheiro e a acácia brava. São homens muito diferentes e ambos se dedicam ao mesmo mester. O primeiro é tartamudo e sombrio, trabalha a ocultas, finge-se umas vezes louco, outras vezes ofendido, e ninguém sabe se ganha ou perde com os seus belos barcos; não gosta de se desfazer deles, mira-os com desgosto transpor a paliçada de canas da sua horta e projecta afundá-los no rio, enchendo-os de pedras, vazando-lhes o flanco. Odeia os compradores, olha-os como inimigos, e às vezes, com um pouco de vinho, concede uma das suas obras, com um cuidado de empregá-la bem, com um esmero de recomendações, como se, em vez de entregar um barco de pesca ou de sargaço, casasse uma filha virgem e bem ourada. E quando entra no seu terreiro juncado de serrim e lascas claras, sente no ar o cheiro do verniz ou do alcatrão, vê no chão as ferramentas, os pregos tortos e que não serviram, e uma galinha que os debica com curiosidade e gula, enche-se de fúria, ameaça matar alguém e diz: «Gilinho, quem te roubou, gilinho?», -que assim chama o barco, seu caixão de canseiras, sua arca de poderes, sua fortuna de lealdade.
Julo é um homem arteiro e rabicho, sabe e usa de vaidades, carrega de banda o boné, é tão leviano quanto comunicativo. Os seus barcos têm uma alma de galeras do Nilo, quase lhes vemos toldos de seda escarlate e flâmulas bifurcadas. Mente e ilude a toda a gente, o velho Julo; vai de noite às matas injectar com ácidos as árvores para que sequem e depois lhas vendam mais baratas. As suas lanchas são leves e velozes, mas não duram, a primeira invernia as desconjunta, e, se lhe atribuem culpas, Julo diz: «Faço barcos para ricos, que servem para tirar retratos.» E havia dantes barcos encalhados na areia, que se fretavam para um passeio à barra e que tinham essa frescura convidativa e folclórica dos barcos de Julo. Saltavam nas ondas como toninhas, gemiam os remos cortando a água verde. Um terror, quase uma saudade fatalista e desatinada, apontava-nos o olhar para terra; e a grande vela cor de saibro com remendos brancos pregava-se nos ares pronta a tomar a direcção das ilhas, de Samatra ou de Bornéu. Era a autêntica mousin kering, a estação seca, ou a monção de Julho, que nos impelia nos finos, elegantes, aventurosos barcos de Julo.
Porém só os barcos de Pompílio resistiam à estação fria e chuvosa. Mousin dingin, chamavam-lhe os índios do arquipélago malaio. Esses sim, eram barcos maciços e solenes, com uma vocação de adversidade pesando na armação, vigiando na popa o leme. Que uns não são outros. Fabricam os Julos embarcações ribeiras, grande enfeite de rosetas e cruzes solimanas; e os Pompílios, na tartamuda sagacidade do seu génio, adereçam aqueles loucos e briguentos lanchões pesqueiros que se lhes vão das mãos artistas e do coração sinistro pelas águas profundas, de mar em mar.
Destas praias do Alto Minho ambos ainda se produzem os da monção de Julho, os da monção de Outubro, ambos. Aparecem eles atrás dos casebres, atrás das sebes de dálias podres e de malmequeres que cheiram a açafrão ou que cheiram simplesmente mal. Os barcos de Julo e os barcos de Pompílio - ambos.
Isto me sugerem os abrigos costeiros que foram já lugares de fama onde aportavam as naus. Riem-se-lhes os olhos malaios dos barcos novos que ali se aprontam lentamente; e o salgado vento sopra amontoando as negras algas.
15 de Julho de 1965
Thubal, O Homem
«Maravilhosas são as cousas que dizem os teólogos.» Começa assim António Vieira numa das suas orações engastadas de prudências fantásticas e revoltosas que lhe valeram cárcere, processo e faina de espírito. Esse formidável homem de letras teve de português o engenho fácil e do primeiro Adão a arte da desobediência. Muitas são as imaginações em que se meteu por prazer messiânico e gosto de confundir os pastores de leis do seu tempo. Conta ele, supomos que com escândalo razoável dos homens de meias conversas, que, tendo Japhet sete filhos, o quinto se chamou Thubal e foi o primeiro português do mundo. Caetus Thubal, com a corrupção dos anos, deu o que hoje se chama Setúbal. E consta que nesse Thubal se cumpriria o melhor da bênç&ati