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“Peregrinação” E tais Pancadas tem a Costa da China
Fernão Mendes Pinto
A publicação dos capítulos 1 e 59 a 67 do livro Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, foi gentilmente autorizada por Maria Alberta Menéres.
© 1996, Maria Alberta Menéres e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-76-6
Lisboa, Fevereiro de 1997
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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E TAIS PANCADAS TEM
A COSTA DA CHINA
Do que passei em minha
mocidade neste reino
até que me embarquei para a Índia
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida.
Com António de Faria
pelejou com o corsário Coja Acém
e do que com ele lhe sucedeu
Velejando nós pelo rio acima com vento e maré que Nosso Senhor então nos deu, em menos de uma hora chegámos onde os inimigos estavam, que até este tempo nos não tinham ainda sentido; mas como eles eram ladrões e se temiam da gente da t erra, pelos males e roubos que ali cada dia lhe faziam, estavam tão aparelhados e tinham tão boa vigia que em nos vendo tocaram um sino muito apressadamente, ao som do qual foi tamanho o rumor e revolta de gente, tanto da que estava em terra como da que estava embarcada, que não havia quem se ouvisse com eles, o que vendo António de Faria, bradou logo, dizendo:
-Eia, senhores e irmãos meus, a eles, com o nome de Cristo, antes que as suas lorchas lhes acudam! Santiago!
E disparando toda a nossa artilharia, prouve a Nosso Senhor que se empregou tão bem que dos mais esforçados que já neste tempo estavam em cima do chapitéu, veio logo abaixo a maior parte, feitos em pedaços, o que foi um bom prognóstico do nosso desejo.
Após isto, os nossos atiradores, que seriam cento e sessenta, pondo fogo a toda a arcabuzaria, conforme o sinal que lhes fora feito, os conveses de ambos os juncos ficaram tão vazios da multidão que antes neles se via, que já nenhum dos inimigos ousava aparecer. Os nossos dois juncos, abalroando então os dois dos inimigos assim como estavam, a briga se travou entre todos, de maneira que realmente confesso que não me atrevo a particularizar o que nela se passou, ainda que me achasse presente, porque ainda neste tempo a manhã não era bem clara, e a revolta dos inimigos e nossa era tamanha, juntamente com o estrondo dos tambores, bacias e sinos, e com as gritas e brados de uns e dos outros, acompanhados de muitos pelouros de artilharia e de arcabuzaria, e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos vales e outeiros, que as carnes tremiam de medo; e durando assim esta briga por espaço de um quarto de hora, as suas lorchas e lanteas lhes acudiram de terra com muita gente de reforço, vendo o que, um tal Diogo Meireles, que vinha no junco de Quiay Panjão, e que o seu condestável, dos tiros que fazia nenhum acertava, por andar tão pasmado e fora de si que nenhuma coisa acertava, estando ele então para dar fogo a um camelo, meio turvado, o empurrou tão de rijo que deu com ele da escotilha abaixo, dizendo:
-Guar-te daí, vilão, que não prestas para nada, porque este tiro neste tempo é para os homens como eu, e não para os tais como tu!
E apontando o camelo por suas miras e regra de esquadria, de que sabia razoavelmente, deu fogo à peça que estava carregada com pelouro e roca de pedras, e tomando a primeira lorcha que vinha na dianteira, por capitânia das quatro, a descoseu toda de popa à proa pelo a1catrate da banda de estibordo, com o que tudo ficou raso com a água, de maneira que logo ali a pique se foi ao fundo, sem dela se salvar pessoa nenhuma, e varejando a munição da roca por cima, deu no convés de outra lorcha que vinha um pouco mais atrás, e lhe matou o capitão e seis ou sete que estavam junto dele, do que as outras duas ficaram tão assombradas que querendo tornar a voltar para terra, se embaraçaram ambas nos guardins das velas de maneira que nenhuma delas se pôde mais desembaraçar, e assim presas uma na outra estiveram ambas estacadas sem poderem ir para trás nem para diante.
Vendo então os capitães das nossas duas lorchas (os quais se chamavam Gaspar de Oliveira e Vicente Morosa) o tempo disposto para efectuarem o desejo que traziam, e a inveja honrosa de que ambos se picavam, arremeteram juntamente a elas, e lançando-lhes muita soma de panelas de pólvora, se ateou o fogo em ambas, de maneira que assim juntas como estavam arderam até ao lume da água, com o que a maior parte da gente se lançou ao mar, e os nossos acabaram ali de matar a todos às zargunchadas, sem um só ficar vivo; e somente nestas três lorchas morreram passante de duzent as pessoas; e a outra que levava o capitão morto, tão-pouco pôde escapar, porque Quiay Panjão foi atrás dela na sua champana, que era o batel do seu junco, e a foi tomar já pegada com terra, mas sem gente nenhuma, porque toda se lhe lançou ao mar, de que a maior parte se perdeu também nuns penedos que estavam junto da praia, com a qual vista os inimigos que ainda estavam nos juncos, que podiam ser até cento e cinquenta, e todos mouros lusões, e bornéus, com alguma mistura de jaus, começaram a enfraquecer, de maneira que muitos começavam já a se lançar ao mar.
O perro do Coja Acém que até este tempo não era ainda conhecido, acudiu com muita pressa ao desmancho que via nos seus, armado com uma coura de lâminas de cetim carmesim franjada de ouro, que fora de portugueses, e bradando alto para que todos o ouvissem, disse por três vezes:
-Lah hilah hilah lah muhamd roçol halah, ó massoleimões e homens justos da santa lei de Mafamede, como vos deixais vencer assim por uma gente tão fraca como são estes cães, sem mais ânimo que de galinhas brancas e de mulheres barbadas? A eles, a eles, que certa temos a promessa do livro das flores, em que o profeta Noby abastou de deleites os daroeses da casa de Meca. Assim fará hoje a vós e a mim, se nos banharmos no sangue destes cafres sem lei!
Com as quais malditas palavras o Diabo os esforçou de maneira que fazendo-se todos num corpo, amoucos, tornaram a voltar tão esforçadamente que era espanto ver como se metiam nas nossas espadas.
António de Faria então bradando também aos seus, lhes disse:
-Ah, cristãos e senhores meus, se estes se esforçam na maldita seita do Diabo, esforcemo-nos nós em Cristo Nosso Senhor posto na Cruz por nós, que nos não há-de desamparar, por mais pecadores que sejamos, porque enfim somos seus, o que estes perros não são.
E arremetendo com este fervor e zelo da fé, ao Coja Acém, como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu com ambas as mãos com uma espada que trazia, uma tão grande cutilada pela cabeça, que cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão, e tornando-lhe com outro revés lhe decepou ambas as pernas, de que se não pôde mais levantar, o qual sendo visto pelos seus, deram uma grande grita e arremetendo a António de Faria se igualaram com ele uns cinco ou seis com tanto ânimo e ousadia que nenhuma conta fizeram de trinta portugueses de que ele estava rodeado, e lhe deram duas cutiladas, com que o tiveram quase no chão, o que vendo os nossos, acudiram logo com muita pressa, e esforçando-os ali Nosso Senhor, o fizeram de maneira que em pouco mais de dois credos foram mortos, dos inimigos ali sobre o Coja Acém, quarenta e oito, e dos nossos catorze somente, de que só cinco foram portugueses, e os mais moços escravos muito bons cristãos e muito leais. Já neste tempo os que ficavam começaram a enfraquecer, e se foram retirando desordenadamente para os chapitéus da proa, com a tenção de se fazerem aí fortes, a que vinte soldados dos trinta que estavam no junco de Quiay Panjão, acudiram com muita pressa, e tomando-os de rosto antes que se assenhoreassem do que pretendiam, os apertaram de maneira que os fizeram lançar todos ao mar, com tamanho desatino que uns caíam por cima dos outros. Animados então os nossos com o nome de Cristo Nosso Senhor, por quem chamavam continuamente, e com a vitória que já conheciam, e com a muita honra que tinham ganho, os acabaram ali de matar e consumir a todos, sem ficarem deles mais que só cinco que tomaram vivos, os quais, depois de presos e atados de pés e mãos, e lançados em baixo na bomba para com tratos se lhes fazerem algumas perguntas, se degolaram às dentadas uns aos outros com receio da morte que se lhes podia dar. E estes também foram feitos em quartos pelos nossos moços e lançados ao mar, em companhia do perro do Coja Acém, seu capitão e caciz-mor de el-rei de Bintão, e derramador e bebedor do sangue português, como se ele intitulava nos começos das suas cartas, e publicamente pregava a todos os mouros, por causa do que, e pelas superstições da sua maldita seita, era deles muito venerado.
Do mais que António de Faria
fez depois que houve esta vitória
e da liberalidade que aqui usou
com os portugueses de Liampó
O processo desta cruel e áspera peleja, cujo fim foi esta gloriosa vitória que tenho contado, quis escrever assim brevemente e em resumo, porque se me pusera a contar por extenso todas as particularidades dela, tanto do muito que os nossos fizeram, como do grande esforço com que os inimigos se defenderam, além de não ter eu cabedal para tanto, me fora necessário fazer um processo muito mais largo e uma história muito mais comprida que esta; porém, como minha tenção é somente tocar estas coisas como de corrida, trabalho sempre quanto posso para ser breve em muitas coisas em que porventura outros engenhos melhores que o meu se alargaram muito e fizeram muito caso delas, se as viram ou as escreveram; e por isso eu não tocando agora mais que aquelas coisas que de necessidade se hão-de escrever, me torno ao de que ia tratando. A primeira coisa a que António de Faria atendeu, depois desta vitória, foi a cura dos feridos, que por todos seriam noventa e dois, de que os mais foram portugueses e moços nossos. Após isto, querendo saber o número dos mortos, achou dos nossos quarenta e dois, entre os quais foram oito portugueses, o que António de Faria mostrou sentir mais que tudo, e dos inimigos trezentos e oitenta, de que só cento e cinquenta foram a ferro e fogo, e todos os mais afogados. E ainda que esta vitória fosse de todos muito festejada, não deixou de haver nela assaz de lágrimas públicas e secretas pela morte dos companheiros que ainda estavam por enterrar, e os mais deles com as cabeças feitas em quartos pelas machadinhas com que os inimigos pelejavam.
António de Faria, ainda que estivesse com três feridas, desembarcou logo em terra com toda a gente que estava boa para o poder acompanhar, onde primeiro que tudo se tratou do enterramento dos mortos, na qual obra se gastou a maior parte do dia.
Após isto, foi logo António de Faria correr toda a ilha em roda, para ver se havia nela alguma gente, e foi dar num vale muito aprazível de muitas hortas e pomares de muita diversidade de frutas, no qual estava uma aldeia de quarenta ou cinquenta casas térreas que Coja Acém tinha saqueado, e dado a morte a alguns dos moradores dela que não puderam fugir. Mais abaixo do vale, cerca de um tiro de besta, ao longo de uma fresca ribeira de água doce em que havia muita quantidade de mugens, e trutas, e robalos, estava uma teracena ou casa grande que parecia ser templo daquela aldeia, a qual estava toda cheia de doentes e feridos que Coja Acém ali tinha em cura, entre os quais havia alguns mouros parentes seus, e outros também honrados que ele trazia a soldo, que eram, por todos, noventa e seis; estes, em vendo António de Faria, deram uma grande grita como que a pedir-lhe misericórdia, a qual ele então não quis usar com eles, dando por razão que se não podia dar a vida a quem tantos cristãos tinha morto, e mandando-lhes pôr fogo por seis o u sete partes, como a casa era de madeira breada e coberta de folha de palmeira seca, ardeu de maneira que foi uma espantosa coisa de ver, e em parte piedosa, pela horribilidade dos gritos que os miseráveis davam dentro quando a labareda começou a se atear por todas as partes; alguns deles se quiseram lançar pelas frestas que a casa tinha por cima, porém os nossos como magoados os receberam de maneira que no ar eram espetados em muitas chuças e lanças. Acabada esta crueza, tornando-se António de Faria à praia onde estava o junco que Coja Acém tomara havia vinte e seis dias aos portugueses de Liampó, entendeu logo em o lançar ao mar, porque já neste tempo estava consertado, e depois de estar na água o entregou a seus donos, que eram Mem Taborda e António Anriquez, ( ... ). E fazendo-os pôr a mão a ambos num livro que tinha na mão, lhes disse:
-Eu, em nome destes meus irmãos e companheiros tanto vivos como mortos, a quem este vosso junco tem custado tantas vidas e tanto sangue como hoje vistes, vos faço esmola como cristão, de tudo, para que Deus Nosso Senhor no-la receba por essa no seu santo reino, e nos queira dar nesta vida perdão de nossos pecados, e na outra a sua glória, como confio que dará a estes nossos irmãos que hoje morreram como bons e fiéis cristãos, por sua santa fé católica; porém vos peço e recomendo muito e vos admoesto por este juramento que vos dou, que não tomeis mais que a vossa fazenda somente, digo, toda a que trazíeis de Liampó, tanto vossa como de partes neste vosso junco, porque nem eu vos dou mais, nem é razão que vós a tomeis, porque faremos ambos nisso o que não devemos, eu em vo-la dar e vós em a tomardes.
Mem Taborda e António Anriquez, que quiçá não esperavam aquilo dele, se lhe lançaram aos pés com os olhos cheios de água, e querendo com palavras dar-lhe as graças pela mercê que lhes fazia, o ímpeto das lágrimas lho impediu, de maneira que se tornou ali a renovar um lastimoso e triste pranto pelos mortos que ali estavam já enterrados, e com a terra que tinham em cima de si, ainda banhada pelo seu fresco sangue. Os dois começaram logo a entender em cobrarem sua fazenda, e foram por toda a ilha com cerca de cinquenta ou sessenta moços que os senhores deles lhes emprestaram, a recolher a seda molhada que ainda estava a enxugar, de que todas as árvores estavam cheias, fora mais de duas casas em que estava a enxuta, e a mais bem acondicionada, que como eles tinham dito eram cem mil taéis de emprego, no que tinham parte mais de cem homens, tanto dos que ficavam em Liampó, como de outros que estavam em Malaca, a quem se ela lá mandava. E a fazenda que estes dois homens ainda recolheram valeria de cem mil cruzados para cima, porque a mais, que podia ser a terça parte, se perdeu na podre, na molhada, na quebrada, e na furtada, de que nunca se soube parte.
Recolhendo-se após isto, António de Faria, para a sua embarcação, não atendeu aquele dia a mais que visitar e prover os feridos, e agasalhar os soldados, por ser já quase noite; e quando ao outro dia foi manhã clara, foi ao junco grande que tinha tomado, o qual estava ainda cheio de corpos mortos do dia anterior, e mandando-os lançar todos ao mar, da maneira que estavam, só ao perro do Coja Acém, por ser mais honrado e merecer mais fausto e cerimónia nas suas exéquias, o mandou tomar assim vestido e armado como ainda jazia, e feito em quartos o mandou também lançar ao mar, onde a sepultura que então teve o seu corpo, por assim o merecer sua pessoa e suas obras, foram buchos de lagartos, de que andava grande quan tidade a bordo do junco, à carniça dos mortos que se lançavam, e ao qual António de Faria, em lugar de oração que lhe rezava pela alma, disse:
-Andar, muiti eramá para esse inferno, onde a vossa enfuscada alma agora estará gozando dos deleites de Mafamede, como ontem com grandes brados pregáveis a essoutros cães tais como vós.
E fazendo logo vir perante si todos os escravos, cativos, tanto sãos como feridos, que trazia em sua companhia, mandou também chamar os senhores deles, e a todos lhes fez uma fala de homem bom cristão, como na verdade o era, em que lhes pediu que pelo amor de Deus tivessem todos por bem lhes darem liberdade, da maneira que ele lhes tinha prometido antes da peleja, porque ele de sua fazenda lhes satisfaria muito à sua vontade; ao que todos responderam que pois sua mercê assim o havia por bem, eles eram muito contentes, e os haviam como forros e livres daquele dia para sempre. E disto se fez logo um assento, em que todos assinaram, porque por então se não pôde fazer mais, e depois em Liampó lhes deram a todos suas cartas de alforria. Após isto, se fez inventário da fazenda que liquidamente se achou, tirando a que se deu aos portugueses e foi avaliada em cento e trinta mil taéis em prata do Japão e fazendas limpas, como foram cetins, damascos, seda, retrós, tafetás, almíscar e porcelanas de barça muito finas, porque então se não fez mais receita do mais que este corsário tinha roubado por toda aquela costa de Sumbor até ao Fuchéu, onde havia passante de um ano que continuava.
Como António de Faria se partiu
deste rio Tinlau para Liampó,
e de um desventurado sucesso
que teve na viagem
Depois de haver já vinte e quatro dias que António de Faria estava neste rio de Tinlau, dentro dos quais os feridos todos convalesceram, se partiu para Liampó onde levava determinado invernar, para daí na entrada do Verão cometer a viagem das minas de Quãogeparu, como tinha assentado com o Quiay Panjão que levava em sua companhia. E estando tanto avante como a ponta de Micuy, que está em altura de vinte e seis graus, lhe deu um rijo contraste de noroeste, pelo que, por conselho dos pilotos pairou à trinca, para não perder o caminho que tinha andado; este tempo carregou sobre a tarde, com chuveiros e mares tão grossos que as duas lanteas de remo, por o não poderem sofrer, se fizeram já quase noite na volta da terra, com o propósito de se meterem no rio de Xilendau que estava dali a uma légua e meia. António de Faria, também temendo que lhe acontecesse algum desastre, se afastou o mais depressa que pôde, e marcando-se pela sua esteira as foi seguindo com cerca de cinco ou seis palmos de vela somente, tanto para as não escorrer, como por ser o ímpeto do vento tão rijo que não era possível apará-lo. E como a cerração da noite era muito grande, e o escarcéu rebentava todo em flor, não enxergou o baixo que estava entre o ilhéu e a ponta do recife, e varando por cima dele deu tamanha pancada que a sobrequilha lhe rebentou logo por quatro lugares, com parte do couce da quilha debaixo; e querendo então o seu condestável dar fogo a um falcão para que os outros juncos lhes acudissem naquele trabalho, ele o não quis consentir, dizendo que já que Nosso Senhor era servido de eles ali acabarem, não queria nem era razão que também os outros por sua causa ali se perdessem, mas que pedia e rogava a todos que o ajudassem, a trabalharem em público com as mãos e em secreto pedirem a Deus perdão dos seus pecados, e graça para e mendarem a vida, porque se assim o fizessem de todo o seu coração, ele lhes dizia que muito cedo se veriam a salvo e livres, daquele trabalho. E com isto, arremetendo ao mastro grande, o fez cortar junto dos tamboretes da segunda coberta, e em este caindo ficou o junco algum tanto quieto, ainda que a sua queda custasse a vida de três marinheiros e de um moço nosso, porque ao cair os colheu debaixo e os fez em pedaços; e após este, mandou também cortar todos os outros mastros de popa e de proa, e arrasar todas as obras dos gasalhados, de modo que tudo foi fora até à primeira coberta, e conquanto estas coisas se fizessem com grande presteza, quase que nada nos aproveitava, por ser o tempo tamanho, o mar tão grosso, a noite tão escura, o escarcéu tão alto, o cheiro tão forte, e o ímpeto do vento tão incomportável e de refregas tão furiosas que não havia homem que as pudesse esperar com o rosto direito. Neste mesmo tempo os outros quatro juncos fizeram também sinal de como se perdiam, ao que António de Faria, pondo os olhos no céu e apertando as mãos, disse alto, que todos o ouviram:
-Senhor Jesus Cristo, assim como tu meu Deus, por tua misericórdia tomaste sobre ti satisfazer na Cruz pelos pecadores, assim te peço por quem és, que permitas por castigo da tua divina justiça que eu só pague as ofensas que estes homens te fizeram, pois eu fui a principal causa de eles pecarem contra a tua divina bondade, porque senão, vejam nesta triste noite a maneira em que eu por meus pecados agora me vejo, pelo que, Senhor, te peço com dor da minha alma, em nome de todos, ainda que não seja digno de me ouvires, que tires os olhos de mim e os ponhas em ti e no muito que te custámos todos por tua infinita misericórdia.
Após estas palavras, deram todos uma tamanha grita de «Senhor Deus, misericórdia", que não havia homem que não pasmasse de dor e tristeza. E como o natural de todos os homens é, em tempos semelhantes, trabalharem para conservar a vida, sem a lembrança de outra coisa nenhuma, era tamanho' o desejo que todos tinham da salvação, que não procuravam mais do que os meios que para isso podiam ter, pelo que, esquecida de todo a cobiça, se tratou logo com toda a presteza de alijar a fazenda ao mar, e saltando em baixo no porão, cerca de cem homens, tanto portugueses como escravos e marinheiros, em menos de uma hora foi tudo lançado ao mar, de maneira que nenhuma coisa ficou a que se pudesse pôr nome, que pelos bordos não fosse fora, e foi tão excessivo o desatino destes homens que até de doze caixões cheios de barras de prata que na briga passada se haviam tomado a Coja Acém, nenhum ficou que também não fosse ao mar, sem haver homem de entre eles que tivesse acordo para se lembrar do que era, fora coisas de muita valia que junto com o mais foram por este triste caminho.
Do mais trabalho e perigo
em que no vimos
e do socorro que tivemos
Passando assim toda aquela noite nus e descalços e escalavrados, e quase esbofados do grande trabalho que tínhamos levado, prouve a Nosso Senhor que quando a manhã começou a clarear, o vento foi sendo algum tanto menos, com o que o junco ficou mais quieto, ainda que já estivesse assentado sobre a ponta da coroa do baixo, e com treze palmos de água dentro, e os homens todos estivessem pegados em cordas da banda de fora, para que os mares grandes que quebravam em cima no costado os não afogassem ou lançassem sobre os penedos, como já tinham feito a dez ou doze que não se preveniram disto; e quando foi o dia bem claro, quis Nosso Senhor que nos enxergou o junco de Mem Taborda e Ant&oacut