{\pwi, TahomaCourier NewÐ/à=ð      â=â@F  õ…  ## ##l#######"######## ##### ####"w#<S#!†## ##,‘#ó#ü#6 ## 4#a #X? ## ##Õ#˜ý#e¡ ##O #!#10#³######### ##$º#0ô#Ü##n#f#d• # #D1#*#&#‚#o#$Ä### @#S# ###9##½#1#I# # # K#3d#Kå#«#=f#¸#û#À#ð# é###,£###2#:#-¿#í# Ý#########.¸## ?##5#m###’#,‡##<[#¦#8Ò#Ï#K#2(###Uâ# A#¬#Æ##J##—## #7#›##ß##%#.#I#/#%#;4#–##A# ÿÿ"åæ A Ilha AzulÄB" Œ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ Raul BrandãoÄB" ° A# ÿÿ"åæ ÄB" A##lsÿÿ"åæ A Ilha Azul, O Pico, e A Pesca da Baleia, aqui publicados, foram extraídos do livro As Ilhas Desconhecidas.ÄB" ` ô Ì d ø A# ÿÿ"åæ ÄB" A#$ÿÿ"åæ © 1996, Parque EXPO 98. S.A.ÄB"ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ISBN 972-8127-55-3ÄB"ˆ A# ÿÿ"åæ Lisboa, Novembro de 1996ÄB"` A# ÿÿ"åæ ÄB" A#")ÿÿ"åæ Versão para dispositivos móveis: ÄB"`   A#$ÿÿ"åæ 2009, Instituto Camões, I.P.ÄB"ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A#  ÿÿ"åæ ***ÄB"l A#  ÿÿ"åæ ÄB"$ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ A ILHA AZULÄB" Œ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ 16 de JulhoÄB" Œ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ A Cidade da HortaÄB"d A# ÿÿ"åæ ÄB" A#æw~"ÿÿ"åæ Já vejo a Horta ao fundo da baía limitada por dois morros, Monte Queimado numa extremidade e na outra o Monte da Espelamaca. É uma cidade de uma só rua, como eles dizem, a branco e cinzento. Alguns conventos, algumas igrejas pesadas, velhas e simpáticas casas de província com varandas de madeira e reixas: às vezes na varanda um postiguinho para a mulher falar ao namoro acocorada no chão. -Cheguei-me ao ralo -dizem as meninas. Calçadinhas desertas e ruas solitárias, atravessadas de quando em quando por um meteoro loiro: são as raparigas americanas do cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento. Onde a onde um solar de província com o granel ao lado. É uma terra de gente ilustrada e hospitaleira. Em frente da Horta, o Pico formidável... Do alto do Monte das Moças melhor se vê a baía arredondada e o Monte Queimado que a separa de outra concha mais pequena – o Porto Pim. ÄB"UÌ  Ì ` ¨ ¨  Ì ` ð „    ˆ   ˆ „ ð Ì ð  ð Ì ¨ ¨ Ì ¨ ¬ ô `   Œ A#SZ<ÿÿ"åæ O que dá um grande carácter a esta terra é o capote. A gente segue pelas ruas desertas, e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça. São quase sempre as velhas que o usam, mas as raparigas, metidas na concha deste vestuário, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a comunicar encanto ao capote monstruoso. É um ser delicado e loiro e o contraste realça a figurinha que saltita em passo de ave condenada àquele pesadelo, como certos bichos de aspecto estranho que trazem a carapaça às costas. Começo a achar interesse a este fantástico negrume e resolvo que devia ser o único trajo permitido às mulheres açorianas. À saída da missa gosto de ver a fila de penitentes que se escoa pelas ruas... Também me explicam que é uma coisa ao mesmo tempo monstruosa e cómoda: vai-se com ele pela manhã à missa, usam-no as velhas aferradas aos seus hábitos, e uma rapariga pode visitar uma amiga na intimidade, porque está sempre vestida: basta lançá-lo sobre os ombros. Envolve todo o corpo, e, puxando o capuz para a frente, ninguém a conhece. O que uma mulher que use o capote precisa, é de andar muito bem calçada, porque tapada, defendida e inexpugnável, só pelos pés se distingue; pelo sapato e pela meia é que se sabe se é bonita a mulher que vai no capote. O capote herda-se, deixa-se em testamento e passa de mães para filhas. O capote numa casa serve às vezes para toda a família. Mulher que precisa de ir à rua de repente, pega nele e sai como está. -Este já foi de minha avó -diz-me uma rapariga. Era dum pano inglês escuro, dum pano magnífico que dura vidas. ÄB"– `  „    ð < <  ` Ì  ð ¨  ð < ð ¨ „  Ì Ì   ¨ ` ¨ Ì `   Ì ¨ „ `  ð ` ¨ „ ¬   < ¨ ¨ ` ð „ ¨ ¨ Ì Ì `  ¨ @ A#ê†!ÿÿ"åæ A outra coisa que exerce aqui uma verdadeira fascinação é o Pico -tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada. Toma todas as cores: agora está violeta, logo está rubro. A cada momento uma nova transformação. Todo o céu doirado e o Pico roxo. Tarde e a lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me a vida. ÄB"S  Ì  ¨  ` Ð Ì ` ¨ < @ „ ð Ì Ì  ô  ¨   < ð  ð  ð   ¨ ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ 18 de JulhoÄB" Œ A#  ÿÿ"åæ ÄB"$ A#-‘˜,ÿÿ"åæ Do Cabeço Gordo vê-se toda a ilha à roda: os Flamengos no interior, e no litoral Praia do Almoxarife, Pedro Miguel, Ribeirinha, o Salão -celeiro da ilha dividido em retalhos de cores -Cedros, Praia do Norte, Capelo, Castelo Branco, Feteira, todas entre chãs de centeio e trigo e farrapos esverdeados de milho. A propriedade está muito dividida e quase toda nas mãos de remediados. O dinheiro da América tornou estes homens independentes. A propriedade avalia-se por alqueires de terra -duzentas braças quadradas -produzindo, em média, cada uma trinta alqueires de cereal. A casinha limpa e aconchegada tem ao pé a eira redonda de terra calcada, com pedregulhos de lava a circundá-la para o grão não poder fugir; o eirado da cisterna, com o bocal por onde se tira a água sempre caiado de fresco, e a casa de palha colmada para guardar o carro, os arados e às vezes também os bois. A terra dá-lhes a bananeira, o ananás, a laranja, o chá, e produções sucessivas de batatas; nas encostas algum vinho, nos vales trigo e milho. O campo, dum verde sossegado, claro e muito calmo, é dividido em lavouras e pastagens, mas o homem do Faial é muito mais lavrador do que pastor. ÄB"nð ð ð ð ð ð ¨  ð „ < „ Ì „ ¨  „ ð  „  Ì Ì ˆ ô Ì ` „ ¨  ð Ì <  Ì < Ì ` „ `  Ì Ì  A#…óúÿÿ"åæ Vejo passar nas estradas esta gente afadigada, as raparigas com a lata do leite, os homens que regressam do trabalho de chapéu de aba larga, jaleco e varapau, as moças que vêm da fonte, vestidas, principalmente no Capelo e na Praia do Norte, com uma saia de lã que elas próprias fabricam, de barras roxas, verdes ou vermelhas, casaquinho curto, lenço na cabeça e chapéu de palha, de copa muito pequena e aba muito larga, afitado de preto. Às vezes partem um cântaro e exclamam: -Mágoas tamanhas!...ÄB"0  < < „ Ì < Ì Ì Ì ð Ì ¨ ð ` < „ Ì  ° A#Çüÿÿ"åæ Riem tão felizes e discretas como o campo, que é meigo. Todos estes retalhos são encantadores com as árvores em mancha, o poço e a casinha. É a terra dividida, é a terra cultivada com amor pelo pequeno proprietário que a ganhou com o suor do seu rosto e a dispôs à sua feição, pequenina e ajeitada. Não é só a luz que lhe dá esta cor – é o trabalho compensado - é cada um no seu bocado de terra bem unido a si, o bocado para que se deita o primeiro olhar ao amanhecer e o último, de despedida, ao ir para a cama quando tudo está regado, sachado e farto. Mas também a luz valoriza a paisagem, a luz que torna a paisagem delicada, pálida, um pouco triste e sem nervos. O carácter de todo este verde, sempre verde, que adormece molhado, é a mansidão e a serenidade. ÄB"Ið ¨ ` Ì ô ð ð  ¨   „ <  Ì ` „ ` ð `  ¨ ` ¨  ð ¨ „  ° A#p §6ÿÿ"åæ Vou pela estradinha entre abrigos de faias e moutas de incensos muito verdes, até à freguesia dos Flamengos, junto a uma pontezinha de lava, sobre a ribeira da Conceição. O fio de água corre lá em baixo pelos rodilhões de hidrângeas. É uma terra de lavadeiras, que encontro no caminho com cestos de carga à cabeça, cheios de roupa. Mesmo as casinhas pobres têm persianas e um ar de intimidade e conforto. Alguns moinhos holandeses batem as asas nas colinas. O fumo que sai das cozinhas cheira a incenso. Esta paisagem repousa como um banho morno. Nos campos, os bois deitados na erva olham para a gente, deixando os estorninhos que lhes pousam nas cabeçorras catar-lhes a mosca. Satisfeitos e calmos não bolem -engordam. Aqui não há pardais, mas o estorninho faz com muita competência o papel do pardal. Pousa nos telhados e anda no campo familiarizado com o lavrador. Outras aves alegram as culturas que descem até ao mar - o pombo-bravo, o torcaz e o pombo da rocha, mais pequeno, ambos eles cinzentos, o canário, o tentilhão, o melro preto, o pintassilgo, a vinagreira e a lavandeira, que cobriu as pegadas de Nossa Senhora. A ave negreira, a que o povo chama vinagreira e é o pássaro mais pequeno da ilha, canta como um rouxinol. Difere da toutinegra, que tem poupinha preta, em ser escura até ao meio do corpo. Dizem os rapazes, que, quando a toutinegra, que em geral põe seis ovos, chega aos sete, do último sai sempre ave negreira. ÄB"‡„ ð ð ` „ ` ` < ¨ ð < „ „  < ` ð Ì ¨  Ì Ì „ Ì Ì Ì  ð Ì ¨ `   ¨  ` ¬ < Ì  „ Ì ¨   <   Ì „ ð  ô  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A#U4; ÿÿ"åæ Isto já foi muito mais animado e rico. Tudo à volta da Horta e dos Flamengos eram casas, quintas cheias de laranjais, de plantas e flores, a quinta de S. Lourenço, a quinta da Silveira, a quinta dos Dabney, depois abandonados quando a Inglaterra deixou de comprar os frutos no Faial indo buscá-los ao Cabo. ÄB" ð  ` <  ô  ¨  ¨ ` A# # aÿÿ"åæ Entro ao acaso nalguns destes jardins. Primeiro no do Pilar, erguido ao alto pelo monte, terraço maravilhoso donde se apanha toda a luz do mundo. Jardim ao abandono, com grandes faias de Holanda, tão unidas que ao princípio da tarde já é noite fechada debaixo delas. É daqui que eu gosto de ver as cores que toma o Pico. Espero. É noite quase. Tudo desfalece em violeta, o semicírculo perfeito da baía, a sombra do pico lá no fundo e, por trás da cidade pálida as colinas dum verde-escuro recortadas no céu doirado. No terraço as hortênsias desfalecem ao mesmo tempo que a paisagem em volta desfalece. A tarde morre numa tinta tão melancólica que a custo não grito para me deixarem só. É um desmaio de tintas apagadas, de escuridão que não é ainda escuridão, de roxo que a toda a hora se transforma e transe. O vale dos Flamengos adormece em bruma e o Pico não sai dali, como um grande fantasma à minha espera. As cores da terra e do céu entranham-se umas nas outras em tons delicados que vão fundir-se em roxo escuro, mas que se aguentam diante de mim um momento único, pálidas e exangues, sufocadas ... Depois vou a uma casa abandonada, a um jardim ao abandono no Monte Queimado. Nos buracos dos muros crescem parietárias, uma raiz levantou a soleira da porta... O que me interessa nos jardins selvagens é a atitude que tomam as árvores à solta, é o drama secreto, mas feroz, que se passa entre meia dúzia de troncos crescendo em liberdade. Por fim, entro noutro, muito diferente, nos Flamengos. É um velho jardim com ruas de enormes japoneiras. Os troncos torcidos pela poda, as pequenas folhas acamadas, formam sebes impenetráveis e espessas. Está um dia sem sol e o calor surdo pesa mais neste silêncio entranhado entre as árvores metálicas e tristes. No fundo da rua principal fica um pavilhão abandonado. Isto pertenceu talvez a um poeta ou a um contemplativo. O pavilhão cai, nos muros muito altos a hera corre em desalinho. Das ruazinhas sempre fechadas e que tomam direcções imprevistas, sai um cheirinho a humidade e sepulcro. Enegrece mais a luz subterrânea e verde que só entra pelos interstícios das folhas sem transparência. Este homem de quem não sei o nome e que delineou os caminhos, as rotundas, as salas fechadas de sombra e flor, não consentiu no jardim senão camélias. Baniu daqui todas as outras flores. Camélias e sombra por toda a parte, camélias admiráveis, brancas, vermelhas, róseas, flores geladas que amarelecem e de que as árvores se despojam devagarinho. Ergueu mais alto os muros, para que só a sombra se ceve nesta carne fria -de mortas, sem expressão. ÄB"ó < Ì ¨  ¨  Ì Ì  „ ð `   ð Ì Ì  `  ` Ð Ì ð Ð ¨ „ „ Ì „ ð „ „ Ì < Ì ¨ „ ` < ô ¨ Ì  ô ô Ì „ ð Ì  ô Ì ` Ì Ì  Ì ð ð  „ „ ð ` ¨ ¨ „ „ ð ð Ì ¬   ¬ ¨ ð „ ð  „ ¨  Ì < ð Ì Ì   ð ð „ ¨  Œ A#X? F Xÿÿ"åæ Este foi o sonho dum homem original... Querem-me dizer o nome, mas eu não quero saber-lhe o nome. Foi o sonho dum homem que passou a vida a plantar camélias, chegando a obter camélias com cheiro enxertadas em magnólias. Terminada a sua obra, morreu. A casa passou para outras mãos, as japoneiras, na humidade da ilha, cresceram e atingiram proporções desmedidas. Se as deixassem cobriam a casa, as mas, o céu. A falta do dono sente-se no desalinho, nas ervas, no musgo que invadiu o jardim, na melancolia das coisas solitárias. Mas eu gosto mais disto assim... Palpo a fragilidade dos nossos actos, sinto a tristeza da vida efémera, parece-me que todo este jardim de camélias se transformou num cemitério de camélias onde se enterrou o sonho do poeta. O que me vale é que saio e dou logo com o Pico, que é eterno. Encontro-o sempre: ao voltar duma esquina, ao sair de casa, ao saltar da cama. Hoje decidiu morrer em violeta, mas, antes de morrer, passa por todos os tons do violeta. Desfalece e por fim envolve-se numa nuvem para o não vermos exalar o último suspiro. Desconfio que foi posto ali de propósito e à distância para nos atrair e encantar. Nas noites de luar é um fantasma branco e imóvel. A gente espera que ele se mexa. Nas noites negras é um fantasma negro e trágico que vai pregar na escuridão. Passo dias a olhar para ele. No dia 19 está escondido por uma nuvem -por a nuvem -que lentamente se descerra, como a cortina dum altar onde se celebra todos os dias um mistério. No dia 26 à tarde corta-o a nuvem cinzenta pelo meio... Devo explicar que todas estas ilhas têm uma nuvem sua, uma nuvem própria, independentemente das outras nuvens e do céu, e com uma vida à parte no universo. Pode, por exemplo, estar o vento que estiver, vento que arraste todos os farrapos do ar, que a nuvem lá está presente tomando várias formas e feitios. Hoje é branca e pequena. À tarde muda de aspecto, ao mesmo tempo que o Pico muda de cor. Não sei que posição toma a nuvem, que em cima fica azul e na base doirada. Espero a hora de assombro em que esta montanha enorme emerge toda vermelha do mar verde, num céu que empalidece e com a nuvem cor-de-rosa agarrada a um dos flancos. É um espectáculo extraordinário delicado e extraordinário: a vida da nuvem e a cor da montanha. Na base manchas roxas -verdura de pinhais, e no alto o barrete aguçado até à extremidade. ÄB"ܨ     ð „ `  „ <  Ð Ì „  Ì Ì `    ` Ì ¨ ð Ì  Ì ¬ ð `  ¨ Ì  ¬ ð ¨ ¨ ¨ Ì ð  ¨ < ð „  ` ð ¨ ð Ì Ì ¨ ¨ ` ð ø ð ¨ „ ¨ ð ð < < ` „ „  ¨ ð Ì ð Ì ¨ ¨ ð Ð ¨ ð ` „ ð   A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ 24 de JulhoÄB" Œ A#  ÿÿ"åæ ÄB"$ A#¾ÕÜÿÿ"åæ Sigo pela estrada, quase sempre à beira-mar, que dá volta à ilha. No automóvel tudo desfila como no ciné: -Feteira e o seu branco campanário, as tamargueiras à beira do caminho, os campos de milho entre canaviais, e logo as casinhas de Castelo Branco... Quero, mas não posso, fixar um quadrinho que mal distingo: um homem de grandes barbas brancas, guiando duas juntas de bois que calcam o trigo no eirado, e ao pé dele duas raparigas que riem às gargalhadas. Só me fica a impressão alegre dos olhos e a boca do velho -e tudo desaparece na vertigem. Hortênsias, figueiras, um ou outro castanheiro -e ao fundo já avança para mim um grande monte -Capelo. Hoje, neste dia turvo as hortênsias parecem mais azuis e mais frescas. ÄB"F` ¨ ¨ ¨ <  Ì Ì Ì `  „ < Ì  Ì Ì ¨ Ì ô ô  ¨ „ ¨ < „  D A#ý˜ÿÿ"åæ É uma estrada de sonho entre sebes intermináveis. E o automóvel corre... Dum lado já surge um grande monte escuro, Cabeço Verde, povoado na base, do outro o morro de Castelo Branco entrando no mar. Atravesso a cinza dos mistérios, sempre por entre alas de hortênsias cada vez mais azuis. O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e calor -estão no seu meio. O seu azul é o azul esmaltado dos Açores nos dias límpidos. Nos dias turvos substituem a cor do céu: são o azul desta terra enevoada e uma das suas maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o céu mais escuro, a atmosfera mais húmida, e sob isto o azul cada vez mais azul, as molhadas de flores duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. Há-as por toda a parte: nas estradas formando alas e nos campos formando sebes; servindo para dividir os terrenos e de tapagem aos animais pacíficos. Enchem a terra de exuberância e de azul. E o automóvel segue... Onde vão dar estas estradinhas, orladas de nevões e por onde não passa ninguém? Parecem caminhos de sonho, abertos para jardins encantados. O automóvel voa e eu tenho diante de mim montes que se erguem doirados no fundo do horizonte: é a vegetação nova do incenso que parece oiro. Desfilam os mistérios cinzentos entre hidrângeas aos montes, cada vez mais hidrângeas, cada vez mais azul entrando-me em jorros pelos olhos. Esta linda estrada do Capelo fica-me para sempre na retina com o alteroso Monte Verde e o Cabeço de Fogo, todo vermelho, ao lado, paisagem estranha de biombo japonês, que se prolonga pela esplanada até Entre Cabeços. Na base do Cabeço Verde mostra-me uma fonte que só destila a custo um fio de água, que nunca aumenta nem diminui. É a Fonte dos Namorados. Aqui vêm as raparigas encher os cântaros, porque os cântaros levam muito tempo a encher... Mas tudo desaparece. A fita trepida e desenrola-se sempre: Norte Pequeno, a povoação mais pobre da ilha, meia dúzia de casebres colmados, e uma rocha enorme, o Costado da Nau, tomando todo o horizonte. Lá está no alto o poleiro da baleia e no fundo o farol esguio, sobre pedras vermelhas e românticas formando arco. Todas as falésias da ilha são estranhas e ameaçam desabar sobre as águas. Torres enormes destacam-se no mar, assaltadas pelas vagas, cujo estrondo mete medo. Rasgam-se cavernas nas paredes talhadas em fatias, dilaceradas e trágicas, com tons amarelos, acinzentados e negros, ou descendo com suavidade até ao mar em campos cultivados para logo adiante reaparecerem coluna tas, ogivas, entradas de templos monstruosos, penedos negros e corroídos, boqueirões amarelados de pedra esponjosa. Só os garajaus e os pombos brancos habitam estas arribas atormentadas... Mas o automóvel segue a sua carreira e fica-me nos olhos o veludo da paisagem sob o céu pardo e uniforme, com aquele monte vermelho, ao fundo, que parece vomitar ainda fogo, e um bocado de mar dum violeta muito leve. Seis horas. Passamos a Praia do Norte e outra povoação de que não sei o nome, estonteada entre o azul das hidrângeas. As raparigas arrancam flores das sebes e atiram-nos com elas. Agora o automóvel só pára um momento na Ribeira das Cabras, diante dum abismo cortado a pique, de quatrocentos metros de altura. Há lá em baixo um plaino roxo e verde, junto à água avermelhada, cuja cor se harmoniza com o negrume da pedra e o violeta dos montes. É uma coisa parada, uma coisa assombrada, lá para o fundo do despenhadeiro, que se espraia em mosto até ao Monte Verde, numa extensão de quilómetros e que me faz estacar de imprevisto pela irrealidade da situação e da cor e pela luz dum poente delicado que morre com uma doença violeta e verde, entre arabescos de oiro e farrapos plúmbeos, magoado, fantástico e febril. A pedra requeimada reluz como ardósia ou absorve a claridade como pedra-pomes. A planície roxa, com pinceladas mais escuras, acaba no mar e num fundo de névoa roxa, e toda ela esmorece sob a abóbada dorida e fantástica, traçada de raios decorativos. ÄB"|ð ` Ì `  ð ¨ ¨ Ì Ì ð  Ì < < ð ` „ Ì  ð `  Ì „ ¨ ` „  Ì ð ` ð ¨ ð ð Ì „ ð ˆ < Ì ð Ì   „ <  ` „ Ì  ` ` <  ð  Ì Ì Ð ð < ¨ „ Ì    ` Ì <  ` ð   „ ð  Ì  < Ð Ì  Ì ð   ` ð „   „ ð < Ì `  ð ô ô ô ð ¨ „ „ „ ¨ Ì ð ð ¬ Ì ` Ì ð ð  Ì „ „ ð  ¨   Ì `  < ` ¨ ð „ ¨  ð  ð   Ð ` Ì   ` ¬ A#±¡ ¨ eÿÿ"åæ Na última luz do dia surpreendo de corrida Cedros, Salão, as freguesias ricas da ilha, a Ribeirinha, outro aspecto da estrada sempre azul, cada vez mais azul, sob olaias, fechadas em cima com montes azuis riscados de sebes, ao longe. São enormes, são anainhas e toda a mouta só numa flor. São redondas e acocoradas; formam paredes e novelos. Irrompem por toda a parte e apanham-se às braçadas. Entrevejo de relance a Praia do Almoxarife, muito branquinha ao pé do mar. Mas de estonteado já não reparo senão no azul que me deslumbra, em todos os tons do azul que me entram pelos olhos, o azul ferrete das hortênsias -o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores. De começo não distingo senão uma mancha e acabo por não distinguir senão uma mancha. Uma mancha e frescura. Uma impressão de volúpia e frescura: tinta imóvel e viva que me atrai. E logo depois da impressão do azul, a maior impressão é a vida que nos envolve em silêncio e que espera de nós não sei o quê e quer comunicar connosco. Como é possível extrair da terra seca este jorro que nunca mais acaba? Sob a pele que calcamos corre um rio azul inesgotável, que ascende à superfície pelas hastes das plantas. Sinto-me tentado a esfuracar a crosta até encontrar a tinta, que deve formar o núcleo da ilha, e que logo, amanhã, vai explodir pelos vulcões, numa fantasmagoria de azul. Azul puro que se amontoa, sai aos jorros da terra, cerca-nos, espera-nos por todos os cantos. Afoga-nos por todos os lados... Eu disse puro, mas creio que me enganei: esta carne delicada exposta nas ribanceiras, nua através dos campos, crescendo à solta pelos atalhos; esta carne que nos circunda e acaba por invadir a ilha e subir ao céu -é voluptuosa e exige de nós deslumbramento e beijos -exige talvez um estupro... Ao mesmo tempo cansa-me... Um sentimento novo pouco e' pouco se insinua, deixando-me alheado e confuso. Fico surpreso com o azul e cinzento? Esperem, esperem... Vejam como esta luz humedecida e vaga se infiltra no azul e o derrete. Azul e cinzento confundem-se. Às vezes as hidrângeas reaparecem e gotejam -ou é o cinzento em gases tão transparentes que deixam ver por trás um fantasma azul e imóvel... De novo a paisagem molhada e triste volta e se queixa, para logo devagarinho se dissolver magoada. O que eu sinto afinal é apreensão ou receio?...É tristeza e cansaço que me vêm mais da exuberância que da cinza desfolhada em silêncio sobre todo este azul frágil. É um sentimento que goteja como o orvalho e ao mesmo tempo me acalma. Falta-me não sei o quê – mas tão longínquo, tão aéreo como a paisagem. É tristeza -mas não chega a magoar-me: a cinza empoeira também os meus sentidos e converte-a logo em saudade. ÄB"ýÐ   „ „  ð `  Ì ð ð ð ô  ˆ ð Ð ` Ð Ì Ì „ ð ð  „ Ì ` ð ð „  Ì Ì < ð Ð ¨ „ „ ¨ ¨ ¨ Ì Ì  Ì ¨ ô ð Ì ð Ì < Ì ¨ „ Ì ð   `  ð < Ì  `  < ô  ¬  Ì „ ¬ ð ô ð Ì ð Ì  Ì Ì „ ¨ ` ð Ì ð Ì ¨ ð ` „ Ì „ ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A#\O V ÿÿ"åæ Ao outro dia atravesso de novo os Flamengos pela estrada municipal, entre casebres e rocas-de-hércules de floração amarelada. A estrada sobe e do alto vejo melhor o côncavo recolhido e verde, Farrobo, Santo Amaro, o largo vale da Praia e Chão Frio, dividido em talhões de milho e centeio -nota de abundância e de paz dum verde sempre fresco e viçoso, sob céu esmaltado dos Açores. Mal reparo nas casotas de madeira com matas, sebes arruadas, arcos rústicos de rosinhas de toucar, onde os da Horta vão passar os dias no Verão, porque a estrada logo me assombra, toda azul ferrete. É um muro, dum lado e de outro, de hidrângeas em flor, um muro que nos acompanha e nunca nos larga. Às vezes rasga-se diante de mim a amplidão iluminada pelo sol, mas os meus olhos já se não destacam da parede azul que desce do alto em borbotões. Não há uma falha: esta mancha fofa, azul, esplêndida, aperta-nos e segue-nos até ao Cabeço Gordo, que se avista entre bosques de pinheiros, de acácias negras e incensos, subindo a novecentos e cinquenta metros de altura. Um tentilhão canta. Responde-lhe outro entranhado na carne verde das árvores ou na carne azul das sebes. Calco o chão onde nascem morangos silvestres cujo aroma inebria, para contemplar o vale de terra gorda e húmida. Verde apagado, verde sempre verde, acabado de borrifar pela chuva coada, dividida em átomos tão leves, que fazem parte do ar que se respira – quadros atenuantes, passados pelo tempo ou surpreendidos de manhã quando a paisagem acorda. Depois olho o extraordinário Pico irrompendo de entre nuvens magnéticas, que parecem iluminadas por uma luz forjada no seu seio. E entranho-me mais neste azul parado, sob o céu um momento azul e a luz azul. E isto não tem fim. São quilómetros de hortênsias carregadas de flor, onde apetece a gente entrar até acabar a estrada e acabar o mundo... Subo até à ermida de S. João. O mato é severo, encostas revestidas de mofedos, de junco de vassoura, de rapa, que dá uma flor roxa, de trevo bravo, de rosmaninho cheio de bagas vermelhas... Tenho diante de mim, dum lado a cratera, com duas léguas de circunferência e trezentos metros de fundo; do outro o amplo panorama -mar e terra, montes e vales -o mar e o Pico, um Pico estranho, suspenso no céu e pousado num oceano de nuvens brancas. Só cume, mas o cume é uma montanha enorme e esguia, porque à medida que fomos subindo, o Pico foi crescendo também. Volto-me e a meus pés abre-se o enorme buraco verde-negro revestido de cedros e de urze até ao charco de água choca e lama esverdeada, donde irrompe um cabeço com outra cratera minúscula dum tom acastanhado. O espectáculo é sombrio e belo. Só a caldeira mais pequena, perfeita como miniatura, é uma nota de ternura neste isolamento: parece a filha da outra. Está ali a criá-la sabe Deus para que destinos, naquele buraco ao mesmo tempo poético e feroz. Se arranco olhos da cratera encontro a amplidão infinita, o altar majestoso do pico, as nuvens que ele apanha no céu e a que dá formas imprevistas, e o mar liso até ao horizonte, fechado pela barra roxa de S. Jorge e pela mancha desvanecida da Graciosa. Violeta das águas imóveis, verde pálido da terra, céu de esmalte por cima... Despeço-me do abismo solitário. Na parede fronteira a sombra negra e trágica cresce e avança até ao fundo. Recolhe a casa e, cosida com a parede, vai recomeçar com a cratera o conciliábulo secreto de todas as noites!... ÄB">„  ` ð ` Ì ð ð ð ð `  Ì   ¨  ð ` ` ð `  Ì „ ` ð Ì Ì Ì  <  Ì Ì   Ì ¬   ` ` ` ¬ ¨ ô ð ` ` Ì ð ð Ì ¨ ô ¬ ¨ <   Ì ð  Ì ` ¨  ð Ì Ì <   „ ð ð  ð „ ð ` Ì ð ð < Ì „ ð Ì ð ¨ Ì ð ` d ð  Ì ` „  ð ð ` ¨ Ì Ì ¨ ` Ì   ¬ ` ¨  ¬ Ð Ð ¨ Ì Ì ` „  ø A#‘!(ÿÿ"åæ A volta na luz da tarde é um assombro. Vejo o Salão e Pedro Miguel todos azuis de hidrângeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge à esquerda formando a enorme baía. É o horizonte de Nápoles mais escuro, a esta hora iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas -não como as montanhas solenes das Flores em picos aguçados pelo raio, mas arredondados e mansos. Borbotões de azul despenham-se por todos os lados. O Faial adormece em azul sob o céu de cinza e com o Pico todo violeta ao lado. ÄB"2ð ` Ì ¨  ô ¨  Ì ¨ „ ð   ` „ „ ¨   A#T071ÿÿ"åæ À noite não posso dormir: estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu, subiu a lua numa paz extraordinária, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os últimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no boqueirão todo negro. Mais luar e o silêncio que espera de nós qualquer comunicação sobrenatural. Olho. Todas as hortênsias se puseram brancas, dum branco perfeito, todas as hortênsias não desfitam os olhos de mim, quietas e brancas, imóveis e brancas. Avanço com receio. É uma paisagem sem mácula. Os melros enganam-se nestas noites de lua redonda e branca e desatam a cantar desvairados. O Pico entontecido, cheio de luz e enorme inchou e toma todo o horizonte. Escuto…Bem quero surpreender o mistério destas flores que vivem no silêncio húmido e branco. Fecho os olhos. A existência obscura das plantas, que não tiram os olhos de mim, faz-me perder a consciência da própria personalidade; sinto outra vida estonteada, dispersa no mundo e mais lúcida -talvez mais lúcida ainda... caminho, caminho sempre, entre renques brancos, assombrados pelo espectáculo de brancura e sonho. Uma senhora americana não teve mão em si que não desatasse a beijá-las transportada... Eu, de mim não me atrevo. ÄB"{„  ð   ð ð ô < ¨ Ì  ¨ ð Ì ð ô  < „ ð  Ì ` < „ ¬ Ì Ì Ì  ð „ Ì    ¨ ð Ì   „ „ ð ¨ ô ¨  A#u³ºÿÿ"åæ Tenho agora medo delas, brancas e puras, oferecendo-se desmaiadas ao luar dum branco extraordinário, dum branco mudo onde se sente um reflexo ténue e doirado do sol. Tudo parou; só o melro desvairado canta entre esta brancura virginal. Não se cala até ficar exausto. E quando deixa cair do bico o fio de harmonia, logo outro melro escondido o apanha e ergue, continuando a tecer o arabesco musical sobre a paisagem branca e extática. ÄB"+< @ Ì  ¨  ð ð „ „  ô ¨ Ì ô ` ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ O PICOÄB"Ø A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ 26 de JulhoÄB" Œ A#  ÿÿ"åæ ÄB"$ A#÷ºÁ$ÿÿ"åæ Isto que de longe era roxo e diáfano, violeta e rubro, conforme a luz e o tempo, aparece agora, à medida que o barco se aproxima, negro e disforme, requeimado e negro, devorado por todo o fogo do inferno. É um torresmo. Nunca labareda mais forte derreteu a pedra até cair em pingos e desfazer-se em cisco. É uma imagem a negro e cinzento que me mete medo. Há por aí buracos e furnas onde a lava formou colunatas e estalactites azuladas, grandes cachos pendentes, derretidos pelo calor e solidificados pelo resfriamento. Esta ilha -a maior dos Açores -é negra até às entranhas, na própria terra, na bagacina das praias, no pó das estradas, nas casas, nos campos divididos e subdivididos por muros de lava, nas igrejinhas das aldeias, requeimadas e tristes. O aspecto é dum grande luto, duma grande desolação. A fuligem caiu sobre a vasta terra e só de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistérios, sucede ao negrume como a lepra ao incêndio. ÄB"Zð „ „  ¨  Ì  ð ð Ì  < ð ˆ  „ < ˆ ¨  `  Ì ô ð  ¨ ` ` „ Ì ¨ ¬ ð ¨ A#Eôû0ÿÿ"åæ Mas o azul é mais azul nos sítios em que um corredor de basalto tem uma saída para a amplidão do mar (sítio da Furna). O esguicho que entra por ali dentro tem uma vida extraordinária. De repente surge também neste inferno um souto verde de castanheiros, um campinho de milho, figueiras redondas e baixinhas, ou irrompe, por trás dum muro calcinado, uma trepadeira lilás. Depois pedra, mais negrume e pedra. Mais desolação e negrume, mais pedra vulcânica e sinistra que dá o chá e o café e todas as culturas tropicais; os frutos do continente, e laranjas e nêsperas mais deliciosas ainda pelo sofrimento. O dragoeiro é enorme e copado, gigantescos os fetos e bambus. Cria-se a oliveira e o castanheiro ao lado do ananás silvestre, que amadurece ao ar livre e enche a horta de perfume. A vinha tem fama no mundo. O vinho branco do Pico, feito de verdelho e criado na lava, é um líquido, com um pique amargo, cor de âmbar, e que parece fogo. Erguem' uma pedra, atiram um punhado de terra para o buraco e a videira deita raízes como pode, abrigada no curral pelos muros e estendida no chão sobre calhaus. Só lhe levantam um pouco as varas quando o cacho está perto de amadurecer. O Pico já deu milhares de pipas de vinho, que exportava quase na totalidade para a Rússia. ÄB"x¨ ð ð „ ð Ì ¨  ð ô Ð ¨ ð ` ð „  „ ` < ` ` ` ð  ð ` ô  Ì ¨ ` ð ` Ì ` Ì < „ ` ¨ ¨ ¨ ð „ Ì  ¨ A#¿Üãÿÿ"åæ As duas estradas que partem da Madalena pelo litoral e abraçam a ilha, acabando uma um pouco adiante de S. Miguel Arcanjo e a outra nas Lajes, servem algumas das freguesias do Pico, quase todas à beira-mar, e todas elas com a sua especialidade: Santa Luzia é a freguesia das figueiras, S. Roque a dos vinhos, Prainha a do milho e do trigo, Santo Amaro, perita na construção de embarcações, trabalha também em esteiras, e o cais do Pico e as Lajes passam por as duas grandes freguesias da pesca da baleia. Os picarotos são os mais destemidos homens do mar do arquipélago, tisnados, secos, graves e leais. Nos altos, no mastro com uma espécie de cesto de gávea, todo o dia um homem, de óculo em punho, vigia o mar e espera a baleia. ÄB"DÌ ¨ ð  ð    ` < „ ð   ð Ì ¨  Ì  „ ¨ ` ¨  < d A# ÿÿ"åæ ÄB" A#dnuÿÿ"åæ Vai-se muito bem pelas estradas no carrinho de duas rodas puxado por uma mula, sobretudo de manhã, quando cai do céu todo forrado o inevitável orvalho, que as plantas, que vivem na secura e no negrume, esperam toda a noite e sorvem com volúpia. O ar do Pico é maravilhoso de finura e graça. Chove e seca logo. Esta pedra porosa absorve a humidade como uma esponja. ÄB"# ð ¨ ¨ „ ¨ ð ð  Ì ð < Ì  D A#¢fmÿÿ"åæ Nas subidas o cocheiro salta a terra e fala ao bicho. O mar está espelhado e o céu tão espelhado como o mar, com brancuras de algodão, e nuvens meio adormecidas, orladas de cinzento. Tudo tão branco e parado que parece que o tempo suspendeu a sua marcha. Olho para o mar com rastejos de caracol e pedaços brancos iluminados por dentro. Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, S. Jorge, estiraçada a todo o comprimento. Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa, é a ilha que está em frente -o Corvo as Flores, Faial o Pico, o Pico S. Jorge, S. Jorge a Terceira e a Graciosa...ÄB":ð ¨ ¨  < `  ¨ Ì Ì   Ð „ ð ¬   Ì ¨ ð   A#®• œ dÿÿ"åæ Cada vez me seduz mais pela estrada fora um campo de milho sachado e arrendado com as hastes direitas e verdes e o quadradinho vulgar das hortas, pela cor de satisfação dos legumes, pelo fio de água reluzindo em conversa com as couves, como se sentisse o benefício que lhes presta: a água parece inteligente e piedosa, e a vinha e o souto, neste grande deserto, entre a pedra devorada, representam o triunfo do homem sobre as forças brutas da natureza. Há sítios que parecem escondidos e receosos entre tanto negrume: aí o verde é ainda mais verde e mais vivos os malvãos junto à pedra queimada. Vi duas ou três povoações muito viçosas ao lado de montes tremendos cor de chumbo, e entre todas S. Miguel Arcanjo, que chega a ser voluptuosa depois de tanta tinta negra metida pelos olhos dentro. Sentei-me num quintalório com japoneiras envernizadas de fresco e do tamanho de árvores, num terraço muito alto sobre o mar e sobre o mundo. Aí fiquei horas esquecidas, envolto em poeira azul, absorto no mar cheio de reflexos de oiro, em S. Jorge estendido ao sol, doirado e longínquo, cheio de crateras inofensivas e roxas, abrindo as bocas diante de mim, com um pouco de azul lá dentro. Avancei pela estrada, que dá uma volta entre moutas de árvores e hortênsias dum azul ainda mais ferrete que as outras, criadas na fuligem duma chaminé; sentei-me à sombra dos castanheiros muito baixos e com uma copa enorme e fui até à trágica baía dos Mistérios, silenciosa e cinzentada, abandonada e leprosa, e mais longe até à Prainha, que avistei do alto da estrada, com as suas vinhas e adegas minúsculas, na baía de Canas. A esta paisagem, mesmo quando pretende ser risonha, preside sempre a ideia da destruição e da morte. Há aqui uma angústia que só se tem em Nápoles, num quadro mais voluptuoso e perfeito, com o Vesúvio a fumar do fundo. Estes montes oprimem-se. Esmaga-me esta negra solidão. Procuro o oceano para desabafar: toda a costa, de penhascos negros como carvão, me mete medo. Acabo por regressar ao quintalório com alguns degraus musguentos e o terraço esplêndido. É um sítio para estar calado... Algumas casas sobem ao lado pela ruela íngreme e numa delas mora um velho baleeiro reformado, de pêra branca armada em leque na cara seca e rapada. É a única nota humana deste dia, o encontro dum marítimo que finda a existência de olhos fixos num passado cada vez mais vivo diante dele. Comprou esta casinha nos rochedos. Ergueu um mastro com um catavento no quintal para acenar aos navios e vai acabar com os olhos turvos presos àquela agitação infinita a que ligou para sempre a existência. E na verdade só há uma coisa mais bela no mundo -o céu; mas esse está muito longe e o mar vive na nossa companhia. ÄB"úÌ `   ` ¬ ð ` ð Ì ¨ ¨   < „    Ì ¨ ô „ ¨ ð Ì Ì ` `  ¬ ¨  ¨ ¨     Ì ð ð Ì Ì ð „  „ ¨ „  ð ð < ` Ì ð < Ì `   ð < „ ` ð „ `  ô Ì  < ð  ` ¨ Ì „ ð „ ð ` ð `  ¨ „ ð  < ¨ ¨  Ì ¨ ¨   A#Ð 'ÿÿ"åæ Às seis da tarde regresso ao cais do Pico, enquanto este torresmo se afunda em mais tristeza e sombra. Não tiro os olhos, não posso, de S. Jorge iluminado pelo último sol, riscado de sombras e quase transparente. Sento-me nos degraus do antigo convento dos franciscanos, com a ilha etérea em frente. O Pico desapareceu, S. Jorge é poeira e sonho, onde distingo algumas crateras escancaradas -uma delas derrubada e toda azul por dentro -e montes inclinados para o mar, até que tudo se dilui em cinzento e mergulha na escuridão. Fica-me a tristeza do anoitecer numa aldeia incaracterística. Sinto que a noite me é hostil. Com a luz que se apaga todas as sombras se acolhem a este convento deserto metendo-se pelas portas escancaradas. Remexem ali no claustro. E quase grito de isolamento e de frio... ÄB"Nð Ì ¨ Ì ¨ Ì „ ð ô ¨ ð ð  „ < „ Ì Ì ð < ¨ `  ` „ < ` ð ` `   A#Õ18Dÿÿ"åæ A noite no cais do Pico, fiada de casas negras à beira do mar onde bóiam carcaças de baleia, terra que cheira a uma légua, besuntada de fumo e de gordura, aumenta-me a tristeza mortal. Vale-me alguém que se põe a falar na extraordinária festa de S. Marcos, que se faz no Pico, no Faial, no Corvo no dia 25 de Abril... Eu já tinha estado na botica a olhar para os frascos, um a um, já contemplara as casas banais e as figuras banais, já descera ao barracão cheio de postas de gordura onde se destila a baleia -e o meu único pensamento, mais fixo com o cerrar da noite, era fugir, fugir para muito longe destas pequenas terras de província, piores que a cadeia e o degredo, e onde a gente sente pesar-lhe a vulgaridade de todos os dias, o hálito mesquinho de todos os dias, as palavras que se empregam todos os dias, -quando tudo, de repente, se transfigurou diante de meus olhos atónitos, como se espelhos convexos deformassem as figuras apagadas, transformando-as em figuras de espanto e dor, de chacota e dor. Tudo está assolapado, tudo obedece à mesma regra, tudo se subordina às mesmas leis -e no dia de S. Marcos acabam os gestos pautados, as palavras medidas, e vem outro mundo cá para fora, mais grotesco que o entrudo, mais profundo que o entrudo, porque a acção neste dia é representada pelos mortos -painel onde se vêem as fisionomias gastas dos piteireiros e atrás delas outras caras em osso que teimam em vir à superfície; folia estranha, onde além do homem há outro homem no tablado, onde os gritos e a chacota da malta pertencem mais aos fantasmas que aos vivos. A irmandade de S. Marcos, só de homens casados, armou um altar com coroa de cornos muito bem ornamentados e um corno maior em evidência no alto. À porta a malta espera e agarra-se ao primeiro que passa na rua lôbrega e que é obrigado a beijar o emblema retorcido. ÄB"ª`   ¨ ð ¨ ` ð ¨ Ì ð <  <   Ì ð ô Ì Ì   <  ¨ < Ì Ì ð Ì Ð ¨ < d Ì ð ð Ì Ì Ì   ` ð < ¨ „ <  „ ` Ì ð < Ì ¨ ¨ `  Ì   ` ô „ ¨ ð A#*1ÿÿ"åæ -Venha beijar o corno, que bem o merece! ÄB"¨ ø A#&-ÿÿ"åæ -É da confraria este nosso compadre! ÄB"¨  h A#)‚‰ÿÿ"åæ E os outros riem-se, e toda a gente se ri, e, se algum protesta e se debate, a chacota aumenta, os risos alvares soam mais alto. ÄB"  ` < „ ` A#dovÿÿ"åæ Todas aquelas barrigas que se sacodem parecem maiores, todas aquelas ventas mais largas. Vejo nos olhos daquele diabo gordo uma claridade que não é o vinho... Cuidado!... Esta chufa é talvez sagrada, primeiro porque é secular, depois porque representa o fundo grotesco da humanidade, a maldade assolapada que se ri, a desgraça que faz rir, a farsa que acaba em dor. ÄB"# ` „  < ô „ < ¨ ¨  Ì  ` A#ùÄË$ÿÿ"åæ Esperem pela noite... À noite sai tudo para a rua com fogaréus, archotes, clamores, e não só as fisionomias a vermelho e a negro tomam outro relevo, como este povo enfumado redobra de proporções e parece maior: todos os fantasmas acudiram à chamada. O homem importante da confraria leva o corno erguido nos ares sob um pálio armado com um lençol e quatro varas, a que se agarram outros tantos piteireiros que perderam a noção da realidade... Um à frente bamboa um turíbulo em que se queima a raspa de corno que o outro matula lhe oferece da naveta... Agora completem o quadro: a turba violenta e espessa a cair de bêbeda -porque um dos devotos mais ricos do Pico põe neste dia a adega à disposição da irmandade -a mescla de negrume, fumarada e labaredas vermelhas, a vociferação nocturna, o rodilhão de mortos e de vivos que corre as ruelas até encontrar algum desgarrado, que tem por força de beijar, entre risadas, aquele grande emblema conduzido em procissão. ÄB"Z <  „ ` ð ¬ ¨  Ì „   <  ¬ ` ð  Ì Ì ¨ ` Ì  ô   ` < Ì   „ ô ` A#ÿÿ"åæ -Este é dos nossos! ÄB"Ð A#ÿÿ"åæ -Beija-o outra vez! ÄB"Ð A#X@G ÿÿ"åæ E a gritaria atinge o auge quando chegam em frente das casas apontadas a dedo -a malta nessa noite percorre toda a vila. Param. Reclamam o irmão que está lá dentro e que eles entendem que pertence de direito à confraria. -Venha! Venha! -Aí surge a mulher, furiosa, que abre de repente o postigo e os cobre de insultos: ÄB"¨ Ì „ ¨ ð ð ô ô  ð Ì  A#SZÿÿ"åæ -Malandros! O meu homem!... Eu nunca lhe preguei desfeitas -vocês é que o são!... ÄB" Ì Ð `   A#L ÿÿ"åæ Redobram os brados, os gritos, a risota, e o delírio cresce. Os archotes empunhados sacodem-se na noite, enfumam e incendeiam os farrapos escuros, que tomam corpo e se agitam e dançam com os seres, fazendo parte da festa. As panças cheias de vinho rebolam-se de prazer. ÄB"  ¬ ` Ì ` „ ð „    A#ÿÿ"åæ -Venha cá para fora! ÄB"ô A# ÿÿ"åæ -Viva! viva! ÄB"Ô A#9@ÿÿ"åæ -Ide para as vossas mulheres! Ponham as mãos na cabeça! ÄB" ¨ A#¬–ÿÿ"åæ Eu já vi isto -melhor que nas quermesses de Rubens, onde homens em pêlo se escancaram de riso -nos quadros flamengos do sabat, em que o diabo feito bode preside a cenas nocturnas de delírio e velhas feiticeiras chegam pelos ares montadas em cabos de vassoura. Foi lá que me apareceu também um homem extraordinário, que se ria com um riso doloroso -um homem que nunca mais esqueci, um morto a rir-se dos vivos. É o estranho prazer de chafurdar na vasa que leva a besta, todo o ano dentro da regra e da lei, aos excessos de S. Marcos, ou são os primeiros habitantes flamengos da ilha que espreitam pelos olhos dos vivos e os obrigam a gestos seculares?... ÄB"? ¨ ð Ð ð ¨ ð „ ð ¨ ` ¨ `  ð  ð Ì ð < Ð ô „ Ì ø A#x½Äÿÿ"åæ Uma pausa. Aquieta-se a canalha. Começa o sermão. Aquele sobe a um muro, a uma pedra, a uma mesa que é puxada para a rua, e toda a multidão espera em volta que aponte os podres ocultos da freguesia. E ele não recua... É um homem bem-falante, que demonstra primeiro as vantagens de fazer parte daquela honrada confraria, embora certas pessoas o não queiram confessar... Ninguém lhe escapa. Mas fulano -pergunta -de tanta consideração, que é?... ÄB"+< „ ð < Ì ð Ì  Ì ô ` ¨ Ì ð  ¬ ` A#18ÿÿ"åæ -É cornudo! -brada num entusiasmo toda a turba. ÄB" „ A#IPÿÿ"åæ -Fulano, nosso vizinho e nosso amigo, onde devia estar, que o não vejo? ÄB"` < < A# ÿÿ"åæ -Aqui!... ÄB" h A#M ÿÿ"åæ E viva! e viva! E o sermão lá segue, até que a canalha, com toldo, a tripeça e o coro de piteireiros, se esgueira por uma ruela mais escura e a primeira luz da madrugada dissolve o quadro, de que não ficam vestígios, como se pertencesse ao domínio do pesadelo ou do sonho. ÄB"  ð ð „ „  ` „  A#[KR ÿÿ"åæ E é isto que eu acho mais extraordinário. Acaba sem deixar vestígios e só dura algumas horas. Cumpre-se como um dever -desaparece como uma sombra. Durante algumas horas perderam por arte mágica a noção da realidade. Aquela injúria noutro dia dava uma morte. Nesse dia a loucura e a dor andam de mãos dadas a passear em plena rua. ÄB"„ „ ¨    ¨ ¨ Ì ð Ì  A#adk3ÿÿ"åæ De manhã tudo está nos seus lugares, cada um retomou os seus hábitos e não se diz uma palavra mais alta. Esta extraordinária galhofa, esta arruaça da noite de S. Marcos, alucinada e violenta, sumiu-se num sopro. Resta a fiada de casas escuras do cais do Pico, o mar ensanguentado onde bóiam carcaças e o horrível cheiro a gordura que nunca passa... Era uso antigamente nas terras alarpadas da província alguém ir para cima dos montes clamar por um funil os escândalos da vila cheia de terror -Fulano dorme com fulana I -e o eco amplificava o som no côncavo dos vales. Talvez o acto fosse a maneira de corrigir os costumes e de obrigar as mulheres a terem tento na bóia. Mas aqui, a coisa é outra. Não se trata dum acto individual; é todo o povo que toma parte na festa extraordinária, compenetrado e como quem cumpre um rito . Ponham esta cena nas vielas da Flandres e a populaça desvairada entre archotes e negrumes agitados e entre a populaça aquele homem que ri -o homem que não pode reprimir o riso de maldade que vem da treva amontoada no fundo da lama humana -o riso que faço por repelir, mas que também ouço cá dentro, como se um estranho parentesco me ligasse a mim e a ele, a mim e ao mal, apesar de todos os esforços para dominar o egoísmo e a animalidade brutal. Apupos, chufas, e a figura que nunca mais esqueço. Tenho feito tudo para a matar, sem o poder conseguir. ÄB"€Ì Ì  < ð   Ì „ ¬ ` ð ð <  <  Ì `  Ì  ð Ì ¨ Ì  ð ð ð Ì ` Ì Ì ð ô ¨  ð  Ì ð ð ð < < Ì ô „ „  Œ A#åìKÿÿ"åæ O Pico perdi-o. A maravilha em negro e cinzento saída das entranhas do mar, nunca mais, desde que pus os pés em terra, a tornei a ver. Tudo se reduziu a fragmentos, a quadros restritos e recantos de paisagem. Ansioso rebusco aquela primeira impressão de conjunto e não a encontro. Não a encontro mais? Não se encontra na ascensão que se faz às duas horas da manhã, da tórrida Madalena ao alto do Pico, com o céu puro e limpo, como são quase sempre as noites dos Açores. Negrume e estrelas. Dois vultos acompanham as bestas, o mestre Narciso e o homem que leva os mantimentos. Meio adormecida, a caravana mergulha no ar gelado da manhã, na amplidão imensa que a envolve e só as patadas das cavalgaduras lascam a calçada. É claridade ou poeira que se levanta na frente, quando se toca na região das pastagens, vasta extensão até ao Cabeço Vermelho? Depois de quatro horas de marcha chega-se à Pedra Mole -ermo com mato, urze, queiró e uma florinha dum branco azulado -é para lá do mar indeciso de névoa leitosa a que a claridade dá acção, fluidez e vida. Um momento parece que se concentra e depois, com a luz aberta, toma o aspecto estranho de mar branco, nuvens brancas, de mar fofo, que, de quando em quando, se descerra e mostra um pico severo, uma rocha isolada flutuando. Para lá deste oceano vaporoso, mal se distingue outro todo violeta. Mais perto nuvens todas brancas e imóveis, de gelo, ao norte estendidas como banquises, escorrendo fios de água azul pelos interstícios. Nesta grande solidão algodoada, ergue-se ao longe uma montanha toda branca, e lá em baixo ascende mais fumarada enquanto o sol ilumina nos altos os montes escuros. Por momentos o nevoeiro mais denso, que veio de baixo e ascende com o sol, cada vez mais cerrado, forma um estranho mar unido até ao horizonte, um mundo branco e polar que nos isola do mundo. Imobilidade e frio. Espero, e de repente ouço...? -ouves?... Do fundo do abismo branco, chega até nós, nesta grande solidão, o tanger dum sino debaixo de água, chamando para a missa. ÄB"¼Ì   < Ì ¨ ð ð ð ¨ Ì Ì Ì Ì „ ð  < < ð „  `   ô < ` „ Ì  ¨ ¨ ¨ Ì  ` ð „ ô   < ð ð „ „ ` <  < Ì `   Ð ð Ì ` < Ì <   ð ð ð   ¬  ð ð ô < A#s«²ÿÿ"åæ É talvez na freguesia de S. Mateus, na Candelária, em qualquer das terrinhas submersas na extensão unida e branca. Outro... outro mais longe, tão cristalino e puro que me surpreende e encanta. É um som que dá uma impressão extraordinária de vida, como se os sinos encantados da Atlântida começassem a chamar por nós. Ouves? ouves? -E quase logo a cortina vaporosa se descerra para desvendar toda a paisagem na manhã violeta...ÄB"(Ì „   Ì ð ð  ð „  „  ¨ `  h A#¢fm=ÿÿ"åæ Dorme-se numa furna para ver amanhã o nascer do sol no alto do Pico. Quem quer dorme às estrelas. Vamos... O que eu procuro, pela última vez na minha vida, não é o panorama -é a exaltação da vida livre. Acende-se a fogueira, sobre a qual se curvam sombras iluminadas, cheira ao fumo da urze, no acampamento em desordem. Tudo adquire um sabor novo, os olhos rebuscam como aos vinte anos os blocos desérticos, o ouvido aguçado recolhe o menor ruído da noite, a vista encontra a acuidade da vida primitiva. Mais, melhor, a alma encontra a plenitude vital na existência selvagem para que fomos criados, e aspira para os cimos. Mais uma vez a luz antes do mergulho definitivo na escuridão! Vamos!... A áspera subida leva outras quatro horas a pé cortando a direito e calcando pedra dura, até à base da caldeira, coberta de bagaço vermelho e da cheirosa erva de Santa Maria. A vegetação rasteirinha diminui de tamanho: é uma rapinha muito miúda como se a tivessem tosquiado. Lá de dentro da caldeira, que tem trinta metros de fundo, sai o Pico pequeno, de pedra vermelha e queimada. A sua ascensão só é possível pelo lado lés-sueste. A cratera pequena e as fendas deitam um fumo ténue. Dum grande rochedo do lado norte desabam de quando em quando pedregulhos. Faz aqui frio em pleno Verão. Espero toda a claridade para ver o mar e o Pico, o Faial, S. Jorge, a Graciosa, e no fundo a Terceira quase a desaparecer. E mais que isto, a sombra imensa e azulada deste grande monte talhada no mar para o lado da freguesia de S. Mateus. É extraordinário fantasma que ali está presente desde que nasce o Sol até passar uma hora depois de ele aparecer. ÄB"™ð „  Ì Ì  ¨ < „ ¨ ¨  „  ð `  Ì ¨ „ ð „ ¨    „  ð ð    „ ô „ Ì   ¨ Ì ¨    ¬  ¨ ð ¨   „  Ì < ` ô ¨ < ` A#¶¸¿ÿÿ"åæ O mistério é o resultado de erupções da base do Pico, (mistério de S. Jorge por exemplo) cobertas por um pequeno líquen, a urzela, que se propaga em vastas extensões cinzentas, dando a impressão duma lepra que corrói a terra, dum mundo morto e amortalhado. Sucedem-se os montes cada vez maiores, formando ao lado barreira inacessível, com rasgos cor de chumbo de alto a baixo. Isto não me larga e oprime-me. Acompanha-me o paredão que nenhuma luz é capaz de arrancar ao negrume cada vez mais espesso. Nem uma planta! Só montes sempre maiores e mais ásperos. A luz é diferente, mais cinzenta, e o fundo tremendo e cor de lousa requeimada parece esperar imóvel que este planeta acabe de apodrecer.ÄB"AÌ „ „ `  Ð ð ` „ Ð  „ „ ð ð „ „ ð ¨ ð   „ < < Ì A#Çûÿÿ"åæ Absorvo-me na extraordinária paisagem mineral, no panorama que saiu intacto das entranhas do fogo. Nem um sinal de vida -extensões mortas, calcinadas, inúteis, cuja beleza exterior consiste principalmente na linha, na sólida arquitectura dos montes erguidos até ao céu em perfis severos, na solidão e na cor que os vestem, no esforço de quem despreza todos os pormenores inúteis para mostrar descarnado a Deus o seu sofrimento. Aqui as pedras passaram todas pelo incêndio e assim clamam tisnadas e imóveis. Produto dum parto monstruoso, a ilha foi devorada até ao ponto de fundir. É a dor. É a dor do mundo exposta a nossos olhos, imobilidade diante de nossos olhos -a dor descarnada e solitária, muda e trágica, sem um véu, sem um farrapo, sem um grito. Só dor.ÄB"Fð  Ð „ ` ð  Ì <  ð ` ` Ì „ Ì  < Ì ð ð Ì  ð „ ¨ Ì ô A#xÀÇÿÿ"åæ Às chapadas negras sucedem-se as chapadas fúnebres, aos rasgões avermelhados, onde parece que lavra ainda o incêndio, as escórias acabadas de derreter, ao minério de tons azulados e sombrios as fragas em atitude de desespero, os buracos dilacerados até ao íntimo. Não houve piedade, não houve um momento de suspensão naquela tortura imensa e calada: tudo, desde a poeira até ã montanha, passou pelo mesmo inferno e ainda fumega no último estertor.ÄB"+ „ ¨ ` ô ` ¨  ` ¨ ð < ` ð Ì ð ¬ A#„ð÷ÿÿ"åæ Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido. Tudo se despenha em catadupas de pó negro, ou fundido dum só jacto nas paredes lisas e azuladas, negras com arabescos mais escuros que parecem caracteres indecifráveis -petrificadas em cores mais ricas, dum negro cor de sangue, fundidas e entranhando-se umas nas outras até chegarem ao fundo cinzento. Um abismo -um tropel -um campo de destroços. E sobre o caos cinzento.ÄB"2 ô ¨ „ ¨ Ì ` „ Ð ¨ ˆ Ì `  „ ð < ¬ „  D A#Céð ÿÿ"åæ E isto não nos larga. Chega a impor-se a nossos olhos e fascina-nos a ossatura despida de toda a carne, não pela impressão de monstruoso ou de atormentado, mas pela beleza intelectual, pela beleza superior e grave que é a das almas.ÄB" „  ð ð Ì `   ° A#Ñ#*ÿÿ"åæ É aqui que a luz dos Açores atinge talvez a perfeição. Nada que a distraia -só o mesmo tom no vasto quadro feito com a mesma cor, variada até ao infinito em nuances delicadas. Sobre o cinzento do mistério paira o cimento absorto do céu -sobre a pedraria escorre o cimento das nuvens. Ao longe o paredão imenso realça a severidade do panorama excepcional. Todas as pedras que a cadeia de ferro vomitou foram cobertas de cinza, que amortalhou este mundo espectral. É uma paisagem abstracta, é uma paisagem morta. Não é só a cor do céu, que é a mesma de todas as ilhas -é a cor da pedra -é um vago sentimento de terror -é o cadáver que se conservou intacto e que criou bolor. Não há uma deformação. Ao contrário. Há uma beleza nova que é preciso encontrar -mas depois de encontrada nunca mais nos larga...ÄB"KÌ ¨ „ „  ¨ ¨ ð  ð  <  ð  ð ô „ „  „  ð ¨ ¨ „  ð ¨ d A#1£ª,ÿÿ"åæ Para lá, muito para longe, superfícies dum cinzento muito mais escuro e campos só de pedra com flores cor de mosto -tudo parado, quieto, imobilizado. Não se ouve o pio duma ave, não se vê reluzir o fio dum regato. O mundo morreu todo cinzento. A própria luz esquisita desfalece. E sempre nos acompanha ao lado o monte tétrico, que vomitou esta lava em cachão, que parece ferver coberta de cinzento. Debalde se caminha dum e de outro lado da estrada o mistério persegue-nos em silêncio. Às vezes as pedras têm o feitio de vagas dum mar encapelado que petrificou em cinzento com espumas à tona. A urzela avança sempre, cobre tudo, montes, pedras, ferro, taludes da estrada, ficando tudo da mesma cor e na mesma uniformidade. É uma das coisas mais belas que conheço no mundo -a visão dum planeta onde seres e coisas foram comidos do pó, deixando vogar para sempre no éter o fantasma cinzento e mudo. Esta visão acompanha-nos e persegue-nos até às Lajes, perdida na base dum monte tão espesso que mete medo. Já agora ninguém me tira dos olhos este extraordinário Pico, a duas cores, cinzento e negro, e presidindo, como uma grande figura no meio do oceano, a todo o arquipélago dos Açores. ÄB"n¨ `  ¨ Ì ¨ < Ì  ô < „ „ ¨ Ì Ì < ` ð  ð ð  ð Ì ð <   „  ô „ ¨ ¨  „ „ „ ð Ì ð ð  ° A# ÿÿ"åæ ÄB" A#ÿÿ"åæ Casinhas negras aglomeradas, uma grande solidão e uma grande tristeza. A costa forma baía, fechada dum lado por um desconforme penedo. Lajes é a terra dos baleeiros -seis armações, duzentas pessoas empregadas na pesca. As montanhas cercam-na e impelem-na para o mar. A casa do vigia fica lá no alto, num moinho abandonado, num sítio que se chama a Terra da Forca... Tudo aqui cheira a baleia e está besuntado de baleia, tudo o que se come sabe a baleia, que é derretida em grandes caldeirões para lhe extraírem o óleo. Pergunto:ÄB"2ð ` ` ð ¨  ` ð `   ð < Ì ¨ ¨ Ð Ð  d A#29ÿÿ"åæ -Mas vocês não sentem isto? este cheiro horrível?ÄB"Ì ô A#:Aÿÿ"åæ -Este cheiro, cheira-nos sempre bem. É sinal de dinheiro.ÄB"`   D A#8¿Æ-ÿÿ"åæ Nem reparo na ermidinha, que foi a primeira, dizem, que se fundou na ilha. Estaco com surpresa no meio da povoação diante duma catedral gótica por concluir, erguendo pelos ares a ossada negra feita de lava. Um padre realizou neste ermo uma construção desproporcionada para a terra -todo o sonho é desproporcionado -e isolada entre montes. Ergueu-lhe sobre fortes alicerces as muralhas enormes até lá acima. Todo o dia lhe viam a sotaina agitada no alto, a ajudar os pedreiros como um pedreiro -ou -ou -oupa -empurrando as lascas negras. Pediu dinheiro a toda a gente, aos da América, aos ricos, aos pobres, para realizar aquela massa em ogivas abertas, onde toda a povoação ficaria sumida num canto. Gastou o seu e o alheio. Trabalhou como um negro. Não teve durante toda a sua vida outra ideia, outra ambição nem outro interesse. E quando aquilo chegou lá acima, prestes a concluir-se, morreu de repente -e a catedral ficou para sempre naquele ponto, abandonada e desabitada, sem telhado, carcaça morta e negra erguida em frente do mar, e separada da terra por montes espessos que ameaçam submergi-la. Moram lá as aves marinhas... Aquilo foi um sonho e nenhum sonho se chega a concluir -o sonho não cabe no mundo.ÄB"qð  ¨ ð Ì ð ð  ¬   Ì ` „ < ð ¨ Ì   < ¨ < ` Ì Ì < „ ð  ð „   ¨ Ì `  ð ð ` ð ð ð ` A#Äíôÿÿ"åæ Agora completo o quadro: com os montes, hirtos e negros por trás, neste fundo extraordinário, neste panorama dilacerado, parto duma imaginação estranha, parado e cinzento, é que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o grotesco de fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais que uma ilha -é uma estátua erguida até ao céu e amoldada pelo fogo -é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.ÄB"Ið ¨ ô ô ¨ „  „ „ ` ð ¨ ô Ð  <  „ ð ¨ Ì Ì   ` ð Ì ð  h A#@Ýä ÿÿ"åæ Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim, negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia... ÄB"` <   ` ð Ì ¨  D A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ A PESCA DA BALEIAÄB"d A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#6¸¿.ÿÿ"åæ Lá de cima do poleiro o vigia ergueu-se de salto, deu sinal de baleia à vista com o búzio e todos os homens desataram a correr para as canoas. Nas Lajes, noutro dia, saía o enterro dum baleeiro morto no mar, quando do Alto da Forca anunciaram o bicho. Ia tudo compungido -ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacristão, a cruz e a caldeira -iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver a Deus -e logo a marcha compassada parou instantaneamente e mudaram instantaneamente de atitude: ficou só o padre com latim engasgado e o caixão no meio da rua, e os outros, enrodilhados, levaram o sacristão, de abalada, até à praia. Baleia! baleia!... Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arrear à baleia. No cais do Pico e nas Lajes ninguém se afasta da praia. Estão sempre à espera do sinal e com o ouvido à escuta, os homens nos campos, as mulheres nos casebres. E enquanto falam, comem ou trabalham, lá no fundo remói sempre a mesma preocupação. São tão apaixonados que até este cheiro horrível, que faz náuseas e que se entranha na comida e no fato, lhes cheira sempre bem. ÄB"s    ¨ „  ð Ì < ¨ < ô ð ð Ì ô @ ¨ ð ¨ ð Ð < ð „ „ ð ˆ ¨ ð Ì Ì ` < ¨ Ì Ì „ ¨ Ð ` ` ð   ° A# ÿÿ"åæ -Baleia! baleia!ÄB"@ A#X?F ÿÿ"åæ E toda a população acode aos barcos. Vejo daqui a fiada de casas à beira da estrada, o cais de embarque com o gorduroso barracão de madeira, tudo negro, enfumado e fétido, e por toda a parte, nas pedras escorregadias e na água azul, vértebras, carcaças boiando e restos ensaguentados que cheiram a podre que tresandam.ÄB"ð  Ì  ô    ô „ Ì Ð A#"ÿÿ"åæ -Nosso Senhor vá com eles!ÄB"¨ A#5<ÿÿ"åæ -Nosso Senhor lha dê sem perigo! -dizem as mulheres.ÄB"` Ì A#$mtÿÿ"åæ -O pão do meu José vai na canoa -grita outra, debruçada para os homens que empurram o barco a toda a pressa.ÄB" „    A#"ÿÿ"åæ -E aquela canoa não larga?ÄB"¨ A#$ÿÿ"åæ -Está à espera do trancador.ÄB"ð A#-’™ÿÿ"åæ Já um grupo de velhos, com a mão enconchada sobre os olhos, espreita para o largo, a ver se descobre os esguinchos de vapor que o bicho resfolga.ÄB"ð <  Ð „  A#*‡Ž,ÿÿ"åæ O mar desmaia, mais etéreo que o céu, diluindo pouco a pouco no azul o doirado das nuvens. Uma luz difusa estremece no arrepio da superfície. É uma manhã delicada -um pedaço de céu azul claro que se não distingue do mar azul claro. Ao fundo vapores esparsos, à direita flocozinhos brancos por cima de S. Jorge, e para o largo pastadas grossas e imóveis que a primeira luz da manhã ilumina. Acolá um farrapo de névoa embrulhou-se na água dum azul quase cinzento e não a larga: o Faial, a distância, é uma mancha transparente, e o Pico passa a meus olhos por diferentes gradações, desde o azul nascido ao violeta. Névoas prendem-se aos calhaus negros, aos montes dramáticos, ou derretem-se de repente na água em rápidos chuveiros. No céu há um azul entre as nuvens tão ensaboado que mal se distingue, um azul entre nuvens azuis estendidas, com interstícios mais claros, e logo por cima pequenos estratos amontoados... Mas tudo isto desvanecido, tudo isto através da neblina quase a desaparecer. É uma manhã para se respirar, devagarinho. O mar é ainda neblina, o céu todo neblina; só anda algum azul misturado ao branco e alguma luz que se coa pelas nuvens... ÄB"n¨ Ì Ì  < < ¨ ô ð ð Ì ð ¨  <   „ „    `  ˆ  ¨ ð   ˆ ð ð d Ì  ¨  Ì ¨ Ì ¨ Ì  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A#Ÿ[b<ÿÿ"åæ A canoa voga suspensa na atmosfera e outras lá vão adiante à força de remos. Duas içaram as velas... Um barco destes é quase um móvel ao mesmo tempo delicado e resistente, muito bem construído de tábuas leves de cedro, pregadas com cavilhas de bronze sobre as cavernas de carvalho americano -esguio como um peixe e leve como uma casca, para escorregar sobre as águas. Metem-lhe dentro sete homens, o arpão e a lança, para atacar um bicho cuja massa pode ser avaliada em cem toneladas, e que, depois de ferido, se vira às vezes contra as canoas e até contra navios do seu tamanho. Ainda a semana passada um cachalote reduziu um barco a cisco e matou três homens, pondo-se de pé no mar com a boca aberta cheia de dentes de palmo . O que vale é que a baleia é um bicho muito tímido. Pode, com o leque da cauda, cobrir e abafar uma canoa -e tudo a assusta. São poucas as que atacam, mesmo depois de feridas; mas há machos solitários que chegam a atrever-se com navios maiores do que eles, metendo-os no fundo à focinhada. As baleias velhas isolam-se pela dificuldade em encontrar pasto que lhes chegue: mastigam no mar incessantemente como bois a pastar na erva. As novas viajam em grupos de vinte e trinta. É um espectáculo majestoso encontrar pela manhã um bando de baleias, resfolgando pelas ventas -é um espectáculo do princípio do mundo... Um pouco de neblina -mar azul... Lá vão com o dorso de fora e lançando de quando em quando um esguicho de água vaporizada. De repente, quase ao mesmo tempo, mostram os lombos luzidios a escorrer... É uma coisa que faz parar o coração, é um quadro imenso e duma frescura extraordinária.ÄB"–` „ „ ¨  „ ô  ð Ì   ð ¨ ` Ì ð ` ð ð  „ ð ¨ Ì Ì  < ð ¨ ð Ì „ ð < Ð ô ð  ` < Ì ` Ì ` ` ¨ Ì Ì < Ì ô ð ¬  ¨  Ì   A#r¦­ÿÿ"åæ Pastam. Seguem sempre a mesma rota à procura das carnes gelatinosas que devoram; dos cefalópodes, lulas e polvos, que se lhes pegam e as sugam, entre braços que as envolvem e açoitam, sempre mastigando coisas esbranquiçadas a escorrer-lhe da boca. São os grandes devoradores dos monstros que na água glauca esperam a presa como sacos coroados de tentáculos, moles e horríveis, movendo à volta da mitra a coroa de répteis.ÄB"& „ ð ð  ð ð < ð < Ì ¨  ð ð A#}ÒÙ8ÿÿ"åæ Isoladas ou em grupos, seguem a sua rota até à África, regressando pelo mesmo caminho. Esperam-nas os baleeiros e perseguem-nas, chegando a ponto de serem escassas no arquipélago e só reaparecendo depois que os americanos abandonaram a pesca, e os óleos minerais substituíram o óleo animal, que é empregado hoje nos instrumentos de precisão. Nos últimos tempos voltaram muitos cachalotes aos Açores: num dia vi cinco na baía do Porto Pim, no Faial, cinco bichos de ferro zincado, barbatana curta e grossa e cauda horizontal apartada ao meio como a cauda da andorinha. Pus-me a olhar para aqueles monstros desconformes e maciços, de cabeçorra quadrangular, que é o terço do corpo e onde não há nada que preste. Na baleia não é a barriga que é maior e mais grossa -é a cabeça; daí para baixo vai arredondando e diminuindo até à cauda, horizontal, enorme e luzidia. Os olhos pequeninos é preciso procurá-los, porque mal se distinguem da pele, e infelizmente para elas, estão colocados de forma que só vêem para os lados. Os baleeiros chegam-se facilmente pela cauda -a questão é não fazer barulho -porque têm o ouvido muito fino e ouvem pela pele: sentem a grande distância: qualquer ruído insólito as perturba ficando a tremer de susto, até que se lembram de fugir. Na frente da cabeça ficam os buracos para resfolgar: ali não entra arpão, a pele é muito dura; e por baixo abre a queixada em forma de bico com grandes dentes, que, quando fecha a boca, entram em cavidades da maxila superior.ÄB"Œ `  < ¨ „ ð ¨ ` ¨ Ì `  <  Ì ¨ ` ¨ ð Ð „ ô ¨  Ì   ð  <   ¨ ô  „  ¬ ` Ì ¨ < ¨ ¨ ð ð ¨ ô `  ð „ Ì ð @ A#|ÏÖÿÿ"åæ Este bicho inocente e estúpido quase sempre dorme ou digere à tona de água, inerte como um saco cheio... Só depois que lhe vi abrir a cabeça, melancia preta desconforme e toda de branco rosado pelo lado de dentro, é que compreendi bem a baleia. Debalde lhe procurei o miolo. No lugar dos miolos tem um líquido, espermacete, que dá doze a quinze barris do melhor óleo. Nem é preciso fervê-lo: está pronto a servir nos tanques do caco. Por isso se deixa apanhar...ÄB"+ô Ì „ ð ð  ð  ð  ¨ ð < ¨ < Ì ð A#ÛKRÿÿ"åæ Os baleeiros sabem logo se é grande ou pequena, pelo tempo que demora à superfície das águas; a espécie a que pertence, porque as há que só respiram por uma venta. Conhecem quando vai mergulhar, porque mostram primeiro a enorme cauda agitando-a fora da água; e se são pequenas, porque andam em bandos e aos saltos, tal é a sua agilidade. Contam que a mãe acompanhada pelo filho, que nasce logo com quatro ou cinco metros de comprido, é mais fácil de subjugar, chegando o ambaque (baleia preta) a deixar-se matar quando lhe apanham o pequeno: basta feri-lo ao pé do rabo e puxá-lo para o bote. A mãe já não o larga e prefere, se não pode fugir com ele metido debaixo da asa, que a acabem às lançadas. Quer dizer: esta coisa monstruosa e zincada, com óleo na cabeça, não só come e digere, não só dorme e digere -é capaz de ternura e sacrifício.ÄB"Nð  Ì   < ¬ „ <   ð Ì Ì ð Ì < ¨ `     „ ð  Ì ¨  ð  Œ A#R(/2ÿÿ"åæ Creio que hoje só os barcos dos Açores a caçam pelo processo primitivo, que é muito mais perigoso. Os americanos usam um canhão especial e ainda não há muito que grande número de barcos se ausentavam das costas da América por largos períodos, navegando pelo Norte do Chile ou nas regiões circumpolares, onde a baleia encontra o pasto de que se nutre no mar cheio de organismos infinitamente pequenos, no mar só alimento, em formação como as nebulosas. A baleia é apanhada, suspensa, cortada e derretida em grandes caldeirões que fumegam a bordo. Essa avantesma besuntada, fedorenta e ressumando óleo, todo o dia navega, vomita fumo, e cheira que tolhe, e mais se parece com um açougue ambulante que com um barco. Tudo lá dentro é pegajoso e escorregadio. Os ganchorros levantam pedaços de baleia, metendo-os nos caldeirões, onde fervem e refervem. À volta agitam-se homens engordurados até à alma, entre labaredas, bando de aventureiros de toda a espécie, equipagem de acaso, malaios e chineses, escorregadios como o navio, caranguejola que vai correndo todos os mares onde se encontra a baleia. No alto dos mastros, em duas barricas, os vigias incessantemente a procuram na água com óculos, enquanto outros mexem e remexem os caldeirões, ou, em tábuas amarradas ao costado, cortam, içam, despedaçam as banhas do bicho.ÄB"}Ì < „ < „  Ì Ì ð   ` ð ¬ ¨ ð   Ð ` ô  Ì  Ì ð ð  Ì „ „ Ì „ ð „ ð ¬ Ì   ¨ Ð ¬  „ „ „   Ø A#‰ ÿÿ"åæ E isto nunca mais cessa: o navio enche o mar de fedor e de sangue e lá dentro a caterva derrete sem cessar, mergulhada em fumaceira, que o vento não dispersa -não pode -ou persegue sempre, matando sempre, como se a sua missão fosse sujar a grande pureza do oceano. O fumo pesado e gordo envolve o navio ensanguentado, que se destaca na manhã delicada ou no poente todo de oiro. E mesmo de noite, sob a maravilha das estrelas, aquilo vermelheja e arde, queimando carne e fumegando sempre. E cheira cada vez pior... ÄB"2¨ ð < Ì ð „ „  Ì ` ` Ì ð „ ô < „ Ì „   A# ÿÿ"åæ ÄB" A#AâéUÿÿ"åæ O mar cinzento com espaços lisos dum cinzento reflectindo a cor das nuvens, e ao fundo, quase tocando o céu, uma grande superfície toda azul... Vem o bando por aí abaixo num azul que é azul e acção. Vêm todas do oceano glacial como se viessem da fonte da vida. E sentem a felicidade inconsciente da frescura que as rodeia, da água azul nascendo em jorros sobre jorros, que lhes comunica energia, vibrando todas com ela. Não têm uma arte, uma filosofia, um negócio a tratar. Vivem pela pele, vivem com a água que vive. Vêm aos saltos unidas e cortando o grande mar, nas manhãs brumosas, nas tardes de oiro, imensas como o universo e todas de oiro, nos dias de tempestade, que se fizeram para dançar à tona das ondas furando o cachão branco e vivo -outro cachão ao longe -ou nas tardes de mar calmo, criadas de propósito para boiar e dormir, no oceano e no mundo todo azul, que também adormece e repousa. Um bicho isolado bóia. Dorme ou digere. Parece um penedo escuro à flor das águas... Um ah! Estamos nas primeiras horas da vida. A claridade espelha-se e escorre no dorso escuro e molhado. O barco aproxima-se sem ruído, o arpoador à proa, com o arpão erguido e seguro nas duas mãos, firme nos pés e na atitude de arremesso. É um ferro com setenta e cinco centímetros e dois metros de cabo. Ao lado, no barco, vai a lança, que é maior, para acabar este monstro do tamanho dum prédio. Mas o homem impressiona-me ainda mais que a baleia: é tremendo, de pé, minúsculo, com a vida no olhar e nas mãos. No barco está tudo calado e ansioso, ninguém diz palavra inútil: homens, barco, arpoador e arpão, tudo tem o mesmo corpo e a mesma alma. São sete, dominados pela acção, trespassados pelo ar e por este cheiro que penetra pela boca e pelos poros, gerador de energia -é um ser único, só nervos e vontade, à caça do monstro e com uma ponta de perigo que seduz -sem falar do negócio, que é excelente. Todos ganham: uma baleia dá muito óleo e o óleo dá muito dinheiro. Às vezes dá âmbar. Mas há principalmente a necessidade de matar, de lutar (numa vida que é mais monótona do que em qualquer outra parte -duas vezes monótona pelo mar que os circunda e pelos montes que os entaipam), de vencer as contrariedades e os perigos -sentimento com raízes no mais profundo da alma humana.ÄB"Õ¨ ˆ  Ì ¨ ð  ð ¨ „ ¨ ¨ ð  ¨ ¨ < ð ¨  ¨ Ì <  ¨ ¨ ¨ Ì ¨ ô  ð ô ð  `  „ ¨  „ ` ð „ ` ¨ „ ð ð ¨  „ ¨ Ð Ì „ `  <  Ì „  ` „ ð „ ð Ì ð  Ì  ð < ` Ì Ì < ` Ì ¨ Ì „  A#YAH ÿÿ"åæ São sete couros secos, decididos, e alguns deles lavrados pelas rugas e com brancas na cabeça, e o trancado r mola de aço pronta a distender-se, concentrando toda a energia no olhar e nos músculos. Esperam -ele o momento de lançar o arpão, os outros o de afastarem a canoa no mesmo impulso combinado. É um momento único.ÄB" „ ¨   ð  `    d A#³¬³ÿÿ"åæ Já outras canoas se aproximam... Mas antes que lhe tirem a baleia, o trancador lança o ferro. O bicho tem um momento de hesitação e surpresa, como o touro quando lhe cravam as bandarilhas, o que permite ao barco desviar-se num golpe de remos, antes de ser abafado na cauda ou envolvido no redemoinho das águas. Não há um segundo de dúvida ou um movimento falso. A baleia mergulha entre vagas, com o risco de os arrastar para o fundo, e leva-os numa velocidade de expresso, pelo mar fora porque aquela grande massa é duma agilidade espantosa. -Larga! larga! larga a manilha! ... E lá vão no curso, entre as águas rasgadas, no grande sulco aberto com violência, tomando tento na linha.ÄB"A¬ ¨ ô ¨ < ð ¨   Ì ` ð ¨ „ Ì Ì ô ð   „  ` „   A#zÆÍÿÿ"åæ As outras canoas ficam a ver navios. Às vezes há balbúrdia: todos os barcos querem trancar a mesma baleia e dirigem-se-lhe pela cauda, pela cabeça, pelos lados; já tem acontecido arremeterem às cegas sobre o bicho, encalharem-lhe no lombo e meterem-lhe o arpão na cabeça. Outras vezes um trancador impaciente, vendo fugir-lhe a presa, atira o ferro por cima do barco que está mais perto da baleia para a roubar. É o que eles chamam trancar para quebrar.ÄB"+ð ¬ ¨  ð ð  Ð „  < Ì ¨ Ì „ Ì ð A# ÿÿ"åæ -Larga! larga!ÄB"ø A#›JQÿÿ"åæ A baleia mergulhou. Corre agora a linha de manilha americana, muito bem enrolada dentro de duas selhas, e os homens, pálidos e imóveis, com o coração do tamanho duma pulga, esperam. A baleia pode desaparecer durante vinte minutos. Um deles tem nas mãos, para se não cortar, um pano chamado nepa, por onde a corda passa e pelo moirão, pau saliente à proa, que chega a fazer fumo com o atrito. Às vezes a linha acaba-se quando a baleia mete muito para o fundo. Se está outro perto, fornece-lhe mais linha, senão a baleia perde-se: têm de cortar a manilha ou são arrastados para o abismo.ÄB"7„ `  Ì ¨   „ „ ð  ¨ ` ` `  Ì  ô „ „ ø A#"ÿÿ"åæ -Lá vai a arça! -exclamam.ÄB"¨ A#.—žÿÿ"åæ A arça é o fim da linha, e é com pena que eles a vêem acabar-se. Passam a ponta de mão em mão, até ao último tripulante, que só a larga com desespero.ÄB"ð ` ð „ ¨ ø A# ÿÿ"åæ -Lá vai a arça!ÄB" A#M ÿÿ"åæ Pior é quando a baleia, ferida, se atira ao barco. Deita-lhe a boca e dilacera-o, voltando-se depois para os homens, de boca aberta como as feras. No outro dia, as canoas que assistiam a este drama queriam lancear o bicho enfurecido, mas os outros, nadando, berravam da água:ÄB"< ¨ ˆ < „  `  < ¨ ¨ A#7>ÿÿ"åæ -Ó homens, não avancem, que ela mata-nos aqui a todos!ÄB"Ì ¨ A#¯›¢ÿÿ"åæ Em geral a baleia mergulha, vem à tona antes que se acabe a linha, e o que ela mostra primeiro é o focinho, para resfolgar. Aproximam-se e dão-lhe uma lançada ao pé da asa para a sangrarem. Mergulha, reaparece, esgotam-na e têm-na certa quando começa a esguichar sangue pelas ventas. Que visão de espanto entra nesse momento naquela cabeçorra? Há baleias que conseguem escapar e não esquecem -meses depois atiram-se aos baleeiros. Dão-lhe mais lançadas, numa vozearia de triunfo. -É nossa! é nossa!... -Do corpo, dos pulmões, do coração, saem jorros vermelhos. Vomita. Encarniçam-se os homens. Então aquela grande massa oscila, adorna e morre numa pasta de sangue...ÄB"?Ì  Ì ¨ „ ð ô Ð „ „ ` ð   ð ` Ì <   „ ` „ Ì ˆ A# ÿÿ"åæ ÄB" A#@ßæÿÿ"åæ Do alto do monte o vigia tem guiado a canoa, acendendo fogueiras para os dirigir com o fumo -para a direita, para a esquerda, para o largo -até encontrarem o bicho, e toda a população em terra seguiu ansiosa o espectáculo.ÄB"ð „  ð   „  A#!ÿÿ"åæ -Já arrearam as velas!...ÄB"„ A#%,ÿÿ"åæ -Trancou a baleia! trancou a baleia!ÄB"ð ü A#.5ÿÿ"åæ -Foi o mestre Francisco que trancou a baleia.ÄB"Ì d A#IPÿÿ"åæ -Ai, se foi o meu homem que trancou a baleia, é hoje um dia de S. Pedro!ÄB"Ì Ì @ A#/6ÿÿ"åæ E o grito corre de casa em casa pela povoação.ÄB"¨ ¬ A#%,ÿÿ"åæ -Trancou a baleia! trancou a baleia!ÄB"ð ü A#•4;;ÿÿ"åæ Falta o pior; falta trazer o bicho para terra, o que leva horas, leva o dia. Às vezes as canoas são arrastadas para muito longe e é preciso puxar a baleia a reboque para a costa. E segue o resto; falta decepá-la, cortar-lhe a manta em pedaços para derreter nas caldeiras. Compõe-se a canoa, leva-se ao ferreiro o arpão todo torcido. Os cais escorregam besuntados, o barracão deita um fumo pegajoso e fétido; no mar boiam carcaças podres; por toda a parte há ossos de baleia e tripas informes. Lá de dentro, da cozinha infernal, saem baforadas, clarões e fumaceira. As povoações tresandam a gordura, porque até o fogo das caldeiras se alimenta com vértebras e torresmos de baleia. A gente passa e vê uma cabeçorra escura aberta a machado ou um monstro estendido com homens em cima, que o retalham com o ferro largo encabado num pau, enquanto outros, cheios de gordura e de sangue, remexem nos intestinos, onde às vezes se encontra uma fortuna. Duma que vi morta no cais do Pico tinham retirado trinta quilos de massa escura, âmbar, que valia muitos contos de réis. Por toda a parte vasilhas ensebadas, barris de óleo, montões de ossos, resíduos de lenha e toucinho branco cortado em bocados. Um guindaste tira da água um enorme pedaço de baleia. Mais cheiro, mais fumo, naquele açougue monstruoso. Mais fartum... Os homens mal se distinguem, lá no fundo do barracão imundo, remexendo com grandes colheres nos caldeirões, e outros carregam mantas de banha a escorrer gordura. Clarões vermelhos (é o óleo que arde e a carne que rechina) iluminam figuras estranhas. Até o mar está escarlate.ÄB"”ð ð Ì   „   ð  Ì ô `  „ ¨ ` ð ô „ < ô ¨  ` ¨  ô  ¨ < ¨ ð   ð  Ì ð „ ¨  <  „  ¨ ` ¨ ¨ ¨ `  ¨   „ „  h A#n–ÿÿ"åæ Verde e negro, verde e cinzento, entre torresmos negros. Vida prodigiosa de névoas, clarões vagos e esparsos, tintas delicadas que se entranham umas nas outras, e às vezes um pedaço de mar azul-cinzento que me prende e fascina. Mas não me sai dos olhos a posta gorda de carniça e o cheiro a fartum não me larga o nariz, nem aquele navio besuntado que corre o mar, deixando um rasto de fumo e de sangue... ÄB"& „ ¨ < ¨ „ ð Ì ð Ì < ð ¨ ð  A# ÿÿ"åæ åæÄB" ‚ ‚