{\pwi, TahomaCourier NewÐ/à=ð      â=â@ŒŒžª####W#######"###############»#<#k#P#ë#µ#?‹#.Á# í########±#ª#¸# ;# ø#Þ#7#>‚#ç# P##%¶#®#×#*A#.Î##*P#0#w# ^#)7#F#E,#O#Ú#Æ#"†#-#5g#"x###8ò#~#"™#E# õ#®r#ò#ñ5##<#BÙ#-Á## # &# # ë#,‘#Æ#(<#Ü#/ì#>V#@È#Œ#7·#t#'# ##%#+~#H•# T#B#(0#6·#x” #À#%Þ#<x#'#!t#%É#±##Wð#š#5c# &#,ƒ#-Ä#!n#!p#ù#t/ #:#=c# #)*#,##,¡#lF #!|##A# ÿÿ"åæ Epanáfora AmorosaÄB"d A# ÿÿ"åæ ÄB" A##ÿÿ"åæ D. Francisco Manuel de MeloÄB"Ì A# ÿÿ"åæ ÄB" A#W^ÿÿ"åæ Titulo original Descobrimento da Ilha da Madeira. Ano 1420. Epanáfora Amorosa TerceiraÄB"  ¨ A# ÿÿ"åæ ÄB" A#$ÿÿ"åæ © 1997, Parque EXPO 98. S.A.ÄB"ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ISBN 972-8396-14-7ÄB"ˆ A# ÿÿ"åæ Lisboa, Setembro de 1997ÄB"` A# ÿÿ"åæ ÄB" A#")ÿÿ"åæ Versão para dispositivos móveis: ÄB"`   A#$ÿÿ"åæ 2009, Instituto Camões, I.P.ÄB"ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A#  ÿÿ"åæ ***ÄB"l A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ EPANÁFORA AMOROSAÄB"d A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ Escrita a um amigo ÄB"¬ A# ÿÿ"åæ ÄB" A#w»Âÿÿ"åæ Amigo. Muitos tempos há que desejo aliviar o ânimo, escrevendo alguma obra de mais divertimento que as passadas; porque ele, oprimido de cuidados grandes, acurva como o ombro, ao peso da desigual carga. Até o próprio Atlante, a cujas forças a fabulosa antiguidade confiou o mundo inteiro, se viu necessitado das robustas costas de Hércules, para que sobre elas descansasse ou pelo contrário corriam perigo o mundo e o Atlante que o sustinha. ÄB"+Ì < „ ` ô  ð ` `  Ì ð ð „  „  h A#—<Cÿÿ"åæ Já sabeis, e os nossos, e os estranhos, como ao meu génio (bem ou mal) apetece este exercício da pena e tinta; e que dos vários empregos que fiz, com minha escritura, mais repreensível pode ser a obra que a matéria. Provei as Histórias, as Poesias, as Políticas, as Moralidades: em todas achei inconveniente. E supondo que aos maiores vence a glória ou o interesse, eu ignorando ambos estes afectos, confesso-vos que me acho medroso para Cronista, rude para Poeta, confuso para Filósofo, melancólico para Moral; mas para tudo me acho ainda menos que para me achar ocioso.ÄB"5ð ð „ ð Ì „ ð  „  ð  Ì ô ð Ì  ¨ ð  ü A#£krÿÿ"åæ Comecei nos anos passados a escrever algumas memórias de sucessos notáveis de nossa nação, que foram mal escritos ou o não foram. Aqueles cujas informações eu não pedisse ao estudo dos livros, e só de minha lembrança facilmente os recebesse; porque além de que faltando (como a mim me faltam) o gosto e saúde, logo o estudo é molesto; haveis de saber, Amigo, que de ordinário vêm a esquecer no Mundo as cousas que nele trazíamos mais presentes: a razão é que, por vê-las de contínuo circunstantes, nunca tememos que nos faltem, à maneira que da água ninguém faz tesouro, por ser cousa, ainda que estimável, ordinária. ÄB":Ì ð ¨    ¨   <   Ð Ì ` Ì ¨  „ Ì Ì Ð  Œ A#œPWÿÿ"åæ Alguns discursos que vos digo, tenho acabado, e outros perto do fim, nenhum da perfeição. Mas havendo (já há muitos anos) lido aquelas singulares Relações do Cardeal Bentivollo, tanto há que fiz propósito de o imitar com outras em nossa língua Portuguesa. E quando cheguei a ler a fuga do Príncipe de Condé, e notei o vagar e galanteria com que um tão grave juízo se deteve a retratar os afectos do amor humano, certifico-vos que me fez inveja, entendendo eu então de mim que, para semelhantes matérias era mais conveniente a minha pena que a do Cardeal, posto que sábio, velho e religioso. ÄB"7`  <  „  ð  ¨ ð Ì ` „ < Ì ð „   ð < ¨ A#Ãëòÿÿ"åæ Vendo-me agora nesta solidão, a cujo favor vim fugindo da justiça, ou da injustiça do povoado, me pus a discorrer vagarosamente sobre de que maneira eu poderia satisfazer aquela interior promessa, escrevendo a relação de algum sucesso grande que pertencesse a este Reino, procedido ou ilustrado de afectos amorosos. Mas depois de larga volta de discursos, me pareceu que nenhum era mais proporcionado ao que eu desejava que o notável descobrimento da nossa celebrada Ilha da Madeira; em o qual (como vereis nesta Relação que dele vos ofereço) se acham todas as várias acções que fizeram intrincadas, e por isso agradáveis, as histórias do Mundo, ou com adorno retórico ou singeleza histórica se relatam, na erudição profana dos Gregos e Latinos. ÄB"F Ì Ì Ì ¨  „  ˆ „ „ ð ð „ ð    „  ` ˆ < Ì  „ ð  A#¶µ¼ÿÿ"åæ Resta acomodar-vos o presente. Porém, qual dos que vos conhecem duvidará que, nos casos de Amor e de ousadia, não há entre nós outro mais prático? Assim vos estimam, galante, as damas, como os inimigos vos confessam valoroso; porque não sem propósito o vosso Cupido lá foi ser filho de Marte: nem se ignora que costumam ser Martes todos os filhos de Cupido. Filhos chamarei do Amor (por esta razão Martes) aqueles cuidados tão valentes, aquelas resoluções tão deliberadas contra o maior perigo; ou então chamar-lhes-ei Hércules, que por jogo no berço se ensaiava espedaçando serpentes. Assim, um amoroso pensamento já ao primeiro dia se esforça a lutar com impossíveis e se aveza a vencê-los.ÄB"DÐ  ¨  „  Ì Ð ¨ „ ¨ ` ð ` ¨ ô   ¨ @ ð   Ì „ ¨ ˆ A#«‹’?ÿÿ"åæ Pois se por parte do amor, vejo em vós tantas afinidades com este meu assunto, quantas mais poderei achar, discorrendo pelos outros acontecimentos de que é composto? Porque se por viagens, por naufrágios, peregrinações, perigos e tragédias o vou vendo, de todas essas acções a vossa vida é um retrato. Navegastes, moço, a climas inclementes. Combatestes, na menor idade, com varonil esforço. As tempestades do Oceano deixaram em vosso ânimo, não receio, mas disciplina. Os perigos e tragédias militares, antecipando-se em curso ao tempo, e em número aos anos, só vos serviram para polir, não contrastar a fortaleza. Pois na peregrinação, quem vos igualou? Ainda os próprios companheiros que vos imitaram na sorte, na constância com que a sofrestes, vos puderam emular mas não competir, vos puderam competir mas não exceder. Quando os mancebos ilustres, vossos iguais, pisavam em Portugal os estrados do Paço ou o mimo dos jardins de Lisboa, com mole passeio, vós então sem abrigo, quanto mais adorno, íeis atravessando os incógnitos desertos de nossa bárbara América: ásperos até para as feras que antes os recebem por pátria que morada. Lá vos fizestes digno daquele nome que, para não perderdes, sois obrigado a conservar com obras árduas; do qual, nem a inveja nem a ingratidão, quando se vos oponham, consintais que vos despojem. Mas se vos vimos madrugar ao trabalho, também vimos que o aplauso não foi preguiçoso para vós. De aí veio que os postos grandes e as empresas estimadas corressem para vosso cuidado, antes que vós para a sua pretensão. Desta maneira costuma o Sol tocar primeiro os montes mais altos, sem que se queixem os vales de que depois lhes amanheça. ÄB"ž¨   ¬ ` < < ` ` „ ¨ ˆ ¨ ð ` ¨ `  ` Ð ¨ ð Ì Ì ¨ ô  ô Ð   „ ð „ ð `   ð ð ð ¨   ¨ ¨ Ì Ì „ Ì ¨ ð Ì ¨ ð ô  ` ` ð  ¨  A#9ÁÈ.ÿÿ"åæ Porém, se considerando-vos tão grande, me faço devedor de uma oferta que vos seja proporcionada, razão será advertir-vos, não desprezeis esta, por meu ou seu valor ser pouco. A vontade serve nas obras do ânimo como a cifra na Aritmética: sempre dá preço a todas as cousas a que se ajunta. Da minha vontade, bem creio que estais seguro; mas, se será porventura por si mesmo pouco para estimar esta matéria? Não será, que já a estimaram muito, engenhos grandes, por quem foi tratada e a quem oferecida. O nosso Lívio Português (bem se sabe que digo João de Barros) começou a escrever dela em a sua primeira Década de Ásia. O doutor Manoel Clemente, que foi Pregador de três Pontífices em Roma, compôs desta história um livro em latim, que dedicou à Santidade de Clemente VII. Poucos anos há que Manoel Thomas, nosso amigo, publicou da própria acção o seu Poema chamado Insulana. Antes, e melhor que todos, Francisco Alcoforado, escudeiro do Infante Dom Henrique, fez de todo o sucesso uma Relação que ofereceu ao mesmo Infante, tão cheia de singeleza como de verdade, por ser um dos companheiros neste descobrimento: a qual Relação original eu guardo, como jóia preciosa, vindo à minha mão por extraordinário caminho. ÄB"s¨ Ì ¨ „ ð ¨ ¨ „ Ì ð <  Ð  ¨ ð ð „ ` ¨ ð ` ¨ Ì Ð ¨ ¨ Ð ¨ „  ð ¨ Ì ` ð ¨ ô ô ¨ Ì Ì Ì Ì ð  D A#Díô ÿÿ"åæ Refiro-vos o avoengo destas memórias porque a antiguidade as tem justificado e enobrecido. E também porque conheço que não é meu crédito bastante para que, por si somente, inculque ao Mundo, como verdadeira, uma história tão esquisita. ÄB"Ì  Ð Ì  „ Ì   A# ÿÿ"åæ ÄB" A#&ÿÿ"åæ Belas, 9 de Setembro de 1654. ÄB" A# ÿÿ"åæ V. A. D. F. M.ÄB"ø A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#u±¸ÿÿ"åæ Aquela antiga e grande Bretanha, que nos tempos primeiros foi Selva, Calidónia, Albion, entre algumas gentes, Anglia depois, e agora Inglaterra, governava-a pacificamente o grande Rei Dom Duarte Terceiro, que foi pai do Duque de Lencastre, João de Gand; e este, segundo genro de el-Rei Dom Pedro o Cruel de Castela, e sogro, pelo primeiro matrimónio, de Dom João o Primeiro de Portugal, a quem justamente chamaram «de Boa Memória». ÄB"+ ` Ð `  Ì Ì ô ` Ì Ì Ì „ Ì ð ¨ ˆ A#sª±ÿÿ"åæ Era já Londres Corte Inglesa, Cidade principalíssima, émula das maiores do mundo, em opulência e assento; à qual o Tamisa, Rio natural que nasce nos campos de Oxford, serve de moldura, com abundantes águas, pela parte que olha ao Setentrião; donde depois vem descendo para ser a mais grossa veia no braço do Oceano Boreal, que se estende, com o nome de Canal de Inglaterra, entre as famosas Províncias Grã-Bretanha e França. ÄB"(  `   Ì ¨  ð ` < ô ð < ˆ < A#¶¸¿ÿÿ"åæ Antes foi célebre, e agora, verificada a sentença do Grego, ele nos diz: «Era belíssima dama a Paz, que, contudo, concebia a Ociosidade feia e indigna, ordinária filha de mãe tão bela.» A ociosa opulência de Londres (sempre como vemos e lemos) ocasionada em grandes feitos, convidava à mesa de suas delícias, os mancebos ingleses. Entre os mais, Roberto o Machino, nobre de segunda ordem, desprezando os jogos e banquetes a que o persuadiam seus iguais, com práticas e exemplos, se singularizava em pensamentos mais altos. Ânimo forte, juízo excelente, idade gentil, fortuna próspera; eram seus íntimos, conselheiros: ajudando-se das partes pessoais que, em Roberto (não acaso) fizeram concurso.ÄB"DÌ ` ` ¨ ¬ ¨ ¨ ð ð ð Ì ¨ ` Ì  „ Ì < ð `  „ ˆ  < Ì  D A#×;B ÿÿ"åæ Com a maior qualidade e superior riqueza, celebrava então a fama por toda a Cidade de Londres, o nome de Ana de Arfet, donzela formosíssima e com cuja beleza, os outros dotes do corpo e espírito tinham feito aquela paz que lhes faltam aos mais dos sujeitos onde se desencontram. A seu matrimónio aspiravam Príncipes. Da Corte, Província e Reino, estimada era como uma maravilha de muitas maravilhas. Era esmalte de suas perfeições, o seu recato. Então, o Amor que tomou dos raios entre que foi nascido, o costume de forcejar contra o mais robusto, ordenou que reciprocamente fossem ouvidas e desejadas as partes de ambos. Dias há que, da notícia para o agrado, se traça uma escada secretíssima da qual ordinariamente se serve (não sem precipícios) um certo afecto que algumas vezes se chama curiosidade, mas sempre é apetite. ÄB"P< Ì < ð ô < ¨  ¨  ¬ Ð Ð Ì „     ô  Ð  `  „  „ Ì Ì Ì  A#Føÿ ÿÿ"åæ Não escrevo amores, senão o sucesso deles: forçoso será, contudo, temperar segundo o tom, o instrumento: previna-se desta consideração o ânimo daqueles a quem talvez pareça repreensível a brandura da pena ou o asseio do estilo com que se escreve. ÄB"Ì ð Ì ¬  < ð ð  A#ÀÞåÿÿ"åæ Perigaram, enfim, no excesso, as finezas de Roberto e Ana. Foi logo escândalo a correspondência, porque a inveja, vestida de zelo, começou a solicitar, como emenda, o que era vingança. Os pais de Ana advertidos, queixosos os parentes, el-Rei, avisado, resolveu com seu Parlamento que Roberto fosse preso e Ana casada à eleição dos seus, que com um Milord de alto estado (assim chamam em Inglaterra aos grandes senhores) tinham já feito capitulação, juntamente de seu matrimónio e seu desvio: ajustado que Ana e o seu esposo se saíssem à cidade de Bristol (que se aparta de Londres muitas léguas) cujo assento é no Mar Hibérnico, em um Canal que da própria cidade toma o nome: De Bristol, pelo qual é assaz conhecido dos navegadores. ÄB"D ð Ð „ ` „ Ì ¨   ¨ ¨ ð ð ` Ì  < ð < „ `   Ì  Ì A#–7>ÿÿ"åæ Roberto, oprimido da dor e da prisão, como homem discreto, todo o seu cuidado empregava em assegurar a fé de Ana e a indignação de el-Rei, buscando e seguindo os meios convenientes a fazer propícia nela, a firmeza, e nele a piedade. Tudo conseguido: ausente Ana, el-Rei satisfeito, Roberto livre. Então lhe pareceu que já era tempo de desagravar o amor, o gosto e a honra. E porque sempre foi forçoso confiar de quem é preciso valer, descobriu a parentes, amigos e criados, a ousada resolução em que se achava. Juntos um dia todos em segredo, parece que lhes disse: ÄB"5 ð ð ð ô ð  „ „ ¬ ¨ ð  „  ô ð  Ì ð @ A#©‚‰>ÿÿ"åæ «Bem indigno fora eu de vossa companhia, se com tais companheiros não intentara cousas grandes. A razão do meu agravo, escusado será lembrar-vo-la, não vos compadeceis vós tão mal de minha honra, não vos vai tão pouco nela que vos esqueça? Bem sei eu que se fosse tão vil que passasse por estas injúrias, vós sois tão honrados que me não deixaríeis passar por elas. Não há em nós senão uma só alma, contra o engano de aqueles que presumem que ela é, toda inteira, o aposento de aquela vaidade que eles chamam conveniência. E pois é certo que um só espírito nos anima, lá nesse espírito tem sua morada o Amor, lá o Gosto, lá a Vingança. Tão grandes hóspedes trago, em meu peito. O amor ferido da injustiça, o gosto da perda. Só a vingança se acha inteira e briosa, para tomar pelos agravos dos outros. Mas sem vós, como será isto? Não afrontam os inimigos, quando ofendem; os amigos, sim, quando faltam em ajudar à emenda das ofensas dos inimigos. Aquele que, de vós outros, me desamparar, esse é o que me agrava, não aquele que me tem queixoso. Vede qual de vós quererá fazer o mesmo que aborreceis em todos os que estais aborrecendo. Nenhum excesso se desmancha sem outro excesso. Bem quisera eu operar de maneira que poupasse os vossos riscos. Mas como já não pude escutar as demasiadas sem-razões padecidas, agora não poderei diminuir o empenho dos perigos com que havemos de nos satisfazer delas. Queixai-vos de quem nos ocasionou tanto, não de quem tanto vos pede. Porém, se algum dos circunstantes provou já o golpe de um desprezo, aconselhe à minha dor os remédios da sua. Se o não provastes, oh, não creais que antes da morte se satisfaz um amor ofendido!» ÄB"›  ¨ ¨ „  ¨ ð Ì Ì ¨  ¬ Ì ¨ ` ð Ì ¨  ð ð < „ ¨ Ì ð  ¨ Ì ` ð ` „  ð  Ì „ Ì  ¨ Ì  ð  ð ô Ì  Ì „ ¨ Ì Ì ¨ < Ì ð  ô ð A#Âçîÿÿ"åæ Então recebidas, de uns e outros, fé e palavra, prometeram todos de sujeitar-se a uma própria fortuna. Concertaram que passassem, cautelosos e acautelados, à cidade de Bristol, em várias companhias; donde, prevenindo os mais conformes instrumentos que podiam assegurar sua fugida, roubassem a Ana de Arfet; cujo consentimento (industriosamente comunicado de Roberto) era o norte que lhes influía e cintilava a persistência desta resolução. A vizinhança do mar assegurou o fácil modo de fuga; França pouco distante, seu breve cómodo; amparo, a emulação de aquelas duas Coroas. A próspera fortuna esperavam do valor de todos; e o valor, da cousa que empreendiam; porque segundo a lição dos exemplos menos ousados que o amor, tem feito a glória.ÄB"I„ ô ¬ „ ` < ` ˆ  d < ô „ ˆ ð Ì ¨   ð „      ð   A#\PW ÿÿ"åæ Seguiu-se ao conselho, a execução. Esta é uma árvore que quer que se lhe recolham flores e frutos juntamente. As formosas razões são flores; frutos, as obras a que nos persuadem; se o tempo se interpõe entre as flores e os frutos, digo: entre o conselho e a execução, inutilmente se corrompe uma e outra novidade de flores e de frutos.ÄB"!` Ì ð Ì  ¨   `    ü A#Žÿÿ"åæ Assentaram como um dos mais destros companheiros de Roberto entrasse por criado, em casa do esposo de Ana; cujo nome, por decoro, deixou de escrever o mesmo Roberto a quem devemos esta história. Sucedeu como se dispôs, e, depois de recebido para palafreneiro, tomou cargo de pensar uma formosa égua em que Ana saía algumas vezes ao campo: ou só, ou acompanhada de seu marido; porque a singeleza de aqueles tempos teve para si que o mais severo guarda-damas era a honra das mulheres honradas: duvido se assim o presume o tempo presente.ÄB"2Ì < ð „   Ì ¨ < ð ¨  ð < Ì < „ ð Ì  A#ö¶½%ÿÿ"åæ É Bristol uma das cidades de mais comércio de toda a Inglaterra; e porque a esse respeito se acham em seu porto muitas naus aparelhadas, para sair dele havia já Roberto e seus companheiros posto os olhos (entre aquelas que estavam mais prontas para navegarem) em uma poderosa embarcação que, de forte, ligeira e guarnecida, tinha o melhor nome; o descuido de seu Capitão, o cuidado de Roberto, prometiam dela certíssima presa; só lhes faltara o tempo para intentá-la, porque como as mais disposições prevenidas, não era dependente de sua ousadia. Haviam-se preparado de um barco que lhes franqueasse a passagem da terra ao mar; em o qual, todos os dias, à hora assinalada, discorriam como por divertimento a marinha, sem que de alguma pessoa fossem notados: contra o costume de agora, que em nossa gente ateou até chegar a incêndio, porque fazendo da malícia providência, quisemos purificar tanto o vício das suspeitas, que as subíssemos a virtudes.ÄB"]ð < Ì ` d Ì < Ì ¨ ð ¨ ` ¨ < ô < „ Ð ¨ ð „ ð Ð „ ` ô Ì Ì ` ` ` ð   Ì ð  Œ A#´®µÿÿ"åæ Eram entrados os nortes: monção que se esperava para executar o roubo de Ana. Ela, avisada do criado, amigo e companheiro de Roberto, propôs o dia em que, sem falta, sairia a seu passeio; o qual, de ordinário soía ser pela ribeira do mar que frequentava, em seu batel, Roberto; sendo esta a mais desembaraçada parte, dos olhos do vulgo. Assim, para que a força fosse em tudo socorrida da indústria, e ambas juntas se facilitassem, usou de tal arte o fingido criado de Ana, que três dias antes de sua saída, pôs em desesperada sede a égua de que curava, não lhe consentindo beber alguma vez, em todos aqueles três dias, a fim de que melhor conseguisse o seu intento: como sucedeu logo. ÄB"A` Ì  ¨ < ` ð  < ¨ ¨ ` Ì „ „  ¨ ð ¨ ¨ ¬    Ì Ø A#~×Þÿÿ"åæ Ana, que se achava deliberada ao último precipício, tratou de acomodá-lo de sorte que lhe fosse menos penosa a falta de sua riqueza. Recolheu as mais preciosas jóias de seus contadores, em grande preço estimadas, de quem em si mesmo fez tesouro, entre as quais foi memorável um Crucifixo de subido valor, pela obra que era esquisita, e pela matéria, que era ouro e diamantes. Este lhes foi depois a mais fiel companhia que Ana e Roberto acharam em as tragédias futuras. ÄB"+ ð ¨ ` ô ¨ ð ¨  ð  ð ð ¨ ð ð  A#AH*ÿÿ"åæ Tudo e todos a pronto, a hora chegada, já o amoroso aventureiro, com seu barco e sua gente, estava esperando bem armado, na estância costumada. Quis o esposo de Ana fazer, fatalmente, mais solene sua desgraça, acompanhando-a naquele dia, o que ela, com bom semblante mostrou haver estimado. Mas apenas saindo ao campo, descobriram a marinha e se ouviu, distinto, o ruído das águas, quando, reconhecendo-as desbocada e furiosamente a eguazinha de Ana correu a se lançar nas ondas, sem que a força ou indústria do fingido criado que a levava de rédea, pudesse fazer outra cousa que dirigir aquele cego animal para o lugar mais próximo ao barco de Roberto, que já reconhecia. Ele, que para começar sua ventura a seu parecer, lhe não faltava mais nada que o fim de aquela desgraça, saltando ligeiramente em terra, como levado acaso de piedosa diligência, na alma e nos braços recebeu o golpe de tão misteriosa queda. Foi brevemente socorrido dos seus; e, com incrível presteza, embarcados Ana e Roberto e os mais, desapareceram da praia, antes de se advertir o desastre, quanto mais o delito.ÄB"i ô ð Ì < Ì Ì Ð  ¨ Ì < ¨ ð ø Ì Ì ¨ „ Ì   ¨ ð ` „ „  ` ˆ Ì < „  ô ` ô ¨ ˆ  ¨ ô A#<ÎÕ.ÿÿ"åæ Suavemente, os étnicos quiseram deixar sábia a nossa ignorância, disfarçando no deleite a doutrina; para que os ásperos exemplos que propunham à posteridade lhe não fossem tão enojosos que, estremecida pelo horror dos sucessos, se fugisse, por rigoroso, do útil escarmento. Assim, ungimos de amargoso azebre a teta saborosa, de que queremos desafeiçoar o mínimo: assim, em doce açúcar revolvemos a desabrida purga que se ministra ao enfermo. A Infância do mundo necessitou de fábulas que encobrissem verdades, para serem recebidas; e ainda hoje, a doença dos tempos pede ficções que dissimulem a saúde, para que seja agradável. Aquele Júpiter, agora em Ouro, agora em Cisne, agora em Novilho disfarçado, que tantas vezes com seus artifícios preverteu a honestidade das mais recatadas Ninfas, nenhuma outra cousa quis ser, salvo aquele cuidado, com poder e indústria, mais que humano (que por isso o fingiram Deus), que sói facilitar impossíveis a fim de satisfazer suas ordens. Saiba pois quem tiver Ledas, Dánaes e Europas em sua guarda, que não é menos que um Júpiter quem intenta a sua ruína, como contra um Júpiter se recate. O que antes foram Ninfas, são agora mulheres, e o que será hoje das mulheres que querem ser Ninfas?ÄB"s  ¨ ð < Ì ð Ì „  ¨ ¨ ¨  ð  ð ¨ Ð ¨  ` Ð ¨ < < ð   „ Ì Ì ¨ ` ` Ð   ð ¨ „ „ „  ð  A#Íÿÿ"åæ Igualmente que o roubo de Ana, fora de antes resoluto o apresamento do navio: aquele que, como dissemos, haviam já entre si elegido Roberto e os que o acompanhavam. Era o dia de festa, achava-se desempedida a embarcação de seus oficiais e marinheiros, por o que, com grande facilidade foi ocupada. Não faltavam, entre os de Roberto, alguns que tivessem conhecimento da náutica, aos quais, encomendada a derrota (que era aos portos da França) e a diligência a todos, porque a todos convinha pôr em seguro vidas e liberdades, em um instante picaram as amarras, desferiram, marearam as velas e sairam prosperamente do porto, mais à vontade da fortuna que da ciência, porque o vento, esforçando-se cada vez mais, se apoderava, sem lei alguma, das velas do navio e da vontade dos navegantes.ÄB"K„  ð    ¬ Ì ð ô Ì ô ð ð ð  ` ô ð ð ¬  „ ` <  ð ð   Œ A#PW*ÿÿ"åæ O escândalo que, na Cidade de Bristol e em toda a Inglaterra, se seguiria a tão atrevida novidade, o fervor com que se lhe preveria o castigo, parece que fica encarecido com se contar o sucesso. Mas porque os olhos do temor nem sempre são cegos, fazendo Roberto o mesmo discurso que podiam fazer os seus ofendidos, e vendo que ao marido de Ana seria cousa fácil, ajudado da justiça, ordenar que se desamarrassem outras algumas naus, tomou por conselho dos mais a resolução de velejar quanto lhe fosse possível: porque se na parte que restava do dia, perdessem de vista a terra, depois de noite furtariam o rumo a qualquer embarcação que os fosse seguindo. Assim determinados, largaram como souberam ao ar todas as velas, navegando por aquele dia e noite, tão velozmente como costumavam quantos caminham à sua ruína; até que amanhecendo, engolfados no mar e nos receios, começaram a conhecer como o Amor é o mais ruim dos pilotos. O vento até ali próspero, suposto que não mudado, era já mais tempestade que monção; porque o cumprimento, ainda que de nossos desejos, nunca pára senão em o castigo deles. ÄB"i ¬  Ì „ ` ¨ ð < ` „ ¨ ¨  < ð ð Ì ¨  ð ` ` ¨ ô Ì < Ì Ì <  ¨ ð ¨ ` < Ì   ð  ü A#J 0ÿÿ"åæ A Ana, até ali como suspensa, pela estranheza do que lhe sucedia, pouco lhe sobejara do primeiro acidente, para senti-lo ou estimá-lo. Porém, as modestas carícias de Roberto lhe tinham dado a entender que navegava mais segura a sua honra, em sua própria vontade, que na nau suas vidas: "O roubo (dizia ele) que dela havia feito, só fora resgate, para não ver em mãos de possuidor injusto, aquelas perfeições que a ventura lhe vendera a peso de finezas. Que o Amor mais legítimo é o mais avaro, e o liberal nunca verdadeiro; porque (da sorte dos ambiciosos) só se emprega em ajuntar seu tesouro, mas não em possuí-lo; só em o amar e guardar, em gozá-lo nunca: pois é certo que dos haveres e dos amores, tudo quanto se logra, se diminui, e quanto se gasta, se perde; se pode chamar infeliz o cuidado, a quem só a impossibilidade fez comedido; e ditosíssimo aquele que, desprezando as licenças da ocasião, permanece limpo. Ninguém podia levantar seu nome sobre os mais amantes se, revolto nos costumes dos outros, fosse como um deles. Que ele aspirava sempre a ser amador mais alto, subindo a mais alto fim a glória de seus pensamentos; porque sendo o desengano, noite do dia dos amores, jamais era possível declinar ao aborrecimento aquele a quem nunca os interesses haviam amanhecido.» ÄB"x ¨ Ì ¨  < „ ¨ ¨ Ì Ì   ¨ `  ` ð „ Ð ð ð ð ¨ ð ð Ì Ì Ì  < ¨ Ð `  Ì ` ð ð „ „ Ì Ì Ì „  d Ô A#fw~ÿÿ"åæ A tais razões correspondeu Ana segundo lhe permitiu o temor e alvoroço, que sempre foram, da discrição, os maiores inimigos. Então ambos, de novo resignados um na vontade do outro, cada qual prometeu: «De tomar por lei o gosto alheio, e, por fiador de suas vontades, o tempo.» Aquele tempo que, a pagar as dívidas de todos por quem fica, fora a mais pobre criatura do mundo.ÄB"#¨ ¨ ð < < ð „ ð ¨ ¨ Ì  ð ˆ A#à^e ÿÿ"åæ Quando a Dama, alguma vez mais aliviada das moléstias do mar, e ele mais esquecido de sua soberba, saía a divertir-se vendo as águas, também Roberto as via em sua vista, mas com diferente afecto quão diferente é o temor, da saudade. As ondas, se se meneavam à maneira de jogo, diminuíam os cuidados de Ana e os seus olhos, se se humedeciam como por lisonja, aumentavam os de Roberto. As nuvens que, guiadas do vento, vinham da mesma parte que eles deixavam, entendia Ana que lhes traziam recados de sua pátria, acusando a ingratidão com que dela se havia partido. As escumas que iam correndo contra o curso do navio e se ficavam atrás dele, julgava ela, se lhe ofereciam para levar-lhe resposta. Tudo enfim eram lástimas, sem ver outra cousa que um mar nunca visto e um céu desusado: de que no coração de Ana se começavam a alevantar grandes afectos de saudade.ÄB"P„ Ì ð  Ì ð ` „ ð Ì Ì  ð ð  „ Ì Ì  ¨  Ì Ì „ ` „  Ì <  ð   A#7>)ÿÿ"åæ E pois parece que lhes toca mais, aos Portugueses que a outra nação do mundo o dar-lhe conta desta generosa paixão, a quem somente nós sabemos o nome, chamando-lhe saudade, quero eu agora tomar sobre mim esta notícia. Floresce entre os Portugueses a saudade, por duas causas, mais certas em nós que em outra gente do mundo, porque, de ambas essas causas, tem seu princípio. Amor e Ausência são os pais da saudade; e como o nosso natural é, entre as mais nações, conhecido por amoroso, e as nossas dilatadas viagens ocasionam as maiores ausências, de aí vem que onde se acha muito amor e ausência larga, as saudades sejam mais certas, e esta foi, sem falta, a razão por que entre nós habitassem como em seu natural centro. Mas porque tenho por certo que fui eu o primeiro neste reparo, parece que não será repreensível que me detenha algum tanto, para fazer anatomia em um afecto, o qual, ainda que padecido por todos, não temos todavia averiguado se compete às injúrias ou aos benefícios que, do amor, recebem os humanos: ou se, sem amor, também se podem experimentar saudades. ÄB"gÌ Ì  ð ¨ ð  <  Ì „  ¨ ô < < ` ô Ð Ì Ì ¨ „  ð ð Ì ¨ Ì Ì Ì < ` ð ` ` ¨ ` „ ð  h A#šFMÿÿ"åæ Do Amor, houve quem disse: «Era o único afecto de nossa alma»; porque até o Ódio, que é do Amor a cousa mais dessemelhante, se afirma ser o mesmo Amor; porque é certo que ninguém pode ter Amor a uma cousa, que não tenha ódio à cousa que for contrária àquela que ama; ou, de outro modo: ninguém pode odiar uma cousa, que não ame aquela cousa contrária da que aborrece. Se esta regra fosse certa (de cuja validade não disputo), bem se seguia que sem Amor não pode haver saudade: contudo, nós vemos que muitas vezes a saudade se contrai com cousas que, antes da saudade, não amávamos.ÄB"5¨ ð   ð ð Ì  „ ð ð „   Ì Ì < Ì   „ A#Ó,3Eÿÿ"åæ É a saudade uma mimosa paixão da alma e por isso tão fútil que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor, da satisfação. É um mal de que se gosta e um bem que se padece; quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e o desejo se acabaram primeiro. Não é assim com a pena: porque quanto maior é a pena, maior é a saudade, e nunca se passa ao maior mal, antes se rompe pelos males: conforme sucede aos rios impetuosos conservarem o sabor de suas águas, muito espaço depois de misturar-se com as águas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do Amor, e que do próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a Saudade modesta e regulada, dá indícios de um Amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência: qualquer desvio lhe basta para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as cousas amáveis e semelhantes; ou ser aquela falta que, da divisão dessas tais cousas, procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós, e é legítimo argumento da imortalidade do nosso espírito, por aquela muda ilação, que sempre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra cousa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir. Sendo esta tal, a mais subida das saudades humanas: como se disséssemos um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apetecemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido: e temporalmente o que está de nós remoto e incerto. Mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitável. Esta é, em meu juízo, a teoria das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente.ÄB"­ ð Ð „ Ð Ì `   ¨ < „ ð  Ì  ¨ ð Ì ` ` ¨ ð „ ¨ ¨  ` ` ð  ð Ì Ì ð ` Ì `  ð ð ¨ ¨ „ ô ô „ Ì  ¨ ¨  Ì „ Ì ¨ ˆ „ „  ¨ ð ð ð ¨ ¨ ¬ ` ˆ A#œOVÿÿ"åæ Cinco dias havia que navegavam, sem que a terra que iam buscando se lhes descobrisse, porque a falta de governo e sobejo vento que de ordinário corria, fora causa de que insensivelmente se apartassem da costa de França, para onde se encaminhavam (mas em vão) os seus desejos. Os amigos de Roberto, cujos ânimos ainda eram livres de afectos mais poderosos que o cuidado da vida, como é o amor, começaram a temê-la. Porém, a fortuna tinha já igualado culpados e inocentes: ou, pelo menos, como acontece nos grandes delitos, não fazia distinção de culpa a culpa para lhe proporcionar o perigo.ÄB":Ð ¨ ` Ì  „ ð „ Ð ð ¨ Ì Ì ¨ Ð  „ „  ¨ ¨ < ü A#¿Úáÿÿ"åæ Por horas, conheciam os miseráveis navegantes, caminhavam à perdição com aqueles próprios passos que ignoravam, e mais o remédio deles. Sobre todos mísero, Roberto padecia em seu risco o de todos, mas incomparavelmente sentia mais o trabalho em que, por sua causa estava vendo a cousa que mais amava: nem o próprio consentimento de Ana lhe diminuía parte da lástima que lhe tinha; porque o Amor nunca foi homem de justiça. Fique embora para a Razão o deixar padecer a cada um o fruto de seus erros, que o Amor não pode achar razão para que padeça quem ama, ainda que padeça menos do que merece. Se o Amor perdoa suas próprias ofensas, como acusará as que só forem de prudência, olhando-a mais como inimigo do que como diferente? ÄB"F<  „ Ì Ì ¨ ð   ¨ ¨  `  ` Ì Ì ¨ ¨ „ „    ¨ „ `  Œ A#ºÆÍÿÿ"åæ Quase desabrigada de todo o governo, corria depois de treze dias de viagem, a nau de Roberto, pelos largos e perigosos desertos do mar Oceano, quando ao amanhecer, à parte do poente se descobriu assaz vizinho o semblante da terra que, segundo cada instante, com os raios do Sol que nela descansavam (porque a larga carreira, de seu oriente até àqueles montes, não haviam parado em parte alguma), se ia mostrando altíssima e povoada de bárbaro arvoredo. Foi sua vista a todos alegre; mais a Ana de Arfet que, afligida com as moléstias de tão incerta e trabalhosa viagem, julgava haver achado nova vida e seguro repouso em a nova terra que se lhe oferecia: tão facilmente erra nosso juízo, subornado do desejo. ÄB"DÌ „ Ì ¨ „ ð Ð „ <  ô Ì ð ¨ Ì ` ð  ` ð ` ð  <  „   A#ê†"ÿÿ"åæ Roberto, por dobrados motivos ansioso do porto, fez como, à custa de muito trabalho, se tomasse; donde já sendo entrados, se lhes mudou em assombro o receio. Nenhum dos companheiros conhecia aquele lugar, e os mais experimentados na navegação duvidaram pudesse haver terra em uma paragem do mundo nunca até então descoberta dos homens. Esta opinião esforçavam os sinais que, com igual maravilha que curiosidade, estavam de contínuo observando os confusos navegantes: nenhum rastro de que fosse habitada se descobria na terra, porém todos de habitável. A imensa quantidade e simpleza dos pássaros causava nova admiração nos homens e nos pássaros, nenhum espanto sua companhia; porque vários nas cores e figuras, quanto conformes na inadvertência, de qualquer enxárcea do navio faziam ramo, campo de suas praças, e, dos homens, companheiros: bem parece que os não conhecia quem tanto deles se confiava. ÄB"U  Ì < ¨  ð @ Ì   ` Ð  ¬ <  Ì ð ð ð „ ô ¨ ð ð < Ì  ¨  ð ¨ ¬ A#,–-ÿÿ"åæ A cobiça ou, para melhor dizer, a necessidade, levou diligentemente ao porto os mais ousados, armado para esse efeito, com suficiente guarda o batel do navio. Quis Roberto ser dos primeiros, mas nem Ana nem os amigos lho consentiram. Porém, intentada e conseguida sem algum desastre a viagem da nau à marinha, tornaram brevemente cheios de alívio e esperança de cousas maiores, e havendo-a reconhecido relataram: Que a terra era deserta, mas saudável e pacífica; e que verdadeiramente era terra e não ilusão: do que ainda muitos se não certificavam. Chegadas as novas que se esperavam para desembarcarem, logo a desembarcação se pôs em efeito, saindo do navio Ana e Roberto; se não com todo o regalo, com toda aquela comodidade que a ocasião concedia. Acompanhou-se Ana de suas jóias, sendo em primeiro lugar, escolhido por mais íntima pérola, o Crucifixo devoto de que sempre se acompanhava. Com tão breve apresto, e doze dos melhores que o seguiam (e eram as pessoas com quem Roberto tinha maior parentesco e confiança), se passaram à terra, deixando a nau guarnecida do resto da gente, e com suave navegação chegaram à marinha: nunca até ali pisada de pé humano. ÄB"q` Ì ¨ „ Ì  ¨    ¨ ð ð Ð ô ¨ <  Ì ` Ì `  Ì ¨ „ < < d „ ` „ ¨ < ¨ ð ` ` ` „ ô  ô  „ A#bgn5ÿÿ"åæ Iluminava então o Sol os arvoredos, cujos ramos, meneados brandamente da matutina viração, mostravam (como por amostra de sua riqueza) diferentes cores, mas todas naturais e concertadas. As águas, igualmente deleitosas aos olhos e ouvidos, enchiam a vista de formosura, a orelha de harmonia. Nenhum animal ostentou a força ou a ligeireza; porque desde a meninice do mundo até essa hora, ignoravam como os homens aquele trânsito a que depois deveram a sua indústria. As brenhas e florestas respiravam saúde, nunca nem agora penetradas de algum venenoso bicho. A prática parece que ficou a cargo das aves que, com estranhas vozes, não se sabe se culpavam, se engrandeciam o atrevimento humano; que, à custa de tantas tragédias, quis coser os retalhos da terra, por indústria de aquela agulha que duvidávamos se nos foi dada por galardão ou castigo. Corria o ar, não só puro mas perfumado das flores sobre as quais passava sua leve carreira. Elas, jamais logradas da vista ou do olfacto para que foram feitas, parece que, como se em dia de suas bodas, se haviam composto de nova formosura. Eminentes, os outeiros e os profundos vales, em sua desproporção guardavam arquitectura rigorosa e agradável: aqueles pejando o vento de ramos soberbos, e estes despejados de todo o impedimento das florestas, convidando as mãos ao roubo e as plantas ao passeio sobre ervas saudáveis e cheirosas.ÄB"…` < < Ì ` ¨ Ð  „ ¨ ð ¨ ô „ ¨ < ð Ð < Ì  < ¨ < ð ð ð ¨ „ <  ð ð „  ` Ì „ Ì ` < ` < ¨   ` ð „  `   ° A#æx"ÿÿ"åæ Pouco distante da praia se descobria um sítio onde parece que a natureza havia esmerado todos os seus primores. Formava um campo breve e redondo, cujas paredes eram loureiros, iguais na rama e altura, ao qual como verde tapeçaria de folhagens, armavam bastíssimas heras. Em a parte superior se via uma árvore que, como mais mimosa dos elementos, subia sobre as outras; seu nome foi ignorado de todos os que chegaram a vê-la, assim sua opulência, assim sua formosura. Havia o tempo aberto em seu tronco uma capaz morada, toda coberta de finíssimo e dourado musgo. A vizinha ribeira que, da terra ao mar, contente ia caindo, ministrava a aquele sítio, conformes, a delícia e a comodidade; serviam-lhe de ladrilhos as mimosas areias que o rio, por sobejas, engeitava, e despedidas da corrente, se espalhavam por uma e outra banda, sem dano da amenidade dos prados que lhe serviam de leito. ÄB"U¨ < Ì  ¨  < Ì ð ˆ  ¨ „ „  ¨ Ì ð ¨   `  ¬ ¨ ` ¨ Ì < ¨ Ì Ì Ì  A#ì—#ÿÿ"åæ Reconhecido este lugar, foi logo ocupado de Roberto e Ana, e todo o resto entregue ao descanso e morada de seus companheiros, para que ali edificassem os reparos convenientes contra a inclemência dos tempos, o tempo que na terra se detivessem. Mas enquanto os mais se entretinham na fábrica de sua silvestre morada, Ana e Roberto, persuadidos interiormente de maior desejo que o repouso de suas fadigas, buscaram modo de consagrar a Deus aquela planta e o lugar que nela mais persuadia as delícias humanas. Como costumam os Capitães insignes purificar com cristão sacrifício os templos mais profanos dos povos que avassalam, assim foi levantado novo Altar ao Senhor, onde com singular devoção colocaram a imagem de Cristo Crucificado que Ana levava consigo. Não estranhou os desertos aquele divino estandarte, pois já desde sua figura quando vara e quando serpente, fora neles arvorado, fora deles reconhecido. ÄB"XÌ „ ð ð ¨  ô „ ô Ì  `  ð  Ì ¨ „ ¨ „ Ì „ „ ¨ Ì „  ¨  „  Ì Ð Ð Ô A#…òù8ÿÿ"åæ Em paz se possuiu três dias a paz do Porto, os quais alguns gastaram em saboroso comércio da terra ao navio, outros em penetrar e descobrir atentamente o sertão da Ilha, já enredando-se nos labirintos de seus bosques, já vencendo as altíssimas terras, para alcançar a ver as águas de que se rodeava. Mas como a fortuna do mar seja ainda mais avara de sua estabilidade que outra alguma, dispôs que na noite sucessiva ao terceiro dia de sua bonança, se levantasse tão subitamente uma tão rigorosa tempestade, da parte que os marinheiros chamam Noroeste (e é aquele vento cujo lugar achamos igualmente distante do Norte e do Ocidente) que sem respeito às forças ou indústria humana (em vão opostas ao comum perigo) a nau foi impelida dos ventos e das ondas e, como despojo de ambos, de improviso arrebatada, em tal maneira que mais perdidos se julgavam os que iam com tanta violência, que os que ficavam em tanta desesperação. Viu-se depois como foram iguais os perigos, mas, por mais breve, foi menor o dos navegantes, os quais em dois dias puseram termo aos trabalhos do mar, trocando-se-lhes aos de um miserável cativeiro, porque naufragando em as areias de África, passaram da tumba, podemos dizer, à sepultura: tanto monta da nau às masmorras de Marrocos. Os Mouros da costa, avisados do costume de casos semelhantes, desceram dos montes à marinha, para não perdoarem a aqueles próprios a quem o mar perdoasse: tanto mais inimigos dos homens são os homens que os elementos, tanto mais ambicioso o interesse que a morte.ÄB"Œ   ð Ð  ¬ Ì „ Ì Ì „ ð  Ì ð ¨ <  „ ¨    ¨ ` ¨ „ „ ð ð    Ì  Ì  Ì ¨ Ì Ì ¨ Ì ô „ ð  ô   ô ¨ `   A#¨~…ÿÿ"åæ Amanheceu-lhes maior tempestade a Roberto e Ana, que a mesma que iam padecendo seus companheiros, quando havendo passado a tormenta de aquela noite, viram pela manhã o porto e não viram o navio; e se bem a fúria dos ventos e mares se havia mitigado, bem advertiram todos os que ficavam em terra como, ainda que em seus companheiros houvesse ânimo, não havia ciência para tornar a resgatá-los dos braços da última desesperação, com quem já andavam a braços. Quanto mais que estavam crendo os que melhor entendiam, a nau seria brevemente soçobrada das ondas, segundo a desprevenção com que navegava e a pouca arte de aqueles que a regiam. ÄB"<Ð Ì  „  ` Ì Ì < `  < ð  Ì  Ì ¨ Ì ¨ Ð    h A#ï™ "ÿÿ"åæ Duro sucesso, temeroso até à consideração, quando a pena pretende referi-lo! Contudo não tomou este golpe, desapercebido o leal coração de Ana, porque, fidelíssimo conselheiro, desde o primeiro passo de seu caminho, ou de seu descaminho, lhe prometia um fim lamentável; mas como a presença dos males seja horrível, fraco o mais forte peito das mulheres, e o perigo contrário do discurso, o espírito de Ana se estreitou tanto que desde aquela hora até ã de sua morte, nunca mais as palavras lhe souberam o trânsito do coração à boca. Costumam os olhos ser, neste caso, substitutos das razões, porque a alma não necessita do estrondo das palavras para explicar-se; mas nem o alívio destas mudas práticas lhe deixou a sorte, ao desaventurado mancebo, vendo que sua querida dama havia posto igual silêncio na vista que nas razões: nunca mais abrira os olhos sequer, para fazer mais saudosa aquela última e eterna despedida. ÄB"Uð Ì Ì ô ð Ì  Ì ð  < ð <  Ð „ `  ¨ Ì  < Ì   „ ˆ ð ¨  ¨ ð „ Ì A#ÚELÿÿ"åæ Três dias gastou a morte em acabar esta empresa. Suas passadas ousadias mostraram que não fora respeito o dilatá-la, antes providência e misericórdia divina, para dar mais lugar ao arrependimento e desengano. Bem se viu em a quietação e alegria com que Ana despediu a alma, fixos os olhos em o Cristo, o coração levantado a Deus. Morreu Ana, e Roberto não acabou a vida logo, porque lhe ficavam ainda muitas lágrimas que negociar, primeiro que acabasse. Já disseram os Sábios: "Que a morte, para ser um dom suavíssimo no mundo, só lhe faltara o ser bem mandada e obediente; porque se a morte acudisse a tempo a todos os brados dos mofinos, sem falta podia contar-se por benefício celestial.» É voluntariosa, surda e descortês; porém responde: «Que ela não veio ao mundo por serva, mas senhora dos mortais.» Há quem lhe diga contra isto?ÄB"NÌ „ Ì < ð Ì d Ì Ì ð Ì  Ì < `  „ ¨  Ì Ì ð Ì   Ì ` Ì <  ô A#Fõü ÿÿ"åæ Não se havia despedido de Ana, com o espírito, a formosura, antes parece que de novo a enformava; nem Roberto com a vida se havia apartado dos pés de Ana, até que, desenganado de que o desmaio era perpétuo, começou a se lamentar nesta maneira: ÄB"„  Ì ` Ì ð „   A#¥ry®ÿÿ"åæ «Enfim, senhora, tu acabaste; e sou eu a causa de que perdesses a vida! que me fica agora a mim que perder, para satisfazer-te? perder-te-ei a ti própria, pois a ti, só contigo posso pagar-te; isto está feito. Ana, já não te devo nada, pois já te tenho perdido. Oh maldito amor! Oh desastrada fé! que tanto crédito te mereceram. Quem tal presumira? porque para te ser menos custoso, te quisera menos; mas eu fiz quanto pude para te desobrigar, pois sem méritos entrei, até querer. Mais podiam então temer-se os meus excessos que os teus precipícios. Tu, senhora, tu me deste o valor que me faltava, e que outrem me não pudera dar; tanto era o valor que me faltava para chegar dignamente a ser de ti conhecido, que só em ti podia achar-se; e esta liberalidade do muito que tu eras, não era eu poderoso para diminuir-te, nem recebendo o grande ser que me deste: porque ele em ti foi tão grande que nem quando me enriquecias de merecimentos, ficaste deles menos rica. Aborrecerá o mundo desde agora (com muita razão) meu nome, como a cúmplice de sua maior tragédia. Oh, como fará bem o mundo! Oh, como eu o estimo! Passarei, por amor do meu amor, mais esta sem-razão e esta mofina; mas acabe-se de crer, e seja agora, que só o negar adoração às perfeições é idolatria, não o adorá-las, posto que sem perfeição. Pois eu que fiz, mais que os outros, cm te julgar por divina? Haver entendido melhor do que tu eras? Essa é a culpa. O meu amor, um fiador foi, das dívidas que todo o mundo te devia. Tu não nasceste, Ana, para ser vista sem ser amada. Pergunta-lhe agora a causa de te haver assim feito, a quem te fez. Se algum saber, ou se algum queixume, se atreve a inquirir este segredo. Amei-te, eu o confesso, e te ofereci eu só por junto, todo aquele amor que todos juntos te deviam. Errei? ou atrevi-me? ou quando só por mim mesmo te quisesse, era delito querer-te de uma vez, o que te havia de amar por toda a vida? Os teus merecimentos montavam tanto que, a par deles, nenhum excesso era excesso. Bem se vê logo que, nem por te adorar excessivamente, fiz mais do que era obrigado; ora, fosse embora malefício: por único pudera escapar, como inocente, em tempos em que todas as culpas do amor nascem do que falta, não do que sobeja. Tal fé, onde foi vista? inveja pudera ser dos Astros que sobre nós influem, se o ódio se não houvera entronizado entre as estrelas que já hoje, mais com sua discórdia que conformidade, ou nos movem ou nos ensinam. Tu acabaste, é verdade: tu acabaste; pois comece desde agora amor a buscar Templos de pedra, como vulgar divindade em que ser venerado; porque aqueles tão limpos corações que tinha por altares e faziam seu culto diferente, jazem em cinzas por terra. Ai formosura, onde estás, que aqui não apareces nem me ajudas a chorar a perda de ambos? mas eu, que ignoro? não apareces porque já desapareceste do mundo. Oh ditosos, oh mofinos viventes, os que vierem a tempo que não possam haver-te visto! que grande sorte vos espera a todos, vivendo desobrigados das leis da formosura! que grande desgraça a todos vos compreende, não chegando a ver a glória que aqui se tem hoje desfeito! Ilustre Sol humano, se alguém te negou que eras Sol, venha agora a reconhecer entre estas águas, teu ocidente. Sol foste logo em nascendo; porque teu resplendor, para alumiar o mundo, não esperou a cerimónia dos dias. Sol foste vivendo, e tua vida foi auge de maior claridade; porque nem os olhos do aplauso, quanto mais os da inveja, puderam subir tão alto como tu vivias. Sol foste morrendo, porque agora hão-de crescer, no ocaso de tuas luzes, seus maravilhosos efeitos. Maior hás-de ser na morte à vista da firmeza, que pareceste na vida à vista da afeição; porque estas lágrimas minhas te hão-de mostrar sempre a essas posteridades, igualmente crescido que adorado. Porém eu, que choro? quando piedoso o céu com nossos extremos, te veio sepultar na parte mais inocente e mais esquecida, a fim de que a paz e a veneração jamais te faltem. E pois no mundo não havia sepulcro que te fosse digno, por isso quis que fosse ignorado. A mim, só me fez merecedor de que o acompanhasse e o soubesse; minha memória será o vaso de tuas cinzas, e minhas cinzas serão a urna de tuas memórias. Oh quem pudera dizer-me se seria delito o acabar contigo logo? Não pode ser que seja lícito, antes fora ousadia fenecer contigo de um próprio golpe. As flores mais mimosas da Primavera são as que primeiro acabam, que quanto às ervas e plantas rústicas, ou se lhes dilata ou se lhes muda o fim para o Estio: só com as rosas falecem as rosas; e eu viverei de puramente não ousar morrer como desejo; mas, contudo, bem pudera a morte ser nesta ocasião, desentendida, permitindo-me este primeiro e último atrevimento.» ÄB"³ <  ð  „ ð ¨ Ì ð ` ¨    ð Ì  „ ð < ð  ¨      ¨ Ì „ ` Ì ` ð < ô  ð „ Ì ð ð ð   < ` <  < Ì   Ì „ Ì Ì ô  ð  ð Ð Ì ¨ ð ¨ Ð Ì ` Ì < ¨ „ ð „ Ì Ì Ì ð ð  `  „ Ì ð ¨ Ì Ì ô Ð ð  ¨ ¨  ð ` Ì Ì    ¨ „ Ì ¨ Ì ¨ ð ¨ ¨ Ì  ð < ¨ Ð  ð ¨ ` „ Ì Ð  „ ` ð  ð ô „  ` Ì   Ì ð Ð  < ð < ¨ ˆ ¨ ð ð Ð ` ¨  ¨ ð <    ð ð   ` „ ¨ ` Ì  ø A#…òùÿÿ"åæ Então, abraçado com os pés da defunta dama, se entregou todo a um terrível desmaio. As lágrimas dos circunstantes multiplicavam a confusão e a saudade. Quando tomado a si, por diligência dos companheiros e licença do mal que, intercadente, às vezes descansava para tomar mais furioso (costume de algoz tirano), um dos circunstantes, mais ancião que os outros e mais experimentado nos sucessos de amor e do tempo, tomando pela mão ao miserável mancebo, em presença de todos lhe falou neste sentido:ÄB"0 „ Ì  ð ð ˆ  Ì ¨ „  ¨ Ð   ð Ì ø A#V5<ñÿÿ"åæ «Que é isto, Roberto? És tu porventura tão vanglorioso que, ainda da miséria em que te vês, queiras tirar vaidade? Entendes que os futuros admirarão por única, tua desgraça? ou tua firmeza? Como te enganas, porque entre as tragédias de um mundo sempre trágico, nenhuma estimada novidade traz a maior desventura. Se tu viras acabar todos felizes os amores dos homens, eu te concedera que tomaras para ti a proeminência das infelicidades: porém, quem viu jamais vida amorosa, que não a visse afogada nas lágrimas do desastre ou do arrependimento? Tu ignoras haver cingido a Providência divina este cuidado humano (ou desumano) de perigos e de escarmentos, a fim de que os homens pudessem viver no mundo? Se ainda cego e resoluto, nosso engano atropela tantas leis contra nós mesmos, que seria se, pela boca do horror, nos não fossem intimados estes decretos? A crueldade que se executa (se se executa) nos delinquentes, é misericórdia para os que haviam de ser malfeitores, se ela não fosse: pois as lástimas dos outros te não advertiram, razão é que te percas; mas não que se perca em seu sucesso, aquele escarmento que já desde agora o Céu está destinando, por lição a outros, que melhores fiéis a seus preceitos, haverão de recebê-la. Deixa a fortuna que, inocente em teus desvarios, se não se ri, se absolve deles facilmente; porque em vão perfilhamos nossos desatinos, a sua inconstância; quando é certo que, mais que a fortuna, somos nós outros a ventura e a desgraça de nós mesmos. Cada qual é seu fado próprio, seu astro nosso juízo, sua estrela nossa vontade. Que fins ditosos é lícito que espere aquele que por ruins princípios se encaminha? O edifício melhor se conhece pelo alicerce que se lhe abre, que pelo desenho que se lhe debuxa; entre a pintura e a fábrica se interpõe o conselho e a mudança. Obras e pensamentos correm sempre fraudulenta irmandade. Confessam que são irmãos, mas à maneira de aqueles antigos Castor e Pólux que nunca vemos luzir conformemente. Bom é, Roberto, que tu queiras hoje receber uma desesperada morte, porque te não saiu próspero teu delito? Que mais fizeras se foras tu o juiz contra ti próprio? O ditoso sim, que pode cansar-se da ventura que goza, pois nós somos tais que até do bem desejamos mudança. Mas porque o desditoso ajudará com sua desesperação, sua própria desgraça? Espera, detém-te, que a força que tu levas, não leva ruim jeito de te fazer pouco desgraçado; para que te antecipas tu a recebê-la? Não me dirás que esperavas, quando a empreendeste? Acaso te enganou o amor? não, por certo, porque ele não costuma dar menos fadigas que as que promete, nem te prometeu menos que as que te tem dado. O dia em que te puseste ao excesso de que agora te lamentas, com esta sua condição seguiste os atrevidos estandartes de seus aventureiros. Porque te queixas? de que desesperas? Se esse amor teu amigo (ou teu inimigo) não foi para ti mais confiado, ou mais cauteloso em tuas demasias, que sói ser para o mais justificado em seus empregos? Olha melhor teus passos, enganado moço, verás que tua dor é sobeja; porque foi falsa a tua esperança, não porque tua desgraça fosse excessiva. Amaste, foste amado, atraveste-te e achaste quem por ti se expusesse ao último perigo. Oh quantos, com menos satisfação te excedem nos estragos! Não chores pelo que não gozaste, porque tudo o que se te desviou ao logro, tens poupado ao aborrecimento. Queres ver se ganhaste? Ora mede a dor do que perdeste pelo que já te custa, que logo conhecerás, não tinhas cabedal para contribuir a obrigações mais valiosas. Tua Ana é falecida discretamente. Enterrou-a na solidão destes desertos a fama que desde o povoado a vinha seguindo e perseguindo. As vozes que até aqui foram de escândalo, OU não passaram adiante ou, se passarem, tu as verás trocadas de escândalo em piedade. Ouvirá o mundo esta história já a tempo que todos se compadeçam; porque chegando-lhes mais cedo a notícia da tragédia que a da leviandade, não haverá quem deixe de se lastimar da primeira, antes que se indigne da segunda. Tu procuras te deixemos acabar aqui, junto de aquele teu amoroso espectáculo, os poucos dias que te restam de vida? como pode ser, oh, Roberto, que tu queiras sobejar à razão do teu amor, e aconselhas-nos que faltemos nós à de nossa amizade? Amizade e Amor, tudo é o mesmo; mas, se por ter melhores fins que o amor, a amizade, queres que seja mais débil, isso é negar-lhes todo o valor às virtudes. Queres morrer perto do que quiseste, porque lhe tens querido, nós queremos viver ou morrer em companhia tua, porque te amamos. Porque te amamos, te seguimos; pois porque te seguimos, queres que te deixemos? De nossos ausentes companheiros, estou seguro, sentiram lá onde os levou o fado, muito mais o deixar-nos, que seu próprio risco; o que eles fizeram forçados da força de tantos elementos, não, não será razão que nós o façamos voluntários. Uma sorte nos trouxe a uma igual desaventura; ou todos escapemos dela, ou pereçamos todos nela. Tu vieste obrigado dos afectos do amor, a quem ninguém resiste, nós de outros mais racionais: por isto, mais forte deve ser o laço de nossa obrigação, quanto a razão está, mais que o amor, em seu sentido. Somos nós menos obrigados a seguir o que a razão nos aconselha, do que tu és a obedecer o que o amor te manda? Dois remédios todavia nos ficam, e não é desesperado o mal donde se podem escolher os meios de sair dele: esta terra é habitável, aqui poderemos viver enquanto tardam para nos vir buscar outros mofinos, com cuja perda nós ganhemos. Não podem tardar muito, porque as desgraças de não caberem já nas cortes e cidades, necessitam de novos limites aonde espalhem seus acontecimentos. Se te parece melhor tentar com nova ousadia os mares e os ventos, quanto mais cedo o começarmos, veremos mais depressa se estão já (como creio) arrependidos de nossa perseguição. Enquanto se nos conserva inteiro aquele barco (que não acaso nos deixou ali a fortuna) e enquanto se não corrompem os mantimentos que aqui temos guardados, façamos embora segunda viagem, em busca da vida, já que da primeira que fizemos, só havemos vindo a encontrar a morte. Anima-te, Roberto, e como mais valoroso, paga-nos ensinando-nos a vencer perigos, aqueles que nós vencemos por obedecer-te. Para uma e outra fortuna, nos tens fidelíssimos: oh, não troques, não, o valor de obrigações tão grandes, pelo ofício de umas inúteis lágrimas que sempre (com as memórias de que procedem) podes levar contigo.»ÄB"[Ì ¨ ð ô ` ð   ` < `  < `  ˆ ¨ ð < ¨ ¨ Ì ¨  ð `   Ì „ ð  ð Ì ð „ < Ì „ ¨ < ¨  < ð ¨ ¨ ô Ì „ „ < ð ` ð „  ¨ ¨ „ Ì ¨ ¨ `   <  „   ð ` ¨  ` ð  ð Ì Ð `      ð  ¨ ¨ Ì ¬  `  ð `  ¨ <  Ð  < Ì ¨ ð  Ì <  ` ð ` ¨ „ `  Ì ¨ < „ ð <  „ Ì ¨ „ Ì „   ð Ì ¨  Ì Ì ô ` ð  ô „ ð Ì <   Ì „ < ð ` < ð  < `  Ì   Ì  ð Ì ` ð ` < ð Ì Ì ˆ Ì „ Ì ` < ¨ ˆ ô ð ô  Ì  Ì `   ð ð  ô    < „ ¨ ô Ì ¨  Ì ð Ì ð   ˆ ` ¨ ð ð   ð ð  „ ` ` Ì Ì ð  ` „  ¨ ` ð  Ì „ ô A#"ÿÿ"åæ Quem considerou já cortesia da miséria? Novo amor, nova fidelidade se acha em o estado ínfimo; donde quero inferir que a mais ardente febre de que adoece e morre toda a amizade do mundo, é a inveja dos homens. Então porque a inveja não tem entrada nos casos adversos, cessando seu péssimo efeito, fica nos primeiros termos a humanidade, para obrar naturalmente de uns a outros. Esta é a razão de que, no comum perigo, vemos que os homens se valem, se acodem e se lastimam como gente racional; e que raras vezes sucede fora deste sucesso. ÄB"2Ì Ì < ¨ ¨ Ì ð ` < Ì ð Ì   „ ¨ ð  Ì Ì A#—<Cÿÿ"åæ Aqueles companheiros de Roberto que se achavam em terra, desprezando as vidas à vista de sua desgraça, lhas ofereciam constantes, para remédio dela. Porém ele insistia firme em sua desesperação, como se ela fosse daquelas que descobrem, nos apertos dos homens, alguns raros caminhos para sair deles. Muitos têm achado, perto da desesperação, o seguro, para o maior perigo: eu não quisera curar meus males com ervas definitivas que mais vezes matam que remedeiam. Mas pois se não perde o discurso em averiguar o proveitoso, acabemos esta matéria não fácil mas necessária. ÄB":< „  Ì ¨ < ô „  < ¨  @ ð  ð ¨ ¨ < < „ ô  ° A#¿ÙàBÿÿ"åæ O humano juízo, alimentado de erros (como das peçonhas o outro Mitridates) porque de ordinário confunde o valor das cousas, de ordinário ignora o que é lícito dar por elas; donde procede que, por algumas vilíssimas, costuma fazer excessos, e por outras, de grande utilidade, não quer mover-se um só passo. Aqueles casos para cujo fim se necessita de constância e diligência, podem remediar-se com desesperação do remédio; porque a fúria a que a desesperação nos incita, brevemente se converte em obstinação que faz fortaleza, e em ira, que produz diligência; pelo que já se disse que o furor ministrava as armas, sendo esta a razão de se salvar, talvez, do perigo, o que se desespera nele. Porém isto não sucede em os casos que só da temperança ou humildade podem receber melhoramento: porque nestes tais, nunca a desesperação seria conveniente, produzindo, como dissemos, efeitos opostos aos que lhe são necessários, quais a paciência e esquecimento. Assim, vemos que o ferro há mister o fogo que o lavre; e logo o barro apetece a água que o amoleça; o vidro pede o ar, para que lhe dê forma; e o grão ama só a terra em que pode produzir-se; e assim víramos que o fogo queimara o grão, o ar secara o barro, a água aniquilara o vidro e a terra destruíra o ferro; se o uso dos elementos ou das matérias se lhes trocasse, não há regra geral para curar os efeitos. Umas de nossas desordens são violentas, outras porfiosas. As paixões primeiro se hão-de conhecer que castigar. Ninguém prove as emendas de uns para outros, que a todos lhe virão sem medida: estragará a virtude das mezinhas e a esperança da cura dos males. Assim entendo, falando nos termos lícitos da desesperação, tantas vezes inadvertidamente receitada para remédio de humanos trabalhos. ÄB"¥ ¨ Ì ¨ `  ð Ì     „  ð  ` „  Ð ¨ ð ð ` ¨ Ì ô  ð Ð ˆ   ` ¬ ¨ ð Ì  Ì  ¬ ð  „ ð Ì  ` „ < ` ð Ì Ì   < ` ð ¨ d ¨ ¨ <  Œ A#9ÁÈ-ÿÿ"åæ Depois de largo e lastimoso debate, foi mais lastimoso o concerto: prometendo Roberto aos seus que, se a vida lhe durasse cinco dias, ele se embarcaria com os mais, para onde a fortuna quisesse lançá-los; mas que se sua morte sucedesse primeiro, eles se fossem logo, dando antes a seu corpo sepultura, junto ao cadáver de Ana: o qual, com comum consentimento e muitas lágrimas haviam já enterrado ao pé de aquele altar que constituíram, servindo-lhe de cabeceira e dossel, o tronco e rama da formosa árvore que a princípio dissemos. Ornaram de uma grande Cruz de madeira aquele bárbaro e piedoso túmulo, por testemunho de sua religião, a par do qual, em versos latinos, elegíacos, escreveu Roberto sua história, na maneira que fielmente procuramos referi-la, acabando-se em um elegante Apóstrofe, em que pedia: «Que se em algum tempo, alguma gente da lei de Cristo viesse a povoar aquele deserto, por reverência do Senhor Crucificado (que ali ficava tomando posse de aquela pequena parte do seu mundo) quisesse edificar em o lugar próprio onde, como em Betel se lhe havia levantado a primeira Ara, um templo a Jesus Salvador, por ser assim voto da nova piedade que, em tão inculto deserto, louvara o nome de Cristo.»ÄB"qÌ ð ð Ì ¨ ð < „ „ ¨ ð ¨  Ì „ < Ì ¨ Ð Ì  `  Ì ¨ Ð ` Ð ð ¨ <   ¨ Ì < Ì  Ì ð Ì  ð ð ˆ A#ÿÿ"åæ Enquanto o saudoso amante se ocupava em suas lágrimas e exclamações que de contínuo ao Céu fazia junto à sepultura de Ana, os mais se entretinham em preparar aguada, matar e secar aves, acomodar as velas e reparar a embarcação a que pretendiam entregar, segunda vez, as vidas. Não só o termo concedido ao mancebo, mas o tempo, os detinha; até que entre si concertadas (parece) umas e outras sortes, a manhã do dia quinto depois da morte de Ana, indo buscar o triste Roberto, miserável vista! o acharam morto sobre o mesmo teatro. ÄB"2ð ¨ Ì Ð ð < Ì  Ì „ ô Ì ¨    ð Ì Ì   A#J ÿÿ"åæ Junto deste espectáculo, não sei qual fosse maior: a lástima ou a saudade? Enfim vencidas, foi aberto um igual sepulcro a Roberto, que fora para Ana a sepultura, e com semelhante inscrição de sua morte o deixaram, de tantos trabalhos repousar em paz para sempre.ÄB"ð < Ì  ð Ì Ì Ì „  ° A#R&- ÿÿ"åæ Lugar era este para que eu me detivesse um pouco a praticar com os amantes que há no mundo; mas que lhes dissera eu, que o mesmo mundo lhes não haja muitas vezes dito? Que lhes contara, que ele lhes não haja mostrado? ou de que mais serviram minhas admoestações, que seus próprios desenganos? ÄB"  ` Ì ¨ Ì „  `  ô A#‹ ÿÿ"åæ Enfim embarcados os peregrinos Ingleses, foram em breves dias fazendo a própria viagem que antes, em a nau, haviam feito seus companheiros. Deu-lhes porto a própria inimiga areia de África, que eles saudaram como de salvação, sendo-lhes de pesado cativeiro. Assim sucede que, a nossos bens e males, põe taxa aquele estado de que vimos a eles. Algum Tirano teve já por clemência o golpe que ministrava a quem podia tirar a vida? O cativeiro lhes pareceu repouso a estes mofinos, porque fugiam ameaçados do cutelo da morte.ÄB"2¬   Ì d ð ¨ „ ð ¨ Ì  ¨ ð  ô  ` ¨ @ A#Cëò ÿÿ"åæ Passaram em breve da escravidão do mar à dos bárbaros, e deles, ao poder d’el-Rei de Marrocos, ao qual sendo levados, o primeiro alívio que encontraram foi a miséria de seus companheiros que, em a nau, haviam corrido semelhante sorte.ÄB"Ð < Ì  „ ð ð  d A#-‘˜,ÿÿ"åæ Eram então (como hoje as de Argel) as masmorras de Marrocos ocupadas de grande número de católicos, com igual lástima que injúria da Cristandade; entre os quais se achava um cativo, de nação Castelhana, natural de Sevilha, cujo nome era João de Morales (a quem João de Amores chamaram erradamente alguns antigos, quiçá por quererem fazer de amores toda esta história); era Morales homem prático na arte de navegar, que largos anos em ofício de piloto havia experimentado, segundo a rudez com que naqueles tempos a navegação se exercitava. E como, por pessoa industriosa nas cousas do mar, se afeiçoasse mais eficazmente à relação que lhes faziam os Ingleses, procurou durante sua companhia, que foi de largos anos, entender deles a situação, paragem, sinais e notícias de aquela nova terra, da qual tão maravilhosas cousas lhe referiam; e foi de sorte a diligência que pôs no exame e memória de tudo, que se fez igualmente capaz que os próprios de quem aprendia, em o mesmo que lhe ensinaram: donde procedeu que, pela grande esperança, pressagamente concebida de aquele segredo, ele o guardou para si somente, todos os anos que tardou em não poder dele aproveitar-se. ÄB"nÌ  Ì ` ð Ì   Ì ¨ Ì „  Ì ` Ì  `  ð ð ô  ¨ ¨ „  Ì < ˆ < ¨  Ì <  ¨ ` d ¨  „ ð Ð A#zÆÍÿÿ"åæ Agora farei uma digressão, em benefício desta história: porque tomando-se o conhecimento dos termos importantes, ao fim do que se conta, vai o juízo claro e confiado, sem fazer reflexão aos antecedentes que lhe não é necessária, pois todas as notícias que pertencem ao que se lhe manifesta, acha juntas consigo. São, nestes casos, estas tais digressões verdadeiros Tropos históricos e não prolixos Pleonasmos, pelo que nunca costumo desculpar-me deles. ÄB"+ „ ¬ <  ¨ ð ð Ì   Ì ô  ¨  Ð A#<C(ÿÿ"åæ Vendo-se o nosso Rei Dom João o Primeiro, de Boa Memória, já desocupado das guerras de Castela, não quis, como varão constantíssimo, desperdiçar a serenidade de sua República em o repouso com que licitamente pudera gozá-la, depois do largo trabalho de sua recuperação e defesa. Armou nobre exército, com o qual passando o Mar antes que algum Príncipe de Espanha, conquistou aos Mouros a ilustre Cidade de Ceuta, e antigo povo de África, aos quais deu memorável nome a perda de Espanha, que por suas portas teve princípio. Alcançou Dom João este triunfo, pelos anos de 1415, ajudado não só dos Vassalos como filhos, mas dos filhos como Vassalos, servindo-lhes de Capitães de suas hostes o Príncipe e os Infantes; entre os quais se sinalou em valor e disciplina, seu terceiro filho Dom Henrique, Mestre insigne de toda a arte militar e de nossa milícia de Cristo, por ser mais rico e afeiçoado vantajosamente a empresas dificultosas; cujos intentos, crescendo em a virtuosa emulação do que via conseguir a el-Rei seu pai, em si mesmo se estava cada hora ensaiando para maiores efeitos.ÄB"d Ì ð   Ì Ð Ì Ì „ Ì  ¨ < ¨ ¨ ¨ „ Ì  ð Ì Ì ð ð  ð ¨ ¨   Ì ¨ ð ` ð Ì ¨ Ì   A#Üãÿÿ"åæ Havia o Infante estudado, entre as matérias, Matemáticas, com mais afeição, a Cosmografia; e como em África praticasse acerca dela com muitos Judeus e Mouros, noticiosos das Províncias remotas e das costas e mares que as cercam, instantemente se inflamava seu coração em o desejo de descobri-las e ganhá-las: não para acrescentar os domínios temporais, mas para dilatar a Fé Católica e reverência do nome de Cristo, de cujo divino oráculo, é fama, foi animado a tal empresa. ÄB"-„ ˆ ô „ „  ` `  ¨ ¨  ð  Ì < Ì < A#Cìó/ÿÿ"åæ Resoluto, enfim, a fazer a Deus este serviço, e este benefício ao mundo todo, para melhor executar seus propósitos, recolhendo-se da jornada de Ceuta, se ficou no Algarve, onde, em a Angra de Sagres, uma légua apartada do antigo Promontório, que Sacro disseram os Romanos (e daí Sagro, a Sagres, a que chamamos hoje Cabo de São Vicente) fundou uma vila, em ordem à sua assistência e maior cómodo das navegações que intentava: à qual deu por nome: Terça Nabal, quase Nabal Tercena, denotando o exercício para que a havia levantado. Dársena e Arsenal chamam os Venesianos a seu famoso Armazém de galés, onde se fabricam e guardam, a que nós dizemos Tercena, Taraçana, e Ataraçana os Espanhóis. É nome célebre, ao qual muitos têm por voz Persa; e dos Persas, difundida aos Árabes; porque Ters, em idioma Persa, significa navio, e Hane, casa: como se disséssemos casa de navio. Outros querem que seja nome Arábico: quase obrador, ou casa onde se trabalha: deduzindo-se da raiz Darsenaà; e alguns dizem que Hebreu, dizendo: Darasinaá: que tudo difere pouco; cujas memórias trazemos, por que se veja com quanta erudição aquele sábio Príncipe pôs o nome a sua vila: Terçana Nabal ou Terça Nabal. Que depois, em mais Português e grato modo, foi dita: Vila do Infante.ÄB"v¨ „  Ð ð  ð   ¨  „ ð „ Ì  ` ¨ ¨ ð ¨  ð Ð `  < Ð ð  ` „ ð ð ` „  Ð ¨ ô  ð „ ð ¨ Ì  A#žV]>ÿÿ"åæ Por este tempo, e deste lugar, começou Dom Henrique novas conquistas e descobrimentos; revolvendo cada dia suas embarcações os mares do Atlântico e Ocidental, cujos seios, por muitas centenas de anos estiveram incógnitos; e ainda, a juízo dos melhores, nunca foram trilhados de outras gentes. Suposto que os Gregos, ambiciosos do louvor de suas acções, com maior pompa que verdade as engrandeceram; donde achamos escrito em Heródoto: «Que os moradores do Ponto Euxino tinham por cousa certa que o Mar Atlântico se comunicava com o Mar roxo ou Seio Arábico.» E prosseguem: «Que nos Anais do Egipto se lia como um antigo Rei, chamado Neco, mandara alguns Fenícios que desde o Mar roxo corressem todo o Meridional e, entrando pelas colunas de Hércules, passassem ao Egipto.» O que, diz, fizeram, com período de dois anos. Também afirmam: «Que no tempo de Xerxes, o Capitão Sataspes dobrou o Cabo de Boa Esperança e se recolheu a Egipto, pelo estreito Gaditano.» Estrabo conta, por fé de Aristonico Gramático: «Que Menelau navegou de Cádiz à Índia.» Pompónio Mela: «Que Eudoxo, fugindo de Iathico, Rei de Alexandria, saiu pelo Seio Arábico e chegou até Cádiz.» O mesmo parece que disseram Plínio, Solino, Marciano, Artemidoro, Xenofonte Lampsaceno; porém naqueles tempos de nossas conquistas, entre as gentes de Europa e África, nenhuma notícia se achava de tais navegações, nem depois a descobriram os Portugueses, em os povos de Ásia, o que não pouco enfraquece o crédito dos autores referidos, e faz muito pela opinião dos nossos, com quem se conformou o Poeta Português, quando disse: Por mares nunca de antes navegados. ÄB"›< Ì ˆ ¨ ð Ð Ì < < ð `  ð „ Ð ð ð „ ð Ì  ð ¨ Ì  Ð Ì ð   „   Ð „ ô  Ì   Ì ð „ ¨ ` ô Ì „ Ì Ì „ ` Ì ¨  ¬ Ì ð Ð ð Ð  Œ A#ºÈÏ@ÿÿ"åæ Entre as pessoas que o Infante Dom Henrique ocupava nestes descobrimentos, foi principal (pelo menos, não se sabe de outra maior) um nobre Cavaleiro de sua casa, que disseram João Gonçalves Zarco. Duvida-se se por alcunha, apelido ou façanha. Fora criado no Paço e disciplina de el-Rei Dom João o Primeiro, e por ele dado em grande estimação ao Infante. Não havia ainda neste tempo, os livros dos Filhamentos, onde permanece escrita a Nobreza civil: cuja invenção ou forma se achou no Reinado de Dom Afonso Quinto. Por esta razão, não por falta de qualidade que em João Gonçalves houvesse (pois segundo afirmam os que dele escrevem, era sobeja e adiantada à de seus companheiros, como se lê em João de Barros) se achava nele menos o título de Fidalgo da casa do Infante, a quem servia nos postos de maior confiança e autoridade: qual o mando que lhe entregou com suas armas, em que de força havia de concorrer a mão de el-Rei; cujo Capitão-Mor do mar, alguns dizem que era; e este o maior título que nossos Reis davam aos Cabos de seus exércitos, no mar ou no campo. É também de advertir que nas armas do Infante se incluíam as da Religião de Cristo, de cujas rendas Dom Henrique fornecia seus navios; o que sendo, como é, sem dúvida, resulta em maior honra da pessoa de João Gonçalves e proeminência do grande lugar que logo em seus princípios ocupou neste Reino, o qual se lhe conferiu por sangue e merecimentos, havendo sido um dos Capitães que el-Rei Dom João o Primeiro armou cavaleiros, o dia do assalto de Ceuta; e que depois, em todas as empresas de África, acompanhou a el-Rei seu senhor, e o Infante, seu amo, com tanta singularidade que se diz dele: «Foi o primeiro Capitão que introduziu em os navios, o uso da artilharia.»ÄB"  ð ¨   ¨ < < ð ô   ð ð ¨ ` ð ð „ ð ô ` Ì  ¬ Ì „   „   „ ¨ ¬ ¨  ð ð ð ð „ ð ð „ Ì Ì  Ì ð  ¨ ð ô ð ¨ < ¬ <  Ì ð ð  A#«Œ“ÿÿ"åæ Nesta forma governando sua Armada, discorreu João Gonçalves pelo estreito de Gibraltar, a fim de passar-se ã costa de África, nos princípios de 1420, havendo já, em o ano atrás passado de 1418, como acaso, descoberto a Ilha de Porto Santo; vindo arribado, por razão de grandes tormentas da viagem que aquele Verão fizera, em demanda do Cabo Bojador. Não estavam ainda as contendas de Portugal e Castela, por este tempo tão acabadas que, entre os súbditos não houvesse algumas ocasiões de discórdia, donde procedia que Portugueses e Castelhanos costumavam prender-se quando no mar se achavam, sem outro pretexto que julgar-se o agressor mais poderoso. ÄB"<¨  ¨   Ì  ð ð  Ì Ì ð  ð  ` ¬  „ ð ð ` ` A#v·¾7ÿÿ"åæ Falecera em Castela, a 5 de Março de 1416, o Mestre de Calatrava, Dom Sancho, filho último de el-Rei Dom Fernando de Aragão; o qual Mestre deixara em seu testamento um rico legado por sua alma, para que, de Marrocos fossem resgatados muitos cativos Castelhanos; e, entre eles, foi um dos que receberam primeiro liberdade (pelo resgate do Mestre de Calatrava) o piloto João de Morales, de quem havemos feito particular menção, e correrá igual por todo este tratado. Navegara aqueles dias, de África a Tarifa, em sua fusta que conduzia a Espanha a maior parte dos resgatados Castelhanos, quando, sendo descoberta da Armada de João Gonçalves, e perseguida dos navios mais ligeiros, veio sem alguma defesa, a seu poder. Mas o Capitão, atendendo a miséria dos rendidos, como tão certo da demência do Infante Dom Henrique, lhes deu logo liberdade, reservando só para si a João de Morales que, como pessoa mais prática e de longo cativeiro, quis apresentar ao Infante, entendendo poderia alcançar dele algumas das notícias que buscava; do qual propósito tendo certificado João de Morales, não só não recusou a nova prisão como, homem astuto, se ofereceu voluntariamente para servir com uma grande oferta, à curiosidade do Infante Dom Henrique: praticando desde logo a João Gonçalves, parte do segredo da nova terra, que pretendia inculcar-lhe, e corroborando as notícias que dela tinha, com a história do Inglês Roberto, segundo de seus companheiros a havia entendido. ÄB"ŠÌ ¨ ð  ` ð „ ð „ Ì ` ` Ð Ì ` ¨ Ì „ ð ` „ < Ì Ì ¨ „ ¨ ð ð ¨ <  „  ô  Ì  ¨ „  < ¬ Ì ` ¨ ¨ ð  „ ð  ¨ „  Œ A#¥t{ÿÿ"åæ Mais rico desta esperança que de alguma outra presa, se voltou logo João Gonçalves ao porto de Terça Nabal, onde, fazendo relação de sua breve viagem e fácil encontro, apresentou ao Infante a pessoa de João de Morales; a quem deu conta de sua arte e segredos. O que, tudo sendo do Infante ouvido e examinado, já não sabia a hora em que havia de começar tão grande empresa e tanto a seu génio acomodada: porque, sobre ser cousa sabida que os Príncipes fazem vantagem aos mais homens, na subtileza de seus espíritos, em nada se mostra mais expressamente que no apetite, a diferença ou melhora que há entre seus e nossos afectos. ÄB": „  Ì ð ` < ð ð Ì ¬ „ ð ð ð  ð ð ¨  ¨ Ì @ A#Ò'.ÿÿ"åæ Julgo que nas obras do ânimo, as quais são sempre agitadas de dois agentes, razão e gosto, aquelas onde só a razão influi, se executam vagarosamente; como vemos que a terra cria, com grande espaço, as ervas que lhe transplantam, por mais que lhas cultivem; e, pelo contrário, produz com grande vigor e diligência as suas plantas próprias, sem benefício da humana cultura. Assim mesmo os homens, tão eficacíssimos em obrar segundo sua condição, e fracos quando contra ela; mas então será diligente e regulada aquela acção em que a justiça e o apetite activamente se conformem; contudo, porque elas costumam ser as menos vistas no mundo, por isso vemos o desigual passo com que procedem as cousas justas e injustas. Aquele Príncipe será pronto e feliz em suas operações que tiver vontade de obrar como deve. ÄB"N ð ` ` „  ` ` ¨  ð ¨ ô ð ¨  <   ð ô „   „ „ „  Ì Ì Ø A#‹ ÿÿ"åæ Foi a primeira resolução do Infante, que João Gonçalves passasse logo a Lisboa, onde se achava el-Rei seu pai, para lhe comunicar este negócio; e para satisfação, assim de el-Rei como dos Ministros, trouxesse logo consigo o piloto João de Morales, que com boas razões satisfizesse às dúvidas que lhe seriam postas; porque aqueles que não tiveram sorte ou arte para achar cousas novas, soem vingar-se da ventura ou destreza dos que as descobriram, fazendo-as impossíveis se valiosas, e, quando possíveis, de nenhum preço. ÄB"2Ì Ì ð „ < Ì ` „ ` ð Ì „  „ ` Ì ¨ Ì Ì ü A#!ÿÿ"åæ A este fim proveu o Infante logo a Armada de outro Cabo, e João Gonçalves, na maneira proposta, se passou de golfo a golfo; do mar à Corte, aonde o acompanharam as pessoas de maior posto e inteligência, como foram os Capitães João Lourenço, Francisco do Carvalhal, Rui Pais, Álvaro Afonso e Francisco Alcoforado, primeiro Cronista desta história, com alguns outros homens de Lagos, práticos na navegação, que se diziam: António Gago e Lourenço Gomes; a cuja memória não quero ser devedor, antes quero que eles o sejam à minha lembrança. ÄB"5Ì ð ð ð ` < ` Ì < Ì ô ô < Ì ð „ < „ ` ` d A#Ò%,ÿÿ"åæ Não bastou o bom afecto com que el-Rei Dom João ouviu a João Gonçalves e seu piloto, nem o muito gosto, pouco risco e menos dispêndio com que o Infante representava aquela empresa, para que ela deixasse de ser, por alguns ministros, reprovada; porque o Infante Dom Henrique tinha junto de el-Rei émulos, a quem não era grata sua grandeza. Quando as pretensões dos Príncipes naufragam e se perdem nas ondas da Corte e nos bancos que a atravessam, como se escaparão as dos humildes vassalos? Como chegarão ao porto de bom efeito? Mas consolem-se os pretendentes, que as mesmas Cortes também tomam do mar aquele costume que regula os perigos e naufrágios pelos tamanhos dos navios que nele navegam, donde procede o antigo como vulgar provérbio: «Que a tormenta é tão grande como a embarcação que a padece.» ÄB"KÌ Ì ð ` Ì ¨ ð Ì ð ð „  ¬ ` „ Ì „ „ ¨ ` ð Ì Ì <  ` Ì ` ð ¨ A#(~…+ÿÿ"åæ João Gonçalves, em Lisboa honrado mas não despachado de el-Rei, avisou ao Infante do ruim caminho que tomaram suas pretensões: e como lhe custava tanto trabalho persuadir os ministros de el-Rei a que recebessem os tesouros que para o Rei e Reino vinha oferecer-lhes, como pudera custar-lhe se para si os pretendesse, pedindo-os ao Reino e ao Rei. Mas Dom Henrique, sendo igual na actividade e paciência (como devem ser os Varões grandes) tomou diligentemente resolução de avistar-se com el-Rei seu pai; a cuja presença já chegado, desfez logo as dúvidas que detinham ao despacho de João Gonçalves, por tal maneira que, no princípio de Junho de aquele ano, este saiu em demanda da terra nova, em um navio bem armado de gente e apetrechos, com um varinel que o acompanhava (embarcação de remos que então usavam, cujo nome ainda retemos nas varinas subtis de que hoje nos servimos); tal foi a frota com que partiu de Lisboa: porto não somente célebre entre os melhores do mundo, por si mesmo, mas por haver sido aquele notável ponto donde se tiraram linhas de gloriosas conquistas e incríveis descobrimentos, a toda a circunferência de todo o Universo.ÄB"l„  ð    „ ¨ „ ¨ „ <   „ „  Ì  Ì ð ¬ ¨  ` ð Ì ¨  ¨ Ì ¨ ` < „ ð ð „  „ Ì   Œ A#î•œHÿÿ"åæ Corria desde o descobrimento da Ilha de Porto Santo (aonde João Gonçalves agora dirigia sua viagem) uma confusa fama, entre os Portugueses que ali povoaram: «Que desde aquela Ilha, à parte do Nordeste, aparecia no golfo do mar certa escuridão contínua e cerrada desde a água ao Céu, a qual jamais se desfazia ou alterava, mas com medonho ruído (que alguma vez se ouvia no Porto Santo) parecia guardada sobrenaturalmente.» E como até àqueles tempos, por falta do Astrolábio e Balestilha (mais moderna) ninguém navegava por altura, mas junto à costa, era julgado por impossível ou milagroso «que quem perdesse a terra de vista, pudesse tornar a ela». Esta inadvertência tinha os homens tão rudes nas cousas do mar, que de todo ignoravam seus segredos: donde vinha que a paragem desta escuridão era geralmente julgada por um abismo, e ainda com esse nome nomeada. Outros asseguravam ser Boca do Inferno, favorecidos da opinião de alguns Teólogos que, participantes do próprio temor que os simples, mostravam ser possível, com argumentos e autoridades. Os que das histórias se prezavam de ter melhor notícia, tinham para si: «Que ela fosse aquela antiga Ilha Cipango, por mistério de Deus encoberta, donde, foi fama, se retiraram os Bispos e povo Católico, Lusitano e Espanhol, quando da opressão dos Sarracenos; e que tratar da averiguação desta verdade seria erro e pecado manifesto contra a Providência divina, que ainda não era servida declarar aquele segredo com os sinais que precederiam a seu descobrimento, os quais se acham escritos (dizem eles) nos antigos vaticínios que desta maravilha falam.» Tal e tão confuso era o juízo que já se fazia de aquela remota sombra: onde sem dúvida tiveram seu princípio as vaidades que ainda hoje predominam no coração de alguma gente, abraçadora de vãs esperanças, os quais erros, como principiados de sombra, não é muito que tragam escuros e ofuscados aos entendimentos dos homens que os recebem. ÄB"´ð  ð  ð Ì ¨ ` ¨ ð ð „ `  ð ¨ „ „ ð  „ ð „ ¬  ð ¨ Ì Ì „  Ì Ð „ Ð ` ô Ì ð   < Ì Ð Ì  Ð ð ð ð  ð „ Ì Ì Ì ` ð Ì  „ < ð ¨ ` Ì ` Ì < ¨ ð @ A#ÝT[ ÿÿ"åæ Navegava na volta da Ilha do Porto Santo, João Gonçalves, com calmarias próprias do tempo e próprias ao intento que levava. E porque com o escuro da noite não lhe sucedesse escorrer a terra (assim dizem, a seu desencontro, os marinheiros) recolhia em a noite todo o pano, para não navegar mais de noite do que pudesse ver de dia; contudo não foi larga a viagem, e em breve tempo chegado ao Porto Santo, continuou logo em observar, com os mais da terra, aquele temeroso semblante que estavam vendo: o qual o piloto Morales julgava ser princípio da terra nova que iam buscando. Feito conselho, pareceu: «Que na Ilha se detivessem, por todo o quarteirão da lua presente, a fim de se notar se a sombra se desfazia ou se mudava.» Mas ela sempre apareceu em um lugar próprio, com que de novo deu grande temor à gente rude, em vez de lhe poder dar esperança.ÄB"Pð ð „ Ì ¨ < ¨ ¬ ð ¨ Ì Ì  ¨ < Ì ð  < ¨ Ì  `   Ì ¨  „    h A#™BIÿÿ"åæ O piloto constantíssimo era de parecer «que segundo a informação dos Ingleses, e roteiro que por ela havia formado, não podia estar muito longe a terra encoberta», certificando a João Gonçalves: «Que por causa do alto e vastíssimo arvoredo, os raios do Sol nunca enxugavam o campo donde procedia tão grande humidade, que ela era causa dos vapores de que o Céu se cobria, e ela, sem falta, a escuridão que estavam vendo; por onde tinha por acertado que em derrota fossem logo a demandar aquele nevoeiro, debaixo do qual, tinha por certo, achariam a terra ou certos sinais dela.»ÄB"7Ì „ ¨ „ ` ¬ ¨ ` ¨ „    „ Ì Ì „ ô „ ¨ ¨ Ð A#07(ÿÿ"åæ Todos entendiam o contrário e se opunham ao voto de Morales, dizendo: «Que ele, por ser Castelhano e imortal inimigo do nome Português, pretendia expor a tanto perigo os circunstantes. Que assaz faziam os homens em pelejar com outros homens, mas não era de seu poder contrastar os elementos: antes ousadia de gente idólatra, querer apurar os segredos divinos. De aquela sombra, não havia que esperar outra cousa que a morte; e caminhar a buscá-la, sem mais esperança, era tentar a Deus e merecer-lhe fosse desapiedado; que o mesmo Infante se daria por mal servido, gastando-lhe sem razão tais criados, e pior el-Rei vendo esperdiçar vidas de Vassalos, tanto para se pouparem para mais úteis empresas. Que João Gonçalves, se queria ser grande, já lhe bastavam seus serviços, e que dos desesperados nunca a fortuna fizeram valentes: conservássemos e regêssemos bem as terras que possuíamos, sem ir furtar ao mar as que Deus para si lhe dera, só por fazê-las participantes de nosso desvario. Finalmente, que eles não eram ali vindos nem se inculcavam para mais que homens.» ÄB"d ô Ì ð ¨ < ð „ ¨ ` `  ¨ Ì  ¨  ð ¬ ` ` „ ¨  ¨ `  ð  ` „ Ì  Ì  „ Ì ð Ì Ô A#v·¾6ÿÿ"åæ Só o Capitão, prevalecendo em seu ânimo e desejo, se deliberou consigo próprio: "A que pois vinha a vencer perigos e dificuldades, a primeira que se havia de vencer era a vontade de seus soldados, que, tão contrária da sua, experimentava.» Aos quais, havendo com dissimulação ouvido e confortado, como o tempo deu lugar, sem que a algum desse parte de seu intento, se fez à vela, uma madrugada, com o varinel de sua conserva: e deixando a Ilha do Porto Santo, lançou a proa para a parte de aquela temerosa paragem aonde a sombra se via, fazendo toda a força de vela, para que o dia lhe não faltasse com luz bastante, a fim de reconhecer tudo o que pudesse, da terra que esperava achar facilmente. Aumentava-se, com a vizinhança da escuridão, o receio de todos; porque cada vez parecia mais alta e cerrada, totalmente chegou a se fazer horrível; quando ao meio-dia, se ouviu rebentar o mar, com medonhos bramidos que atroavam inteiramente o âmbito do horizonte. Não se via sinal algum de terra, porque a névoa cobria já a água e o Céu, depois que pela vizinhança se meteram debaixo dela. À vista de tão notável confusão, e quase nas mãos do perigo, se levantou um público clamor, requerendo a João Gonçalves: «Que arribasse e não quisesse tomar por sua conta, o dano de tantas almas.» Porém ele, por fazer mais justificada sua constância que o receio a que a voz pública o induzia, chamando ao convés do navio os marinheiros e soldados, lhes falou desta maneira: ÄB"‡   < „ ` ð ð Ì ˆ ô ð ð ð ð ¨ ` Ì ` „ ð ð ð ð ô ¨ ¬ ¨ ð < ð ð  ¨ Ì Ì „ ¨   ð   ð Ð ` Ì ð ¨  ð Ì ¨ ¨ A#-” › xÿÿ"åæ «E quem vos disse a vós, amigos e companheiros, que não amava eu minha vida como vós outros as vossas? Eu, certo não fui o que vos persuadiu, porque seria prezar-me falsamente de maior coração dos que vos vejo, os quais eu conheço bem desde os perigos passados, quando vencendo-os convosco, alcançámos para todos honra e prémio. Se agora ouso mais do conveniente, é porque vos levo comigo. Pois porque vos tendes vós em menos conta daquela em que eu vos tenho? Conhecer o risco em que estamos, e o risco a que podemos ir, vos louvarei muito; porque assim se verá no mundo que, não acaso, mas de propósito, atropelámos mais que humanas dificuldades. Não estranho o fim de vosso temor, os meios do remédio dele, só vos não aprovo. Senão, dizei-me: Com que justiça podeis vós outros lograr a glória que, entre as gentes, vos está esperando, se, a troco dela, não entrásseis aventurando as vidas? Não sabeis que os mercadores, quando não arriscam, não podem ganhar licitamente? Quereis ser maiores que nossos iguais na fama, sendo iguais com eles no repouso? Essa é usura de falsa reputação. A que saímos, dizei, de nossa Pátria? A que nos mandou aquele que temos por senhor? Para que nos honra? Para que nos sustenta? Para que fica sendo pai de nossas mulheres e filhos? Para que se constitui fiador de nossas obrigações? Ajunta-se tudo isto, porventura, para que deixemos no melhor, em vão, seu serviço e desejo? Ora olhai, senhores, como a vida é uma só, é uma só a morte; logo, sem razão temeis mais os elementos que os homens; porque nem os elementos vos matarão duas vezes, nem os inimigos, quando possam, deixarão de vos tirar uma vez a vida. Que mais alivia, a quem a perde, ser pelouro ou de espada seu homicida? O cutelo de ouro, na mão do algoz, não será cutelo? Da própria maneira, se vos não negais a oferecer a vida por Deus, pelo Príncipe e pela Pátria, contra seus émulos, que mais cruel vos será o ar ou a água de que agora temeis, que a lança ou a frecha inimiga a que andais oferecidos, se tudo vos traz a morte? Pesai ora um pouco em vosso juízo, a diferença com que entraremos pelas portas de nosso Rei, e Infante, dando-lhe razão de ter já por nossas mãos, sujeitas a seus pés, novas províncias, ou não lha dando mais que do vil temor com que, desistindo da empresa a que nos mandou, lhes desobedecemos. Em verdade, amigos, que neste caso os perigos se trocariam, porque fugindo nós deles, e cuidando os deixávamos atrás, eles nos perseguiriam até nos aparecer lá adiante: e então seria bem mais miserável cousa, morrer lá da injúria que aqui da desgraça. Tende, tende por certo que, vencido este receio que agora nos oprime, todos os inconvenientes se têm facilitados. Nunca a noite é tão escura como quando quer amanhecer. A força desta confusão que agora nos cerca é o maior sinal da felicidade a que já estamos vizinhos. Passemos animosos, adiante, examinemos bem a verdade destes assombros, custem-nos mais que o receio, e o que até agora só é fantasia, seja experiência. Demos, do perigo, no escarmento; e quando, de todo, a sorte e a natureza se nos oponham, eu serei o primeiro que trate de vos salvar as vidas. Porém, vejamos antes com os olhos, quem nos ofende, e de que contrário fugimos.» ÄB",` ¨ ð „ < <  ð  ` ô   „ ð „ ð < ` ` Ì ð „ @ ð ð Ì ð   Ì ô „ `  ¨ ` ð Ì Ì  < ` ð ð Ì ð ô ¨ ¨ ¨ Ì „ ð Ì Ì Ì Ì ¨ `  ¨ ð „ „ ¨ Ì ð ¨ Ì ð  ` Ì ð Ì Ì `  Ì < ¨ ð „ ð Ð ¨ „ ð     ð „ ¨ < ð ¨ ` < ` ` „ ð ¨  Ð ¨ „ „  ` ð Ì  Ì Ì „ Ð A#¸ÀÇÿÿ"åæ Todos, com nova alegria, limpos já subitamente do temor passado, disseram: «Que estavam dispostos a morrer com ele e por ele. Que governasse, não só como Capitão dos homens, mas senhor das vidas e liberdades, porque a tudo lhe obedeceriam levemente.» O tempo se mostrava calmoso e, para que as correntes das águas não levassem o navio contra sua derrota, mandou João Gonçalves equipar dois batéis que rebocassem com força e diligência o navio e varinel: dando cargo destes reboques a António Gago e Gonçalo Luís, homens de conhecido valor e experiência. Com tal prevenção foram correndo de longo da névoa, levando por baliza o estrondo do mar, chegando-se ou desviando-se segundo ele era mais, ou menos.ÄB"F` `  ¨  < < ˆ  „ ð „ ¨ ¨ Ì „ ð Ì „ < d Ð Ì Ì „ Ì ` Ø A#Þå%ÿÿ"åæ Para a parte do nascente, não corria tão longe a neblina, nem se mostrava tão escura; porém, sempre as ondas bramavam, com espantoso estrépito. Assim prosseguia João Gonçalves sua viagem, quando entre a escuridão descobriram uns vultos ainda mais negros que ela. Não deixou reconhecê-los a distância, nem faltaram alguns (como de ordinário sucede onde muitos concorrem) que afirmassem haverem visto Gigantes armados, de temerosíssima grandeza. Entendeu-se depois que as penhas de que é guarnecida a terra, pelas praias, faziam semblante destas imagens que, confusa ou medrosamente viam aqueles navegantes. Achava-se já o mar mais claro e a água mais batida, verdadeiro sinal de costa que, pouco depois, com súbito alvoroço e sumo contentamento, se descobriu distintamente, vendo-se uma ponta de terra, não muito alta, a que João Gonçalves logo chamou Ponta de S. Lourenço, porque, como é uso, ia invocando o favor deste glorioso Mártir para que lhe conservasse próspero o vento que levava.ÄB"] Ì Ì  < Ì ¨ ` ð `  < „  ð Ð < „ ð Ì  ð  ð  Ì ¨ Ì Ì „ ¨ <  ¨ ð ð  Œ A#¦x<ÿÿ"åæ Notável cousa é o coração humano, poucas vezes persistente em um afecto, seja de gosto ou pena. Ver aquela facilidade com que se lança do prazer ao pesar, e da tristeza à alegria, fez com que muitos sábios o desprezassem. Contudo, se com melhor filosofia meditarmos nesta sua condição, acharemos que com grandíssimo cuidado a Providência nos dotou este atributo de que injustamente nos queixamos, porque quem pudera viver com o homem de coração imutável? Que força bastaria a domá-lo? Que razão a persuadi-lo? Se dentro em sua fraqueza, frágil e debilíssimo, concebe tão duras resoluções, que seria sentindo-se armado de um vigor firme e robusto? Esta foi a razão (com que já se confundiram alguns antigos) do mistério, por eles não alcançado, com que a Natureza negou ossos e nervos ao coração, concedendo-os aos outros membros humanos. Foi (como em tudo sábia, e, quando escassa, previdente) a fim de que se não achasse no coração do homem, matéria de própria fortaleza; para que, vendo-se dela necessitado, só viesse a recebê-la por mercê da razão, ficando-lhe assim sempre vassalo e obediente. Esta importância de afectos que com facilidade se transferem e se convertem uns em outros, nunca se acha tão expressa como nos homens que navegam: porque em uma mesma hora já se vêem na morte, já na vida, já na prosperidade, já na miséria. Agora prometem não tornar ao perigo, e logo se esquecem dele; ordenando assim Deus esta variedade de seu afecto, para ornamento e comércio do mundo: o qual fora impossível conservar-se se os homens se lembrassem sempre do trabalho, ou do descanso; donde já um sábio chamou Formosura da vida, ao esquecimento da morte.ÄB"–„ Ð „ ¨ ð Ì ¨ <  Ì   ¨ ð ¨ Ì Ì  Ì  ` Ì ` Ì ¨ Ì „  < ¨ Ì <  ð ð ð  ð Ì Ì Ì ô  ð ð ð ð ð  ð Ì ð ð „ ð ¨ „ Ì ð  A#'ÿÿ"åæ Dobrada a primeira ponta que se descobria para a parte do Sul, se viu logo a terra alta, povoada de espessíssimo bosque desde a eminência das serras até à falda do mar, recolhida por aquela banda um pouco a névoa, que só coroava os montes. Aqui se confirmou o prazer e se despediu, de todo, a desconfiança, vendo-se como tudo o que já se via era terra natural e verdadeira. Abraçaram-se uns a outros, e todos (havendo a Deus rendido graças) as deram ao Capitão, por os animar a fim tão glorioso, e ao piloto, por os haver guiado a ele. Quem em mais tivera os perigos, agora mais os desprezava. Pouco depois se foi vendo uma Baía grande, a qual, reconhecida de João de Morales, entendeu logo ser o Porto dos Ingleses, que até então toda esta terra por este nome era demandada. Chegou ainda com dia, João Gonçalves, a surgir nele, mas porque o Sol se transpunha, ordenou que com grande vigilância se passasse a noite. O sono é um baixio que não está nas cartas dos mareantes, em que mais naufrágios têm sucedido que em nenhum outro que nelas esteja.ÄB"bð ð `  ð ¨   ð ¨ ô Ì ¨ ð ð  Ì   Ì  Ì ð ð ð Ì „ ` ¨  Ì  `  <  Ì „ ü A#åt{!ÿÿ"åæ Rui Pais, o dia seguinte, em seu batel armado costeou a terra, de ordem de João Gonçalves que dele fiava muito. Toparam a mesma rocha a cujo pé desembarcou Roberto; e, guiados de alguns sinais que João de Morales trazia em lembrança e confirmaram por ali, não poucos gastados vestígios, caminharam por entre o mar e o arvoredo, achando alguns troncos feridos do machado, e outros rastros certos de que a terra fora já pisada de homens. Passaram adiante, quando como atalaia de toda a floresta se empinava a grande Árvore, aqui nomeada tantas vezes. A uma parte e a outra se viam as duas agrestes sepulturas saudando-se com igual saudade. As Cruzes e os Epitáfios confirmavam o primeiro testemunho, cuja vista, ainda que já prevenida das notícias, produziu logo em todos piedosíssimas lágrimas. Disse o Séneca: "Que entre os parentescos dos homens, era o primeiro grau a humanidade.» ÄB"Sð ¨ < ` ð ô  ¨ ô ` ¨ ð ¨  ð „ „   Ì ð ` ¨  < „  Ì  „   Ô A#ûÉÐ%ÿÿ"åæ Voltaram-se o próprio dia, dando a João Gonçalves a última certeza de quanto o piloto havia prometido. Então propôs sua desembarcação, que executada com a cautela e solenidade possível. tomou logo posse de aquela Ilha, ou terra firme fosse, por el-Rei Dom João de Portugal, e pelo Infante Dom Henrique, Ordem, Mestrado e Cavalaria de Cristo. Foi então com as cerimónias católicas, benta aquela água por dois Religiosos e, com ela purificado o ar e a terra, invocando a Deus com preces e rogativas santas, ordenou-se o verdadeiro altar, consagrando-se com o alto sacrifício da Missa; e foi levantado em o próprio que Roberto e Ana haviam erigido, fazendo-se ao Céu particular comemoração de suas almas. E sucedeu, com alguma proporção, ser feita esta nova visita do Senhor e aquelas montanhas, o próprio dia que a Igreja celebra a Visitação de Santa Isabel, a quem a Virgem Santíssima foi buscar, e nela o Verbo Encarnado, também às montanhas de Judeia, outro tal dia. ÄB"]¨ ` ¨   „ ¨   ð ð < ` Ì Ð ô ¨  ð ¬ „ ¨ ¨  ð ð ¬ „ < ð ¨ ð ð  Ð ¨  D A#u±¸ÿÿ"åæ Mandou depois João Gonçalves que a sua gente cingisse tudo o que estava descoberto, por todas as veredas que se achassem, até ver se se encontrava alguma povoação ou rastro de gente e animais, procurando trazer-lhe qualquer que fosse visto, vivo ou morto; mas sendo executado, com nenhuma outra cousa se recolheram os descobridores que com alguns pássaros de diversas maneiras que, sem algum trabalho ou indústria, às mãos tomavam. ÄB"(ð  ð < <  ¨ ô „ ` ð  ð  ¨ ð A#Íÿÿ"åæ Rico, a seu parecer, deste fácil despojo, se tornou ao navio João Gonçalves, donde, chamado a conselho, se assentou: «Não voltasse ao Reino sem que se visse mais particularmente O restante da terra, pois o tempo dava lugar para que assim se fizesse.» E porque a falda da marinha toda era fragosa, foi de parecer João de Morales, como homem prático: "Que da banda do mar, e dentro da água, poderia ter o próprio defeito, pelo que seria mais conveniente prosseguir (como até então se tinha usado) a descoberta em batéis, que não em os navios, livrando-os, desta sorte, dos perigos dos baixios e correntes que podiam acontecer em costa não conhecida.» Assim foi feito, tomando João Gonçalves para sua pessoa e companhia, o batel do navio, e dando cargo do outro, ao Capitão Álvaro Afonso. ÄB"I¨ Ì ð  ¨ Ì  ` <   Ì Ì „ Ì ð ð Ì  ¨ ð <  ð Ì „  Ì   A#Dð÷Wÿÿ"åæ Passada uma alta ponta que demorava ao Poente, se viam entrar juntas no mar quatro famosas ribeiras de água puríssima, de que João Gonçalves fez encher logo algumas vasilhas, porque desta tal água se mostrava o Infante Dom Henrique tão sequioso como o Santo Rei David, das águas da Cisterna de Belém: não conduzida com maior risco de seus Vassalos, à sua presença, nem esta, pelo Infante, menos a Deus sacrificada. Passaram avante a descobrirem um vale que outra ribeira fendia graciosamente; mandou reconhecê-lo por alguns soldados que só de fontes o acharam abundante. Seguiu-se outro de formoso arvoredo e, como em lugar de batalha que o tempo lhe tinha dado, se viam sem ordem, derrubados grossos troncos de árvores esquisitas. Dos quais, ordenou o Capitão, se levantasse uma altíssima Cruz, com que deu nome a aquele sítio: Santa Cruz. Seguindo a costa, lhe saíram de uma língua de terra, que mais que as outras se lançava por entre as ondas, tantos bandos de aquelas importunas aves, a que os Latinos chamaram Monedulas, por sua condição cobiçosa, Graculus também, donde nós Gralhos, de que a gente pareceu mal segura, segundo sua fome e multidão. Esta foi a causa de que aquela ponta fosse nomeada como os próprios pássaros que a habitam, nome que ainda lhe dura. Outra se divisava logo, como duas léguas mais abaixo, abrindo-se entre a que se deixava e a que se descobria, uma formosa enseada, cingida de terra, menos soberba, a que um igual arvoredo servia como de Coroa; cujas mais altas pontas significavam os cedros que, de quando em quando, se erguiam sobre as outras árvores, quase em proporcionados termos, certificando assim o que dos Cedros disseram os antigos: «Que onde os há, sempre excedem a quaisquer plantas de seu contorno»; donde foram comparados aos soberbos, ou símbolo deles, conforme se lê no Sábio: «Vi o injusto levantar-se como os Cedros do Líbano, e quando tornei a passar, já de ali havia desaparecido.» Porque desta árvore tão arrogante, afirmam os naturais: «Que traz sempre duas raízes à superfície da terra», e os moradores de nossas Ilhas assim o confirmam: nas quais eles crescem em grandeza e bondade, avantajados aos antigos da Síria. Contudo, seu cheiro e incorruptibilidade os fazem célebres entre as famosas árvores que no mundo se conhecem. ÄB"Ú¨ Ì Ì `  „ ` ð ` „ ð Ì  „ ¨ ð „ Ð ô < Ì ð ð ð ¨ ¨ ¨  ô ` ` „ ð Ì  ¨ ð  Ì Ì  < ¨   ` ð ð ` ¬ „  ð ¨ ð „ ð ` Ì `  ð Ì < Ì  Ì  <  „ < Ì   Ì „ Ð „ ô ` ¨  ° Ì „ <  h A#¯š¡ÿÿ"åæ Desta enseada dos Cedros foram passando a outro vale, do qual procedia uma lage que, entrando no mar como um natural e capacíssimo cais, apercebia fácil desembarcação do mar à terra; de que, convidado, João Gonçalves ordenou que Gonçalo Aires a experimentasse, desembarcando em aquele vale com bom número de soldados: para que, penetrando mais o sertão do que até ali fora feito, pudesse trazer as últimas notícias do que havia pela terra dentro; mas Gonçalo Aires voltou brevemente, sem outra informação que haver visto como o mar cercava toda a terra, donde se acabou de conhecer que ela era Ilha e não Continente de África, como a alguns até então lhes parecia. ÄB"?` ð „ ð Ì  < „ Ì    Ì < „ ¨ „ ð ¨  Ì Ì „ ð  D A#acj5ÿÿ"åæ Ainda assim se não deu o Capitão por satisfeito, entendendo que porventura a Ilha podia ter alguma povoação mais apartada, pelo que procedendo com sua viagem, sempre arrimado à terra, descobriu um espaçoso campo, despejado do importuno bosque que por qualquer parte se encontrava. Via-se todo coberto de viçosíssimo funcho: medicinal erva até para as serpentes, das quais se escreve não podem sem esta mezinha mudar a pele antiga com que se remoçam; que a ser concedida para os homens, fora de singular preço: Marathen lhe chamaram, sublimando-a, os Gregos; Faeniculum, os Latinos; donde nós, Funcho. Da quantidade dele, que neste campo se levantava, tomou nome: Funchal, há muitos anos celebrado, pela Cidade ali edificada, com o próprio nome Metrópole da Ilha, e que no foro espiritual o foi já de todo o Oriente. Os Portugueses antigos, com grande diferença das outras nações conquistadoras do mundo, mostraram a singeleza e pouca ambição de seus ânimos nos nomes que deram às terras de seus descobrimentos, não lhes mudando os que tinham, e se de novo lhos impunham, eram aqueles que a natureza, não a vaidade, lhes oferecia. Procediam deste vale do Funchal ao mar, três caudalosas Ribeiras e, defronte dele, na boca da praia em que se rematava, se erguiam dois Ilhéus que como guarda-ventos ou biombos de aquele lugar ameno, para seu reparo tinha ali prevenido a natureza. ÄB"…` < Ì ô ð  „ ð   ¨  ¨ ð  Ì  „ <  `  ¨ `  < ¨  Ì Ì ˆ ` Ì ` ð <  ø ` Ì Ì  < < Ð  „ ð ð Ì ð ð  h A#R&- ÿÿ"åæ Nestes Ilhéus tomou abrigo para suas embarcações, João Gonçalves, e neles água e lenha de que já se via falto. Porém, debaixo de toda a paz e segurança que via, como esperto Capitão, nunca consentiu que seus soldados dormissem alguma noite em terra, enquanto ela de todo não estivesse sabida. ÄB"¨ Ì „  ð „  Ì „ Ì  A#)ƒŠ,ÿÿ"åæ O dia seguinte, fazendo a mesma derrota, chegou a ver a última ponta que para o Sul havia divisado. E nela mandou logo arvorar aquele santíssimo Padrão da Cruz que em todas as partes, por ordem e devoção deixava levantado. Dobrada esta ponta, apareceu uma praia que por sua capacidade e mansidão das águas que nela quebravam vagarosamente, chamou Praia Formosa. Passando mais abaixo, entre duas pontas, desaguava uma furiosa corrente, mas de tão claras águas que brindaram a curiosidade de alguns que lhe pediram licença para ir vê-la. Concedeu-a o Capitão a dois soldados de Lagos que ele muito prezava. Os quais, desprezando o vão e mais as vidas, quiseram passar a nado sua torrente, que de novo assanhada, parece, de tanta ousadia, arrebatou os mancebos; e de tal sorte os levou, já sem acordo, que a não serem dos companheiros prontamente socorridos, logo ali pereciam. Deu este sucesso ocasião a que aquela Ribeira se chamasse dos Acorridos, como nossos antigos pronunciavam, e nós hoje, dos Socorridos, com mais decente memória que a célebre enseada dos Agravados, de que no mar de Arábia (também por outro sucesso) fazem menção nossas histórias. ÄB"n„  Ì  ¬   ð ð ô „ ` Ì  ¨ ô Ì ô  <  ¨ ð Ì  „ Ì ô Ì Ì ¨ ð  ð <  Ì „ ¨ ¬ Ì ` ð  Œ A#9ÄË-ÿÿ"åæ Pouco adiante se mostrava uma rocha delgada, que mais que as outras se erguia, abraçada de um braço do mar (ou já seja rio) que por entre o outeiro e a rocha se intromete fazendo largo remanso. Recolheram-se ali os batéis, parecendo-lhe o Capitão que porventura aquele lugar guardasse maiores segredos que os passados, porque a marinha toda se estava vendo sovada de pés de animais, o que até então, em nenhuma outra parte haviam achado; porém cedo foram desenganados desta novidade, começando a saltar na água, com grande alvoroço, muitos lobos marinhos (de tão espantosa como estranha presença) desde a concavidade que se fazia, pela falda do monte, na qual se formava uma lapa grande, à maneira de câmara, lavrada pelas ondas (que furiosas batem na terra) com bárbara arquitectura: donde aqueles animais tomavam recreação e faziam vivenda; da qual câmara dos lobos que nela foram descobertos, porventura à maneira que em Roma, os Germânicos e os Africanos, pelas Províncias que trouxeram ao Império, veio quase insensivelmente o apelido de Câmara de Lobos, a João Gonçalves, que depois deu nome a sua família e descendência, hoje entre nós não só conhecido, mas ilustre, segundo mostraremos, pelo que dele nos cabe. ÄB"q Ì  „ „ Ð <  <  < „ `  ð ¨ ` ð Ì Ì  <  Ì  „ Ì  „  Ì ð < Ì ` Ì „ ð  ¨ ` ð ô  ` A#änu!ÿÿ"åæ Aqui se tornava a cerrar tanto a névoa com o mar, se erguiam tanto os rochedos e se multiplicava o estrondo das águas, que parecia impertinente audácia, sobre o passado, aventurar a um ruim sucesso todos os bons que se haviam conseguido desta jornada. Determinado o Capitão, e noticioso de quanto a Ilha continha, se recolheu aos Ilhéus onde deixara surtos seus navios, e, dentro de poucos dias, preparado de água, lenha, aves, plantas, ervas, terra, e todos os outros sinais que pode haver, e ao Infante seriam mais agradáveis, se voltou para o Reino, aonde com próspera viagem chegou pelos últimos de Agosto do mesmo ano. Mas sabendo que o Infante Dom Henrique o esperava na Corte de el-Rei seu pai, sem fazer demora no Algarve se partiu a Lisboa em cujo porto entrou, sem haver perdido navio ou homens, e havendo ganho para este Reino a melhor Ilha do Mar Oceano Ocidental. ÄB"S` Ì Ì ¨   ð ð <  < ¨ ` Ì „ „ ð ð ` ¨ ¨ ¨ ¨ ð  Ì ð  ð ¨  Ì  Œ A#äpw!ÿÿ"åæ El-Rei e o Infante receberam a João Gonçalves com suma alegria, a qual, dos sinais de seus generosos peitos, resultou a todo o Povo. Deram publicamente graças a Deus pela mercê que lhes havia feito, descobrindo-lhes novas terras e mares que sujeitar a seu bendito nome. Depois desta solenidade, pareceu conveniente ouvir a João Gonçalves, em audiência pública, para que os Embaixadores e Estrangeiros que frequentavam a Corte Portuguesa pudessem fazer maior conceito desta acção, comunicando-a a seus Príncipes e nações: arte que entre os grandes Monarcas sempre foi observada: dissimular igualmente as ruins novas de seus sucessos, e inculcar as boas. Da qual arte não devia de ter notícia, certo ministro de papéis do nosso tempo que, com importuna cifra, remetia a relação das prosperidades do Estado, ao Embaixador que assistia na Corte do Rei de quem estava mais dependente.ÄB"Sð „ Ì „  ¨ „   ` „ ` < Ð Ì ` „ Ì Ð ð „ ô `  Ì ô ¨ ¨ ð Ì ð Ì ð A#‡ùÿÿ"åæ Chegado o dia da audiência, e presentes todas as pessoas Reais e os primeiros senhores do Reino que então concorriam na Corte de Lisboa, os Embaixadores, Ministros e Criados, com toda a pompa decente entrou na sala João Gonçalves, acompanhado das pessoas de maior conta de sua Armada; e posto de joelhos diante de el-Rei (segundo nosso antigo uso) lhe beijou a mão, com os mais que o seguiam; e feito ao Infante Dom Henrique o acatamento conveniente, sendo por el-Rei mandado alçar, falou desta maneira: ÄB"0 ¨    „ „ Ì ¨  ¨ „ ð ` Ì „  ¨  D A#/ 6 tÿÿ"åæ «Contar-vos, Senhor poderosíssimo, os trabalhos que passámos nesta peregrinação prolixa, ainda que breve, por mares nunca vistos e terras nunca descobertas, fora em algum modo preze r os serviços que nela vos fizemos; mas eles, posto que grandes, já não têm valia junto da mercê que nos estais fazendo, folgando de nos ver e ouvir em vossa real presença: honrai-nos menos, poderemos dizer mais. Agora tudo parecerá inferior à nossa obrigação, ainda que se creia ou se estime por maior que nossas forças, o que havemos obrado. Aqui vejo eu, com quanta providência a natureza escondeu aos passados, seus segredos, reservando para vós a chave deles. Do vosso nome deu o nome, para que a esse sinal se vos descobrissem novos mundos: esperava que só a quem como vós, com fortaleza os havia de defender, com justiça os havia de governar, com felicidade se houvessem de descobrir. Esta terra que agora vos achamos, não é, Senhor, mais que uma amostra das que para vossa Coroa tem guardado. É a primeira pousada que aparelha à larguíssima viagem de vossos descobridores. Não pode ser mais certa a palavra que se vos dá, da dilatação deste Reino, que haver-vos Deus dado por filho o sereníssimo Infante Dom Henrique, o qual, como dedo índex da mão do Altíssimo, está apontando as veredas do universo (às mais nações incógnitas) por onde vossos Vassalos caminhem a conduzi-lo a vossa obediência. Nós, porventura, que fizemos, senão obedecer seu recado e crer seu aviso? Ele mais nos descobre que nos manda. Seu despacho é nossa guia; já não imos a buscar regiões, mas a trazê-las: não a achá-las, mas a ensinar-lhes o caminho por onde hão-de vir a vós. Tanto mistério, tanta verdade encerram os preceitos do Infante vosso filho. Prezem-se embora os outros Reis do Mundo, de que suas gentes vençam outras gentes, porque nunca poderão justamente medir sua glória com vossa glória, seus triunfos com vossos triunfos. Conquistaram os Gregos aos Persas, e os Romanos aos Gregos; porém, os Portugueses, em vez de estados conquistam elementos. Às vossas quinas se ajoelham as ondas do temeroso Oceano, e os ventos não se atrevem a desenrolar por mal. vossas bandeiras. Abrem-lhe por seus golfos respeitoso caminho, como acabamos de ver, todos os que aqui vedes. E se acaso em tempestades e dilúvios se mostram ousados, é só para que se veja quanto poder, quanta força depõem em vosso obséquio. Chore Alexandre a falta de Mundos sobre que estenda sua soberba, que se o Mundo não responde à vaidade de sua ambição, é porque quer satisfazer a temperança de vossa modéstia; para vós se faz maior na posse, do que foi para ele no desejo. Isto merecem ao Céu, os Reis que não pretendem alargar sua grandeza estreitando os Reinos alheios. Merecem, como em vós estamos vendo, que o Céu lhes alargue as costuras ao Mundo, para avantajá-los aos mais, com seus acrescentamentos. Ditoso vosso aumento, que a ninguém diminui: estranho, certo, mais no modo que no efeito, porque crescer sem a injúria alheia, ainda é mais raro que ser grande. Grande vos fizestes, sem fazer nenhum, pequeno; por essa razão, durará vossa grandeza, porque é própria.» ÄB""¬ Ì ˆ Ì ¨ ô ¨ ð Ì  ð Ì  Ì Ì `  ð `  ` ô ` Ì ¨ Ì „ „ ð „  Ì ð „ ð ð   ð Ì Ì ¨ „ ð  „ ð ð Ì ¨ ˆ ð Ì ð  Ì ¨  d ¨ ð < ` Ð ¨ ¨ ð Ð Ì   ¨ ` d   ð ð ð ¨  ¨ Ì  ð ¨ „ ð Ì „  ð  ¨ Ì ¨ ð Ì „ <  Ì ð Ì ˆ ` ð „ Ì ð   Ì `   ° A#—:Aÿÿ"åæ Então referindo particularmente, e mais particularmente respondendo, informava a el-Rei e ao Infante: Da bondade da terra, sua capacidade, sítio e formas; da verdadeira história dos Ingleses (que já pelo piloto João de Morales fora inculcada, mas agora, com os sinais, infalível); da paz e abundância da Ilha, à qual el-Rei logo ali deu nome: da Madeira, segundo a quantidade de imensos bosques que lhe referiam haver nela, e grossos troncos de madeiros estranhos que João Gonçalves fez apresentar a el-Rei e ao Infante, com tudo o mais que da nova terra havia trazido.ÄB"5 < ð <  < ô  Ì ¨  Ì ` Ì  ð  ð ð ð ð A#¡cj=ÿÿ"åæ Pouco depois, foi ordenado que no Verão seguinte (porque o presente estava já no fim): Tornasse João Gonçalves à Ilha da Madeira, com título de Capitão e povoador dela. Ao qual hoje acrescentam o de Condes, àqueles que possuem seu morgado. Houve a jornada efeito, em Maio de 1421. Concedendo-lhe el-Rei: Pudesse levar do Reino, além das pessoas que lhe parecesse, que com ele fossem voluntárias, todos os criminosos e os condenados que houvesse. Porém, João Gonçalves, com nobre advertência, não admitiu a sua companhia nesta segunda viagem, a algum homem que, de culpa ou acusação feia, estivesse notado. Desta sorte, aprestado com sua mulher Constança Rodrigues de Sá, a quem outros dizem de Almeida, e João Gonçalves, seu filho herdeiro, Helena e Beatriz, suas filhas que depois casaram nobremente, saiu de Lisboa e chegou em breves dias à Ilha, já dita da Madeira, lançando ferro em aquele próprio porto que até então se chamava o dos Ingleses; ao qual, João Gonçalves, por memória e honra de Roberto o Machino, seu primeiro descobridor, deu nome: Porto do Machino, que depois vulgarmente se disse Machin, e Machico, como hoje se nomeia, pelo vício que em nós há, de pronunciar curvam ente a letra K, dizendo sempre Cha em lugar de Ca, quando o H sucede ao C; a que os Latinos deram ocasião, suprindo o carácter próprio dos Gregos, K, com estas duas letras C, H, porque do K grego só usam em duas dicções, Kalendas e Kirios, e nossos vulgares em nenhuma, escrevendo Monarchia e Chiromancia, com os mais semelhantes sempre por as letras C H, dizendo somente Monarquia e Quiromancia: observação que os rudes estragam ou desentendem.ÄB"™¨   „ Ì Ì  Ì ð `  ð ¬  ô ¨ „ Ð ¨ Ì  < < `  ¨ ¨ ð ` ¨ ¨ Ì  ð  < ` Ì  Ì Ì ð ð ð < ¨  „ Ì  ` ô  Ì  ` „ Ì ` < ` A#Œ ÿÿ"åæ Saindo João Gonçalves em terra, como o melhor edifício que se consagra à esperança seja aquele que abre seus alicerces em o agradecimento, a primeira cousa que fez foi traçar uma Igreja da invocação de Cristo Salvador, como em sua inscrição o Inglês Roberto instantemente pedia aos futuros habitadores. Para este efeito se cortou a notável árvore que cobria o Altar e sepulturas, e o novo Templo se fabricou em tal modo que a Capela teve por pavimento os ossos dos dois desditosos amantes, só nessa ocasião bem-afortunados. ÄB"2`  Ì „  ð Ð  < ð d  ¨ Ð Ì  ð „ „ d A#*1)ÿÿ"åæ Passou-se logo ao Funchal, porque para reparo das embarcações, eram, como dissemos, os Ilhéus mais acomodados que a costa; e, parecendo-lhe, pela abundância da água e formosura do vale dos funchos, este sítio mui idóneo de povoação, deu nele princípio à Cidade do Funchal que em breve fez ilustre; cujo primeiro Altar ofereceu a Deus sua mulher Constança Rodrigues, matrona piedosíssima, debaixo do orago e patrocínio de Santa Catarina Mártir; contra o que (não tão bem informado como costuma) escreveu João de Barros, em sua primeira Década da Ásia, antepondo a esta fundação, a de outras duas Igrejas. Da mesma sorte, é força que duvide do incêndio que, ele afirma, durou sete anos por toda a Ilha. Ao que, parece, implicam os bosques que sempre nela permaneceram, dos quais há tantos anos se cortam madeiras para fábrica dos açúcares: de que, dizem, chegou a haver na Ilha cento e cinquenta engenhos que mal poderiam continuamente sustentar-se, depois de um incêndio tão universal, e menos produzir-se depois dele: mas fique sempre salvo o crédito de tal Autor. ÄB"g¨  < ` ¨ ¬ Ð ô < ð  „ ð Ì ˆ ` Ì  Ì „ < Ì ¨  ô „ ¨ ô <  < ð ð ð ð  ¨ „ ` ð ` A#“,3ÿÿ"åæ Morto el-Rei Dom João, e considerando seu sucessor e filho, el-Rei Dom Duarte, os grandes dispêndios que o Infante Dom Henrique, seu irmão, havia feito do descobrimento, povoação e cultura da Ilha da Madeira lha doou pelos dias da sua vida. Foi feita esta mercê em Sintra, a 26 de Setembro de 1433. Depois pelos próprios respeitos, como Príncipe religioso e magnânimo que el-Rei Dom Duarte era, concedeu à nossa Ordem de Cristo a perpétua jurisdição espiritual; que, correndo os tempos, também depois confirmou el-Rei Dom Afonso Quinto, em o ano de 1439. ÄB"5` Ì ð ` „ ô „ ¨ ¨  Ì Ì ` „  „ ð ð ô Ì ¨ A#Íÿÿ"åæ Tanta era a benignidade e atenção de nossos Reis, para aumentar a honra de seus vassalos, que com grande estudo tratou el-Rei Dom João de ilustrar de novas armas, o apelido, pessoa e descendência de João Gonçalves, nem faça novidade que lhe mudasse o brasão, vendo os exemplos em os próprios Reis Portugueses, cujo primeiro escudo, sendo uma Cruz somente, se trocou ao que hoje vemos, com não pouca variedade, pelo discurso dos tempos. Mandou el-Rei que «João Gonçalves tomasse, em memória da Câmara dos Lobos que ele descobrira, e que então se tinha por lugar mais sinalado em toda a Ilha, uma torre de prata coberta e rematada em uma Cruz de ouro, e dois lobos de sua própria cor, em pé, rompendo contra a torre; verde o campo do Escudo», que tais são hoje desta família, as armas. ÄB"K„ ð ` `   d Ð ð „ < ¨ Ì Ì ¨ ô Ì ¨   `  ` „  < `  ð  h A#1¡¨,ÿÿ"åæ Da própria sorte que elas se mudaram, se acrescentou também o apelido, ajuntando ao de Gonçalves, que não perderam, o de Câmara, dizendo-se Câmara de Lobos ao princípio, que depois foram deixando. Achei em Castela este apelido na Cidade de Guadalajara e seus contornos em pessoas de muita nobreza, mas não pude averiguar com que origem, ou se dos Câmaras de Portugal o haviam recebido. Ele, entre nós, teve logo em seu começo o cuidado dos Reis, não só para o favorecer, mas para guardá-lo; porque, sucedendo que Simão Gonçalves da Câmara, filho do segundo João Gonçalves, segundo herdeiro da casa, porque não nasceu primeiro e a herdou por morte de seu irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara, continuou, depois de herdado, a se chamar Simão de Noronha, como antes de herdeiro se chamava (por ser filho da Dona Maria de Noronha, que fora filha de Dom Diogo Henriques, filho bastardo do Conde de Gijão, Dom Afonso) lhe mandou el-Rei Dom João o Segundo: «Que se chamasse da Câmara, com seus passados, ou deixasse seus bens a seu irmão, que estava prestes para conservar seu apelido.» Como se lê na Crónica de aquele Rei, não sem causa, de nós e do mundo chamado: Príncipe Perfeito. ÄB"nð < Ì `   Ì ¨ „ ð ð ¨  Ð „ „  ô ð   Ì ¨   Ð   „ „ ¨ < ð Ì ð ð  ` „ ð `  < ¬ A#ÚF M lÿÿ"åæ Mas por dizermos tudo, diremos que acerca da Pátria de João Gonçalves da Câmara, há dúvida entre os Genealógicos; porque uns o fazem natural de Tomar, outros de Portalegre, alguns de Matosinhos, com que parece conformar-se seu casamento, que foi com a filha de Rodrigo Anes de Sá, senhor da terra de Almoim e Gaia, e do Castelo da Feira, vizinho, e herdado daquele distrito. Não poucos cuidarão ser de Entre-Douro e Minho, parecendo-lhe que o sobrenome Zarco podia ser Arco, ou Arcos, corruptamente dito; mas alguns Nobiliários antigos dão a entender, como cousa certa, que o cognome Zarco, ou Zargo, era alcunha, procedida da cor dos olhos porque, aos azuis-claros em demasia, chamamos desta maneira. Outros querem se lhe transferisse o apelido Zargo, havendo morto em África um Capitão Mouro deste próprio nome. Porém, os que duvidavam da Pátria sempre foram conformes em seu nobre nascimento, que ilustrado de copiosa e clara sucessão, nada vemos que lhe falte para constituir a João Gonçalves um varão famoso entre os nossos; porque, não contando as casas mais antigas de que por incertas não fazemos memória, poucos homens havemos tido em Portugal, de tão opulentas descendências, a quem devem sua Baronia, três Condes deste apelido: Calheta, Vila Franca e Atouguia, suposto que o último, por possuidor de alheios morgados, o não use. A casa de Abranches e Câmara, que em tudo pode igualar-se às titulares e se acha hoje guarnecida de grandes postos e fazenda, tem a própria baronia. E, por casamentos, procedem de João Gonçalves 21 títulos deste Reino (como bem podem averiguar os curiosos linhagistas), que são: Feira, Cantanhede, Serém, Santa Cruz, Óbidos, Castelo Melhor, Vidigueira, Vila Nova, Sortelha, Tarouca, Penaguião, Ericeira, Unhão, Vila Pouca, Basto, Atalaia, Sabugal, Palma, Abrantes, Figueiró, e hoje em Castela, Torres Vedras; com todos os segundos e descendências destas nobilíssimas casas. E das que não são titulares, têm de João Gonçalves a própria descendência: a casa dos Alcáçovas, a do Marechal, a do Almirante, os herdeiros do Porteiro-Mor, os do Alcaide-Mor e Comendador de Castelo Branco, a do Morgado de S. Vicente, a do A1caide-Mor de Lamego. Até vós, senhor, tendes em vossa casa, o herdeiro da de vosso pai e avós, neto também de João Gonçalves. E porque em suas cousas não pareça inválido meu testemunho, é razão que eu me conte em a própria lista de seus sucessores, não com menor obrigação que alguns que tenho referido: pois, tirando os que possuem os morgados de suas baronias, sou eu quem goza o maior morgado da família dos Câmaras, instituído por Antão Rodrigues da Câmara, que foi materno avô de meu avô paterno; e neto de João Gonçalves da Câmara, filho de seu segundo filho, Rui Gonçalves, senhor da Ilha de S. Miguel, onde fundou (mas não menor) a segunda casa titular deste apelido, e onde Antão Rodrigues da Câmara ficou bem herdado. ÄB" ð ð ˆ ¨ < ð  Ì   ð ð   Ð  ` ¨  ð ¨  ¨ Ì <   ¨ Ì    ð „  Ì ` ð ð `  ð ð „ ¨  < ` ð  Ì Ì ð ` Ì   Ì  `    ð ` ð <    „ ` ` Ì  ¬ Ì ð ¬ ¨ ð ð ¨ Ì  ¨ ¨ ô „ `   ¨ < Ð Ð ð  <   ð Ì „  „ ¬ A#ç|ƒ!ÿÿ"åæ Agora vereis, Amigo, (se cá tanto adiante vos deixarem chegar, por esta leitura, a ocupação ou o enfadamento) como sem necessitarmos dos exemplos de alheias histórias (como vos propus no princípio desta) achamos mais certas e vizinhas, dentro de nossa casa aquelas de que podemos receber doutrina e exemplo. Nesta fácil pintura, sem os retoques da erudição antiga, se nos representou vivamente o perigo de um Amor desordenado; a variedade de uma Fortuna violenta, cujas notícias melhor nos despedem que persuadem a outra sorte semelhante: porque cegamente ousará aquele que, em suas demasias esperar a ser mais ditoso que os que por elas se perderam. De outra parte, se está vendo o valor e constância de um Capitão excelente, coroado de ilustres prémios de interesse e glória; a excelência de Príncipes magníficos; e, como no serviço dos Reis, apesar de toda a oposição, é certo o aumento. ÄB"SÌ ¨ Ì ¨ ¨   ð „ Ì Ì Ì ð ð ¬ Ì Ì ð Ì ð ¨ Ì  ð Ð ` ô  „  Ì   D A# ÿÿ"åæ åæÄB" ‚ ‚