Era uma vez uma Praia AtlânticaJDµèI>I>BOOKMOBI ®(®8®H®X®h®x®ˆ®˜®¨®¸®È®´ MOBIýéYlÒ€ Era uma vez uma Praia Atlântica

Era uma vez uma Praia Atlântica

by Sophia de Mello Breyner

Era uma vez uma Praia Atlântica

Sophia de Mello Breyner

© 1996, Sophia de Mello Breyner e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-80-4

Lisboa, Março de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

ERA UMA VEZ UMA PRAIA ATLÂNTICA

Um duro Atlântico, turvamente verde, com as quatro fileiras de ondas da maré alta sacudindo e desenrolando as crinas de espuma. Ou, às horas de maré vasa, o extático mar transparente, detido entre rochedos escuros onde as anémonas eram como pupilas deslumbradas e videntes.

Dos banhos nas manhãs de maré alta saíamos entontecidos e um tanto exaltados. Seguíamos com atenção o inchar de cada onda, pois éramos arrastados à rola se não mergulhávamos a tempo. O espraiar da água enrolava à volta das nossas pernas longas algas verdes, achatadas como fitas. A rebentação criava em nossa volta um halo de bruma e tumulto e habitávamos o interior dos pulmões da maresia.

Atrás de nós, e um passo atrás da orla da vaga, e recuando um passo quando a vaga subia, estava um povo de mestras, criadas e familiares que nos faziam sinais que não víamos e nos gritavam ordens e avisos que não ouvíamos.

Um pouco à frente, o banheiro Manuel Bote, vestido, com as calças arregaçadas, metido na água até aos joelhos mas molhado até à cintura vigiava a posição de cada banhista e algumas vezes nos ia buscar à boca da onda.

Nesse tempo da minha infância ele era já uma figura venerável.

A sua barba começara já a embranquecer, a sua valentia e a força da sua braçada pertenciam já ao mundo das histórias que se contam como lendas. Sabíamos que, na sua pequena casa ao. pé da praia, as paredes estavam cobertas de diplomas e medalhas que lembravam as vidas que tinha salvo. E nós próprios, no mar do equinócio, o tínhamos visto furar as quatro terríveis fileiras de ondas para puxar para terra o nadador incauto.

Mesmo envelhecido era um homem belo, alto, de ombros largos e costas direitas. Tinha os olhos de um cinzento nebuloso como o mar de Inverno mas, às vezes, um sorriso os azulava e então pareciam muito claros na pele queimada. A sua estatura, o seu porte de mastro, as suas veias grossas como cabos e os anéis da barba e do cabelo, a aura marítima que o rodeava, davam-lhe um certo ar de monumento manuelino mas, simultaneamente, tinha a beleza tosca e tocante de um barco de pescadores, construído com as mãos, pintado com as mãos e deslavado por muito mar e muitos sóis.

Era ele que marcava o fim do banho.

Do Atlântico frio mesmo quando agitado saíamos quase sempre gelados e felizes, a bater os dentes, com a ponta dos dedos branca, os beiços roxos.

Então corríamos para as barracas de madeira onde nos vestíamos e que ficavam à entrada da praia em duas filas, antes das barracas de lona e dos toldos.

Estas barracas de madeira eram estreitas e altas, pintadas de verde-escuro e tinham na porta um óculo redondo. Dentro, ao fundo, havia um banco, de cada lado cabides, no chão uma esteira. Junto da porta estava sempre uma celha de madeira cheia de água do mar onde, antes de entrar, lavávamos os pés para tirar a areia. Havia em tudo isto um conforto rudimentar e fresco, um cheiro a sal, a ervas e a madeira e uma beleza feita de ainda não haver plástico e de o contraplacado, o cromado e outras invenções serem reservadas para usos diferentes.

Enquanto éramos mais pequenos, mestras, criadas ou familiares entravam connosco para a barraca para nos esfregarem bem o cabelo e as costas e nos ajudarem a vestir. O espaço era apertado, a luz que entrava pelo óculo pouca, o ar um tanto húmido. Por isso as mestras, apressadas, davam-nos enquanto nos vestiam alguns arrepelões. As mães multiplicavam ralhos. As criadas contavam histórias.

Mas, às vezes, era a Ana Bote que nos vinha vestir. Esfregava com vigor o cabelo e não podíamos ficar com a cabeça molhada. Limpava os pés dedo por dedo e contava que não podíamos ficar com os pés frios. Depois -ó maravilha -tirava do regaço plantas da sua horta: manjericão, hortelã, alfazema, alecrim, que nos esfregava na testa, no pescoço e nos braços. Para nos dar saúde e felicidade, segundo dizia. E os perfumes misturados de alfazema, maresia, hortelã e alecrim eram o próprio aroma e incenso da felicidade.

A Ana não contava histórias de princesas e fadas: contava usos e costumes, nomes de pessoas, coisas e lugares. Por ela eu sabia das procissões, da aflita dos pescadores. Por ela eu sabia onde morava a Rosa aguadeira, e que coisas se podiam comprar na feira de Espinho, e qual a maneira de atar o lenço da cabeça à moda das mulheres daqueles sítios. Mas nas suas conversas comigo o tema preferido da Ana Bote era a infância da minha mãe e tias e tios.

Porque ela conhecia todas as famílias de todas as classes, sabia os nomes e os parentescos, e as casas e as quintas e quintais.

Pois já tinha passado o meio da sua vida e tinha visto muitas coisas, lembrava-se de muitas coisas. Mas, embora já não fosse nova há muito tempo, era uma mulher activa, risonha e alegre como se a vida recomeçasse limpa e lisa todos os dias.

Era, conforme se dizia, grande trabalhadeira. A limpeza meticulosa e fresca das barracas e a água continuamente renovada das celhas eram obra sua. Assim como os canteiros arrumados do seu quintal e da horta que com ele confinava.

Embora os costumes estivessem já bem mudados ela continuava vestida à maneira antiga, com a saia de roda bem enfaixada, com o lenço atado a preceito, com brincos de oiro tilintando junto à cara e com o grosso cordão de oiro de muitas voltas e muitas medalhas brilhando e oscilando ao sabor de cada gesto sobre o peito.

Brincos e medalhas lhe dera o marido mas o cordão -me disse -o herdara da avó que era lavradeira para os lados de S. Clemente.

Pois ela vivia com todo o seu passado, que não lhe era morte nem saudade mas espaço e presença como uma grande pintura animada, viva e inspiradora.

E simultaneamente vivia todo o seu presente. No seu sorriso havia sempre um fundo de surpresa e as coisas comuns que eu lhe contava eram acolhidas com espanto e entusiasmo como se o mundo todos os dias, através de gestos, objectos, encontros, confirmasse a sua positividade fundamental. Se eu dizia que, tinha colhido amoras nas silvas dos pinhais, ou que tinha visto um cão castanho, pequenino, ou que a minha cozinheira tinha comprado mexilhão para o almoço, estas notícias eram acolhidas com júbilo e alvoroço como se fossem acontecimentos reveladores e surpreendentes, como se o facto de haver amoras nos pinhais, cachorros castanhos nas ruas e mexilhão nas canastras das peixeiras fosse motivo de inesgotável regozijo e de espanto inesgotável. Eu era minuciosamente interrogada sobre o lugar onde encontrara amoras, sobre o seu amadurecimento, sobre a raça do cão, sobre o tamanho do mexilhão e sobre se iria ser cozinhado em arroz ou de caldeirada.

É possível que gostasse tanto de conversar com crianças porque não tinha filhos. Mas em sua casa vivia uma sobrinha órfã, filha de um irmão do marido, a Cecília, que era a terceira maravilha da família.

Quando eu tinha cinco anos ela teria catorze ou quinze e era grande para a idade e forte e bela e ao longo dos anos a sua beleza foi crescendo.

A brancura dos seus dentes via-se de longe. Ao contrário do Manuel e da Ana Bote que tinham os olhos claros, era morena e os seus olhos escuros talhados em amêndoa viam-se de lado, como os olhos dos barcos, na cara oval, um pouco comprida, uma cara clássica com todos os traços acentuados e ligeiramente grandes. Era aliás alta e rija, não gorda mas um tanto entroncada. Direita e forte carregava enormes cântaros de água que todas as tardes ia buscar ao fontanário que fica do outro lado da linha. Havia nela um brilho de saúde que luzia na claridade da praia.

A sua estatura e rijeza certamente as herdara da família paterna. Mas fora com a tia que ela aprendera a alegria.

Pois, como a Ana Bote, a Cecília parecia viver em contínuo regozijo, um regozijo que para mim se confundia com a grande festa do Verão. Acolhia-nos de longe com grandes saudações, ria incessantemente mostrando a brancura luminosa dos dentes, como a tia lavava com grandes baldes de água do mar as barracas de madeira, dobrava e arrecadava a lona dos toldos que todos os dias eram armados e desarmados pelo Manuel Bote, dado que era tarefa masculina, exigindo altura, força e ciência de complicados nós.

Quando me considerava suficientemente enxuta, a Ana Bote tirava a minha roupa dos cabides de ferro que, altos demais, estavam fora do meu alcance. E eu enfiava o vestido de linho amarelo e virava as costas para que ela me abotoasse os dois botões de aselha, e virava-me depois de frente para que ela me penteasse, alisando bem a franja.

Depois abria a porta e cá fora dava-me um pé de hortelã, um ramo de alecrim, um ramo de alfazema e uma folha de limoeiro:

-Adeus, Ana, obrigada.

-Adeus, minha linda, até amanhã.

Eu corria para o toldo onde estava a minha mãe e estendia-lhe as mãos para ela cheirar.

-Cheire, cheire, mãezinha -pedia eu.

-Que bem que cheira a minha filha! -exclamava a minha mãe.

-São ervas do jardim da Ana -respondia eu.

Eu estava sentada à sombra do toldo ao lado da minha mãe. As ondas inchavam o seu dorso e desabavam sobre a praia. A areia molhada luzia. A vida era celestemente terrestre. Onde estávamos, cheirava a maresia e a jardim. O perfume da felicidade invadia o mundo.

Foi assim durante mais alguns Verões.

Mesmo quando depois dos seis anos passei a vestir-me sozinha, a Ana Bote vinha à porta da minha barraca e, através do óculo, dava-me um ramo de hortelã e alecrim. Dizia:

-Esfregue-os bem no pescoço, nas mãos e na testa. Dá saúde e felicidade.

Depois, teria eu então onze ou doze anos, houve um Inverno em que o Manuel Bote morreu.

No Verão seguinte não encontrámos a Ana junto das barracas de madeira. Havia um novo casal de banheiros, aliás parentes do falecido Manuel Bote. Chamavam-se Manuel e Maria, eram novos e belos como se naquela terra para chegar a banheiro fosse preciso passar por um concurso de beleza. Tinham ambos o cabelo escuro e os olhos intensamente azuis e eram parecidos como irmãos, de tal forma que nos seus três filhos pequenos era impossível distinguir onde estava a parecença com o pai, onde a parecença com a mãe, pois ambas se confundiam. Mas o Manei e a Maria, apesar da juventude e beleza, não tinham a alegria nem o ânimo da Ana Bote.

À saída da praia, numa rua, encontrámos a Cecília com o cântaro à cabeça. Estava toda vestida de preto e entre tanto preto o branco dos seus dentes luzia ainda mais. Falou à minha mãe com a simpatia compassada de quem está de luto, falou com ar grave da doença e da morte do tio. Mas a mim falou-me com os risos e alvoroços do costume, extasiou-se sobre o meu crescimento, perguntou por toda a família, irmãos, primos, criados.

-Como está a tua tia? -interrogou a minha mãe.

-Ai, mal. Mal e mal. Mesmo mal -suspirou a Cecília.

-Coitada -lamentou a minha mãe.

-Não come, não fala, não sai de casa, não quer saber de nada. Nem o lenço da cabeça ata direito. Quem havia de dizer que uma mulher como a minha tia ia quebrar desta maneira? Mas quebrou.

-Diz-lhe que amanhã a vou ver -disse a minha mãe.

Na tarde do dia seguinte, como combinado, a minha mãe foi visitar a Ana Bote e levou-me com ela.

Encontrámos uma mulher tão diferente que era como se tivesse mudado não de situação mas de identidade. Uma mulher inerte, distraída de nós e das coisas. Tinha envelhecido e emagrecido e o azul dos seus olhos estava deslavado e um tanto cego. Falou apenas da morte do marido, mas falou como se estivesse sozinha e falasse consigo própria para reexaminar e entender o que tinha acontecido. Ela antes tão atenta a tudo agora não atendia a mais nada. Dizia:

-Eu estava ali de pé. De repente, caiu aqui ao comprido. Foi um estrondo. Foi como se rebentasse o mundo.

Quando saímos, perguntei à minha mãe:

-E agora?

-Vai-se habituar. Como toda a gente.

Mas não se habituou. O seu mundo era uno e não aceitava uma falha. O escândalo tinha invadido o real até seus últimos confins. A praia, a luz, o perfume da hortelã tinham perdido o sentido, já não lhe diziam respeito.

No entanto, passado um ano sobre a sua viuvez, durante algum tempo pareceu recompor-se. Ia e vinha, tratava da sua casa, tratava de um bando de galinhas e do jardim e da horta. Já não era a banheira e devia ter muito tempo livre. Às vezes em Agosto, quando havia mais banhistas, aparecia de manhã na praia para ajudar os sobrinhos. Mas era evidente que naquilo que fazia já não punha esmero, nem gosto, nem jogo. Antes no seu trabalho existira um elemento lúdico, uma parte de teatro e liberdade. Agora havia apenas tarefa, obrigação.

Vinha à praia trabalhar nesse Agosto não porque precisasse de ganhar a vida, pois além da pensão do marido tinha alguns haveres herdados dos pais lavradores -e a Cecília dizia sempre: «De dinheiro a minha tia está bem» -vinha mas pelo dever sagrado de ajudar a família.

Enchia e despejava as celhas de madeira e limpava as barracas como antes, mas sem conversa e sem risos. Não havia nela propriamente tristeza que se visse mas sim uma pesada indiferença.

Primeiro ela tinha sido o actor que vivera a peça, agora era apenas a empregada do teatro.

E assim foi por vários anos.

Porém, era visível que esse puro durar lhe era inabitável. Por isso em certo Inverno começou a constar que a Ana bebia.

Ao princípio, bebia de longe a longe. Eram grandes bebedeiras de caixão à cova e perdia-se cambaleando nas praias desertas de Dezembro. A sobrinha partia em sua busca e lutava longamente com ela até conseguir arrastá-la para casa. E era coisa terrível e fantástica ver no escuro da noite as duas mulheres gritando e gesticulando ao longo da rebentação e do clamor do mar.

-Mas que quer a tia do mar? -perguntara-lhe a Cecília no meio da noite, tentando afastá-la da orla da vaga onde caminhava ensopando a saia preta.

-Vim fazer pranto com ele para não gritar sozinha.

Só a saúde, a força e a alegria da Cecília conseguiam aguentar o mau vinho da Ana. Quem no dia seguinte a via com o cântaro à cabeça e o rosto liso, clássico e trigueiro, rosado pela manhã fria, nunca adivinharia o combate com as fúrias, loucuras e temporais da noite.

Depois o beber da Ana tornou-se quotidiano mas mais comedido. Começava a beber ao fim da tarde como um inglês metódico e no fim do jantar, bebido o último copo, titubeava um pouco, deitava-se e dormia.

Por essa época, recolheu um cachorro vadio, em cujo pêlo encaracolado e branco as plantas da duna se prendiam e que parecia um pouco um carneiro. Um cão de que só ela gostava e de que nunca se separava. Com ele a víamos passar pela estrada da praia ou pelas dunas, trôpega, apoiada num pau, falando sozinha, gesticulando.

Surgiu então uma questão de partilhas. Um parente do seu marido, o primo Abílio, reclamara a posse da sua horta, do quadrado de terra junto ao seu quintal, que há mais de trinta anos ela plantava, cavava e regava com esmero e sabedoria.

Ana, certa da sua razão e legítimo direito, ouviu com espanto as argúcias do advogado da parte contrária e pasmou com fúria perante as malícias da lei e a malícia dos parentes. Debateu-se como pôde, arranjou um advogado (no qual nunca confiou muito) e sobretudo recorreu a outras malícias mais ingénuas e populares. Em cartas aplicadamente ditadas a Cecília dirigia-se às pessoas mais importantes que conhecia pedindo o seu testemunho, influências, empenhos para os juízes.

Tudo isto lhe enchia os dias fornecendo inesgotável assunto para as conversas do serão com a sobrinha e obrigando-a a múltiplas diligências, frequentes visitas às suas testemunhas e idas semanais à cidade ao consultório do advogado. Havia agora mesmo nos seus dias uma certa azáfama, uma certa febre.

-Afinal -comentava Cecília -a questão tem feito bem à minha tia. Até parece que acordou, anda mais animada.

De facto Ana, embrenhada em suas novas andaças, quase deixara de beber, retomara na luta um pouco da sua antiga paixão pelas coisas e recomeçara a cuidar da sua aparência.

-Em tempos eu tinha amor à horta -dizia. -Mas isso foi dantes. Agora não tenho apego a nada. Se me tivessem pedido a horta até a tinha dado, pois sempre são gente da família. Mas virem com leis e com mentiras e julgarem que me calo porque estou velha e doente, isso não, a tanto não me acovardo. Mesmo velha, doente e sem amor a nada, quero o que é direito.

Aliás como bem se sabia Ana tinha razão. Confiando na sua razão e conservando do seu amor à vida uma certa fé na justiça imanente, em dada manhã de Março, vestida com a sua melhor roupa e com o melhor lenço de seda atado a preceito, acompanhada por Cecília, partiu para o tribunal da cidade próxima. Estava um frio fino e arisco que lhes deu ânimo.

Mas o julgamento estava atrasado conforme lhes explicou o advogado que, depois de as instalar num banco do corredor que dava para o pátio do tribunal, se afastou, recomendando que esperassem ali sentadas, pois a audiência ainda demoraria mais de uma hora e a seu tempo ele as viria ou mandaria chamar. E acrescentou:

-Se precisarem de alguma coisa estou ali na sala dos advogados, do outro lado do pátio, na última porta à direita.

O advogado afastou-se e elas, sem pressa nem impaciência, dispuseram-se a esperar o que fosse preciso, apenas um pouco intimidadas pelos mistérios do lugar.

Primeiro distraiu-as o número e o vai e vem das pessoas, as passagens azafamadas dos contínuos e oficiais de diligências, as passagens decorosas de advogados que lhes pareceram imponentes nas suas togas pretas. E da ponta do corredor onde estavam sentadas admiraram e comentaram as divisões espaçosas, a altura do tecto, mas admiraram sobretudo a largueza do pátio e as colunas de pedra que nos quatro cantos sustinham a galeria do andar de cima.

-Isto -comentou Ana -é obra antiga e bem construída. Mas é um bocado triste. E está bastante desleixado.

-Pois está -concordou Cecília. -Lá em casa não se vê tanto papel no chão. E ali na parede que grande nódoa de humidade! E o chão tão escuro! A nossa casa é pequena, mas não há humidade nas paredes e o chão está bem varrido e bem esfregado. Cheira a limpo.

-Mas ó rapariga nós também não temos tantas visitas -riu-se Ana. -E não trabalhamos com papel p'ra aqui papel p'ra acolá e não há nada que faça tanto lixo como o papel! Sabes, isto aqui não me agrada. Há qualquer coisa esquisita.

-É esquisito é -concordou Cecília.

E ficaram as duas caladas.

Ana, embora disso não tivesse consciência, acreditava firmemente que o mundo se compreende com os olhos.

Por isso olhava avidamente aquele mundo de estranhos, que não era o seu, para ver se entendia em que é que estava metida.

O seu olhar ia de rosto em rosto: rostos circunspectos, rostos baços, rostos sonsos com a manha a rir em cada ruga, caras de gente importante olhando de alto, rosto desenvolto de quem sabe navegar naquelas águas, caras mortiças como velas apagadas. E aqui e além rosto aflito, sozinho e hesitante de um homem ou de uma mulher que pareciam perdidos no meio daquilo tudo. Mas o que mais assustou Ana foram os inumeráveis rostos enviesados e obsequiosos, untados de manha e sonsa esperteza.

-Ó Cecília já viste que aqui quasi toda a gente se parece com o primo Abílio!

-Pois é -disse Cecília estarrecida.

-Com ele e com o compadre dele, o Rodrigues!

-Está ali um, vê, à direita que é mesmo o focinho do Rodrigues.

-Valha-nos Deus, vamos embora.

-Ai tia sossegue. Vamos falar de outras coisas.

-De que é que tu queres que eu fale? Não digas nada.

E recomeçou a olhar. Tinha um sentimento atroz de estranheza, sentia-se perdida num mundo alheio que não podia e não queria entender.

Mas devagar começou a avistar aqui e além mais caras solitárias e aflitas. Eram quasi todas gente pobre ou modesta com ar cansado e tresmalhado de quem teme tudo e não reconhece nada à sua volta. Mas não era só gente pobre ou modesta. Encostadas a uma das colunas do pátio estavam duas mulheres, uma de certa idade, outra muito nova. Ana viu como ambas eram elegantes e bem vestidas. Não riam, não choravam nem falavam. Mas a cara delas parecia de pedra e mostrava a mesma angústia, a mesma aflição. Pouco depois Ana avistou encostado a outra coluna um rapaz alto, magro, bonito, também ele bem-vestido mas a sua cara estava tensa de tormento e ele parecia só como no fim do mundo.

De súbito Ana sentiu-se todos aqueles aflitos, os pobres, os remediados e os ricos, sentiu-se ela própria não só como eles mas eles, sentiu-se na pele deles e na confusão e na solidão da sua mente. E compreendeu que não os podia ajudar como também não se podia ajudar a si própria. Então puxou do bolso da larga saia preta o seu terço.

-Tia, não esteja nessa aflição -disse Cecília sentindo como Ana estava agitada.

-Há aqui muitos aflitos -respondeu Ana vou rezar por eles. Vai dar uma volta.

-Vou ver se vejo as nossas testemunhas. Ainda não as avistámos -nem avistámos as nossas amigas, a Deolinda, a Inês do Bazar, a Joaquina que prometeram vir assistir para nos acompanhar.

-Vai mas não demores. Só o tempo de eu rezar um terço. Vai ligeira.

Mal acabou de rezar Ana virou-se para o pátio a ver se Cecília já vinha vindo. Mas de novo tudo quanto vira lhe dava uma sensação de mal-estar e de estranheza.

-Deus do Céu, por que vim eu meter-me nisto -pensou ela.

Mas logo Cecília surgiu com a Inês do Bazar, a Deolinda e a Joaquina.

-Ó senhora Ana, a sua sobrinha diz que vocemecê está desanimada. Anime-se -olhe que vai ganhar -disse Deolinda abraçando-a.

-Sei lá se vou -respondeu. -Sinto-me aqui tão mal disposta. Tudo isto me põe tonta.

Joaquina e Maria do Céu tentaram animá-la. Mas Ana era impaciente e voluntariosa e estar naquele lugar parecia-lhe insuportável.

Levantou-se e pôs termo às consolações das amigas.

-Sinto-me aqui mal. Se me vejo daqui para fora nem acredito. Por isso vou-me embora. Fiquem vocês aqui com a Cecília para verem como tudo corre. Vocês são mais novas, têm mais ânimo para estas coisas.

-Ó minha tia, sempre era melhor a senhora estar presente.

-O advogado disse que nem era preciso eu vir. Por isso vou-me embora.

-Mas como é que há-de ir assim sozinha. A minha tia não conhece estes sítios, não vai dar com a estação.

-Deixa estar que vou eu com ela. Eu conheço estes sítios palmo a palmo. Venho aqui todos os meses aviar-me para a minha loja atalhou a Joaquina que tinha uma loja de panos e fitas, botões, nastros, colchetes, agulhas, linhas e dedais.

-Então vamos já -disse Ana.

Mas antes de ter dado três passos, parou, virou-se para trás e perguntou:

-Vocês viram o Tomé e o João? Eles são as minhas testemunhas, já deviam aqui estar.

-Quando chegámos já eles cá estavam. Tinham vindo duas horas adiantadas com medo de qualquer atraso, mas depois sumiram.

-Bem, devem estar a aparecer. Mas eu quero é ir-me embora depressa. Digam-lhes que tive pena de não os ver, mas que amanhã os irei procurar.

-Nós dizemos -responderam Cecília e as duas amigas.

-Vamos Joaquina -disse Ana.

E partiram.

Ao chegar a casa Ana, em vez de entrar, sentou-se cá fora nos degraus de granito da escada e pôs-se a olhar o mar.

O Sol tinha subido no Céu, tinha aquecido a terra e as pedras mas o ar continuava fresco e sobre o mar havia ainda o fino brilho de Inverno. A maré alta descia devagar e as ondas quando estavam no cimo, mesmo antes de quebrar, tornavam-se por um instante transparentes e verdes.

Ana respirou fundo e como era seu costume quando estava só, começou a falar em voz alta. E disse:

-Bem fiz eu de me vir embora daquele sítio excomungado. Só de ver as ondas e de respirar este cheiro já me sinto melhor. Aqui é que eu estou bem. Nunca tive inveja de ninguém porque tenho esta casa de frente para o mar.

Depois anunciou:

-Vou até à praia. Depois do que passei esta manhã preciso de ir à praia.

Descalçou-se e poisou os sapatos com as meias lá dentro no degrau da escada, atravessou o caminho de terra e pedrinha solta, entrou na praia, desceu para o mar.

Atravessou a linha de algas, cascas de ouriços, búzios, conchas, pedaços de madeira, pedaços de cortiça.

A areia molhada luzia. Então Ana arregaçou as mangas bem acima do cotovelo, arregaçou um pouco a saia comprida e entrou na orla da onda quebrada. Curvou-se e com as duas mãos em concha cheias de água lavou e esfregou a cara três vezes seguidas. Quando as mãos lhe trouxeram a quarta concha de água bebeu-a. Depois endireitou-se e olhou a extensão azul de mar até ao horizonte e disse:

-Bendito seja Deus, já me sinto lavada daquilo tudo.

Respirou fundo para sorver bem o cheiro da maresia e ficou um tempo quieta, enlevada como sempre no inchar, no desabar e no espraiar-se das ondas. Enquanto assim estava uma onda mais forte molhou-lhe a saia até aos joelhos. Ela riu-se.

Mas de repente lembrou-se que «aquilo tudo» ainda não tinha acabado. E de novo se sentiu confusa e cansada. Então devagar subiu a praia, atravessou a pequena entrada, pegou nos sapatos que deixara no degrau e entrou em casa.

Em voz alta disse:

-A Cecília está a chegar, tenho de preparar o almoço.

Foi à cozinha e, com os gestos mil e mil vezes repetidos acendeu o lume, preparou o almoço e pôs os pratos, os talheres, o pão e o vinho na mesa.

Depois mudou de saia, limpou os pés e sem se calçar foi ao jardim pôr a saia molhada a secar na corda. Deu uma volta na horta, colheu hortelã e salsa e voltou para dentro, espreitou as panelas e pôs a hortelã na sopa, no arroz pôs a salsa e deu-lhe uma volta com a colher de pau.

Depois ficou sem nada para fazer. Sentou-se numa cadeira da salinha da entrada. Revia sem cessar as imagens do pátio do tribunal e o mau presságio era um peso dentro do seu peito.

Esperou uma hora. Mal Cecília entrou percebeu que tinha corrido mal.

-Então? -perguntou Ana.

-Ai minha tia, não trago boas notícias respondeu Cecília.

Sentou-se em frente de Ana e desatou a chorar.

-Não chores. O que é que correu mal?

-As suas testemunhas -disse Cecília entre soluços.

-Não chores, conta -disse Ana.

Então Cecília começou a contar que no tribunal o João e o Tomé pareciam transtornados -mal respondiam às perguntas que lhes fazia o juiz: ficavam calados e quando respondiam a sua voz era sumida e as respostas desajeitadas. Depois quando o advogado do primo Abílio os interrogou não acertaram uma, baralharam tudo. Quando o julgamento acabou o advogado delas chamou-a à parte e disse-lhe que lhe parecia tudo muito mal parado. Perguntou-lhe se as testemunhas de Ana não teriam bebido. Ela tinha respondido que João e Tomé eram seus vizinhos há muitos anos e que nunca os tinha visto com vinho a mais. Eram dois homens muito assentes e muito sérios. Mas o advogado tinha comentado com ar duvidoso: «No tribunal pareciam mesmo sem norte». Ela tinha perguntado se estava tudo perdido, ele tinha respondido que ia pensar melhor nisso, mas que era preciso esperar que saísse a sentença. E no fim tinha acrescentado que ainda havia esperança pois se perdessem podiam recorrer da sentença.

Quando Cecília acabou de falar Ana ficou muda e com ar sombrio e cara um pouco pálida.

Houve um longo e pesado silêncio até que Cecília, habituada ao génio falador e explosivo da tia, se espantou com tanta mudez. Perguntou:

-Ai minha tia, está bem? Está tão branca.

-Não estou bem, como queres que esteja bem?

-Ai, mas não se arrelie -disse Cecília. Se perder pode recorrer.

-Se perder, perdi e não recorro. Acabou-se. Não quero mais nada com tribunais, ouviste -respondeu Ana exaltada. -E hoje não me fales mais nisto. Vamos almoçar.

Cecília calou-se e foi encher os pratos de sopa. Comeram em silêncio sentadas uma em frente da outra na mesa da cozinha. No fim disse:

-Vou à minha lida.

E Ana foi sentar-se no cadeirão da salinha em frente do retrato do marido.

Era uma grande e bela fotografia que num dia de um Verão antigo lhe tirara e lhe oferecera um veraneante muito celebrado pelo seu talento de fotógrafo. Até fizera uma exposição no Porto e tinha sido muito gabado nos jornais. E mais uma vez Ana, como todos os dias, se perdeu enlevada na contemplação do retrato. A modulação subtil da fotografia a preto e branco era fiel à sua memória. Ali estava Manuel Bote, entre a rebentação da vaga, belo, firme e distante como um deus do mar rodeado pela luz viva da manhã marinha. Ali como na sua memória nada mudara o instante eterno, apenas o tornara intocável e distante. E de novo a imagem do homem, do mar e da luz trouxeram à sua boca o mesmo antigo sabor de sal e de alegria.

E sentada no cadeirão Ana sorriu. Mas devagar o seu sorriso desfez-se: pareceu-lhe de repente que algo mudara e que o seu marido agora a fitava com olhar triste e severo. Ela reconheceu a acusação.

Então baixou a cabeça e o seu coração apertou-se. Desesperada culpou-se a si própria. O que lhe doía não era ir perder a sua horta. O que lhe doía era ter arrastado o Tomé e o João para aquela aventura. Sabia que aquele dia era para eles um dia de humilhação que nunca mais esqueceriam. E não suportava que aqueles homens que sempre tinha visto serenos e de cabeça levantada estivessem agora confusos e cabisbaixos.

O que lhe importava a ela não era perder a questão mas sim manter intacta a ordem do mundo tal como ela a imaginava.

Sentada olhava lá para fora através do vidro da janela, um vidro um tanto fosco de sal mas onde o vai e vem do mar tremeluzia. E no azul das águas, no brilhar irisado da luz, no quadrado da janela, no tremular das ervas selvagens da duna tentava encontrar uma saída para o seu remorso, uma abertura.

Nessa mesma manhã, quando Ana seguia para a estação com a Joaquina ao voltar para casa, um amigo dela, o marceneiro Zé Vieira, que viera à cidade para assistir ao julgamento, e de caminho comprar uma plaina nova de que precisava, terminada a compra, dirigiu-se para o tribunal. Mas na rua nova encontrou um conhecido que lhe disse que o julgamento estava atrasado.

Zé Vieira, vendo que ainda tinha tempo resolveu ir à esplanada espairecer um pouco e tomar uma bica. Mal entrou no bar Maré viu logo o Rodrigues com o seu bigodinho, acompanhado por dois homens que estavam de costas para a entrada. Percebeu que o Rodrigues fingia não o ver e, mal o avistara, tinha chamado o criado e pedido a conta.

Zé Vieira que não gostava do Rodrigues, fingiu também não o ver, sentou-se no outro lado da sala e, passado um minuto, chamou o criado. Este que já estava a levar um prato com a conta ao Rodrigues, fez-lhe sinal que o esperasse.

Como era impaciente José Vieira começou a tamborilar com os dedos no tampo de pedra da mesa. E não querendo olhar para o lado do Rodrigues, virou a cara e reparou nas suas próprias mãos ágeis e finas, de marceneiro. Sorriu lembrando-se de Ana que muita vez lhe dissera: -Ó Zé tens umas mãos mesmo inteligentes! E ele sempre lhe respondia: -É que isto de ser marceneiro apura a pessoa.

Logo a seguir sentiu o arrastar das cadeiras. Levantando a cabeça viu que o Rodrigues já se dirigia para a porta, mas estarrecido viu também que atrás dele iam Tomé e João. E seguindo-os com o olhar até saírem reparou que iam os dois aos bordos. Então olhou para a mesa de onde tinham saído e viu-a atulhada de copos e tigelinhas.

Nessa altura chegou o criado com o café e o marceneiro, a puxar-lhe pela língua, comentou:

-Muito beberam aqueles seus fregueses!

-Lá isso! -respondeu o criado -mas olhe que o do bigodinho só bebeu dois cafés e um copo de água. Mas sempre a puxar os outros para beberem mais. Pedia tigelas de azeitonas bem salgadinhas, mais uma e mais outra. Vinho verde de Amarante bem geladinho e mais um copo senhor João e mais um copo senhor Tomé, e agora vamos experimentar o verde de Ponte da Barca. E depois de tantos copos o senhor João e o senhor Tomé que aqui tinham chegado tão compostos e delicados estavam avariados de todo!

O marceneiro percebeu logo que fora de propósito que Rodrigues tinha embriagado as duas testemunhas. Enervado bebeu a bica de um só trago, pediu outra com mais um copo de água e a conta, pagou, agradeceu e saiu correndo para o tribunal. Mas quando lá chegou o julgamento já tinha começado.

Quando Cecília saiu Ana deixou-se ficar na cadeira ora remoendo a sua arrelia ora cismando o divagar das suas memórias. Lentamente começou a escurecer mas não acendeu o candeeiro suspenso de tecto -pois não gostava daquela claridade que, como sempre dizia, tornava tudo cinzento. Mas gostava de ficar no lusco-fusco olhando através do vidro da janela a lenta transformação da luz que lá fora se reflectia oblíqua sobre o mar.

Até que Cecília entrou de rompante acendeu a electricidade, sentou-se a seu lado, disse que tinha encontrado o marceneiro e relatou tudo quanto ele lhe tinha contado e acabou dizendo:

-O José Vieira diz que se a tia perder a questão e quiser recorrer ele irá ser sua testemunha. E crê que o criado do bar Maré também estará disposto a ir, se lhe pedirem. Espero que agora, se perder a questão, a minha tia vá recorrer.

Ana primeiro deixou-se ficar calada: a história não a espantava, já estava à espera de tudo. E, ao cabo de um curto silêncio respondeu:

-Não recorro.

-Mas a minha tia sempre disse que queria a justiça e agora não quer justiça para si?

Irada Ana levantou-se:

-Quero justiça mas só à minha maneira. Não quero mais nada com o tribunal, já disse. Não me arreliem mais. Eu tenho razão, não preciso que m'a dêem. E deixem lá ir a horta. Não me falem mais nisso.

No dia seguinte pela tardinha, quando Cecília partiu para a fonte, Ana foi sozinha a casa de Tomé e pediu-lhe que chamasse o João que morava ao lado. Mal chegaram os dois, ela mandou-lhes que se sentassem em sua frente e disse:

-Vim cá agradecer-lhes terem ido de tão boa vontade ao tribunal defender-me. Peço desculpa de os ter metido nestes trabalhos. Disseram-me que tinham ficado os dois aflitos com medo de não terem falado bem. Mas não se aflijam. O advogado disse-me que falaram bem. Aliás se eu perder a questão não é por causa disso. É por causa de outras complicações que surgiram e que o advogado me explicou mas que eu não sei explicar. Sou muito tapada para essas coisas. Mas se perder, perdi e não recorro. Não quero mais nada com tribunais. Tenho razão e por isso não preciso que ma dêem. E já não se me dói nada da horta. Amanhá-la cansava-me e já me custa andar curvada sobre a terra, faz-me tonturas. Agora o que me dá alegria é sentar-me nos degraus da minha porta a olhar a maré cheia ou caminhar rente ao mar e ver os rochedos da maré vaza. E dá-me alegria saber que tenho bons amigos, leais e verdadeiros, como vocês os dois. Temos muita sorte de viver numa terra tão bonita. Aqui cheira a mar e a fruta. Aqui tudo é lindo e perfumado. São lindas as nossas casas, tão brancas e bem caiadas. E são lindas as casas maiores dos mais ricos. A minha preferida é a casa da senhora D. Luísa com aquela varanda virada para o mar e aquela escada de pedra e grades feitas de ripas de madeira cruzadas e pintadas de verde. Um dia disse-lhe: «Ai senhora D. Luísa, é tão bonita a sua varanda, é mesmo boa para ver o pôr do Sol. É pena a senhora não passar cá mais tempo» e ela respondeu: «Olha Ana, quando eu não estiver cá vem tu por mim, senta-te na minha varanda a ver o pôr do Sol -a casa fica fechada mas a cancela da varanda fica só no trinco». E assim, agora, muita vez me sento ali, é mais alto, vê-se melhor. Mas também é lindo o pinhal da Igreja, e o jardim da condessa, e tanto alpendre, e tanta varanda e varandinha que aqui há. O senhor arquitecto costuma dizer: «Isto é uma terra linda porque não há aqui nenhuma coisa feia». Sabem vocês, só viver aqui já é uma felicidade. Para que quero eu a horta se tenho isto tudo?

E à medida que falava e a si própria se convencia com a justeza das suas palavras, Ana foi vendo que também convencia Tomé e João e que as caras deles se iam desanuviando. Aliviada de os sentir aliviados despediu-se deles com muitos abraços e palavras alegres.

Depois os meses foram correndo até que saiu a sentença. Ana tinha perdido a questão mas, como prometera, não recorreu.

Parecia impávida e ninguém lhe viu lágrima nem cara ensombrada nem lhe ouviu lamento. Mas entre a faca viva do antigo desgosto, a confusa desilusão perante a desordem do mundo, a desocupação e os ventos uivantes do Inverno pouco a pouco recomeçou a beber.

Viveu ainda mais alguns anos, trôpega, quase sempre com alguns copos a mais. Às tardes, ela e o cão percorriam as dunas, a esplanada, a praia. Falava sozinha, discursava no vento, interpelava as pessoas que passavam, ameaçava com o seu pau os desconhecidos.

Quando a avistavam, as vizinhas sacudiam a cabeça e suspiravam. E embora de longe ela as chamasse com grandes brados, só uma ou outra se aproximava.

Quando caiu à cama pouco durou.

Ao terceiro dia da doença, Cecília apercebeu-se de que ela começava a respirar mal.

-Que tem, minha tia? -perguntou, aflita.

-Vou morrer -respondeu.

Ficou um instante calada. Depois olhou Cecília e disse:

-Sabes, se o teu tio fosse vivo eu não morria.

E não voltou a falar.

Na sua horta foi construído um palacete em estilo modernaço que desfigura toda a linha da costa até aos últimos confins do horizonte.

1996