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Mar Implacável

by Jerónimo Osório de Castro

Mar Implacável

Jerónimo Osório de Castro

A publicação de Mar Implacável, texto extraído do livro Roteiro do Atlântico Norte, foi gentilmente autorizada pela Editorial Inquérito.

© 1997, Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-20-1

Lisboa, Outubro de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

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MAR IMPLACÁVEL

Ao encontro da bruma

Lembro a minha saída de Londres, a bordo do «Gil Eanes».

Entardecia quando larguei de Charlton e comecei a descer o Tamisa, a caminho do mar. Foi sob uma luz triste de crepúsculo que passei em frente de Gravesenda e de Greenwich, dois nomes que decorara desde os bancos do liceu. Da primeira, apenas distingui um pequeno amontoado de casas baixas, por entre arvoredo, enquanto que, da segunda cidade, retive a imagem, tão conhecida, do observatório astronómico onde se fez passar o meridiano central do nosso fuso horário.

Cada vez mais o rio se alargava e a pouco e pouco confundia com o próprio mar. Sulcava-o abundante navegação mercante e até ao fim não deixei de ir vendo edificações fabris, blocos compactos, com muitas chaminés e muito fumo pardacento, conspurcando as manchas do casario baixo e o verde sombrio dos pinhais ou dos prados ribeirinhos.

Já noite, navegando com rumo oeste, distingui dois faróis potentes na costa inglesa, um dos quais assinalava o cabo Lands End, que os antigos supunham ser o final da terra. De manhã chegou um cortejo de gaivotas, que alegremente se resolveram a acompanhar-me, em luta com o vento, que soprava rijo.

Após dois dias de navegação em mar agitado; encontrei alguns arrastões franceses, que estavam, muito ao largo, sobre o banco Grande Sole, a pescar entre bóias com bandeirolas, não obstante a vaga grossa que fazia. Além das gaivotas e do vento, também passei a ser acompanhado por um bando de toninhas, que pareciam caprichar na elegância dos saltos fora de água.

A travessia do Atlântico realizava-se em condições pouco agradáveis, quase sempre sob um céu nebuloso e triste, que mais ensombrava o mar e as suas grossas vagas, as quais o navio a custo ia galgando numa interminável monotonia de subidas e descidas, que lhe fizeram reduzir a marcha até à média de quatro nós.

Nevoeiro. Várias vezes o casco bateu com estrondo contra as ondas alterosas, tudo estremecendo tetricamente, ou eram elas que irrompiam pela amurada de bombordo, varrendo o convés, estrepitosas, na sua fúria. O balanço de parafuso, que então já se sentia a bordo, obrigava os que estavam livres a ficar pelos beliches, entregues aos seus próprios pensamentos, na impossibilidade de os expandir, olhando o mar, enquanto outros se refugiavam, apáticos, no salote, assim se passando o tempo ou se enganando a tristeza dessa viagem tormentosa.

Durante a noite houve outra vez neblina e o mar continuou agitado, obrigando o navio a balançar com força e aos estremeções. Nada se distinguia para além do mastro de vante e só se escutava o som grave do apito do navio. Contudo, foi uma surpresa aterradora o ter-se avistado a mancha sombria de um grande cargueiro, que navegava de encontro ao nosso barco, por entre a névoa, do qual a tempo se desviou, evitando um abalroamento cujas consequências, tudo o levava a crer, ser-nos-iam bem funestas.

O vento não parava nem de dia nem de noite e estava cada vez mais frio. Enfim, após oito dias de viagem terrivelmente maçadora, amanheceu calmo e o céu tornou-se límpido. O mar já era chão e tremeluzia à luz clara do Sol. No posto de radiotelegrafia puderam captar a emissão radiofónica de um lugre e desde então não mais perdi o contacto com os navios portugueses que pescavam o bacalhau no outro lado do Atlântico, até chegar-lhe à vista e neles passar a ter um convívio tão rude como acidentado.

O silêncio do mar

O reino obscuro e silencioso das águas já não pode esconder todos os seus segredos. Berço da vida, à qual conferiu as próprias condições em que ela ainda hoje pode existir e perpetuar-se (não obstante já ter em grande parte saído do seu primitivo meio original, fixando-se na terra e no ar), é ainda a água, contudo, que encerra o princípio de todas as existências, pois que não há vivente que seja capaz de subsistir sem que as células do seu corpo se não embebam em enormes percentagens líquidas. Por isso todos compreendemos a atracção da água, quando contemplamos o seu incansável movimento junto às praias e rochedos dos litorais e lhe sentimos o cheiro penetrante e a ouvimos na sinfonia dos seus murmúrios.

Mar. Água salgada alagando a maior parte da superfície da Terra, isolando os seus continentes, formando as suas ilhas, enchendo os grandes abismos e nivelando sub-repticiamente os leitos rochosos que ele invadiu e vai tapando de lodo e de detritos.

Apenas nas camadas superficiais o mar apresenta ténues gradações, até se abrir no azul ou no verde, ou nas combinações mais capciosas, consoante a atmosfera que o envolve, os fundos e a própria vida das águas. Aí se começam a sentir as primeiras influências do calor solar e, conjuntamente com a atracção do Sol e da Lua, ocasionando-lhe as marés, com todas as suas consequências, as moléculas líquidas vão-se modificando no volume e nas suas posições relativas, motivando os grandes movimentos de fugida das águas, estranhos rios que se distinguem no seio dos próprios oceanos e a que chamamos as correntes marítimas. Outras correntes se formam nas águas devido à direcção e força dos ventos, às desiguais densidades das diferentes camadas líquidas, à fusão dos gelos e à rotação da terra, correntes essas de grande importância nas latitudes onde então navegava, pois são elas que fazem atirar para as costas os navios que incautamente se aproximam.

Tempestades. Naufrágios. Aves a esvoaçar lá no alto, ou, poisadas de cansaço, a embrulhar-se na crista das vagas até serem engolidas pelas águas ou por certos peixes que então mais se atrevem a vir à superfície. O céu fica azul-escuro e depois vai carregando até ao negrume, que apenas relâmpagos iluminam de jacto, como se qualquer coisa explodisse ao longe. Tudo estremece com o estampido brutal, que parece quebrar o próprio firmamento, enquanto as águas, que se contraíram por um momento, mais e mais se agitam até saltar em jactos e em turbilhões. Levantam-se espumas multicores, quais farrapos de renda que o vento arrancou ao mar, rugidor e terrível. Erguem-se montanhas de água, que eu nem sei como alguns navios podem galgar. Abrem-se abismos que tudo parecem engolir, tão bruscamente como em sorvedoiros. Há ondas que se chocam em saraivadas de espumas e de ruídos. É o mar a contorcer-se na dança alucinada das fúrias. Assim responde o oceano ao silvar do vento e assim é ele belo e é cruel na sua força brutal de irresponsável.

Mas esta luta ciclópica, por mais que dure, acaba sempre nos grandes momentos de acalmia e, então, o mar é bom e ainda é mais belo nas suas cores de doce suavidade, qual toalha de madrepérola dando reflexos de oiro e de prata sob o aveludado do azul, esbranquiçado ou plúmbeo quando à luz do dia, ou estranhamente iluminado pela Lua, mas onde a vida interior, porém, para nós continua tão obscura que raro se deixa pressentir, salvo nalguns momentos fugazes de luta e de perseguição à superfície.

A água do mar é salgada e encerra variados sais dissolvidos, conjuntamente com miríades de corpos em suspensão. Há areias, conchas, detritos, calhaus, lodos que se deslocam e depois vão ficando em locais variados que o tempo se encarrega de encher e de fazer subir. São muitos, são dispersos e nem sempre da mesma natureza e a eles se chamam os bancos submarinos. São aí os locais predilectos para os peixes se namorarem, ou para se comerem uns aos outros enquanto os homens os não procuram.

Nos bancos da Terra Nova todas as Primaveras há a invasão superficial das águas frias (que vieram do norte em lenta e discreta corrente) por outras águas mais azuis e mais quentes da Corrente do Golfo, então engrossada e mais expandida desde as regiões tropicais. Os peixes que são mais sensíveis a estas mudanças de temperatura e de salinidade das águas sentem-se mal e têm que se precaver. Por isso nadam pelos fundos. Mas outros há que deslizam mais acima, enquanto aqueles os não assaltam numa rápida investida ascensional.

Nessa época, chegam cardumes de moluscos e de peixes menores, que apenas se alimentam de plantas minúsculas ou de animais mais pequenos, para isso bastando pairar, de olhar esbugalhado, a abrir e a fechar as bocas para a água entrar e depois sair deixando-lhes os alimentos.

Outras formas maiores aparecem ao longe, a mostrar as escuras silhuetas ou o brilho metálico das escamas. O mar é pouco transparente e por isso os peixes mal se vêem e apenas se pressentem pelo gosto das águas, pelos sons ou por misteriosas radiações. Mas há confusão nos cardumes, assalto brutal dos mais fortes, em breve seguido de dispersões quase sempre desordenadas, para depois, atraídos por estranha força, os peixes se voltarem a reunir noutro ponto, embora diminuídos pela caçada que sofreram em silêncio.

E o drama, sempre igual, repete-se invariavelmente. A luta pela existência continua com sorte vária e há espécies que prosperam e outras há que declinam, tantas vezes pela exclusiva cupidez dos homens.

Nas belas florestas adormecidas, que não raro são o imponente recobrimento vegetal do fundo do mar, também surgem os inebriantes espectáculos das colónias petrificadas de corais, formando labirintos, castelos de quimera, montanhas caprichosas, quer nas formas quer nas cores, graças aos efeitos da luz indirecta que as águas sobre elas diafanizam.

À noite, quem ande no mar pode ver estranhos fenómenos de fosforescência da água, parecendo que ela traz ardentia, de tanto brilhar. São multidões de seres vivos, pequeníssimos, a polular na sua discreta luminosidade, sendo isso outra manifestação da vida do mar.

Há viventes minúsculos dos reinos animal e vegetal que completam a existência dos que vivem a estranha luta das águas, formando o plâncton, que é o alimento dos peixes menores. Mas, além destes, há outras infindáveis formas da vida, pois, esta, que começou precisamente no mar, é aí que ainda melhor meio encontra para se perpetuar. Vêem-se crustáceos que se encarregam dos funerais dos bichos inutilizados, tudo limpando apressadamente à sua volta, na ânsia de purificação. Saltitam inocentes insectos aquáticos. Há belas e geométricas estrelas-do-mar, complicadas olotúrias, vermes, diáfanas anémonas, que mais parecem flores de um paraíso submerso, esponjas, algas a desprender-se para se irem perder na lonjura, peixes de formas e de cores surpreendentes, que nos fazem sorrir devido ao seu estranho e cómico aspecto, ou que, pelo contrário, nos fazem arripiar pelo seu todo horrível.

Em terríveis cavernas, que se abriram nas grandes profundidades, onde a luz não chega nem o rugir das tempestades, sabemos apenas que ainda há determinadas formas estranhas que o homem mal conhece, acima das quais se enfeudaram monstruosos bichos que emitem luzes, tal como fogos-fátuos perdidos nas trevas do mar profundo. Mais à superfície, há gigantes alados e cornudos, quais mafarricos, que abrem enormes bocarras onde se podem ver sucessivas fileiras de aguçados dentes. No mar, há bichos que se transportam comodamente agarrados a outros bichos. Há toda a gama de parasitas e, por toda a parte, a luta pela conservação da existência individual, usando os mais atrevidos meios de disfarce, quer na defesa quer no ataque, ou a luta pela conservação das espécies, com todas as gamas do amor primitivo dos sexos.

E o silêncio do oceano guarda ainda matéria em decomposição, ossos já corroídos, esqueletos em estranhas atitudes, carcaças de navios afundados, pérolas, tesouros perdidos, vidas que se apagaram enquanto outras vidas prosseguem na conquista do mar e na destruição da vida.

A vida das águas, que vai desde as minúsculas formas embrionárias até às feras e aos gigantes que nos parecem já de outras eras, abrange ainda os peixes-voadores, os peixes-andadores, os peixes-eléctricos, os peixes tóxicos e os venenosos, os grandes mamíferos que do mar se erguem para amamentar as crias ou aqueles outros que nos olham e gritam mostrando expressões humanas, répteis, aracnídeos, ciclóstomos, enfim, tudo o que inspirou as lendas das sereias e dos medos. Mas, também, inclui, na sua profusão de espécies, a multidão das aves, qual delas a mais curiosa na sua maneira peculiar de fazer pela existência.

Toda essa força vital, inspiradora de poetas e razão de apaixonado interesse para os biologistas, é encarada sob um aspecto mais comezinho, porém, não menos conforme com o determinismo da natureza, por aqueles outros que apenas procuram da vida do mar a satisfação das subsistências. De qualquer forma, contudo, o homem do mar, como soberano incontestado da superfície líquida, a todos aqueles seres fará por impor a sua presença, só os vendo, prosaicamente, como iscos para os seus engenhos de captura, ou então, quando já mortos por subtracção ao meio onde viviam e lutavam, simplesmente como o pescado, que lhe pode conferir a riqueza e, a todos nós afinal, uma das possibilidades de subsistir, posto que, na realidade, os comemos.

Mas são todas estas manifestações de luta, desde as dos animais aquáticos e as dos homens às do próprio meio físico, que me fazem dizer que o mar, que é todo um mundo silencioso de beleza ou de atrocidade, está vivo para nos dar parte da vida ou para nos levar à morte.

Vida e morte do bacalhau

Dentre os muitos animais que se instalaram nos mares do Norte, há certo peixe que assinalou a sua presença vincando-a pela devastação que ocasiona nos menos dotados, mercê de um apetite voraz e insaciável. Perfeitamente adaptado às regiões frias, vemo-lo por uma vasta zona do hemisfério norte, por vezes formando enormes cardumes e dominando grandes áreas do mar, quer actuando em dispersão, quer concentrado, especialmente durante determinadas épocas e em certos locais onde o homem, desde tempos remotos, por isso mesmo o procura.

Trata-se do bacalhau, compreendendo-se por esta designação não só o clássico Gadus callarias Linné, como alguns outros peixes dos mares do Norte, que são o tomecode, a arinca, o escamudo, o lingue, a bolota, o linguado e a linguiça, que a ele mais ou menos se assemelham e com ele vivem em concorrência.

Praticamente durante quase todo o ano, ou apenas em épocas mais apropriadas devido às condições do tempo, o homem realiza as safras de pesca, cada vez mais perfeitas no seu poder destrutivo, das quais resultam fantásticas mortandades para milhões de bichos, Mesmo assim, embora, possivelmente, já com um ligeiro decréscimo entre os peixes que nascem e chegam a adultos e os que são pescados, todos os anos a mesma faina se repete, quer no oceano Glacial Árctico quer no Atlântico e no Pacífico setentrionais, sendo notáveis as pescarias de Spitzberga, ilha do Urso, Noruega, Nova Zembla, costa de Murmansk, Escócia, ilhas Faroé, Islândia, Canadá, Terra Nova, Gronelândia, Alasca, mar de Okhostk e mar do Japão.

O referido peixe é um animal fusiforme, com esqueleto ósseo, tem o corpo recoberto de pequenas escamas e é suavemente abaulado e não achatado como muita gente ainda supõe, depois de o ver já escalado e seco. É parecido com o badejo e com a faneca, os quais também são chamados bacalhaus pelas nossas populações ribeirinhas.

Embora todos os peixes acima referidos pertençam a famílias zoológicas muito ligadas, existem algumas características morfológicas e biológicas que talvez convenha referir para o verdadeiro bacalhau, visto ser ele o supremo objectivo da nossa grande pesca longínqua. A sua cabeça é grossa, de lábios carnudos e largamente fendidos, podendo-a assim escancarar desmedidamente quando aboca as suas vítimas, as quais fixa mercê dos lábios e de dentes implantados nos dois maxilares e no céu da boca, em várias camadas. Os opérculos, que são angulosos e unidos na parte inferior dos seus bordos livres, protegem três fiadas de guelras recortadas e vermelhas, onde se fixa abundantemente o oxigénio da água, durante o acto da respiração. A água, para o bacalhau, como, aliás, para a maioria dos peixes, é um campo sensitivo, sápido, tal como, para nós, é o ar um meio de sensações odoríferas. Não só a mucosa da boca, como a língua, os lábios e um apêndice carnudo -o barbilhão -muito característico no bacalhau, conferem-lhe um sentido do gosto que parece ser o mais desenvolvido dos sentidos.

O bacalhau ouve, graças a um aparelho cefálico representado por um ouvido interno, onde se encontram concressões calcáreas – os otólitos – possíveis sedes dos sentidos da orientação e do equilíbrio. Estes pequenos órgãos são de tamanho variável consoante o estado nutritivo do possuidor e formados por anéis concêntricos, brancos ou escuros, indicando, cada par, um ano de idade do peixe, tal como o indicam os círculos existentes nas escamas. Quando se observam os otólitos à transparência é possível ver-se, na sua parte central, como que uma imagem de Nossa Senhora, o que muito impressiona os pescadores.

Dois finos cordões esbranquiçados, constituídos por pequenos orifícios que vão da cabeça à cauda, de cada lado do corpo, conhecidos por linhas laterais, representam os órgãos acessórios da audição e da sensibilidade, pois são capazes de garantir a percepção das ondas vibratórias que atravessem a água. As escamas das linhas laterais são perfuradas, permitindo assim que a água banhe as células sensoriais dos canais dérmicos que vêm a receber as vibrações repercutidas pela água, por vezes vindas de muito longe.

O considerável desenvolvimento dos sentidos do gosto e da audição, compensa, de certo modo, a quase impotência da visão no bacalhau. Com efeito, quando vemos os seus grandes olhos salientes, recobertos por uma espessa membrana transparente, mostrando expressões de cupidez ou de estúpida indiferença, mal nos lembramos de que o cristalino, que no homem é uma lente biconvexa capaz de projectar imagens perfeitas sobre a retina, é, no bacalhau, quase esférico, mais não podendo projectar senão imagens imperfeitas. Os olhos mal se movem e a estrutura do aparelho visual, embora complexa, faz com que o bacalhau apenas veja confusamente os objectos que o cercam. Não obstante, é sensível às cores e à intensidade luminosa, a ponto de, com esta, ficar encandeado e imóvel, ao contrário do que sucede se observar qualquer coisa que junto dele se mova, brilhando ou fazendo sombra, só então se revelando preponderante a sua visão restrita. Embora admitindo-se que o bacalhau possa, também, emitir sons (ou pelo menos ultra-sons), captáveis em aparelhos especiais, que actualmente se estudam, o facto é que ainda não temos, sobre o assunto, uma certeza concludente:

A cor do bacalhau é variável consoante os fundos, em consequência da adaptação ao meio onde predominantemente vive e, talvez, ao mimetismo. Admite-se, também, que as suas cores sejam, de certo modo, caracteres mais ou menos invariáveis, assim se podendo integrar nas características definidoras das suas raças e variedades, ainda hoje tão discutidas. As cores predominantes são o cinzento, mais ou menos escuro e mais ou menos pontuado, porém sempre mais claro no ventre, onde é quase branco. Os flancos e as barbatanas podem apresentar tonalidades que variam do cinzento-claro ao cinzento-escuro, ao amarelo e ao vermelho, quando não são azulados.

As barbatanas são: três dorsais, uma anal e uma caudal, ímpares, e duas peitorais e duas ventrais, pares. São todas munidas de vários raios cartilagíneos, são retrácteis e servem para a propulsão ou para o equilíbrio.

A sua carne é magra, ao contrário do fígado que é, em regra, muito gordo e daí o seu aproveitamento para a obtenção de óleo, rico em vitaminas.

Quando adulto, vive habitualmente entre 50 a 500 metros de profundidade, em águas cujas temperaturas, segundo se crê, não ultrapassam os limites médios de zero a oito graus positivos, com trinta e um a trinta e cinco por mil de salinidade, parecendo que é muito sensível às alterações bruscas a estes limites relativos. Permanece sobre os bancos submarinos, preferindo os fundos de rocha, calhaus, cascalho ou areia conchífera aos de areia simples ou de vasa. De qualquer forma, porém, a sua preferência recai sempre sobre os acidentes orográficos dos chamados fundos vivos, ou sejam aqueles onde é abundante a fauna sedentária, que o bacalhau procura afadigado na ânsia de obter alimento.

Os cardumes podem-se apresentar em mancha, na qual os peixes ficam circunscritos a um determinado local durante um espaço de tempo mais ou menos relacionado com a reprodução, em pinha, quando o cardume se desloca para outro local, ou ainda em plano, quando os peixes estão dispersos mas relativamente estacionários e apenas preocupados com a obtenção de alimentos, finalmente em bateria, sempre que se desloquem afastados dos fundos, o que acontece durante a perseguição aos cardumes de sandilho ou de capelim. O bacalhau desliza com facilidade, singrando velozmente atrás das suas vítimas ou disparando, como seta, no sentido da superfície, sempre que alguma coisa luzidia pareça fugir-lhe, tentando-o no seu apetite insaciável. É assim que ele em geral ataca os outros peixes, ou até mesmo os mais pequenos da sua própria espécie, quando não encontra vermes, pequenos crustáceos, moluscos cefalópodos ou mesmo bivalves, estrelas-do-mar, anémonas e toda a restante matéria viva, sempre riquíssima especialmente nas junções de correntes marítimas de temperaturas diferentes, como acontece nos bancos da Terra Nova ou em certas costas do setentrião.

O bacalhau pode atingir tamanho considerável, mas, normalmente, já se considera como muito bom exemplar o que, depois de amanhado e seco, pese uns cinco quilos. Porém, a média dos maiores que se pescam nos bancos não ultrapassa o peso de três quilos, talvez por lhes não darem tempo para que cresçam mais.

Em certas zonas, onde a pesca, aliás, se reveste de grande importância, o bacalhau, talvez pela sua excessiva sensibilidade ante as diferenças térmicas, realiza curiosas migrações, durante as quais percorre enormes distâncias do oceano, em amplos movimentos de fluxo e de refluxo, naturalmente subordinados ao maior ou menor rigorismo das estações. Outros movimentos migratórios, porém, de menor amplitude, se podem ainda verificar devido a imperiosas necessidades alimentares ou a fenómenos relacionados com a reprodução. Quanto ao primeiro, e para a zona dos bancos terranovenses, onde o bacalhau é muito abundante desde o começo da Primavera, mal chega o Inverno e as águas esfriam demasiadamente, nota-se uma acentuada rarefacção do peixe, tudo levando a crer que ele se refugia nos bancos ocidentais e nas costas da Nova Escócia, onde então pode ser encontrado. Por sua vez, em certos Verões mais quentes, também se nota a sua escassez nos bancos da Terra Nova, sendo, em contrapartida, abundante nas proximidades da península do Lavrador ou, mais ao norte, até ao estreito de Davis.

Quanto ao peixe que frequenta os mares da Gronelândia, e que parece nada ter de comum com o da Terra Nova, pois é mais esgalgado e de pele mais escura devido às pontuações serem mais pequenas e difusas, verifica-se o seu aparecimento nessas paragens sensivelmente em Junho, para quase desaparecer totalmente e por uma forma relativamente brusca em meados de Outubro. Ao que parece, emigra para as costas da Islândia e da Noruega, onde a temperatura não é tão excessiva durante o Inverno, devido à influência perdurável da Corrente do Golfo, e nessa viagem atravessa o Atlântico ao longo do chamado canal da Dinamarca.

Nos bancos que circundam estes países, cujas costas são recortadas por fiordes, também se realizam migrações, embora de menor âmbito, permitindo, dado o conhecimento dos sucessivos locais onde o peixe vai permanecendo para melhor se alimentar ou para se reproduzir, que, a bem dizer, haja pesca durante todo o ano, tanto mais abundante e de melhor qualidade quanto o reforço dos migradores e o seu respectivo estado nutritivo. O mesmo deve vir a acontecer na Gronelândia, onde há tendência para o bacalhau se tornar sedentário, constituindo uma nova raça.

Dependendo de variadíssimas condições externas, a reprodução do bacalhau efectua-se em fins do Inverno e princípios da Primavera. Aumentam as necessidades respiratórias e por isso as fêmeas passam a frequentar águas menos profundas, mais oxigenadas e de menor densidade, onde também mais facilmente se deslocam, não obstante o progressivo aumento de volume do seu corpo, em consequência do grande desenvolvimento então atingido pelos seus órgãos sexuais. Mas nem por isso abandona a sua preferência pelos fundos e apenas se limita a procurar os relevos mais próximos da superfície líquida, em regra entre 300 a 150 metros de profundidade, na influência das águas continentais, cuja temperatura é mais elevada do que a normalmente verificada na água mais profunda dos bancos.

Os machos, perseguindo as fêmeas e abandonando a sua vida de dispersão, vêm a constituir, com elas, os grandes cardumes das épocas do cio. Todos, instintivamente, procuram um meio de condições especiais, onde o trabalho mais intenso de assimilação respiratória e nutritiva seja mais fácil, durante essa exaustiva fase nupcial. Cada fêmea, a partir dos quatro para seis anos, pode realizar, segundo os tratadistas, umas dez a doze posturas, desovando entre cinco a nove milhões de ovos. A fecundação é externa e resulta da ejaculação do que os pescadores chamam a leitança, que os machos expelem ao nadarem em águas mais altas relativamente às percorridas pelas fêmeas que estão a desovar. O esperma estende-se em camadas flutuantes, formando lençóis, através dos quais passam os ovos quando se elevam, sendo fecundados. Como são pelágicos, sobrenadam e arrastam-se ao sabor das correntes marítimas locais. Mas nem todos são viáveis visto que, grande parte deles, ou são ingeridos por outros peixes ou pelos próprios progenitores, ou são arrastados para zonas demasiado frias, não resultando a fecundação, quer pelo excessivo prolongamento do período de incubação, quer por impossibilidade total de eclosão. Em contrapartida, quando os ovos são arrastados para águas mais, quentes, a sua incubação e eclosão passam a ser facilitadas.

Quando o bacalhau nasce tem apenas três a quatro centímetros de comprimento e apresenta um aspecto bem diferente do dos progenitores. Por essa altura apenas se alimenta de plâncton (reunião de microrganismos em suspensão na água). É a época em que maior desbaste sofre, devido à caça que lhe movem os restantes peixes. Como não existe qualquer regulação térmica (donde a temperatura do bacalhau ser tão variável como a do meio ambiente), as suas trocas assimiladoras são reduzidas. Mesmo assim o bacalhau desenvolve-se rapidamente, atingindo, aos cinco meses de idade, dez a quinze centímetros de comprimento. Procura, então, águas mais profundas, onde se alimenta de algas, vermes e pequenos crustáceos.

Decorrido um ano, tem já uns vinte e cinco centímetros de comprimento e, afastando-se ainda mais dos locais onde nasceu, busca águas mais frias, atraído, como carnívoro que é, por outros alimentos, como pequenos arenques, lulas, etc. Já nessa altura considerado adulto, passa, também, a ser reconhecido como o terror dos outros peixes, enquanto o homem o não é para ele próprio, no que, aliás, rivaliza, na sua fúria perseguidora, com a das raias, focas, gatas e tubarões.

Embora tudo possa servir para a alimentação do bacalhau, posto que o sabemos capaz de deglutir, conjuntamente com a presa que o entusiasmou, a própria alga e o calhau de suporte, o facto é que também tem preferências e que estas nem sempre são as mesmas. Depois de Abril, quando acaba a desova nos mares da Terra Nova e da Nova Escócia, fica exausto e esgalgado e reúne-se ao sul da ilha das Areias, procurando bancos menos profundos, também procurados pelos lúcios, pelas fanecas e pelas lulas, que o bacalhau persegue com louco entusiasmo e sem descanso. É a altura das boas pescarias sobre os bancos «Middle Groud», de São Pedro, «Banquerou» e Grande Banco, especialmente sobre o seu «Platier» ou próximo de «Easter Shol» ou dos Rochedos da Virgem.

Conhecedores das referidas preferências gastronómicas do bacalhau, os pescadores, sempre que o podem fazer, levam-no ao engodo empregando os iscos mais apropriados para lhe despertar o apetite, tanto mais voraz e descuidado quanto mais escassos sejam nessa época os seus manjares habituais. Com efeito, se, em determinadas alturas, ele se atira aos anzóis, onde se prendeu, como engodo, carne de qualquer peixe, molusco, crustáceo ou ave marinha, ou, inclusivamente, se não hesita em se precipitar sobre um simples bocado de metal brilhante a que se dá o ilusório feitio de um peixe, noutras épocas, pelo contrário, já nem todos os iscos lhe servem, tendo-se por isso que escolher os mais queridos à sua gulodice, sobressaindo a lula como o mais apetecido, seja em que circunstâncias for. Mas, como nem sempre se consegue engodar os anzóis com fragmentos de lulas (aliás, muito duradores e recuperáveis nos anzóis «em branco»), têm os pescadores que julgar da oportunidade do emprego de outros iscos, como o sandilho, o capelim, o arenque, o alabote, a gata e o rascasso, ou moluscos, como o «bulot», o «pitot», a concha de São Jaques e o «clarm», ou ainda as aves aquáticas como a gaivina, a gaivota, a cagarra, o painho e o pombalete, ou, finalmente, os iscos congelados em Portugal, como o choco, a potra, o carapau e a sardinha, tantos desses iscos ainda recuperados no bucho do bacalhau, cujas vísceras, inclusivamente, não desdenha como manjar mortal.

Contudo, não obstante a sua voracidade, o bacalhau é um peixe dos mais estúpidos e sem vigor combativo. A voracidade, a estupidez e a covardia são, precisamente, os três motivos que o levam a deixar-se aprisionar facilmente e de qualquer maneira, mais não opondo do que uma débil resistência quando envolvido numa rede fixa ou de arrasto, ou quando ferido e arrebanhado por um singelo anzol. Por isso a sua captura é relativamente tão fácil e despreocupada quanto as restantes operações complementares ao conjunto das safras são arriscadas e difíceis.

Deve ser um fenómeno raro a morte do bacalhau por velhice. Assim, quando ele não é suprimido à dentada, ou por rápida deglutição efectuada por peixes maiores ou mais atrevidos (especialmente se ele estiver doente ou enfraquecido pelo parasitismo), vem a morrer por asfixia (tal como a dos homens quando se afogam), se, bruscamente subtraído ao seu meio natural, entra em contacto com o ar atmosférico, cujo oxigénio livre ele não está habituado a fixar, pelo que fica a abrir descompassadamente a boca, o olhar vítreo, sangrando das feridas deixadas pelo brutal arrancamento do anzol ou da zagaia que o traíram, contorcendo-se no monte de cadáveres viscosos ou de peixes como ele agonizantes, com que se vão enchendo febrilmente os dóris, onde homens de aspecto bárbaro se vão atulhando de bacalhaus e de sangue.

Muitas velas no oceano

«Alô, alô, atenção. Chamada geral a todos os lugres. Digam as posições onde se encontram, os doentes que têm a bordo e do que precisam.» Foram essas as palavras mágicas com que o comandante Tavares de Almeida iniciou a assistência à frota de 56 navios portugueses nos bancos de pesca do Atlântico noroeste, palavras que só por si conferiam o alento de uma presença amiga. E foi um falatório pegado o que o aparelho de rádio nos transmitiu, quase sem parar, roufenho ou gritante conforme o timbre das vozes e as preocupações dos interlocutores.

No convés já se não podia anda, sem abafos, pois esfriara quase subitamente, sinal de que entrávamos no túnel, ou seja aquilo a que, noutra altura, ouvira chamar a muralha fria dos bancos.

O mar parecia lama e do ar avançava uma cortina de névoa, dispersa, em farrapos, que bem depressa cerrou o horizonte, onde um negrume sinistro parecia apostado em nos tolher o passo. Logo, por precaução, se passou a navegar a meia força e o apito de bordo, a espaços curtos, ia roncando pesadamente. Assim se navegou ainda mais um dia, até que no outro, à hora do crepúsculo, por entre cerração, se distinguiu a silhueta confusa de um lugre, a balouçar-se, desengonçado, ao sabor da brisa. Era o «Neptuno», com o qual, não sem emoção, se estabelecia o primeiro contacto directo. Quando o «Gil Eanes» de todo se lhe aproximou, pararam as máquinas e então, impelido pela corrente e pelo vento, graças a uma hábil manobra do capitão Ramalheira, pôs-se-lhe na revessa, para cobri-lo de qualquer surpresa.

Nessa primeira noite nos bancos adormeci a custo, pois entrava-me pelos ouvidos o martelar descompassado dos sinos do navio-hospital e do lugre, que, embora fossem apenas aviso de nevoeiro, mais me pareciam toques sinistros de finados.

Pela manhã, vieram num dóri três pescadores doentes. Enquanto aguardavam a consulta médica fui com eles relembrando a manhã radiosa em que assistíramos à missa campal, em Belém, e depois à procissão e bênção da frota, toda de branco, embandeirada e alinhada a remirar-se na grande cruz de Cristo que servia de altar-mor.

Depois, nove navios a motor e quarenta e um grandes veleiros (na sua quase totalidade dispondo de motores auxiliares), foram largando do Tejo, porém, com tais intervalos que os primeiros chegados aos bancos e os que ainda estavam a debandar de Portugal se estendiam através do mar-oceano, como num cortejo de muitas velas enfunadas pelo vento.

Tirando os seis grandes arrastões, desde Fevereiro a pescar sem descanso, na ânsia de realizarem duas safras atestadas, nessa campanha de 1946, a vida dos barcos de pesca à linha era regida pela mesma dureza e monotonia, fossem veleiros ou navios só a motor.

Os pescadores escolheram o respectivo parceiro de beliche, arrumaram a tralha que haviam embarcado -os inseparáveis barris e os garrafões de vinho, os baús de folha, as caixas de cortiça pintada dos farnéis, roupas, amuletos, recordações familiares, tudo o que lhes restava de um mundo que para trás ficava, distante.

Mas não trabalharam nos primeiros dias de viagem. Só depois de já próximos dos bancos os capitães lhes deram estrafego, isto é: distribuíram-lhes anzóis, linhas de mão e de fundo, chumbadas, rodos, celhas e em breve começariam a entregar-lhes o isco, para logo iniciarem a mais dura de todas as safras de pesca.

Tiraram rifas para o sorteio dos dóris, sem que nelas entrassem os números 11 e 13, que consideram fatídicos. E então foram dias amoráveis a cuidar desses barquitos individuais, pondo-lhes requintes de arte e de carinho pregos, tábuas, rodas de sola, toletes, banco para a bússola, anteparas, mastro, vela colorida, talhada e armada segundo a convicção náutica de cada um e a tradição da sua terra de marinheiros. Depois, expressando o seu particularismo, vá de enfeitar os próprios dóris com nomes ou letras só para eles significativas -singelas imagens de santos familiares ou apenas figuras cabalísticas, enfim, um simbolismo que muito os conforta, mais tarde, ao largarem para o mar nessa nova e pequena casa de meia dúzia de tábuas, quantas vezes o caixão dos menos afortunados.

A vida a bordo começava muito cedo, quase sempre ainda de noite (quatro ou cinco horas da madrugada) e os pescadores, que dormiam dois a dois e vestidos, por vezes em acanhados beliches, eram despertados pela voz grave do vigia que lhes lançava um «Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado, são já tantas da manhã»

Aprontavam-se com ligeireza, comiam à pressa à mesa do rancho onde dormiram e logo começavam a saltar para os dóris, que destramente arriavam ao mar, depois de se benzerem. Afastavam-se do navio-mãe e espalhavam-se, à vela ou a remos, até onde lhes parecesse melhor para fundear e iniciar sem descanso o vaivém de linhas abaixo e linhas acima, primeiro fazendo-as correr pelo fundo do mar e fixando-as entre duas pequenas bóias, presos a elas muitos e muitos anzóis, que previamente iscaram com a maior perícia, horas depois içando essas linhas penosamente, pois vêm quase sempre carregadas de bacalhaus. No entretempo desta operação com as linhas de fundo, os pescadores não param, visto terem pressa de encher os dóris, se possível duas ou mais vezes, e, também, porque não querem enregelar na inacção. De pé, vão entretanto o tempo de espera, fazendo bruscos movimentos dos braços no vaivém das zagaias e das linhas de mão, pesca que muitas vezes lhes dá apreciáveis resultados e era a única que se praticava outrora.

Sempre de pé, no fundo do dóri, o pescador, silencioso e taciturno, olha a cortina de bruma que se levanta ao entardecer e a breve trecho o envolve e quase sufoca. Quem sabe se não lhe ocorre ao pensamento a tristeza de um percalço que o leve ou incapacite, e por isso acelera a recolha das linhas e se prepara para mais depressa responder ã chamada do lugre. Quando rompe a neblina, o capitão, de vigia a bordo, não leva muito que não comece a badalar o sino ou a trespassar o ar viscoso com os lamentos enervantes da sereia, em apelos sucessivos. Se uns vêm depressa, outros, contudo, ainda ficam ao longe, a aguardar, impassíveis, que mais e mais peixes se prendam nas linhas, e só depois de novas e insistentes chamadas do navio-mãe consentem em levantar os aparelhos de fundo.

À medida em que a longa enfiada de peixes lhes vão chegando às mãos gretadas do frio e ensanguentadas das picadas dos anzóis, desembucham-nos das linhas, atormentam-nos com pancadas vigorosas, por vezes sangram-nos ou deixam-nos a estrebuchar na amálgama do bote, até os trazer junto à borda do lugre, para onde os atiram febrilmente, espetados em longas forquilhas manejadas em precário equilíbrio.

Mas nem sempre o mar e o vento se mantêm favoráveis ao regresso, precisamente quando os braços já se negam a remar. Se, impotentes, não conseguem vencer as forças brutas da natureza, acontece que podem ficar horas infinitas na angústia e no pavor de não chegar. Foi essa, aliás, a sensação que uma das vezes senti nas minhas andanças por vários lugres, não obstante a confiança que me inspirava a calma resignação e o apego à luta do valente remador, que me transportava por entre montanhas de água. A todo o momento parecia que uma onda maior ultrapassava o frágil esquife onde me agarrava, contando por séculos os minutos que normalmente levaria a percorrer a curta distância até ao «Gil Eanes». Se constituiam, para mim, dois problemas o entrar para os lugres, esperando o momento preciso em que o dóri, que me transportava, se elevasse numa onda maior até à amurada do navio, a que me agarrava penosamente, escorregando nos limos e na viscosidade, descaindo com os seus balanços laterais, por vezes mergulhando nas águas frias e subindo como num balancé, ou o sair, no regresso, quase pulando, à sorte, para ficar acachapado canhestramente no dóri, sempre aos saltos sobre as vagas, o pior foi quando de um destes me pendurei na oscilante escada de quebra-costas do navio-apoio e nela fiquei, tolhido de movimentos, pelos balanços que então dava, enquanto a água gelada uma vez mais me banhava num longo desafio.

Todavia, quanto não apreciava as visitas aos lugres e neles comparticipava de um pouco dessa vida rude mas curiosíssima das tripulações e dos pescadores. À tarde, via-os chegar nas suas frágeis embarcações, amarrá-las e içá-las, numa algazarra, correrem para o rancho, onde uma abundante refeição os aguardava, mas que eles engoliam à pressa visto os esperar um não menos fatigante trabalho, geralmente conhecido pela escala, Divididos por especializações, espalhavam-se os pescadores pelo convés e porão, Os troteiros, retiravam os peixes dos quetes, armados junto às amuradas, golpeavam-nos ao longo do ventre e da cabeça e atiravam-nos para as mesas, onde os parte-cabeças os ajeitavam para as separar com uma pancada seca. Depois das vísceras arrancadas e escolhidos os fígados, seguia-se a tarefa do escalador, no corte da porção anterior da espinha, operação que logo dava a forma espalmada que todos conhecem. De grandes celhas com água corrente, moços sonolentos completavam a lavagem, agitando os peixes, que empurravam com os garfos de madeira, depois escorriam-nos e atiravam-nos por longas mangas de lona até ao interior do porão. Aí, de joelhos, movendo-se com dificuldade, os salgadores esfalfavam-se para acamá-los com regular simetria e para enchê-los de sal marinho, em sucessivas camadas de peixe e mais peixe até o porão se atestar. Se não fosse esse sal, não seria possível a conservação do bacalhau durante os cinco meses de permanência nos pesqueiros, nem o tempo ulterior de espera nos portos de destino, durante a secagem.

Às vezes tardíssimo, consoante a abundância do peixe, acabava a escala, arrumava-se o material e baldeava-se o convés, até se ouvir as pancadas do sino e a voz do capitão no seu «Louvado seja Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. Por hoje acabou. Amanhã Deus dará mais». E todos se encaminhavam para o rancho onde, de tão cansados e sonolentos, mal saboreavam a afamada chora, uma sopa de caras de bacalhau, condimentada e substancial e de que tantas saudades já tenho. Em breve, um silêncio pesado se instalava por umas escassas horas, em toda a frota, significando o justo repouso de quem penou um dia inteiro.

Entretanto, o «Gil Eanes», lá prosseguia nos seus trabalhos de assistência aos barcos. Era a vez do «Ana Maria» e do «Passos de Brandão», ambos a balouçar das popas os característicos sacos de lona, com as roupas dos pescadores, na lavagem gratuita da água salgada e que, ao longe, me pareciam enforcados. No Platier do Grande Banco havia vaga muto grossa, mas que não impediu a assistência ao "Maria Frederico». No outro dia, em compensação, estava calmaria absoluta e assim melhor se assistiram o «Trombetas», o «Leopoldina» e o «Ana Primeiro». Mas, o cair da tarde levantou bruscamente a brisa e o mar logo respondeu com uma ondulação cavada, precisamente quando eu, depois de já ter visitado o «António Ribau», o «Júlia Quarto», o «Lousado», o «Infante de Sagres» e o «Inácio Cunha», regressava à pressa, do «Rio Lima». Uma vez mais, portanto, sofri as peripécias das atracações e abordagens amarfanhantes, mas dando-me, por sua vez, a vera imagem da safra nos mares distantes e traiçoeiros, onde muitos barquitos corriam à pressa para junto dos navios-mães e, depois, uma orgulhosa frota bacalhoeira de lugres e navios a motor, a maior do mundo, suportava os fortes impulsos das ondas e do vento, que lhes não consentia o enfunar de uma só vela.

Pesca imprevista

A tarde decorria serenamente, sobre o Grande Banco. O mar estava calmo e apenas a névoa, distante, impedia que a luz do Sol reverberasse como nas praias portuguesas. Dir-se-ia um mundo longínquo, onde o silêncio reinasse na amplidão do azul e do cinzento e onde os pescadores, como figuras de lenda, se iam movendo, suavemente, por sobre as águas cor de estanho do oceano.

Era assim que as silhuetas se destacavam, escuras, ante a brancura da névoa que se esbatia. Remavam com lentidão, cansados da pesca farta desse dia. Outros, de pé sobre as frágeis tábuas dos dóris, moviam os braços no ritmo brusco da pesca com as zagaias. Acontecia que o bacalhau, guloso e voraz porque a fome o apertava, muito se iludia ante a forma e o brilho do aparelho, atacando-o em subida vertiginosa. Quase sempre ficava preso, nas posições mais inverosímeis, espetado num dos dois ganchos que formam a cauda daquele engenho de captura. Também assim se pescava de bordo do «Gil Eanes», gozando-se as horas vagas e o brando calor de uma tarde de São Pedro, nos bancos da Terra Nova.

Na amurada da ré, havia expectativa, pois que, à transparência das águas, vira-se o vulto sombrio de um grande tubarão. Assim já não valia esfalfar os braços a içar e a largar zagaias, pois que os bacalhaus andariam fugidos, apavorados com a presença de tal inimigo. Só mais tarde se voltou a tentar a pesca, embora com pouco êxito.

Semelhante contraste com os pescadores dos dóris, mais ao largo, fazia antever o regresso da fera, que, aliás, não se fez esperar. Com efeito, acabara um dos tripulantes de zagaiar um peixe, quando um grande vulto se desenhou na prumada do navio, sob o azul transparente da água. Com rapidez instintiva, puxava o improvisado pescador pelo fio da zagaia, por espírito de competição, que o induzia a defender o produto da sua pesca ante a glutonice do voraz perseguidor. Era uma alegre corrida. Porém, o tubarão foi mais veloz, em breve escancarando a enorme bocarra, onde várias fiadas de dentes, curtos e ponteagudos, tornariam impossível qualquer veleidade de fuga. Foi assim que, num ápice, desapareceu o peixe e a própria zagaia, cujos dois ganchos aguçados iriam, contudo, prender-se nas entranhas do intrometido.

Tudo isto se passou com rapidez e foi curiosamente observado da amurada do navio, motivando a animação dos assistentes, entre os quais a minha pessoa, para quem tal espectáculo era inédito. Já se gritava por toda a parte a interessante notícia e de todos os lados se corria ao chamamento. Instintivamente começou-se a puxar pelo fio que prendia o bicho e daí veio o desejo de, assim mesmo, o pescar. Mas, também, logo se viu ser impossível que o tubarão não quebrasse o fio, devido ao seu grande peso. Por isso o foram aliviando, enquanto a fera corria para todos os lados, contorcendo-se com dores e sangrando das entranhas, na ânsia brutal de se libertar de tão incómoda prisão.

Lutou durante muito tempo, porém, acabando por se cansar e de esvair, lentamente é certo, contudo tão inflexivelmente quanto o sangue não deixava de se espargir em fino jacto, que traçando um caminho sinuoso nas águas antes transparentes, e que, a pouco e pouco, escureciam.

O espectáculo, primitivamente anunciado com foros de sensacional no decorrer de uma assistência trabalhosa mas quase sem beleza e variedade, ameaçava cair na monotonia. Apenas, de vez em quando, o tubarão sarabandava junto à superfície, voltando-se como uma lâmina de aço ao ser temperada. Espadanava, então, arrogantes cachões, para de novo mergulhar e correr, num vaivém, para baixo, para cima e para os lados, enquanto a prisão, agora cada vez mais curta, lho ia permitindo.

Já se viam distintamente todos os pormenores do seu grande corpo escuro, donde saíam reflexos, que a água me transmitia em lampejos cor de esmeralda. Ou então, era o branco espectral do seu ventre bojudo, onde a bocarra continuava aberta e terrível. O intruso já dava manifestos sinais de derrota, vencido pela dor, pelo cansaço e pela sangria ininterrupta, que lentamente o matava. Por isso, todos, à uma, começaram o verdadeiro trabalho do içamento.

Uma outra zagaia foi-lhe atirada pela boca a baixo, para reforço da primeira. Mas, esta, conseguiu ele safá-la, trincando-a com fúria até a separar do fio. Depois disso, começou nova e derradeira correria. Julgando-se de novo no mar livre, espadanou, gastando as poucas forças que lhe restavam, num último impulso de libertação. Mas, dessa vez, o que conseguiu foi que o próprio estômago lhe saísse pela boca fora, esticado pela zagaia e pelo fio a que todos nos agarrávamos com doentio apego.

Como o sangue escorresse mais e como as forças o traíssem no momento para ele decisivo, não resultou esta última tentativa de afastamento. Era um condenado, não obstante ainda perigoso para quem dele se aproximasse. Pairou então, já prostrado, embora sempre ameaçador, a cauda chicoteando sem nexo, os olhos fitos no azul do mar donde o furtavam irremediavelmente.

Vieram ganchos, cordas e espetos, tudo o que servisse para prender um bicho tão corpulento. Choviam alvitres desencontrados no meio da algazarra dos assistentes. Reinava uma alegria bárbara ao ver a emocionante luta já prestes do seu fim.

Foi então que se aproximaram dois barquitos com pescadores nossos compatriotas, a quem se pediu ajuda. Os seus olhares eram calmos e os seus gestos indiferentes. Mas não hesitaram, mesmo ante o evidente risco de se voltarem os seus frágeis dóris, ante um impulso mais violento do prisioneiro.

Remaram para o local da luta e entalaram o tubarão entre os seus botes, numa confusão de espumas e de redemoinhos. Um dos pescadores, mais idoso, não atinava com o que fazer, parecendo alheado de tudo e à mercê da sorte a que indiferentemente se lançara. Mas o outro pescador, rapaz decidido e forte, entrou no combate com entusiasmo e coragem, que talvez lhe não fizessem suspeitar da imprudência em que se metia.

Aproximou-se o mais que pôde, sempre de remo erguido, para, com este, vibrar uma pancada no gordo cachaço do tubarão, que a repercutiu num som cavo. Praticamente, não fora grande o atordoamento e apenas as águas voltaram a entrar em reboliço. Foi então que o pescador, talvez agora medindo o perigo mas confiado na sua audácia, quis atrever-se a passar um laço na cauda do tubarão, para que, de bordo, ri içassem por dois lados.

Fez-se breve silêncio, pois todos ficaram suspensos ante tal desígnio. Sem hesitar, o nosso homem aproximou-se do enorme selácio, que então jazia imóvel e de olhar semivítreo. Depois de muito se debruçar sobre o seu frágil dóri, conseguiu deitar a mão à dura cauda do animal, que, sentindo-se preso por outro lado, a sacudiu terrivelmente, como se fosse um cutelo, tudo em redor se confundindo em fortes cachões de água, esguichada para todos os lados e que envolvia a própria fera, os dois barquitos e o pescador, que se viu, contudo, em muito precário equilíbrio.

Foi um momento terrível. Não obstante, a audácia e a valentia acabaram por triunfar. O homem dominara. A fera ficara amarrada com um forte laço de corda, do qual jamais se desprenderia.

Subiu ao auge o entusiasmo de todos quando o tubarão emergiu da água, em marcha ascensional ao longo do costado do navio, içado lentamente. Da sua bocarra, por entre duas fiadas de grandes dentes triangulares, pendia o estômago, vermelho-escuro, viscoso, que ele vomitara num último arranco. Dele caía, em fio, uma baba sanguinolenta.

O peixito que ele perseguira e fora a causa da sua perdição, conseguira, dessa forma, libertar-se. Também os homens se vingavam de todos os malefícios que lhes têm causado outros selácios, agora espetando e retalhando neste moribundo. Corria sangue sobre o convés e andavam fragmentos de vísceras de mão em mão. Não faltaram os amadores fotográficos nem os curiosos quanto às questões de biologia. Era um anequim, Isurus nasus (Bonnaterre), um dos mais terríveis tubarões, aliás muito apreciado na pesca grossa desportiva.

O Homo sapiens gozava a certeza do seu triunfo, olhando o que restava do inimigo implacável. Mas não chegara, com isso, a doce confiança quanto aos cardumes dos nossos peixes apetecidos. Junto ao cadáver mutilado do tubarão, que os homens devolveram ao mar e nele descia vagarosamente, já uma outra sombra evolucionava, enorme e sinistra.