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Mar Implacável
Jerónimo Osório de Castro
A publicação de Mar Implacável, texto extraído do livro Roteiro do Atlântico Norte, foi gentilmente autorizada pela Editorial Inquérito.
© 1997, Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8396-20-1
Lisboa, Outubro de 1997
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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MAR IMPLACÁVEL
Ao encontro da bruma
Lembro a minha saída de Londres, a bordo do «Gil Eanes».
Entardecia quando larguei de Charlton e comecei a descer o Tamisa, a caminho do mar. Foi sob uma luz triste de crepúsculo que passei em frente de Gravesenda e de Greenwich, dois nomes que decorara desde os bancos do liceu. Da primeira, apenas distingui um pequeno amontoado de casas baixas, por entre arvoredo, enquanto que, da segunda cidade, retive a imagem, tão conhecida, do observatório astronómico onde se fez passar o meridiano central do nosso fuso horário.
Cada vez mais o rio se alargava e a pouco e pouco confundia com o próprio mar. Sulcava-o abundante navegação mercante e até ao fim não deixei de ir vendo edificações fabris, blocos compactos, com muitas chaminés e muito fumo pardacento, conspurcando as manchas do casario baixo e o verde sombrio dos pinhais ou dos prados ribeirinhos.
Já noite, navegando com rumo oeste, distingui dois faróis potentes na costa inglesa, um dos quais assinalava o cabo Lands End, que os antigos supunham ser o final da terra. De manhã chegou um cortejo de gaivotas, que alegremente se resolveram a acompanhar-me, em luta com o vento, que soprava rijo.
Após dois dias de navegação em mar agitado; encontrei alguns arrastões franceses, que estavam, muito ao largo, sobre o banco Grande Sole, a pescar entre bóias com bandeirolas, não obstante a vaga grossa que fazia. Além das gaivotas e do vento, também passei a ser acompanhado por um bando de toninhas, que pareciam caprichar na elegância dos saltos fora de água.
A travessia do Atlântico realizava-se em condições pouco agradáveis, quase sempre sob um céu nebuloso e triste, que mais ensombrava o mar e as suas grossas vagas, as quais o navio a custo ia galgando numa interminável monotonia de subidas e descidas, que lhe fizeram reduzir a marcha até à média de quatro nós.
Nevoeiro. Várias vezes o casco bateu com estrondo contra as ondas alterosas, tudo estremecendo tetricamente, ou eram elas que irrompiam pela amurada de bombordo, varrendo o convés, estrepitosas, na sua fúria. O balanço de parafuso, que então já se sentia a bordo, obrigava os que estavam livres a ficar pelos beliches, entregues aos seus próprios pensamentos, na impossibilidade de os expandir, olhando o mar, enquanto outros se refugiavam, apáticos, no salote, assim se passando o tempo ou se enganando a tristeza dessa viagem tormentosa.
Durante a noite houve outra vez neblina e o mar continuou agitado, obrigando o navio a balançar com força e aos estremeções. Nada se distinguia para além do mastro de vante e só se escutava o som grave do apito do navio. Contudo, foi uma surpresa aterradora o ter-se avistado a mancha sombria de um grande cargueiro, que navegava de encontro ao nosso barco, por entre a névoa, do qual a tempo se desviou, evitando um abalroamento cujas consequências, tudo o levava a crer, ser-nos-iam bem funestas.
O vento não parava nem de dia nem de noite e estava cada vez mais frio. Enfim, após oito dias de viagem terrivelmente maçadora, amanheceu calmo e o céu tornou-se límpido. O mar já era chão e tremeluzia à luz clara do Sol. No posto de radiotelegrafia puderam captar a emissão radiofónica de um lugre e desde então não mais perdi o contacto com os navios portugueses que pescavam o bacalhau no outro lado do Atlântico, até chegar-lhe à vista e neles passar a ter um convívio tão rude como acidentado.
O silêncio do mar
O reino obscuro e silencioso das águas já não pode esconder todos os seus segredos. Berço da vida, à qual conferiu as próprias condições em que ela ainda hoje pode existir e perpetuar-se (não obstante já ter em grande parte saído do seu primitivo meio original, fixando-se na terra e no ar), é ainda a água, contudo, que encerra o princípio de todas as existências, pois que não há vivente que seja capaz de subsistir sem que as células do seu corpo se não embebam em enormes percentagens líquidas. Por isso todos compreendemos a atracção da água, quando contemplamos o seu incansável movimento junto às praias e rochedos dos litorais e lhe sentimos o cheiro penetrante e a ouvimos na sinfonia dos seus murmúrios.
Mar. Água salgada alagando a maior parte da superfície da Terra, isolando os seus continentes, formando as suas ilhas, enchendo os grandes abismos e nivelando sub-repticiamente os leitos rochosos que ele invadiu e vai tapando de lodo e de detritos.
Apenas nas camadas superficiais o mar apresenta ténues gradações, até se abrir no azul ou no verde, ou nas combinações mais capciosas, consoante a atmosfera que o envolve, os fundos e a própria vida das águas. Aí se começam a sentir as primeiras influências do calor solar e, conjuntamente com a atracção do Sol e da Lua, ocasionando-lhe as marés, com todas as suas consequências, as moléculas líquidas vão-se modificando no volume e nas suas posições relativas, motivando os grandes movimentos de fugida das águas, estranhos rios que se distinguem no seio dos próprios oceanos e a que chamamos as correntes marítimas. Outras correntes se formam nas águas devido à direcção e força dos ventos, às desiguais densidades das diferentes camadas líquidas, à fusão dos gelos e à rotação da terra, correntes essas de grande importância nas latitudes onde então navegava, pois são elas que fazem atirar para as costas os navios que incautamente se aproximam.
Tempestades. Naufrágios. Aves a esvoaçar lá no alto, ou, poisadas de cansaço, a embrulhar-se na crista das vagas até serem engolidas pelas águas ou por certos peixes que então mais se atrevem a vir à superfície. O céu fica azul-escuro e depois vai carregando até ao negrume, que apenas relâmpagos iluminam de jacto, como se qualquer coisa explodisse ao longe. Tudo estremece com o estampido brutal, que parece quebrar o próprio firmamento, enquanto as águas, que se contraíram por um momento, mais e mais se agitam até saltar em jactos e em turbilhões. Levantam-se espumas multicores, quais farrapos de renda que o vento arrancou ao mar, rugidor e terrível. Erguem-se montanhas de água, que eu nem sei como alguns navios podem galgar. Abrem-se abismos qu e tudo parecem engolir, tão bruscamente como em sorvedoiros. Há ondas que se chocam em saraivadas de espumas e de ruídos. É o mar a contorcer-se na dança alucinada das fúrias. Assim responde o oceano ao silvar do vento e assim é ele belo e é cruel na sua força brutal de irresponsável.
Mas esta luta ciclópica, por mais que dure, acaba sempre nos grandes momentos de acalmia e, então, o mar é bom e ainda é mais belo nas suas cores de doce suavidade, qual toalha de madrepérola dando reflexos de oiro e de prata sob o aveludado do azul, esbranquiçado ou plúmbeo quando à luz do dia, ou estranhamente iluminado pela Lua, mas onde a vida interior, porém, para nós continua tão obscura que raro se deixa pressentir, salvo nalguns momentos fugazes de luta e de perseguição à superfície.
A água do mar é salgada e encerra variados sais dissolvidos, conjuntamente com miríades de corpos em suspensão. Há areias, conchas, detritos, calhaus, lodos que se deslocam e depois vão ficando em locais variados que o tempo se encarrega de encher e de fazer subir. São muitos, são dispersos e nem sempre da mesma natureza e a eles se chamam os bancos submarinos. São aí os locais predilectos para os peixes se namorarem, ou para se comerem uns aos outros enquanto os homens os não procuram.
Nos bancos da Terra Nova todas as Primaveras há a invasão superficial das águas frias (que vieram do norte em lenta e discreta corrente) por outras águas mais azuis e mais quentes da Corrente do Golfo, então engrossada e mais expandida desde as regiões tropicais. Os peixes que são mais sensíveis a estas mudanças de temperatura e de salinidade das águas sentem-se mal e têm que se precaver. Por isso nadam pelos fundos. Mas outros há que deslizam mais acima, enquanto aqueles os não assaltam numa rápida investida ascensional.
Nessa época, chegam cardumes de moluscos e de peixes menores, que apenas se alimentam de plantas minúsculas ou de animais mais pequenos, para isso bastando pairar, de olhar esbugalhado, a abrir e a fechar as bocas para a água entrar e depois sair deixando-lhes os alimentos.
Outras formas maiores aparecem ao longe, a mostrar as escuras silhuetas ou o brilho metálico das escamas. O mar é pouco transparente e por isso os peixes mal se vêem e apenas se pressentem pelo gosto das águas, pelos sons ou por misteriosas radiações. Mas há confusão nos cardumes, assalto brutal dos mais fortes, em breve seguido de dispersões quase sempre desordenadas, para depois, atraídos por estranha força, os peixes se voltarem a reunir noutro ponto, embora diminuídos pela caçada que sofreram em silêncio.
E o drama, sempre igual, repete-se invariavelmente. A luta pela existência continua com sorte vária e há espécies que prosperam e outras há que declinam, tantas vezes pela exclusiva cupidez dos homens.
Nas belas florestas adormecidas, que não raro são o imponente recobrimento vegetal do fundo do mar, também surgem os inebriantes espectáculos das colónias petrificadas de corais, formando labirintos, castelos de quimera, montanhas caprichosas, quer nas formas quer nas cores, graças aos efeitos da luz indirecta que as águas sobre elas diafanizam.
À noite, quem ande no mar pode ver estranhos fenómenos de fosforescência da água, parecendo que ela traz ardentia, de tanto brilhar. São multidões de seres vivos, pequeníssimos, a polular na sua discreta luminosidade, sendo isso outra manifest ação da vida do mar.
Há viventes minúsculos dos reinos animal e vegetal que completam a existência dos que vivem a estranha luta das águas, formando o plâncton, que é o alimento dos peixes menores. Mas, além destes, há outras infindáveis formas da vida, pois, esta, que começou precisamente no mar, é aí que ainda melhor meio encontra para se perpetuar. Vêem-se crustáceos que se encarregam dos funerais dos bichos inutilizados, tudo limpando apressadamente à sua volta, na ânsia de purificação. Saltitam inocentes insectos aquáticos. Há belas e geométricas estrelas-do-mar, complicadas olotúrias, vermes, diáfanas anémonas, que mais parecem flores de um paraíso submerso, esponjas, algas a desprender-se para se irem perder na lonjura, peixes de formas e de cores surpreendentes, que nos fazem sorrir devido ao seu estranho e cómico aspecto, ou que, pelo contrário, nos fazem arripiar pelo seu todo horrível.
Em terríveis cavernas, que se abriram nas grandes profundidades, onde a luz não chega nem o rugir das tempestades, sabemos apenas que ainda há determinadas formas estranhas que o homem mal conhece, acima das quais se enfeudaram monstruosos bichos que emitem luzes, tal como fogos-fátuos perdidos nas trevas do mar profundo. Mais à superfície, há gigantes alados e cornudos, quais mafarricos, que abrem enormes bocarras onde se podem ver sucessivas fileiras de aguçados dentes. No mar, há bichos que se transportam comodamente agarrados a outros bichos. Há toda a gama de parasitas e, por toda a parte, a luta pela conservação da existência individual, usando os mais atrevidos meios de disfarce, quer na defesa quer no ataque, ou a luta pela conservação das espécies, com todas as gamas do amor primitivo dos sexos.
E o silêncio do oceano guarda ainda matéria em decomposição, ossos já corroídos, esqueletos em estranhas atitudes, carcaças de navios afundados, pérolas, tesouros perdidos, vidas que se apagaram enquanto outras vidas prosseguem na conquista do mar e na destruição da vida.
A vida das águas, que vai desde as minúsculas formas embrionárias até às feras e aos gigantes que nos parecem já de outras eras, abrange ainda os peixes-voadores, os peixes-andadores, os peixes-eléctricos, os peixes tóxicos e os venenosos, os grandes mamíferos que do mar se erguem para amamentar as crias ou aqueles outros que nos olham e gritam mostrando expressões humanas, répteis, aracnídeos, ciclóstomos, enfim, tudo o que inspirou as lendas das sereias e dos medos. Mas, também, inclui, na sua profusão de espécies, a multidão das aves, qual delas a mais curiosa na sua maneira peculiar de fazer pela existência.
Toda essa força vital, inspiradora de poetas e razão de apaixonado interesse para os biologistas, é encarada sob um aspecto mais comezinho, porém, não menos conforme com o determinismo da natureza, por aqueles outros que apenas procuram da vida do mar a satisfação das subsistências. De qualquer forma, contudo, o homem do mar, como soberano incontestado da superfície líquida, a todos aqueles seres fará por impor a sua presença, só os vendo, prosaicamente, como iscos para os seus engenhos de captura, ou então, quando já mortos por subtracção ao meio onde viviam e lutavam, simplesmente como o pescado, que lhe pode conferir a riqueza e, a todos nós afinal, uma das possibilidades de subsistir, posto que, na realidade, os comemos.
Mas são todas estas manifestações de luta, desde as dos animais aquáticos e as dos homens às do próprio meio físico, que me fazem dizer que o mar, que é todo um mundo silencioso de beleza ou de atrocidade, está vivo para nos dar parte da vida ou para nos levar à morte.
Vida e morte do bacalhau
Dentre os muitos animais que se instalaram nos mares do Norte, há certo peixe que assinalou a sua presença vincando-a pela devastação que ocasiona nos menos dotados, mercê de um apetite voraz e insaciável. Perfeitamente adaptado às regiões frias, vemo-lo por uma vasta zona do hemisfério norte, por vezes formando enormes cardumes e dominando grandes áreas do mar, quer actuando em dispersão, quer concentrado, especialmente durante determinadas épocas e em certos locais onde o homem, desde tempos remotos, por isso mesmo o procura.
Trata-se do bacalhau, compreendendo-se por esta designação não só o clássico Gadus callarias Linné, como alguns outros peixes dos mares do Norte, que são o tomecode, a arinca, o escamudo, o lingue, a bolota, o linguado e a linguiça, que a ele mais ou menos se assemelham e com ele vivem em concorrência.
Praticamente durante quase todo o ano, ou apenas em épocas mais apropriadas devido às condições do tempo, o homem realiza as safras de pesca, cada vez mais perfeitas no seu poder destrutivo, das quais resultam fantásticas mortandades para milhões de bichos, Mesmo assim, embora, possivelmente, já com um ligeiro decréscimo entre os peixes que nascem e chegam a adultos e os que são pescados, todos os anos a mesma faina se repete, quer no oceano Glacial Árctico quer no Atlântico e no Pacífico setentrionais, sendo notáveis as pescarias de Spitzberga, ilha do Urso, Noruega, Nova Zembla, costa de Murmansk, Escócia, ilhas Faroé, Islândia, Canadá, Terra Nova, Gronelândia, Alasca, mar de Okhostk e mar do Japão.
O referido peixe é um animal fusiforme, com esqueleto ósseo, tem o corpo recoberto de pequenas escamas e é suavemente abaulado e não achatado como muita gente ainda supõe, depois de o ver já escalado e seco. É parecido com o badejo e com a faneca, os quais também são chamados bacalhaus pelas nossas populações ribeirinhas.
Embora todos os peixes acima referidos pertençam a famílias zoológicas muito ligadas, existem algumas características morfológicas e biológicas que talvez convenha referir para o verdadeiro bacalhau, visto ser ele o supremo objectivo da nossa grande pesca longínqua. A sua cabeça é grossa, de lábios carnudos e largamente fendidos, podendo-a assim escancarar desmedidamente quando aboca as suas vítimas, as quais fixa mercê dos lábios e de dentes implantados nos dois maxilares e no céu da boca, em várias camadas. Os opérculos, que são angulosos e unidos na parte inferior dos seus bordos livres, protegem três fiadas de guelras recortadas e vermelhas, onde se fixa abundantemente o oxigénio da água, durante o acto da respiração. A água, para o bacalhau, como, aliás, para a maioria dos peixes, é um campo sensitivo, sápido, tal como, para nós, é o ar um meio de sensações odoríferas. Não só a mucosa da boca, como a língua, os lábios e um apêndice carnudo -o barbilhão -muito característico no bacalhau, conferem-lhe um sentido do gosto que parece ser o mais desenvolvido dos sentidos.
O bacalhau ouve, graças a um aparelho cefálico representado po r um ouvido interno, onde se encontram concressões calcáreas – os otólitos – possíveis sedes dos sentidos da orientação e do equilíbrio. Estes pequenos órgãos são de tamanho variável consoante o estado nutritivo do possuidor e formados por anéis concêntricos, brancos ou escuros, indicando, cada par, um ano de idade do peixe, tal como o indicam os círculos existentes nas escamas. Quando se observam os otólitos à transparência é possível ver-se, na sua parte central, como que uma imagem de Nossa Senhora, o que muito impressiona os pescadores.
Dois finos cordões esbranquiçados, constituídos por pequenos orifícios que vão da cabeça à cauda, de cada lado do corpo, conhecidos por linhas laterais, representam os órgãos acessórios da audição e da sensibilidade, pois são capazes de garantir a percepção das ondas vibratórias que atravessem a água. As escamas das linhas laterais são perfuradas, permitindo assim que a água banhe as células sensoriais dos canais dérmicos que vêm a receber as vibrações repercutidas pela água, por vezes vindas de muito longe.
O considerável desenvolvimento dos sentidos do gosto e da audição, compensa, de certo modo, a quase impotência da visão no bacalhau. Com efeito, quando vemos os seus grandes olhos salientes, recobertos por uma espessa membrana transparente, mostrando expressões de cupidez ou de estúpida indiferença, mal nos lembramos de que o cristalino, que no homem é uma lente biconvexa capaz de projectar imagens perfeitas sobre a retina, é, no bacalhau, quase esférico, mais não podendo projectar senão imagens imperfeitas. Os olhos mal se movem e a estrutura do aparelho visual, embora complexa, faz com que o bacalhau apenas veja confusamente os objectos que o cercam. Não obstante, é sensível às cores e à intensidade luminosa, a ponto de, com esta, ficar encandeado e imóvel, ao contrário do que sucede se observar qualquer coisa que junto dele se mova, brilhando ou fazendo sombra, só então se revelando preponderante a sua visão restrita. Embora admitindo-se que o bacalhau possa, também, emitir sons (ou pelo menos ultra-sons), captáveis em aparelhos especiais, que actualmente se estudam, o facto é que ainda não temos, sobre o assunto, uma certeza concludente:
A cor do bacalhau é variável consoante os fundos, em consequência da adaptação ao meio onde predominantemente vive e, talvez, ao mimetismo. Admite-se, também, que as suas cores sejam, de certo modo, caracteres mais ou menos invariáveis, assim se podendo integrar nas características definidoras das suas raças e variedades, ainda hoje tão discutidas. As cores predominantes são o cinzento, mais ou menos escuro e mais ou menos pontuado, porém sempre mais claro no ventre, onde é quase branco. Os flancos e as barbatanas podem apresentar tonalidades que variam do cinzento-claro ao cinzento-escuro, ao amarelo e ao vermelho, quando não são azulados.
As barbatanas são: três dorsais, uma anal e uma caudal, ímpares, e duas peitorais e duas ventrais, pares. São todas munidas de vários raios cartilagíneos, são retrácteis e servem para a propulsão ou para o equilíbrio.
A sua carne é magra, ao contrário do fígado que é, em regra, muito gordo e daí o seu aproveitamento para a obtenção de óleo, rico em vitaminas.
Quando adulto, vive habitualmente entre 50 a 500 metros de profundidade, em águas cujas temperaturas, segundo se crê, não ultrapassam os limites médios de zero a oito graus positivos, com trinta e um a trinta e cinco por mil de salinidade, parecendo que é muito sensível às alterações bruscas a estes limites relativos. Permanece sobre os bancos submarinos, preferindo os fundos de rocha, calhaus, cascalho ou areia conchífera aos de areia simples ou de vasa. De qualquer forma, porém, a sua preferência recai sempre sobre os acidentes orográficos dos chamados fundos vivos, ou sejam aqueles onde é abundante a fauna sedentária, que o bacalhau procura afadigado na ânsia de obter alimento.
Os cardumes podem-se apresentar em mancha, na qual os peixes ficam circunscritos a um determinado local durante um espaço de tempo mais ou menos relacionado com a reprodução, em pinha, quando o cardume se desloca para outro local, ou ainda em plano, quando os peixes estão dispersos mas relativamente estacionários e apenas preocupados com a obtenção de alimentos, finalmente em bateria, sempre que se desloquem afastados dos fundos, o que acontece durante a perseguição aos cardumes de sandilho ou de capelim. O bacalhau desliza com facilidade, singrando velozmente atrás das suas vítimas ou disparando, como seta, no sentido da superfície, sempre que alguma coisa luzidia pareça fugir-lhe, tentando-o no seu apetite insaciável. É assim que ele em geral ataca os outros peixes, ou até mesmo os mais pequenos da sua própria espécie, quando não encontra vermes, pequenos crustáceos, moluscos cefalópodos ou mesmo bivalves, estrelas-do-mar, anémonas e toda a restante matéria viva, sempre riquíssima especialmente nas junções de correntes marítimas de temperaturas diferentes, como acontece nos bancos da Terra Nova ou em certas costas do setentrião.
O bacalhau pode atingir tamanho considerável, mas, normalmente, já se considera como muito bom exemplar o que, depois de amanhado e seco, pese uns cinco quilos. Porém, a média dos maiores que se pescam nos bancos não ultrapassa o peso de três quilos, talvez por lhes não darem tempo para que cresçam mais.
Em certas zonas, onde a pesca, aliás, se reveste de grande importância, o bacalhau, talvez pela sua excessiva sensibilidade ante as diferenças térmicas, realiza curiosas migrações, durante as quais percorre enormes distâncias do oceano, em amplos movimentos de fluxo e de refluxo, naturalmente subordinados ao maior ou menor rigorismo das estações. Outros movimentos migratórios, porém, de menor amplitude, se podem ainda verificar devido a imperiosas necessidades alimentares ou a fenómenos relacionados com a reprodução. Quanto ao primeiro, e para a zona dos bancos terranovenses, onde o bacalhau é muito abundante desde o começo da Primavera, mal chega o Inverno e as águas esfriam demasiadamente, nota-se uma acentuada rarefacção do peixe, tudo levando a crer que ele se refugia nos bancos ocidentais e nas costas da Nova Escócia, onde então pode ser encontrado. Por sua vez, em certos Verões mais quentes, também se nota a sua escassez nos bancos da Terra Nova, sendo, em contrapartida, abundante nas proximidades da península do Lavrador ou, mais ao norte, até ao estreito de Davis.
Quanto ao peixe que frequenta os mares da Gronelândia, e que parece nada ter de comum com o da Terra Nova, pois é mais esgalgado e de pele mais escura devido às pontuações serem mais pequenas e difusas, verifica-se o seu aparecimento nessas paragens sensivelmente em Junho, para quas e desaparecer totalmente e por uma forma relativamente brusca em meados de Outubro. Ao que parece, emigra para as costas da Islândia e da Noruega, onde a temperatura não é tão excessiva durante o Inverno, devido à influência perdurável da Corrente do Golfo, e nessa viagem atravessa o Atlântico ao longo do chamado canal da Dinamarca.
Nos bancos que circundam estes países, cujas costas são recortadas por fiordes, também se realizam migrações, embora de menor âmbito, permitindo, dado o conhecimento dos sucessivos locais onde o peixe vai permanecendo para melhor se alimentar ou para se reproduzir, que, a bem dizer, haja pesca durante todo o ano, tanto mais abundante e de melhor qualidade quanto o reforço dos migradores e o seu respectivo estado nutritivo. O mesmo deve vir a acontecer na Gronelândia, onde há tendência para o bacalhau se tornar sedentário, constituindo uma nova raça.
Dependendo de variadíssimas condições externas, a reprodução do bacalhau efectua-se em fins do Inverno e princípios da Primavera. Aumentam as necessidades respiratórias e por isso as fêmeas passam a frequentar águas menos profundas, mais oxigenadas e de menor densidade, onde também mais facilmente se deslocam, não obstante o progressivo aumento de volume do seu corpo, em consequência do grande desenvolvimento então atingido pelos seus órgãos sexuais. Mas nem por isso abandona a sua preferência pelos fundos e apenas se limita a procurar os relevos mais próximos da superfície líquida, em regra entre 300 a 150 metros de profundidade, na influência das águas continentais, cuja temperatura é mais elevada do que a normalmente verificada na água mais profunda dos bancos.
Os machos, perseguindo as fêmeas e abandonando a sua vida de dispersão, vêm a constituir, com elas, os grandes cardumes das épocas do cio. Todos, instintivamente, procuram um meio de condições especiais, onde o trabalho mais intenso de assimilação respiratória e nutritiva seja mais fácil, durante essa exaustiva fase nupcial. Cada fêmea, a partir dos quatro para seis anos, pode realizar, segundo os tratadistas, umas dez a doze posturas, desovando entre cinco a nove milhões de ovos. A fecundação é externa e resulta da ejaculação do que os pescadores chamam a leitança, que os machos expelem ao nadarem em águas mais altas relativamente às percorridas pelas fêmeas que estão a desovar. O esperma estende-se em camadas flutuantes, formando lençóis, através dos quais passam os ovos quando se elevam, sendo fecundados. Como são pelágicos, sobrenadam e arrastam-se ao sabor das correntes marítimas locais. Mas nem todos são viáveis visto que, grande parte deles, ou são ingeridos por outros peixes ou pelos próprios progenitores, ou são arrastados para zonas demasiado frias, não resultando a fecundação, quer pelo excessivo prolongamento do período de incubação, quer por impossibilidade total de eclosão. Em contrapartida, quando os ovos são arrastados para águas mais, quentes, a sua incubação e eclosão passam a ser facilitadas.
Quando o bacalhau nasce tem apenas três a quatro centímetros de comprimento e apresenta um aspecto bem diferente do dos progenitores. Por essa altura apenas se alimenta de plâncton (reunião de microrganismos em suspensão na água). É a época em que maior desbaste sofre, devido à caça que lhe movem os restantes peixes. Como não existe qualquer regulaç&atil