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O Miantonomah

by Eça de Queirós

O Miantonomah

Eça de Queirós

© 1997, Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-95-2

Lisboa, Julho de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

O MIANTONOMAH

Há duzentos anos uns poucos de calvinistas exilados fretaram um barco na Holanda húmida e úbere, e sob o equinócio e os grandes ventos, miseráveis, austeros, levando uma Bíblia, partiram para as bandas da América.

Duzentos anos depois, estes homens que tinham ido solitários, num barco apodrecido das maresias, derramaram uma esquadra épica pelo Mediterrâneo, pelo Pacífico, pelo mar das Índias, pelo Atlântico, pelos mares do Norte.

Aquela colónia de desterrados, que choravam de frio, esfomeados, rotos, que dormiam às humidades do ar numa capa esfarrapada, é hoje a América do Norte -os Estados Unidos.

América do Norte significa trabalho, fé, heroísmo, indústria, capital, força e matéria.

Ultimamente via eu o Miantonomah, sinistro e negro caçador de esquadras: é toda a imagem da América frio, sereno, contente, material, e cheio de fogos, de estrondos, de maquinismos, de forças e de fulminações.

É o que amedronta naquele navio -a frieza na força.

Ele representa a consciência soberba da força e da indústria, e os grandes orgulhos do cálculo: despreza as iras e as hostilidades dos elementos: ele tem de atravessar o Pacífico, o oceano Índico, o Mediterrâneo, os grandes desvairamentos da água, os ventos imensos, os equinócios, as trombas, as correntes, os rochedos bruscamente aparecidos, os nevoeiros infames, os magnetismos, as electricidades, toda a vil populaça das tempestades: então todos os navios se preparam -cordagens, velames, mastreações, complicações e resistências de forças, toda a combinação astuciosa de lonas e calabres que transforma as hostilidades em auxílios; ele, o Miantonomah, contenta-se com uma tábua rasa.

Em tempo de luta precavêem-se os almirantes e os cabos de guerra: um formigueiro de morteiros, de bombas, de obuses: metralhas, machadas, o arsenal reluzente das abordagens; a ele basta-lhe uma muralha de ferro.

O vento é temido: nas vastas solidões azuis ele é o lobo sinistro que anda rondando e uivando, à caça dos navios: ele acalenta o mar, massa inerte e salgada; ele faz com a água estranhas núpcias ferozes; extermina, cantando com alegrias bárbaras; esfarrapa as nuvens, persegue e esguedelha as chuvas, assobiando contente: em alguns mares do Norte, quando ele sopra as estrelas têm maior tremor: mas o grande horror do vento é que ataca com o peso, com a violência, com a força, com a compressão combinada e defende-se com o esvaecimento.

O Miantonomah é assim: ataca serenamente, com violências enormes, com fulminações trágicas e defende-se com a impassibilidade e quase com o esvaecimento.

Na luta das esquadras, no meio das descargas, das trovoadas flamejantes, entre semelhanças abrasadas, os terríveis pendões do fogo, e os fantasmas do fumo, e as efervescências da água -ele passa, solta a sua fulminação enorme, despedaça, esmigalha, dispersa e continua lento, frio, impassível, mudo, tenebroso, coberto de ferro.

Ele não receia o mar: os outros navios erguem amuradas imensas para conter o encrespamento da onda: forram-nas de cobre, erriçam-nas de pregaria. O Miantonomah não: ele julga a demência do mar um prejuízo; corta a amurada e fica com o convés raso, ao rés da água: satisfaz a velha curiosidade da vaga: e por misericórdia dá-lhe hospitalidade: e para que o mar tenha alguma coisa a desfazer, a triturar, a roer -dá-lhe por compaixão uma varanda de hastes de ferro enferrujado, e pedaços de corda podre. E o mar entra, desesperado, mugindo, e lambe o chão do navio americano: em baixo nas camas, agasalhados e preguiçosos, os marinheiros dizem: «Lá anda o mar a varrer e a lavar o tombadilho.» E com efeito o velho oceano dos dilúvios faz humildemente o serviço dos últimos grumetes.

Em cima, na superfície da água, há o vento, as espumas, os nevoeiros, as chuvas, as trombas; ele, aborrecido, afasta-se deste bando miserável e vai investigar o fundo das águas, as vegetações fantásticas, a região dos corais, as cavernas enceládicas, as purezas infinitas da transparência, todo aquele antigo ideal feroz de que os velhos mareantes falavam benzendo-se com terror religioso: com a quilha de ferro enorme ele brutaliza aquelas virgindades do mar: em baixo a tripulação nada sabe das tempestades: em vão ruge o mar e torce-se; e desencadeia o jogo fulminante das ondas, e espanca o convés do navio com o ruído de mil carros de batalha; os marinheiros em baixo riem, cantam, baloiçam-se, pulem os aços dos maquinismos, cachimbam, lêem a Bíblia -serenos.

Como não há mastreação, nem velame, nem cordagens, nem toda a amontoação confusa de calabres e de lonas -o tombadilho aberto é cheio de ar e de luz: e durante as viagens, é uma pousada das algas, das conchas, das aves do mar e dos granizos.

Dentro são as máquinas, as forças, os motores trabalham solitários com vozes, impaciências, preguiças, friamente; como as fatalidades da matéria. Ao atravessar os espaços obscuros vê-se o frio luzir dos aços e os cobres luminosos; depois são as fogueiras flamejantes, que dão a vida aos maquinismos -vermelhas como corações sobrenaturais: o ar é descido por máquinas de respiração, pulmões terríveis; e um vento geral, fecundo, benéfico, escorre constantemente por todo o negro bojo: fazem-se assim livremente temperaturas: frios mordentes, calores pesados e frescuras das manhãs do Sul: nas suas viagens pelo mundo aquele navio desmente quando quer os climas e as temperaturas: os marinheiros passam silenciosos, limpos, rosados, graves: alguns lêem.

Ora, sobre aquele negro navio, sobre os maquinismos frios, aquelas forças pavorosas, aquelas fogueiras terríveis, no convés entre as negras torres, ao livre ar, ao livre sol, alegre, glorioso, gordo, esvoaçando na sua gaiola -canta um canário.

Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte.

Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.

Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississípi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as complicações mercantis da América -como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação nervosa de homens.

A vida da América do Norte é quase um paroxismo.

Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro?

Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»

Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.

Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais.

A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.

Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.

Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências histó;ricas são a base fecunda das ciências sociais.

É a superioridade da Europa: sob a mesma aparência de febre industrial há uma geração forte, grave, ideal, que está construindo a nova humanidade sobre o direito, a razão e a justiça.

O nosso mundo europeu é também uma estranha amontoação de contrastes e de destinos; é uma época esta anormal em que se encontram todas as eflorescências fecundas e todas as velhas podridões; políticas superficiais; grandes fanatismos: e ao mesmo tempo um desafogo das livres consciências, expurgação dos velhos ritos, e a alma moderna ligada na sua moral e na sua justiça às almas primitivas em exclusão da Idade Média; políticas pacíficas e transigentes, e um espírito de guerra surdo, aceso e flamejante: territórios violentos e conquistados, e a aniquilação pela política, pela história e pela filosofia dos conquistadores e dos heróis: nem são as influências monárquicas, nem é o individualismo; nem é o humanitarismo, nem são os políticos egoístas, não é a importância das individualidades, nem a importância dos territórios; é uma confusão horrível de mundos, e, em cima, triunfal e soberba, está a indústria, entre as músicas dos metais, as arquitecturas das Bolsas, reluzente, cintilante, colorida, sonora, enquanto no vento passa o seu sonho eterno que são fortunas, impérios, festas, empresas, parques, serralhos.

Ora em baixo, sob a confusão, sereno, fecundo, forte, justo, bom, livre, move-se um germe um novo mundo económico.

Este germe é que a América não tem, creio eu. Mas vê-se que todos a apontam como o ideal económico que é necessário que os pensadores meditem, e todos os que no vazio fecundo das filosofias riscam as sociedades.

Ora toda a América económica se explica por esta palavra – feudalismo industrial.

Diz-se, na América há um constante aumento de tráfico, de receitas, de riquezas: não há aumento; há deslocação, deslocação em proveito da alta finança -com detrimento das pequenas indústrias produtoras.

Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados: e como o equilíbrio não cessa, não cessam estas terríveis desuniformidades.

Mas o grande mal da predominância exclusiva da indústria é este: o trabalho pela repugnância que excita, pela absorção completa de toda a vitalidade física, pela aniquilação e quebrantamento da seiva material, pela liberdade em que deixa as faculdades de concepção -por isso mesmo sobreexcita o espírito, estende os ideais, abre grandes vazios na alma, complica as precisões, torna insuportável a pobreza: nas grandes democracias industriais onde as posições são obtidas pela perseverança, conquistadas pela habilidade, onde há mil motores -a ambição, a inveja, a esperança, o desejo, o cérebro aquece-se, espiritualiza-se, cria sonhos, ambições, necessidades impossíveis; o querer chegar torna-se uma verdadeira doença de alma: exageram-se os meios: e toda a seiva moral se altera e se deforma.

É o que vai acontecendo na América: debaixo da frieza aparente, move-se todo um mundo terrível de desejos, de desesperanças, de vontades violentas, de aspirações nerálgicas.

Depois, como no meio das indústrias ruidosas e absorvedoras muitas amarguras ficam por adoçar, muitas angústias por serenar, muitas fomes por matar, muitas ignorâncias por alumiar, tudo isso se ergue terrível no meio da febre da vida social, e torna-a mais perigosa. Londres dá hoje o aspecto desta luta.

De maneira que o trabalho incessante, enorme, irrita e exagera o desejo das riquezas; aferventa o cérebro, sobreexcita a sensibilidade, a população cresce, a concorrência é áspera, as necessidades descomedidas, infinitas as complicações económicas, e aí está sempre entre riscos a vida social. Entre riscos, porque vem a luta dos interesses, a guerra das classes, o assalto das propriedades e por fim as revoluções políticas.

E todavia a liberdade da América parece tão serena, tão confiada, tão assente, tão satisfeita!

No entanto há muita força fecunda nos Estados Unidos! Ainda há pouco deram o exemplo glorioso de uma nação que deixa os seus positivismos, a sua indústria, os seus egoísmos, o seu profundo interesse, e arma exércitos, esquadras, dissipa milhões, e vai bater-se por uma ideia, por uma abstracção, por um princípio, pela justiça.

O Sul quis corrigir a liberdade pela escravatura; desune-se; o escravo que trabalhe, que cultive, que produza, que sue, que morra sob a força metálica, baça e sinistra do clima e do Sol. Pois bem. A América do Norte quer a liberdade, o amor das raças, e bate-se pela liberdade, pela legalidade, pela união, pelo princípio, pela metafísica! E dispersa os exércitos da Virgínia!

Eram estas as coisas que me lembravam há dias, no Tejo, estando a ver o Miantonomah, navio dos Estados Unidos em viagem pelo Sul, comandante Beaumont, fundeado no nosso Tejo.

NA PRAIA

Numa praia da Normandia, ao entardecer, diante do mar que lentamente adormece e do céu onde apenas resta a vermelhidão afogueada e cansada do coruscante sol que o sulcou, está estendida sobre a fina areia uma família, gozando a majestade e a frescura do crepúsculo, naquele recolhimento decoroso que compete a quem alugou um chalé de três mil francos e acarretou de Paris cavalos e carruagens para comunicar luxuosamente com a Natureza.

No meio avulta fortemente a madama, obesa, entronada sobre a sua cadeirinha de palha, com uma boina branca e, sobre os ombros mais largos que ancas de égua, uma capelina a que se sente, mesmo de longe, a riqueza e o preço alto. Ao lado, o marido, magricelas e mole, desenha apenas, na areia pálida, um traço escuro. Outra forma encolhida, com os joelhos agudos contra o queixo agudo, é talvez de um parente pobre ou de um parasita. E a única linha nobre e digna, ressalta de dois cães enormes, sentados com o focinho para o mar, em desconfiança, na esperta guarda dos seus donos, atentos àquele rolar da vaga, pequenina e lenta, mas que teimosamente avança para eles, espumando e rosnando.

Nesta beleza e nesta quietação magnífica alguém aparece, atravessa, vagarosa e pensativamente, por trás, sobre as dunas do areal. Aos brandos passos, imediatamente, os dois cães saltam latindo com furor, arremetem contra aquele temerário que ousou pisar a areia dos seus amos e caminhar para o mar dos seus amos. Inquieto, o marido corre, em largas pernadas esguias, de bengala erguida, retendo e ameaçando os cães... E então da vasta massa da madama rompe um brado rouco, um brado áspero, um brado sublime: «Imbécile! Qu'est-ce que vous avez a gronder ces pauvres chéris? Eh bien!... Quand i1s mordront on paiera le médecin!»

Os cães recolheram, de rabo encolhido, sob a ameaça balbuciada do senhor. Com o dorso vergado, o senhor recolheu sob a ira soberana da madama. E quem vinha passando, passou.

«Quando eles morderem se pagará ao médico!» Grito precioso, na verdade, porque nele vêm resumidas todas as fealdades de uma alma, como por vezes, num único bafo de aragem à esquina de uma viela, vêm todos os fedores de um bairro sujo. Desde logo se reconhece que a nédia matrona é uma ricaça, uma argentária, dona de belos prédios, com um cofre profundo no Banco de França, longamente acostumada a comandar e dispor, secamente desdenhosa de graças e sensibilidades, mole e toda de banhas por fora, por dentro toda dura e de ferro. O seu sentimento mais vivo reside no zelo violento, quase feroz, pelos privilégios de todos os seres que fazem estreitamente parte da sua casa -sobretudo dos seres favoritos, ou porque lhe afagam o capricho ou porque lhe honram o luxo. Nesta, os seres favoritos são os dois cães, que evidentemente se tornaram o cuidado supremo do seu vago bocado de coração e como uma parte mesmo da sua gorda substância. Ela e os seus dois cães constituem, portanto, o universo -o resto é uma sombra que, como todas as sombras, se pisa. Se os seus cães querem morder, toda a perna humana, segundo a ideia da boa madama, pertence legitimamente aos seus cães. Que as mais belas ou as mais úteis pernas fiquem dilaceradas -mas que os seus cães se regalem, se satisfaçam, provando, com a mesma dentada, vivacidade, audácia e o louvável rancor das pernas estranhas que podem transpor o muro da casa sagrada. E aquele que impeça os cães de ferrar, gozar a delícia sangrenta de um rasgão em carne sã, esse, na ideia da madama, será um impertinente que priva os seus animais de uma regalia e a ela lhe impõe uma afronta. Por isso, quando o pobre marido despega os ossos magros da areia fina e acode, tropeçando, de bengala trémula, ela fulmina o entremetido, grita furiosamente: «Imbécile!» Como ousou ele, com efeito, interromper «ces pauvres chéris» no momento triunfante em que eles vão, os pobres queridos, esfrangalha r o homem temerário que invadira ao crepúsculo aquela praia, onde os seus donos digeriam, e, portanto, dominavam? E é ela então que os chama, quando eles voltam de rabo humilhado, os anima, os consola, e lhes promete mudamente que, noutra tarde, não serão empecidos, morderão todas as pernas a que têm direito, por serem os cães dela, matrona muito rica, muito nédia e muito poderosa.

Ivan, o Terrível, senhor das Rússias, alimentava os seus ursos favoritos com criancinhas de mama, porque os ursos, pobres queridos, se deleitavam com essa carninha muito tenra, de um sabor de leite. Era um monstro... Mas, no fundo, a alma de Ivan não é moralmente mais monstruosa do que a desta burguesa do Bulevar Haussmann. Toda a diferença está na largueza do poder. O sinistro Ivan possuía a omnipotência -era, por direito, tão dono das crianças como dos ursos, a quem podia, com a mesma segurança, atirar uma criança ou todo um povo. A roliça madama, essa tem a ferocidade severamente limitada pela polícia -e só não oferece, todos os dias, uma perna humana ao dente dos seus cães porque ainda é mais egoísta do que feroz, e teme para a sua própria e rica pele as violências do Código Penal. A sua torpe alma, porém, é genuinamente ivânica.

Como o velho Ivan, ela tem a suprema e descarada indiferença do sofrimento alheio. Naquele bojudo seio não passou a mais fugitiva inquietação pelo mal que fariam os dois formosos brutos quando se arremessaram, furiosos, para as dunas. Os brandos passos podiam ser de uma criança, desviada um momento do amparo da mãe, correndo na areia; ou os de um velho, doente, alquebrado, frágil; ou os de uma linda e alegre rapariga no viço do seu desabrochar; ou os de um mendigo, ou os de um príncipe... Que importava à obesa fêmea? Não era gente da casa, porque contra essa os cães não romperiam. Era apenas alguém de outra casa, portanto da outra humanidade, alguém para cães -exactamente como se fosse febra morta em torno de um osso... «Que tem que eles mordam?.. A ardente dor, o sangue pingando, uma larga ferida a curar, não a comovem mais do que os riscos que o seu guarda-sol de cabo dourado cava na areia. E não é propriamente nela gosto perverso e material do sangue. A vista de uma canela rasgada, mesmo pelos seus cães, pobres queridos, seria repugnante à vasta madama, ofenderia o seu amor ordeiro das coisas sãs e limpas. Não!, o que ela tem é soberana insensibilidade por todo o sofrer, quando ele não desmanche o seu gozo contínuo e regrado da vida. Dor que grite e se estorça junto dela decerto a emociona, porque a incomoda; e solicitamente fará tudo (até emprestará talvez a sua carruagem!) para que a dor vá berrar para longe, muito remotamente; onde os berros não encham o seu ar, que respira, de tumulto e de agonia. Nisto se diferença do bárbaro Ivan, para quem gemidos, convulsões, sangue golfando, eram incomparáveis delícias. Não!, a nossa madama já pertence ao século XIX, por esta delicadeza afinada e educada dos sentidos recobrindo um fundo de sentimentos selvagemente cruéis; e é dessas que, fugindo horrorizadas de um dedo que se cortou e sangra, permanecem marmoreamente desinteressadas e serenas diante das mais sombrias desgraças morais. O velho Ivan teria corrido sofregamente, para gozar os seus cães estrancinhando o homem que passava. A toucinhenta madama, essa, depois de os seus cães morderem e se saciarem decerto se afastaria com a mão na face -para não presenciar, ela tão limpa e calma, os gemidos, a nojenta carne rasgada.

Mas onde a madama absolutamente se diferença de Ivan, o Terrível, é na certeza que tem, e em que foi rigidamente criada, da omnipotência do dinheiro...Quando eles morderem se pagará ao médico!» Esta é a parte preciosa do seu dito ilustre. Está aqui toda a moral, e toda a religião, e toda a lei do mundo argentário. A rodela de ouro, o papel azul do banco, constituem as únicas realidades do universo. Só o dinheiro importa, só pelo dinheiro o homem sofre, só pelo dinheiro o homem se contenta. Ingenuamente, ela pensa que o mordido se não desolaria com o mal da mordedura -mas com a despesa do médico. Para quem vive exclusivamente entre o metal, no cuidado do metal e que por isso se metalizou, a perda do metal é a única dor verdadeira. Se os médicos fossem gratuitos, como o ar (único dos quatro elementos que ainda se conserva relativamente gratuito), esta boa matrona não compreenderia que os seus cães causassem dano esfrangalhando uma perna humana -nem que o homem da perna realmente padecesse transtorno com as dentadas que o estropiavam. Que lhe podia, na verdade, importar a ferida desde que o tratamento era gratuito? Nã;o havia desembolso -logo não havia sofrimento! Sucede porém, neste imperfeito mundo, que os médicos são dispendiosos: e, portanto, a nossa obesa madama, no fundo da sua obesidade, reconhece que os seus doces cães, mordendo, fazem um mal -porque originam uma despesa. Pois bem: ela, rica, muito rica, paga a despesa! É exactamente, para o dorido, como se os médicos fossem gratuitos. Que razão lhe resta, pois, de se queixar (e mesmo de não querer ser mordido) desde que, para ele, dessa aventura de praia e cães, não resulta despesa? É ela que paga, magnanimamente. Rica, muito rica, pode bem pagar, e com gosto, as despesas que os cães fazem nas pernas que passam. Os seus cães não se privam – ela goza. É uma mera tabela de preços. Se os cães escavacam um bocado do homem -ela paga o bocado; se escangalham o homem todo -ela paga o enterro.

E esse marido imbecil (como ela tão justificada mente gritou) que ideia o impele, quando assim corre, com a bengala irada, ameaçando, castigando os cães? Penetrado dos sãos princípios da sua madama sobre o dinheiro e o mal humano, ele acudira decerto, polidamente, para poupar ao homem uma despesa... Mas não sabia o imbecil que ela paga sempre esses gastos de luxo? Com que direito impede, pois, que os seus pobres queridos, transportados àquela praia da Normandia para arejar e recrear, saltem às canelas que não são do seu rancho? Esse seu movimento arrebatado de bengala nasceria de uma baixa inquietação de avarento? Assim ela decerto o pensa: por isso o injuria. Retendo os cães, o magricelas só procurou talvez economizar sordidamente uma conta de médico!... Quanto custaria o conserto da perna? Trezentos francos? E por trezentos francos, então, ele rouba aos seus cães um gozo e os humilha publicamente, e dá publicamente uma prova de adunco apego ao dinheiro, naquela praia onde alugaram um chalé de três mil francos, com cocheiras! Imbecil, escandalosamente imbecil!

Madama ao menos mostrou a sua larguesa generosa – pronta a pagar qualquer perna, por mais valiosa, que os seus cães consumirem. E é por isso que o acha imbecil e o despreza -porque, ao lado dele, se sente magnânima e sensível. Sim, magnânima, sensível! Nunca ela brutalizaria os seus cães por eles mostrarem alegria e força! Nunca ela consentiria que homem mordido pelos cães desembolsasse dinheiro, precioso dinheiro, na custosa cura das feridas!...E talvez ante aquela grave e fresca paz do crepúsculo de Julho, que lentamente se estendia sobre a terra e o mar, a nédia matrona respirasse contente, porque desinteressadamente, diante do céu e do mar, que nunca a convidarão a jantar nem a saudarão no Bois, mostrara magnanimidade e mostrara sensibilidade!

É uma fera, uma deselegante fera, com aquela deformidade adiposa que só tem a fera humana quando é fêmea? Não. É uma madama civilizada do Bulevar Haussmann. Somente, é uma dessas almas especialmente secas e duras, como as têm feito, na sua classe, desde o reinado de Luís Filipe, a democracia, o predomínio do dinheiro, a educação positiva e a decadência do Evangelho.

MAR MORTO

A imensa água estende-se até ao horizonte profundamente azul, pespontada de luz de ambos os lados, como fazendo-lhe uma margem infinda: de um lado a montanha da Judeia, do outro, o Moab estende-se à esquerda.

A luz suave (…) cada vez mais diáfana (...) a rocha visível aqui e além, no fundo luminoso de vaporosa e subtil transparência.

A água do mar é amarga e cáustica.

Para trás estende-se o grande vale do Jordão.

Ao fim da planície começa a pisar-se uma vegetação seca, queimada, espalhada em tufos. Encontra-se um braço do Jordão que faz um desvio pela terra dentro, pela areia, cortada nesse lugar a pique, desaparecendo depois entre a vegetação.

As margens por onde se chega são cobertas de árvores, de estevas, de juncos. Aquela vegetação tem um aspecto estéril de queimada, de seca, que lhe dá uma diafaneidade, uma transparência extraordinárias, e sobretudo um tom de verde-pálido.

Essas margens são ainda cortadas a pique e para além das duas fitas de vegetação polida (…) o deserto, a escura e desolada planície de Acre. Escondido assim entre a folhagem, perdido na baixa, avistado, às vezes, apenas por trás da ramagem, pelo brilho da sua água, o Jordão tem um profundo mistério.

Duas coisas se tornam dignas de atenção (…) a recordação evangélica e a inesperada frescura.

Depois de se atravessar aquele largo deserto da Judeia e a planície do mar Morto, os murmúrios da água, o correr monótono da corrente. Tudo lhe dá um encanto extraordinário. No sítio em que estamos o Jordão faz uma das suas inúmeras curvas, vê-se azul apenas como um lago. No entanto a vegetação encobre o lugar de onde ele vem, e oculta a continuação do seu caminho para o mar Morto.

Umas águas turvas passando largamente sobre as pedras soltas, o ruído do lento correr com um murmúrio monótono, tal é o Jordão nesse sítio. Em volta os juncos com vegetação pálida e rara -a areia estéril...

O murmúrio sobre as pedras é o único ruído.

A hora do pôr do Sol é admirável, e aquele imenso espaço de água de uma serenidade inconcebível.

É bem este o lugar de refúgio, de oração, de tristeza de S. João.

Compreende-se quantos doces pensamentos devem nascer da contemplação das suas margens. Vaguear ali deve ser um sonho para os espíritos repelidos pela aspereza da Judeia.

Vê-se que, colorido de doçura, o Jordão devia ter dado aquelas ideias (…).

As vegetações reflectem-se na água, e a água corre, a luz finda docemente como um justo, e depois da fadiga da jornada uma doce melancolia penetra o ser nervoso. Em que qualidade entrou ele para o cristianismo, pela impressão que fez ao fundador, quem o sabe? Quem sabe se é ao Jordão e às suas margens, doces no meio da aspereza de tudo, que o Evangelho tem aquela doçura de aurora?

Aqui, só palavras doces deviam ter inspirado Cristo. Não é como a aspereza das pedras que às vezes lhe arrancava palavras amargas.

O nosso beduíno faz as suas orações -e lava-se no Jordão.

A saída do Jordão -esplêndido quadro.

Começa-se a entrar na terra seca, esbranquiçada, salpidada de ervas, estende-se pelo largo horizonte, limitado pelas montanhas do Moab e da Judeia -enormes muralhas daquela rua onde o Jordão corre, o mar Morto dorme.

O Sol vai a descer por trás de grandes nuvens escuras (...) detrás delas os raios do sol aparecem (...) semelhando um troféu. A luz espalha-se pela imensa planície, débil, quebrada, (...) o monte de areia branca tem uma cor verde, as montanhas do Moab estão cor-de-rosa, como uma rosa, duma delicadeza de tecido vivo e suave.

As cores são as mais puras, as mais suaves. A areia tem uma cor pálida, o ar está melancólico, duma serenidade profunda.

Um silêncio absoluto reina.

O imenso céu foge a profundidades infinitas. As coisas são belas, têm uma atitude virginal. Tudo é espontâneo, livre, divino.

Entre as serras pasta um rebanho de camelos brancos. Sobre a colina destaca-se a figura altiva dum pastor árabe.

Camelos pequenos, correndo com as mães, pesadas, enormes -descem a beber ao Jordão. O pastor montado num camelo escuro segue atrás, com a sua grande lança erguida no ar.

O balar áspero dos camelos dá um som próprio àquela paisagem. É uma cena primitiva. A areia que todos pisam dá o carácter oriental, profundamente original.

O espaço é imenso, cheio de liberdade e de ar. Não se vê uma casa, nem uma cabana. Há um ar sacerdotal no céu e na terra. Sente-se um solo sagrado.

Lembra os primitivos pastores (...) caminhando àquela hora ao comprido do rio trocando ideias e símbolos, dizendo das águas, do voo inesperado das aves.

Tudo é majestoso, vasto, sereno. A luz tem já uma sombra que começa e dá a tudo aquilo um ar de solenidade.

Tudo é simples, há um recolhimento na grande natureza. Os montes têm cores que parecem expressões, rosados que parecem rubores, sombras que lembram tristezas.

O passo lento dos camelos, a terra branca, aqueles animais em filas, em rebanhos inumeráveis, as figuras misteriosas dos pastores, a areia imensa, a linha escura da verdura do Jordão, o Sol que se põe, a nuvem dourada (…) o infinito sossego, a vida natural, fazem um quadro encantador.

Continua-se caminhando sempre na planície, que se estende infinitamente.

Era o caminho dos Israelitas para Jericó.

A noite desce. O imenso céu é ainda alumiado, as estrelas brilham.

Compreende-se, naquela imensa solidão escura, o árabe poeta namorado da sua estrela (…)