O Miantonomah Jižø äÀ äÀ BOOKMOBI 4 ž (ž 8ž Hž Xž hž xž ˆž ˜ž ¨ž ™† MOBI ýé;(þ
O Miantonomah
Eça de Queirós
© 1997, Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-95-2
Lisboa, Julho de 1997
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
***
O MIANTONOMAH
Há duzentos anos uns poucos de calvinistas exilados fretaram um barco na Holanda húmida e úbere, e sob o equinócio e os grandes ventos, miseráveis, austeros, levando uma Bíblia, partiram para as bandas da América.
Duzentos anos depois, estes homens que tinham ido solitários, num barco apodrecido das maresias, derramaram uma esquadra épica pelo Mediterrâneo, pelo Pacífico, pelo mar das Índias, pelo Atlântico, pelos mares do Norte.
Aquela colónia de desterrados, que choravam de frio, esfomeados, rotos, que dormiam às humidades do ar numa capa esfarrapada, é hoje a América do Norte -os Estados Unidos.
América do Norte significa trabalho, fé, heroísmo, indústria, capital, força e matéria.
Ultimamente via eu o Miantonomah, sinistro e negro caçador de esquadras: é toda a imagem da América frio, sereno, contente, material, e cheio de fogos, de estrondos, de maquinismos, de forças e de fulminações.
É o que amedronta naquele navio -a frieza na força.
Ele representa a consciência soberba da força e da indústria, e os grandes orgulhos do cálculo: despreza as iras e as hostilidades dos elementos: ele tem de atravessar o Pacífico, o oceano Índico, o Mediterrâneo, os grandes desvairamentos da água, os ventos imensos, os equinócios, as trombas, as correntes, os rochedos bruscamente aparecidos, os nevoeiros infames, os magnetismos, as electricidades, toda a vil populaça das tempestades: então todos os navios se preparam -cordagens, velames, mastreações, complicações e resistências de forças, toda a combinação astuciosa de lonas e calabres que transforma as hostilidades em auxílios; ele, o Miantonomah, contenta-se com uma tábua rasa.
Em tempo de luta precavêem-se os almirantes e os cabos de guerra: um formigueiro de morteiros, de bombas, de obuses: metralhas, machadas, o arsenal reluzente das abordagens; a ele basta-lhe uma muralha de ferro.
O vento é temido: nas vastas solidões azuis ele é o lobo sinistro que anda rondando e uivando, à caça dos navios: ele acalenta o mar, massa inerte e salgada; ele faz com a água estranhas núpcias ferozes; extermina, cantando com alegrias bárbaras; esfarrapa as nuvens, persegue e esguedelha as chuvas, assobiando contente: em alguns mares do Norte, quando ele sopra as estrelas têm maior tremor: mas o grande horror do vento é que ataca com o peso, com a violência, com a força, com a compressão combinada e defende-se com o esvaecimento.
O Miantonomah é assim: ataca serenamente, com violências enormes, com fulminações trágicas e defende-se com a impassibilidade e quase com o esvaecimento.
Na luta das esquadras, no meio das descargas, das trovoadas flamejantes, entre semelhanças abrasadas, os terríveis pendões do fogo, e os fantasmas do fumo, e as efervescências da água -ele passa, solta a sua fulminação enorme, despedaça, esmigalha, dispersa e continua lento, frio, impas sível, mudo, tenebroso, coberto de ferro.
Ele não receia o mar: os outros navios erguem amuradas imensas para conter o encrespamento da onda: forram-nas de cobre, erriçam-nas de pregaria. O Miantonomah não: ele julga a demência do mar um prejuízo; corta a amurada e fica com o convés raso, ao rés da água: satisfaz a velha curiosidade da vaga: e por misericórdia dá-lhe hospitalidade: e para que o mar tenha alguma coisa a desfazer, a triturar, a roer -dá-lhe por compaixão uma varanda de hastes de ferro enferrujado, e pedaços de corda podre. E o mar entra, desesperado, mugindo, e lambe o chão do navio americano: em baixo nas camas, agasalhados e preguiçosos, os marinheiros dizem: «Lá anda o mar a varrer e a lavar o tombadilho.» E com efeito o velho oceano dos dilúvios faz humildemente o serviço dos últimos grumetes.
Em cima, na superfície da água, há o vento, as espumas, os nevoeiros, as chuvas, as trombas; ele, aborrecido, afasta-se deste bando miserável e vai investigar o fundo das águas, as vegetações fantásticas, a região dos corais, as cavernas enceládicas, as purezas infinitas da transparência, todo aquele antigo ideal feroz de que os velhos mareantes falavam benzendo-se com terror religioso: com a quilha de ferro enorme ele brutaliza aquelas virgindades do mar: em baixo a tripulação nada sabe das tempestades: em vão ruge o mar e torce-se; e desencadeia o jogo fulminante das ondas, e espanca o convés do navio com o ruído de mil carros de batalha; os marinheiros em baixo riem, cantam, baloiçam-se, pulem os aços dos maquinismos, cachimbam, lêem a Bíblia -serenos.
Como não há mastreação, nem velame, nem cordagens, nem toda a amontoação confusa de calabres e de lonas -o tombadilho aberto é cheio de ar e de luz: e durante as viagens, é uma pousada das algas, das conchas, das aves do mar e dos granizos.
Dentro são as máquinas, as forças, os motores trabalham solitários com vozes, impaciências, preguiças, friamente; como as fatalidades da matéria. Ao atravessar os espaços obscuros vê-se o frio luzir dos aços e os cobres luminosos; depois são as fogueiras flamejantes, que dão a vida aos maquinismos -vermelhas como corações sobrenaturais: o ar é descido por máquinas de respiração, pulmões terríveis; e um vento geral, fecundo, benéfico, escorre constantemente por todo o negro bojo: fazem-se assim livremente temperaturas: frios mordentes, calores pesados e frescuras das manhãs do Sul: nas suas viagens pelo mundo aquele navio desmente quando quer os climas e as temperaturas: os marinheiros passam silenciosos, limpos, rosados, graves: alguns lêem.
Ora, sobre aquele negro navio, sobre os maquinismos frios, aquelas forças pavorosas, aquelas fogueiras terríveis, no convés entre as negras torres, ao livre ar, ao livre sol, alegre, glorioso, gordo, esvoaçando na sua gaiola -canta um canário.
Tal é o Miantonomah, navio de guerra da América do Norte.
Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações.
Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominação do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios; preocupação exclusiva do útil e do económico; doutrinas de uma filosofia e uma moral egoísta e mercantil; todo o pensamento repassado dessa influência; uma fria liberdade de costumes; uma seriedade artificial e brusca; dominação terrível da burguesia; movimentos, construções, maquinismos, fábricas, colonizações, exportações colossais, forças extremas, acumulação imensa de indústrias, esquadras terríveis, uma estranha derramação de jornais, de panfletos, de gazetas, de revistas, um luxo excessivo; e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa na alma as adorações do deus Dólar: depois a mesma temperatura e a mesma geologia da Europa. Assim entrevemos a América, ao longe, como uma estação entre a Europa e a Ásia, aberta ao Atlântico e ao Pacífico, com uma bela costa de navegação cheia de enseadas, molhada de grandes lagos, com os seus grandes rios que escorrem entre as terras, as culturas, as fábricas, as plantações, os engenhos, levados pomposamente pelo Mississípi para o golfo do México: e depois uma Natureza vigorosa, fecunda, eleita, desaparecendo entre as indústrias, os fumos das fábricas, as construções, os maquinismos, todas as complicações mercantis da América -como uma pouca de erva de uma campina fértil que desaparece sob uma amontoação nervosa de homens.
A vida da América do Norte é quase um paroxismo.
Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro?
Todos os dias dizem à Europa: «Olhai para os Estados Unidos, lá está o ideal liberal, democrático, e, sobretudo, a grande questão, o ideal económico.»
Mas a América consagra a doutrina egoísta e mercantil de Monroe, pela qual uma nacionalidade se encolhe na sua geografia e na sua vitalidade, longe das outras pátrias; esquece as suas antigas tradições democráticas e as ideias gerais para se perder no movimento das indústrias e das mercancias; alia-se com a Rússia; a raça saxónia vai desconhecendo os grandes lados do seu destino, enrodilha-se estreitamente nos egoísmos políticos e nas preocupações mercantis, cisma conquistas e extensões de territórios, subordina o elemento grandioso e divino ao elemento positivo e egoísta, e a grande figura sideral do Direito às fábricas, que fumegam negramente, nos arredores de Goetring. Isto dizem muitos.
Uma das inferioridades da América é a falta de ciências filosóficas, de ciências históricas e de ciências sociais.
A nação que não tem sábios, grandes críticos, analisadores, filósofos, reconstruidores, ásperos buscadores do ideal, não pode pesar muito no mundo político, como não pode pesar muito no mundo moral.
Enquanto a superioridade foi daqueles que batalhavam, que lançavam grandes massas de cavalarias, que apareciam reluzentes entre as metralhas, o Oriente dominou, trigueiro e resplandecente. Quando a superioridade foi daqueles que pensavam, que descobriam sistemas, civilizações, que estudavam a Terra, os astros, o homem, e faziam a geologia, a astronomia, a filosofia, o Oriente caiu, miserável e rasteiro.
Há, sobretudo, na América um profundo desleixo nas ciências históricas. Inferioridade. As ciências histó