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Perseguição no Mar
Nun’Álvares de Mendonça
O excerto Perseguição no Mar, aqui publicado, foi extraído do livro Memórias de Um Baleeiro, da autoria de Nun’Álvares de Mendonça, que gentilmente autorizou a sua publicação.
© 1996, Nun’Álvares de Mendonça e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-57-X
Lisboa, Novembro de 1996
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
***
PERSEGUIÇÃO NO MAR
Foi num dia magnífico do mês de Junho que fizemos uma arriada para fora do Salão?.
O vigia mandou arriar, mas não tinha visto Baleias: só botes. Lá estava o lençol estendido abaixo da casa, sem bandeira.
Como de costume, este tipo de arriada gerava sempre discussões, e isto porque o número de falhas tinha uma percentagem muito elevada, ou por não ser de facto Baleia, ou então sendo só uma, os primeiros a chegar trancavam, e, quando os outros lá chegavam, só serviam de testemunha, com o que o baleeiro «dava o cavaco»?.
No habitual, tudo isso que se gerava à volta do lençol, era mais um desabafo que propriamente um pretexto para não irem à Baleia -o vício e o prazer de matar, estavam acima de tudo!
Embora um pouco mais lentamente, arriou-se o bote «António Henriques» e a gasolina «Isolda», e lá fomos com rumo ao Salão.
O vento de noroeste e o mar direito eram um conjunto de factores certos que facilitavam não só o andamento da embarcação de vela, como toda a sua manobra. Talvez devido a estas magníficas condições, muito cedo se começou a ver botes fazendo de vela, sem que, no entanto, o vigia nos tivesse feito qualquer sinal mostrando que vira as Baleias. Mas elas deviam lá estar. Só assim se explicava vermos botes a fazer de vela.
Causou-nos certa admiração, quando estávamos perto de chegar, ver uma gasolina com dois botes de reboque rumo ao Faial, e para a doca. Pouco depois, estávamos a presenciar uma cena idêntica: um outro bote pega no pano e também amarra à sua gasolina, depois de ter estado perto das Baleias. Tínhamo-las já visto na sua proa, e íamos no encalço delas. Dentro em pouco, se tudo se mantivesse, devíamos largar, e por certo se desvendaria o que se estava passando.
Conveniente será lembrar que tinha arriado juntamente connosco a companhia rival, com a gasolina «Maria Manuela» e um só bote: o «S. Joaquim». Aquela, com mais andamento, estava chegando próximo das Baleias e estava largando o bote.
As Baleias voltaram a sair, desta vez, com a cabeça ao vento, que se mantinha de noroeste, e bem «tocadas», tanto assim que vimos o bote rival pegar no pano e chamar pela sua gasolina para o rebocar mais ao vento. Esta, que estava desviada, demorou a chegar, e só quando estávamos a passar é que lhe atirou o cabo de reboque.
Saem novamente, sempre para o vento, mas ainda, pelo vento delas, está uma gasolina com dois botes, que deviam ser do Sul do Pico, das Lajes ou de S. Mateus. Largaram, fazendo de vela para elas. Com o vento que estava e a navegarem num largo, foi sem dificuldade que rapidamente se aproxim aram, e vimos um dos trancadores põr-se em pé, pegar no arpão e começar a mandar o oficial dar o bote à Baleia: primeiro a uma, depois manda a outra, e não atira...
Agora, o mais estranho: as Baleias continuavam por cima, e o bote, preparado para trancar, estava a marear e não ia às Baleias, mas dirigia-se para a sua gasolina, levantando ainda a bandeira da companhia, que era o sinal de chamada a um companheiro.
Tudo isto presenciámos, enquanto éramos rebocados com o máximo de força que o motor da nossa gasolina podia imprimir, para cima daquelas Baleias que agora levavam a cabeça sempre no mesmo sítio, muito perto do vento, e sempre bem «tocadas». Para melhor andarem, não viravam o rabo. Iam à tona da água; vinham acima; davam cinco ou seis bufos, e repetiam a mesma manobra.
Nós continuávamos na sua perseguição, tendo apenas como companheiros a armação do nosso porto. Os outros tinham já amarrado, e seguiam em direcção a terra.
Não se compreendia por que razão nós nos mantínhamos naquela louca perseguição depois de tudo o que havíamos presenciado! Seria a razão de haver já vários dias que não apanhávamos nada?
O certo é que ali permanecíamos, embora sabendo da desistência dos outros!
Estávamos agora a conseguir aproximarmo-nos das Baleias com uma certa vantagem, mas era necessário ganhar-lhes a cabeça, e fazer com que não fossem mais ao vento, porque, continuando elas no mesmo andar, não podíamos largar a vela. De remos, não havia possibilidade de nos aproximarmos.
A gasolina «Maria Manuela» que, devido ao seu maior andamento, ia novamente na nossa frente, dentro em breve iria largar o seu bote e decerto procurar tirar-lhes a cabeça do vento.
De facto assim foi: largou o bote que havia feito de vela mesmo a reboque com o fim de não demorar, enquanto a gasolina a toda a sua velocidade ia passar pela frente das Baleias e tentar virar-lhes a cabeça. Esta manobra, que exigia muita experiência do mestre da gasolina, devia ser feita procurando virar-lhes a cabeça contra a nossa terra; nisso havia toda a vantagem, até para tornar mais rápido o regresso, poupando combustível e as longas horas de reboque. Quando se tratava de armações de várias ilhas, principalmente entre Pico e S. Jorge, gerava-se, de início, o despique, em que cada um procurava levar a melhor, cercando as Baleias contra a sua terra. No geral, acabavam por vencer aqueles que tinham mais gasolinas.
Quantas vezes conseguiram cercar numa baía um cardume de baleias, e, ali, enquanto as gasolinas se cruzavam em meio círculo num vaivém constante entre as duas pontas da baía, os botes dizimavam o cardume, nem sempre até ao fim porque a noite chegava! Nalguns casos, só saíam desse recanto de mar tinto de sangue alguns cafres?, poupados àquela matança cruel.
A «Maria Manuela» tinha passado pela cabeça das Baleias e avagava a marcha, enquanto o bote, a todo o pano, esperava a saída delas contra o nosso canal. Assim não aconteceu. As Baleias, estranhamente, não tinham ligado nada ao barulho da gasolina, devendo mesmo ter passado por baixo dela, seguindo no anterior rumo.
Como não tínhamos largado da nossa gasolina, ficámos com mais vantagem. Os outros tinham que ir buscar o bote para rebocar para o vento.
Desde que tínhamos chegado, já se teriam passado mais de duas horas nesta corrida pelo noroeste dentro sem se ver maneira de aquelas B aleias avagarem a sua corrida, ou mudarem de rumo. Isto, atrás de cinco baleias abandonadas por outros baleeiros... E nós a teimar e a querer -o quê?!...
Mais um bom bocado passado, quando as Baleias começaram, talvez devido ao cansaço, a diminuir o andamento. Estávamos a aproximarmo-nos a pouco e pouco. Já não mergulhavam, indo sempre por cima, embora só bufando de minutos a minutos.
A «Maria Manuela», que tinha de novo passado por nós, ia já um bom bocado à nossa frente, quando, subitamente, as Baleias avagaram ainda mais a sua corrida. A gasolina, que ia mesmo chegando ao rabo delas, em vez de largar o bote, qual o nosso espanto: passa por elas com o bote sempre a reboque, sem ao menos esboçar uma atitude de trancar!
Estávamos também a chegar, e depressa vimos a razão de tudo o que tínhamos presenciado!: as Baleias não passavam de cinco baleotes, pouco maiores do que os cafres, nem tão-pouco aguentariam o peso do arpão. Era, de facto, um crime inútil trancar um animal daqueles.
Tínhamos andado mais de três horas naquela perseguição e agora era voltar para casa; não havia outra coisa a fazer. A nossa gasolina avagara o andamento e assim os baleotes ganharam de novo dianteira, bufavam quase normalmente, como se o medo lhes tivesse passado.
O tempo a que atrás me referi, com vento soprando fresco de noroeste, tinha sofrido grande alteração. Agora não havia qualquer vento, e o mar estava «estanhado», condições impossíveis para andar de vela.
Alguma coisa de estranho se devia estar a passar, porque a gasolina «Maria Manuela» continuava a toda a velocidade, já bastante distanciada de nós, embora sempre com o mesmo rumo.
Foi de dentro da nossa gasolina que o motorista, que tinha saltado acima da casa, com certeza para se certificar do que se passava com a outra gasolina, que continuava no mesmo andamento e mesmo rumo, começou a fazer sinais apontando para a proa.
Todos, como que impelidos por uma mola, se puseram de pé dentro do bote! Decerto todos viam o mesmo, e outra coisa não podia deixar de ser, nem se percebia como ainda não se tinha visto. O mar em toda a nossa frente e enquanto a vista alcançava -estava cheio de Baleias!
O mar manso de que há pouco falei era agora encrespado pelo redoiço das inúmeras Baleias que ali estavam. Não eram dezenas, nem mesmo centenas -deviam ser milhares!
Estávamos separados da «Maria Manuela» cerca de uma milha. Esta continuava com o bote a reboque, e já chegando àquele mar de baleias, enquanto nós, também agora a toda a força, íamos no seu encalço...
No bote, o oficial José Maria. O trancador era o Mafredo. Este homem, de uns 55 anos, parecendo muito mais idoso devido ao consumo diário do álcool, era um baleeiro cauteloso, medroso e de pouca coragem. Salvo erro, esta foi a sua última arriada dentro de botes. Passou a arriar como mestre de uma das gasolinas.
Dos restantes seis fazia eu parte, à data um rapaz de 16 anos, o mais novo que ali estava, remador ao remo três. Foi nesta tarde e noite que a minha consideração como baleeiro muito subiu. Isso devo ao José Maria, pela confiança que depositou em mim durante aquelas longas horas, confiança nascida, com certeza, da coragem e agilidade que observava em todos os meus gestos e atitudes.
Será interessante lembrar que, nesse dia, fazia parte da companha uma outra figura, já vossa conhecida: o carcereiro da cadeia das Velas, que, aquando daquelas idas, tinha a mulher que f azia o seu lugar em terra junto dos ferros, e muito foi lembrada naquela tarde e noite pelo seu fiel marido... Esta também a sua última arriada. Em pânico, prometeu a Deus que «se voltasse a ver a mulher e filhos não mais tornaria à Baleia»... e cumpriu.
Na gasolina, o mestre era o Manuel Félix, bom indivíduo, embora pouco conhecedor, sendo também muito medroso, mas sempre pronto a cumprir qualquer ordem que lhe fosse dada.
O motorista, o Sabino, cuja profissão era ferreiro e forjador, sendo como forjador um habilidoso excepcional. Tinha a vaidade de que nunca Baleia alguma trancada com arpões feitos por ele tinha sido perdida por defeito do arpão. Esta arma de fabrico artesanal, saída das mãos deste artista, era, de facto, uma obra de perfeita execução. Aperfeiçoada por ele próprio, nela já apareciam linhas aerodinâmicas, particularmente na maneira como lançava a barba e a farpa do arpão... Vi e ajudei a fazer muitos destes arpões. Ele fazia-os para todas as ilhas. Uma outra presunção dele era o que conseguia fazer dando um único calor ao ferro. Espantoso! «Caldeava» o alvado ao canelo, e num só calor deixava o trabalho feito, pronto a que o cabo de madeira encaixasse no alvado do arpão. «Caldear» o ferro um com o outro não passava de uma soldadura, só que, quando bem feita, ficava como se de um único ferro se tratasse. A importância disto é que o ferro que levasse vários calores perdia qualidade, e ali, justamente na ligação do canelo ao alvado, onde vai amarrar o estropo do arpão que por sua vez vai ligar à linha, é um dos pontos que faz mais força.
Conheci sempre este homem a ir à Baleia. Fazia-o por vício, porque trabalho nunca lhe faltava. Se sabia fazer um arpão, os alviões e enxadas feitas por ele não eram inferiores. Quantos esperaram um ano e mais para conseguirem essas peças de ferramenta, feitas e temperadas como só ele sabia!
Como motorista, satisfazia; como baleeiro, era muito bom, Além de saber atirar uma lança da proa da gasolina, era uma pessoa dotada de uma vista magnífica, gostando de a usar. Passava horas de pé em cima da casa a vigiar, e, aí, por vezes, os motores sofriam pela falta de assistência...
O marinheiro desta gasolina era também um rapaz, por sinal filho do delegado marítimo, que, embora gostando muito da pesca, mais ali andava para praticar como motorista do que por outra razão.
Estávamos a chegar, e o nosso oficial mandou desamarrar o cabo de reboque, e passar a ponta em volta do banco um, ficando o escote seguro pelo homem do baó, pronto a largar à primeira ordem.
Executada a manobra, já tínhamos Baleias não só pela frente, mas também de um e do outro lado. Até pela popa elas se viam! Seria praticamente impossível sair dali sem trancarmos, O Mafredo, na proa, de arpão na mão, procurava mandar para a maior Baleia, enquanto, da gasolina, o Sabino, ainda de pé, em cima da casa, e da popa do nosso bote o José Maria, gritavam que esperasse. Decerto, no meio de tanta Baleia, devia haver Baleias grandes. Assim, dirigi-me ao oficial e disse-lhe:
-José Maria. Tem que haver, no meio destas, Baleias grandes! Não deixes trancar.
-Também estou convencido disso, mas não vejo nenhuma! Vê se consegues descobrir alguma.
Embora de reboque, tinham sido colocadas as forquetas no seu lugar, e os remos prontos a correr fora. Foi depois de me certificar que o meu estava bem cruzado e não cairia ao mar que saltei para cima do m eu banco, o banco três, onde rema o remo mais comprido do bote?. Ali, de pé, descobria maior horizonte. Tudo, até onde a vista alcançava, eram Baleias e em toda a volta. De onde tinham surgido tantas, continuando a chegar mais, mesmo atrás de nós, donde há pouco havíamos passado?! Já o mar estava cheio. Eu vivia um momento excitante, maravilhoso e inesquecível. Como explicar a razão do que ali se estava a passar?!
É natural que, naquela altura, o que se estava desenrolando me parecesse sob o ponto de vista material e não visse as coisas com a lucidez de mais tarde, e esse mais tarde foi praticamente toda a minha vida, em que esse espectáculo, ou antes fenómeno, porque disso se tratava, foi relembrado milhares de vezes...
Trinta e cinco anos mais tarde.
Tínhamos ficado a pairar durante a noite a umas 80 a 90 milhas pelo Sul do Pico fora. Quando me encontrava na ponte, ao amanhecer, comecei a distinguir, por cima do mar sem uma ondulação e completamente estanhado, qualquer coisa estranha que me prendeu a atenção: pareciam velas de pequenas embarcações...
Mandei chamar vários marinheiros para verem, e tentei saber se algum tinha conhecimento do que se estava a presenciar; mas ninguém tinha uma explicação.
Foi só após o amanhecer que conseguimos distinguir, com o auxílio dos binóculos, que se tratava de voadores?. Tudo o que se alcançava à nossa volta eram «ase lhas» de voadores, centenas de milhares, talvez mesmo milhões! Ali estavam dormindo, e o mais estranho, todos de lado, com a «aselha» levantada!
Não sei de onde e como apareceram, mas sei como desapareceram: um raio não seria mais eficiente!
Após demorada contemplação, vendo tão perto peixe que carregaria muitos navios, estávamos quase certos de ir fazer uma grande pesca. Não sabia como proceder perante este caso inédito para mim na pesca, mas achei que a primeira coisa a fazer seria pôr a máquina principal em funcionamento. Tínhamos a trabalhar a motobomba que dava água para os viveiros, e luz para a iluminação. Assim, dei ordem ao motorista, que se encontrava também a meu lado contemplando aquele espectáculo, para pôr a máquina em movimento, o que ele de imediato foi fazer. Continuávamos olhando aquele mar, quando o arranque girou, e a máquina logo arrancou. No mesmo instante, todas as aselhas se movimentaram, e aquele mar de peixe, ainda há pouco tão visível, se sumiu como que engolido de uma só vez, para muito mais tarde aparecer mas em cardumes, aqui e além, como era habitual.
Eu continuava de pé em cima do banco, procurando descobrir uma Baleia grande. O oficial José Maria tinha razão: Não seria fácil. Aquelas Baleias não bufavam como era habitual. Se tanto, em cada cem, só uma o fazia. Elas nem andavam. Quando chegavam junto das outras, paravam e ali ficavam.
Nunca me tinha constado que se pudesse trancar Baleias a reboque da gasolina: ao sentirem o ruído do motor, logo submergiam. Mas a estas nada as assustava. Podia-se trancar a qualquer momento. Até entre a popa da gasolina e a proa do bote chegavam a emergir Baleias, sem um movimento de medo, de defesa ou de ataque. Tudo aquilo era muito estranho.
Mas eis que descubro o procurado. Não devia haver engano.
Eram os dorsos de três enormes baleias que eu estava a ver!... Um momento mais para confirmar. Não havia dúvida!...
-Ali!... Ali! contra a nossa terra!...
Não sei se o José Maria as chegou a ver, ou se se fiou na minha palavra. A ordem foi por ele dada:
-Larga o cabo de reboque. Armem os remos.
E já com o esparrela fazia voltar o bote na direcção indicada.
Eu tinha-me sentado no meu lugar, puxado o remo fora à ordem de armar remos, e já curvado sobre o punho do mesmo fazia-o vergar, como os meus outros companheiros, para que rapidamente o bote adquirisse a velocidade desejada.
Todos os oficiais que conheci assumiam uma atitude típica quando se aproximavam de uma Baleia, e o José Maria não fugia à regra. O boné que sempre usava era puxado para cima da testa, deixando a parte de trás da nuca a aparecer. No seu caso, ficava-lhe à vista uma parte da careca... A pala do boné tapava-lhe os olhos quase por completo. Após uma cuspidela borda fora, amarelada devido à permanência da masca ao canto da boca, e após ter aproado o bote ao rumo, começava uma «lengalenga» que também lhe era habitual nestas situações. Este palavriado em voz abafada ia sempre baixando de tom à maneira que o bote se aproximava da Baleia. Os intervalos entre as suas ordens, lamúrias ou protestos, iam também diminuindo, tornando-se intermitentes. Por vezes, parecia falar consigo próprio.
Mas eis que o ouvimos:
-Já as vi! Ali estão!
Vá, força nesses remos!... este bote não anda nada!
A sua cabeça não tinha um movimento: acompanhava o corpo; e os olhos, esses deviam estar fixos num ponto e dali não saíam.
-Anda Mafredo. Puxa por esse remo.
Ah! Baleia filha da puta... sai daí para fora.
Uma Baleia tinha-se atravessado na proa. Sentimos perfeitamente o bote varar por cima dela. Parou-se de remar. O bote quebrou o andamento e oscilou a um e outro lado. Tínhamos varado em cima do lombo dela...
Felizmente nada mais houve que um pequeno susto para alguns. A Baleia, ao sentir o bote, afundou-se, deixando-nos de novo o caminho livre.
-Força, rapazes... estamos safos desta! Vamos, força...
Ei?! Mafredo, elas estão estendidas por cima da água como paus!...
Aguenta duro, rapazes...vai ser desta vez.
Agora é uma outra Baleia que vem à superfície do lado em que estou a remar. O meu companheiro da frente, que rema no cinco, por não se ter apercebido ou por outra qualquer razão, faz o remo deslizar por cima do corpo da Baleia. Faltando-lhe o encontro da água na pá, vira de costas por cima de mim, resultando daí duas remadas falhadas.
Enquanto isso, o oficial continuava:
-Levanta-te malandro! Vás fazer com que percamos a Baleia! Se te querias deitar, tivesses ficado em casa.
Vamos... Vamos que vai ser agora.
Elas estão ali só à nossa espera!
Cuidado! Atenção! Vamos encalhar outra vez em cima de outro estupor!...não tenham medo.
O bote só roçou ao de leve por cima dela e continuou na sua marcha.
-Grandes Baleias!...
Já não posso ir pelo rabo, vou mesmo ao atravessar, Mafredo... a maior é a da ponta de lá. A do meio também é urna grande Baleia! A mais pequena é a primeira.
Força rapazes! É só mais meia dúzia de remadas! Vamos, força.
Pára de remar!...
Dá-lhe, Mafredo!... A maior é a do meio, mas tranca essa!
-Vamos partir!... vamos partir se tranco!
Estávamos parados, de remos apunhados. O bote cada vez ficava mais em seco em cima das Baleias. Encontrávam o-nos atravessados em cima de três Baleias que deviam estar na brincadeira connosco. Outra coisa não se podia depreender, visto que cada vez se levantavam mais e o bote já mal tocava com a quilha no mar. Elas sentiam o bote e continuavam. Não havia dúvida que se tratava de uma brincadeira... Caso contrário, podiam-nos desfazer em poucos segundos.
Passados que foram aqueles primeiros momentos, durante os quais ainda foram ouvidos alguns gritos de desespero, a voz do José Maria fez-se ouvir, ainda nós adornados sobre estibordo:
-Tranca, Mafredo! Tranca!
-Esta aqui! A do meio que é a maior! -dizia também eu para o Mafredo.
Este, com o arpão atravessado na proa, segurava-o com uma mão, enquanto com a outra se segurava ã borda; só dizia:
-Estamos partidos, como é que querem trancar!? Vamos morrer todos aqui!
-Malandro! Malandro!...vem trancar aquela Baleia!
-Não tranco! Se não estamos partidos, vamos partir! - dizia aquele pobre homem, que em poucos momentos se transformara num farrapo humano, apoderado pelo medo que os efeitos do álcool não deixavam dominar.
De facto, tinham-se sentido madeiras a estalar e a ranger por várias vezes, mas isso era natural. O bote estava carregado com toda a companha, e tinha estado quase todo fora da água levantado por dois pontos. Talvez tivesse mesmo algumas tábuas e cavernas partidas, o que não queria dizer «estar arrombado».
-Depressa!... Elas vão-se embora! -dizia o José Maria, vendo que o bote tomava a sua posição normal pelo facto de as Baleias estarem a deixar-se afundar.
Voltei a insistir:
-Vão-se embora e ficamos sem Baleia!
De pé, em cima da tilha da popa, o José Maria baixa-se, retira a cana do leme debaixo do leito, empunha-a, e, em voz rouca, horrendamente ameaçadora, diz:
-Ou trancas, ou eu mato-te.
Para quem ouvisse esta ordem, não merecia qualquer dúvida. O pé direito estava em cima do banco sete, pronto a saltar, qual tigre em cima da presa. A cana do leme de metro e meio de comprido, feita de madeira de giesteira, mantinha-se no ar para desferir o golpe ameaçador, se a ordem não fosse cumprida.
Dita como fora a ordem e mantida aquela atitude, sabendo-se ainda dos inúmeros antecedentes de onde partiam aquelas ameaças, o Mafredo pegou no arpão, olhando em volta...
-A do meio!... a do meio!...-se fez ouvir a mesma voz.
E aquele homem, que deixava transparecer na fisionomia todo o horror que ia dentro em si, saltou para cima do banco um, logo se apoiando no marinheiro do baó, sentado no banco dois, e saltou depois por cima do remo deste para o meu banco, apoiando-se também no meu ombro.
Eu estava debruçado na borda, olhando o mar para baixo, vendo as Baleias, não só as que ali estavam logo debaixo de nós, cuja cor, devido à pouca profundidade, se apresentava quase no tom normal do preto-acinzentado, mas vendo também as outras, por baixo destas, com a sua cor esbranquiçada, devido à profundidade em que se encontravam ser maior: dois ou três metros.
Ao sentir a mão em cima do ombro, olhei aquele homem amigo, e, ao encontrar os seus olhos, vi-os cheios de terror. No entanto, mostrava a determinação de cumprir o seu dever à ordem dada, mesmo que tivesse de ser pela última vez...
-A Baleia está aqui. Vá, tranca!
Sempre amparado a mim com uma das mãos, enquanto a outra segurava o cabo do arpão que trazia às costas, saltou para a minha frente, ficando entre a selha de linha e a borda. Olhou a Baleia que ali continuava despreocupadamente à espera, não doutra coisa que não fosse o arpão.
Mas ainda disse:
-Isto é um disparate! Vamos morrer aqui todos!
-Trancas, ou é que morres! -insiste o José Maria.
Eu estava agora de pé em cima do banco olhando aqueles monstros. Por baixo de mim um grande, talvez o maior, mostrava a sua imponente cabeça, enquanto o rabo estava pelo outro bordo fora. O lombo, começando logo atrás da cabeça, estava pronto a receber o arpão.
O Mafredo, com o joelho da perna direita encostado à borda, e com o pé da outra perna encoiçado na selha, tinha o arpão ao alto, fora da borda, seguro com as duas mãos. Havia ainda hesitação...
Novamente sente-se o bote estremecer. Olhei borda fora e vi a Baleia que se mantinha ali, embora tivesse vindo um pouco mais à superfície. Decerto estava de novo na brincadeira com o bote... Arqueia-se, mostra um pouco da cauda e deita a cabeça fora da água, mostrando a venta por onde atira um bufo, lento e fraco, pois o seu esforço, praticamente nulo, mais não requeria.
-Trancas, ou dá-me o arpão que eu tranco.
-Eu tranco -ouvi-o dizer muito baixo. Os seus braços elevaram o arpão o mais possível e cravaram-no no dorso do animal, à queima-roupa. Ainda pior que trancar à muleta, pois este trancar exige empurrar o arpão com o ombro. Ali, fora como se estivesse a espetar uma vara na terra...
O Mafredo deixou-se cair, ficando sentado em cima da selha. Eu recuei para o centro do banco. O cabo do arpão estava na nossa frente direito ao ar, sem um movimento. Não havia dúvidas que a Baleia estava trancada: via-se o mar, naquele sítio, levemente toldado do sangue que saía do buraco aberto pelo arpão.
Não se ouvia o mais pequeno ruído nos elementos da companha. Um observador atento conseguiria escutar o bater descompassado daqueles corações conscientes do perigo que tinham por baixo dos pés...
Passaram-se 5, 10, 15 talvez 30 ou mais segundos e tudo se mantinha. Para prova estava o arpão na mesma posição em que o Mafredo o tinha deixado! Embora por muito estranho que fosse, a Baleia parecia não o ter sentido. Só assim se explica esta sua atitude de indiferença.
O José Maria devia achar também tudo isto muito estranho e bem o deixava transparecer. Pela primeira vez o vi sem boné na cabeça, sentado em cima do lagaiete com as mãos sustendo o remo do esparrela. Mostrava, na sua atitude e fisionomia, para quem bem o conhecia, que os nervos se tinham apoderado dessa habitual calma, embora momentaneamente. Seria assim, porque a sua voz logo se fez ouvir:
-Cia para ré. Depressa.
Os remos correram fora e a manobra ia ser executada.
Quando o bote começava a andar para trás, o remo do meu companheiro da frente ia empeçar no cabo do arpão ainda na mesma posição, logo atrás da minha forquilha. Havia a tomar uma atitude e essa não se fez esperar: puxei o remo dentro, debrucei-me fora da borda, peguei no cabo do arpão, e cambeio-o no sentido do prolongamento do bote. O arpão, que tinha entrado até ao alvado, como agora via, cambou na junção deste com o canelo.
O meu remo de novo foi fora, e o bote, lentamente, por ir roçar em cima de uma ou mais Baleias, começou a sua marcha para ré.
O Mafredo continuava sentado na selha, notando-se-lhe claramente o seu estado de abatimento.
Embora com dificuldade, o bote vai saindo daquela po sição crítica, se bem que as Baleias ainda estivessem embaraçando o remar. Tinha-se de meter os remos na água com cuidado para não bater em nenhuma. Se isso acontecesse, podia haver perigo de ela ripostar ao sentir-se tocada, e todas as outras seguirem o seu exemplo, o que, na situação em que nos encontrávamos, reduziria as possibilidades de dali sairmos incólumes.
Tudo passou pelo melhor. O bote encontrava-se fora da Baleia trancada, aquela que, para já, oferecia mais perigo. Ela continuava por cima, atravessada a poucos metros de nós -na nossa proa. O arpão que a prendia a nós era perfeitamente visível em cima do seu lombo.
-Vejam se essa linha está pronta a correr!
Sai daí para fora, Mafredo! Vai para o teu lugar e põe tudo pronto para matar.
-Matar?!
-Sim, matar -responde ainda o José Maria -ou queres levar a Baleia viva?
Eu estava de novo em pé com uma perna para cada lado do meu banco e olhava em redor. Era espantoso o que continuava a ver: parecia haver ainda mais Baleias do que quando trancámos... Dava a impressão que se podia andar por cima do mar saltando de Baleia em Baleia...
Via, por fora de nós, a gasolina «Maria Manuela» e o outro bote que parecia também estar trancado. Não se conseguia saber qual das Baleias era. Só por se ver todo o pessoal de pé dentro do bote e a gasolina muito próxima é que a isso nos levava a crer. No caso de assim ser, devia-se estar a passar o mesmo que connosco: a Baleia estava por cima, juntamente com as outras.
Enquanto se mantivesse esse estado de coisas, com aquelas Baleias todas por cima, era impossível começar a matar. Seria, como já disse, correr um grande perigo, o que não era, de maneira nenhuma, aconselhável.
A nossa Baleia tinha-se separado mais das outras, ou antes, as outras separavam-se dela, fazendo um círculo à sua volta,
Não demorou muito.
A Baleia rola-se a um lado... depois ao outro... bate duas vezes com a cauda no mar. Forma um arco, estende-se, e dá um bufo... para novamente fazer arco, mas desta vez não havia dúvidas: ia virar o rabo. A sua cauda saiu da água, elevou-se no ar e, lentamente, sumiu-se nas águas do oceano.
A linha ia começar a correr. Por tal veio a chamada de atenção:
-Atenção à linha!
E é então que tenho a felicidade de assistir a mais um fenómeno!.. Todas as Baleias estão a virar o rabo ao mesmo tempo, como se lhes fosse dada uma ordem. Não levaram mais de 15 a 20 segundos para todas o fazerem. Por um momento, o mar, à nossa volta, tornou-se escuro por aqueles milhares de caudas apontadas ao céu.
Uma das Baleias trancadas deu a isto origem. A princípio, julguei que fosse a nossa. Mas, mais tarde, um dos cabeças do outro bote disse-me que aquilo havia acontecido porque a Baleia deles por três vezes avançara para o bote, tendo sido obrigados a dar-lhe uma lançada.
Os últimos redoiços das Baleias afundadas desapareceram por completo e o mar voltou a ser mar.
A linha começara a correr rapidamente, e meia selha tinha saído borda fora. Mais uma volta foi passada ao lagaiete. Com três voltas, dali saía uma coluna de fumo devido à fricção, escaldava como fogo.
-Água na linha.
Um dos dois baldes que faziam parte da palamenta foi a fora da borda, e rapidamente foi despejado em cima da primeira selha, enquanto o marinheiro do remo sete, munido do piriquito?, despeja ininterruptamente água que vai enchendo fora da borda em cima da linha que está passando no lagaiete, para evitar que este se incendeie.
-Atenção à costura -diz o homem que está à selha.
Era a primeira selha da linha que tinha chegado ao fim.
-Passou. Atenção, Mafredo.
Corre um homem por cima dos bancos com a costura que liga as duas linhas entre si, e vai entregá-la ao Mafredo, que a faz passar por cima da roldana da proa, após o que diz:
-Já passou.
-Chamem a gasolina para dar a ponta da linha.
Enquanto dizia isto, o José Maria passava mais uma volta. Agora já eram quatro. O atrito aumentou e o calor desenvolvido pela linha a correr, apertada contra a madeira, era também maior. A coluna de fumo igualmente aumentava.
Os chamamentos pela gasolina tinham sido feitos. Por maior precaução, foi também puxada a bandeira da companhia.
De bordo da «Isolda», os nossos sinais foram compreendidos, porque já ela vinha para nós, vendo-se o marinheiro à proa preparando tudo para nos entregar a ponta da linha.
Todas as gasolinas baleeiras usavam, por baixo do leito de proa, uma se lha de linha para socorrer o bote numa emergência. Neste caso, em que não tínhamos mais bote nenhum como companheiro, isso mais se explicava.
Parecia não haver dúvidas que íamos precisar da linha da gasolina. A Baleia continuava a ir para o fundo, restando-nos apenas meia selha. Mesmo que viesse de imediato para cima, não seria já suficiente para auxiliar o pendão que a linha faria.
A gasolina aproximava-se o mais rápido que lhe era possível, enquanto as últimas voltas da linha apanhada cuidadosamente aos círculos dentro das selhas ia desaparecendo...
Os chamamentos para a «Isolda» eram aflitivos; estava-se em risco de perder a Baleia e a linha. O José Maria passou mais uma volta no lagaiete, para retardar a saída da linha. O bico de proa do bote, que estava quase raso com o mar, começa agora a beber água, enquanto a popa mais se eleva. Valia-nos o mar estar muito manso. Se houvesse a mais pequena ondulação, o bote não aguentaria tal esforço.
Esta manobra do oficial, retardando a saída, deu tempo que a gasolina se aproximasse e nos passasse a ponta da linha. De imediato entregue ao Mafredo, rápido se debruçou pela proa fora com a ponta da mão, e deu o nó que deve segurar uma linha à outra. O nó tem de ser dado pelo lado de fora para evitar haver qualquer empeço na sua passagem ou na saída de dentro do bote. O nó dado é o de «cabaça», ficando largo em mão, e só apertado pelo trancador que continua estendido por cima do leito esperando a ordem do oficial:
-Aperta.
O Mafredo levanta-se, um pouco lento, e dá a manobra por concluída:
-Já apertou.
-Aí vai a arsa?.
Um marinheiro corre com esta saltando de banco em banco ao longo do bote, como foi feito com a costura que liga uma se lha à outra.
O nó que foi dado, no geral não aperta o suficiente para prender a linha no lugar onde foi apertado. Corre até ao fim da linha e aperta contra a arsa ou mãozinha.
O fim da linha passou por cima da roldana de proa. O bote, vendo-se solto daquela grande força que procurava arrastá-lo, ficou, durante momentos, elevando-se e baixando-se alternadamente da proa e da popa até, de novo, tudo se normalizar. Antes que isso acontecesse, já o José Maria ordenava:
-Depressa a armar remos... Vamos depres sa.
A gasolina tinha-nos entregue uma ponta da sua linha que aguçámos na ponta do chicote da nossa e que largámos em seguida, passando a linha a correr de dentro da gasolina de onde agora seria feita a manobra. Devido à sua diminuta tripulação, tendo ainda por cima como marinheiro um inexperiente, requeria ali mais alguém. Era essa a pressa do José Maria.
Armados os remos, rápidos nos aproximámos da «Isolda». A Baleia continuava a procurar o fundo, e, por conseguinte, o andamento, de início nosso e agora da gasolina, era muito pouco, sendo a distância que nos separava não superior a 50 metros.
-Nun'Álvares, vai para a proa e salta para dentro da gasolina e vai manobrando aquilo. Nós vamos procurar a cabeça da Baleia para lhe dar uma lançada quando ela sair.
O bote aproximou-se o suficiente para, num salto, eu poder vencer a distância que nos separava, tendo ido ficar em cima da borda, junto à casaria, e seguro no varandim da mesma. Rápido, deslizei até à proa, onde o mestre segurava a linha à entrada do cepo, utilizado aqui como o lagaiete nos botes. O motorista estava em baixo, à saída da selha, para evitar que se formassem seios, enquanto o marinheiro, com um balde, acarretava água para deitar na linha que corria rapidamente, só com duas voltas ao cepo.
Num rápido relance, tomei noção da situação, passando desde logo mais duas voltas ao cepo, Aqui era necessário ter outros cuidados, Enquanto o bote é uma embarcação leve que cede facilmente a um ou outro esticão maior da linha, na gasolina já assim não sucede devido ao seu tamanho.
Eu e o mestre estávamos a dar a linha ao cepo, apertando quando corria e aliviando as primeiras duas voltas quando parava, para, ao começar a correr de novo, o fazer sem grande esticão.
Três corridas vieram rápidas, e mais de meia selha de linha tinha corrido. A Baleia levara já duas se lhas e meia...
Rápido saiu, em mais nove ou dez corridas, quase tudo o que faltava. Apenas mais algumas voltas havia para correr. O motorista, fazendo notar o seu nervosismo, perante esta nova e iminente situação de se poder perder a Baleia e toda a linha, faz-nos saber:
-Só tem meia dúzia de voltas!
Não hesitei e arrisquei, passando mais duas voltas e dando ordem ao motorista para preparar o estrovo?. Este estrovo tinha por fim, após ligado ao chicote da linha, e deitado ao mar, trazê-la à superfície e ali a manter, a fim de poder haver possibilidades de ser recuperada. Era este apetrecho que o Sabino estava a preparar.
Depois de ter passado mais duas voltas, a linha só tornara a correr uma vez. Ainda puxava bastante, não o fazendo no entanto como há pouco. Agora dá início a mais uma corrida, mas só alguns metros saem e logo pára.
A Baleia não puxava já para o fundo. A gasolina começava a deslocar-se nitidamente na direcção em que a linha estava. A Baleia vinha para cima, mas a linha ainda dava mais uma corrida, o que não admirava. Dado o seu comprimento, estava fazendo um enorme pendão.
O Sabino passa a meu lado pela escotilha fora com a ponta da linha na mão e vai aguçá-la no estrovo, já preparado. Deita-o em seguida fora da borda.
-Pronto! Poucos metros tem dentro da selha. Está tudo pronto a largar por mão.
Se a Baleia levasse mais linha, como seria natural, tinha de retirar muito rápido as voltas passadas no cepo e atirar o seio ao mar. Tudo fazia agora crer que a Bal eia vinha para cima, devendo mesmo estar quase a sair. Tínhamos que evitar a todo o custo que a linha corresse, sem, no entanto, a apertar mais, Se começasse a correr, não havia solução senão largá-la; caso contrário, o estrovo, amarrado e já fora da borda, seria arrastado pela ponta da linha contra o cepo, aí faria tono, não correria, e, por certo, a linha rebentaria,
Nada disso aconteceu, e foi com alívio que vimos a Baleia sair e dar o primeiro bufo perto da proa do bote, que estava lá para a frente.
Depois daquele mar de Baleias, nenhuma agora. Não havia dúvidas. Se o mar tanto tinha dado sem sabermos como, da mesma maneira tudo levara! Não seria bem assim, porque duas ainda estavam presas...
O bote da outra companhia, também trancado, estava nas mesmas condições que nós: a sua Baleia presa à gasolina, queria dizer ter levado as linhas do bote. Este passara remando na volta da nossa terra e contra a Graciosa, enquanto a «Maria Manuela», mais atrasada, ia sendo rebocada na mesma direcção.
Nós pouco podíamos fazer com toda aquela linha no mar. Iríamos, no entanto, tentar meter algumas braças dentro, para, no caso de a Baleia mergulhar, nós termos alguma linha para arriar.
Se a Baleia não se deixasse matar de imediato, a linha tinha de ser passada para o bote ficando ele com toda a linha das três selhas.
O bote estava-se a preparar para a primeira lançada. Embora longe, víamos a Baleia quase parada, atravessada na sua proa, e o Mafredo de lança na mão.
A lança partiu. Um salseiro enorme eleva-se. Deixamos de ver o bote, enquanto a Baleia se bate loucamente. Só assim se explica o aguaceiro que ali se vê. Estamos os quatro de olhos fixos lá na frente, naquele aguaceiro, que deixa ver, de vez em quando, o negro do corpo do monstro debatendo-se ou com a dor da lançada, ou enraivecido por se encontrar preso.
Nenhum de nós fala. Um pressentimento nos deve ter invadido: não conseguimos ver o bote! O que se passará ali?
É o mestre Manuel Félix que quebra o silêncio, mostrando claramente, pelo tom de voz, o terror que o invade:
-Vamos largar a linha e saber o que aconteceu àquela gente...
Estava de facto pronto a fazê-lo. A sua atitude, ao baixar-se e ao deitar a mão à linha para a retirar do cepo, bem o indicava.
-Não…isso não. Ainda é cedo para se saber se houve algum desastre. Aqui ninguém toca.
Eu estava ainda segurando a linha juntamente com os outros dois. Agarrei-lhe a mão que ele estendeu à linha e, com voz decerto mais dura e ameaçadora do que eu próprio desejava:
-Aqui não se larga nada.
Ele pôs-se de novo em pé, e ficou olhando o local onde se desenrolava qualquer coisa que não víamos.
-Largo eu -disse o Sabino, ao mesmo tempo que largava a linha que segurava atrás de mim, pondo-se também de pé, fixando o mesmo ponto.
-Olha o bote!...olha o bote!... está a «ciar» para ré.
O motorista Sabino tinha razão: via-se o bote sair de trás daquele salseiro, sempre «ciando» para ré com toda a força que os homens, aos remos, podiam dar. Assim devia ser, porque logo percebi que a Baleia os estava perseguindo. Mas eis que o rabo se eleva nos ares. A última água levantada cai, enquanto a cauda desaparecia. De novo a Baleia mergulhou!...
A nossa atenção está toda concentrada no bote, e um dos nossos primeiros cu idados, mecânico quase, é contar as cabeças para saber se falta algum homem. À popa estão dois em pé e cinco debruçados sobre os remos. Não falta ninguém, penso, mas por que razão estão aqueles dois na popa, quando devia estar um na proa?! De facto não se compreendia.
Um gemido, seguido de um grito abafado do mestre da gasolina, fez-se ouvir:
-Eu sabia... eu sabia... Falta ali um homem. Eu sabia... Quando chegar a terra vou participar.
-Vás participar de quê?!
A resposta veio do motorista:
-Que morreu ali um homem e teimas em não ir socorrer aquela gente.
Estamos para aqui à espera que ela mate os outros todos, para depois os irmos juntar aos pedaços?!
Eu dentro daquela gasolina era um estranho, só que tinha ido para ali por ordem de um oficial. Não podia dar ordens perante o mestre, nem tão pouco ser obedecido por qualquer um dos elementos, se ele assim o entendesse. Só de uma maneira, embora essa fosse contra a lei: era à força. Tendo a razão pelo meu lado, como julgava, fiz-me impor:
-Vocês são uns «coirões» que não valem nada. Quem manda agora aqui dentro sou eu, e o primeiro que desobedecer já sabe que se entende comigo.
O motorista, que tinha comigo mais confiança e também tinha muito palavriado, ainda quis refilar.
-Cala-te... já disse que quem manda agora aqui sou eu, E livre-se aquele que não obedecer.
-Também não faço mais nada, Vou-me embora para o meu serviço que é ao pé do motor.
-Vai, mas não me aborreças mais.
Ainda me levantei, hesitante se devia ou não tomar uma maior firmeza no meu procedimento.
Ele tinha largado a linha. Esta, só segura pelo marinheiro, começa a correr, e saem os poucos metros que havia...
-Larga -gritei ao marinheiro antes que ficasse com as mãos traçadas. Foi a tempo! O seio chegou ao fim e, puxando pela ponta onde tinha o estrovo preso, passou por cima da borda, e foi trincar contra o cepo. A proa da gasolina cedeu um pouco.
Seria de esperar que a linha fosse rebentar, mas assim não aconteceu.
A Baleia não devia ter descido muito, como o indicava a pouca força que a linha fazia.
O marinheiro sacudia as mãos e torcia-se com as dores. Estavam escaldadas pela linha ao passar entre elas a grande velocidade. Muita sorte teve em largá-la a tempo de não ficarem entaladas contra o cepo.
Nada podíamos fazer senão esperar que a linha aliviasse o suficiente para que pudéssemos meter algumas braças dentro, alargar o aperto que ali ia, e iniciar nova manobra.
O Sabino foi buscar óleo de lubrificação e deitava nas mãos do marinheiro que continuava gemendo e torcendo-se com dores.
Enquanto o motorista estava neste trabalho de enfermagem, o mestre, sempre olhando o bote, diz, com a maior simplicidade, e deixando transparecer a alegria que sentia:
-Ó Sabino, afinal não falta ninguém no bote, são mesmo só sete...
-Estás doido, falta um homem!
-Não falta. Ele tinha oito, mas um saltou para aqui.
Só agora se havia apercebido que eu tinha saído de dentro do bote, e por isso só contavam sete homens, Este caso não era inédito entre baleeiros,
Conheci alguns deles, Um, fora do bote que revirara a matar uma Baleia grande. Quando os homens se juntaram em volta e, agarrados ao bote, começaram entre si a ver se faltava alguém, contaram e chegaram à conclusão de estarem todos. O que contava, contava-se a si duas vezes: ao iniciar a contagem e no fim. Foi só quando a gasolina chegou, muito depois, por estar longe, que, os de dentro dela, viram que faltava um homem. Ao perguntarem por ele, aqueles, ainda tomados de pânico, teimavam em assegurar que não faltava ninguém. Salvos, já a bordo da gasolina, constataram a realidade: tinha desaparecido um homem não mais havendo qualquer indício a seu respeito.
Eu acabava de ganhar uma grande partida, e aqueles homens estavam-me agradecidos por não terem perdido a Baleia. Pensei no que diz o velho rifão: «Um homem com razão tem muita força.»
O bote agora abandonara a Baleia e dirigia-se para nós. Por que razão? Era o que íamos saber dentro em pouco tempo.
Ela devia estar perto de sair. A linha não fazia força, como acabara de verificar. No entanto, com menos um homem, o marinheiro ferido nas mãos, seria difícil meter algumas braças de linha dentro; mas como o bote estava a chegar, veríamos qual a resolução a tomar.
Aproxima-se. Estamos quase à fala. O trancador Mafredo está na popa, de pé, na frente de José Maria, não havendo qualquer mostra de estar ferido. Vão prolongar connosco. Atiraram-nos um lançoope para a proa que é passado à caçadeira, enquanto, no bote, levam os remos.
-Peguem nesse seio da linha e tragam-no para aqui ordena o oficial.
Um marinheiro foi executar a manobra indo-se encostar à linha pela altura do choque que fica colocado na borda entre o leito de proa e o banco um. Mais dois homens ajudaram à manobra e o seio da linha, presa à Baleia, foi passado na roldana. Sempre com o outro seguro, começam a meter linha dentro, formando um seio que, aos poucos, vai crescendo até que, chegado à popa, é passado ao lagaiete. A linha puxada por toda a tripulação vai vindo dentro e é apanhada entre o banco sete e o leito da popa, frente ao oficial.
Foram colhidas umas 30 braças e foi mandado largar a ponta da linha ainda passada ao cepo da proa da gasolina, manobra que foi facilmente executada com a linha sem fazer força, tendo-se só desfeito o aperto dado contra o cepo pelo efeito da chegada ali do estrovo, também já desamarrado da ponta da linha.
-Posso largar?
-Podes. Ficas aí dentro e vais ver se dás umas lançadas na Baleia que deve estar a sair. Toma cuidado: ela avançou para nós! Pega de dente!
Agora eu percebia a razão de o Mafredo se encontrar na popa. Tinha, decerto, apanhado um tremendo susto e temera estar na proa.
Largada a ponta da linha, o bote começou a separar-se de nós e dei ordem para ligar o motor para vante. Passei através da escotilha e fui debaixo do leito buscar uma lança que levei para a proa juntamente com o lançoope que agucei no estropo da lança. A outra ponta foi passada ao cabeço colocado de estibordo, onde fica presa, vindo por cima da borda junto à casaria até à proa.
A Baleia tinha saído com a cabeça em noroeste e com um andamento bem rápido, a cerca de meia milha de nós. Mandei dar toda a força ao motor e, de pé, em cima do leito, dava sinal ao mestre de qual a direcção que devia tomar.
Para matar de bordo de uma gasolina, esta passa a toda a força ao lado da Baleia, a lança é atirada e logo a gasolina se desvia, ficando tudo pela popa. Quando o lançoope estica, a lança sai da Baleia e é metida dentro ainda pela popa, evitando assim irem ao h&