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Perseguição no Mar

by Nun'Álvares de Mendonça

Perseguição no Mar

Nun’Álvares de Mendonça

O excerto Perseguição no Mar, aqui publicado, foi extraído do livro Memórias de Um Baleeiro, da autoria de Nun’Álvares de Mendonça, que gentilmente autorizou a sua publicação.

© 1996, Nun’Álvares de Mendonça e Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-57-X

Lisboa, Novembro de 1996

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

PERSEGUIÇÃO NO MAR

Foi num dia magnífico do mês de Junho que fizemos uma arriada para fora do Salão?.

O vigia mandou arriar, mas não tinha visto Baleias: só botes. Lá estava o lençol estendido abaixo da casa, sem bandeira.

Como de costume, este tipo de arriada gerava sempre discussões, e isto porque o número de falhas tinha uma percentagem muito elevada, ou por não ser de facto Baleia, ou então sendo só uma, os primeiros a chegar trancavam, e, quando os outros lá chegavam, só serviam de testemunha, com o que o baleeiro «dava o cavaco»?.

No habitual, tudo isso que se gerava à volta do lençol, era mais um desabafo que propriamente um pretexto para não irem à Baleia -o vício e o prazer de matar, estavam acima de tudo!

Embora um pouco mais lentamente, arriou-se o bote «António Henriques» e a gasolina «Isolda», e lá fomos com rumo ao Salão.

O vento de noroeste e o mar direito eram um conjunto de factores certos que facilitavam não só o andamento da embarcação de vela, como toda a sua manobra. Talvez devido a estas magníficas condições, muito cedo se começou a ver botes fazendo de vela, sem que, no entanto, o vigia nos tivesse feito qualquer sinal mostrando que vira as Baleias. Mas elas deviam lá estar. Só assim se explicava vermos botes a fazer de vela.

Causou-nos certa admiração, quando estávamos perto de chegar, ver uma gasolina com dois botes de reboque rumo ao Faial, e para a doca. Pouco depois, estávamos a presenciar uma cena idêntica: um outro bote pega no pano e também amarra à sua gasolina, depois de ter estado perto das Baleias. Tínhamo-las já visto na sua proa, e íamos no encalço delas. Dentro em pouco, se tudo se mantivesse, devíamos largar, e por certo se desvendaria o que se estava passando.

Conveniente será lembrar que tinha arriado juntamente connosco a companhia rival, com a gasolina «Maria Manuela» e um só bote: o «S. Joaquim». Aquela, com mais andamento, estava chegando próximo das Baleias e estava largando o bote.

As Baleias voltaram a sair, desta vez, com a cabeça ao vento, que se mantinha de noroeste, e bem «tocadas», tanto assim que vimos o bote rival pegar no pano e chamar pela sua gasolina para o rebocar mais ao vento. Esta, que estava desviada, demorou a chegar, e só quando estávamos a passar é que lhe atirou o cabo de reboque.

Saem novamente, sempre para o vento, mas ainda, pelo vento delas, está uma gasolina com dois botes, que deviam ser do Sul do Pico, das Lajes ou de S. Mateus. Largaram, fazendo de vela para elas. Com o vento que estava e a navegarem num largo, foi sem dificuldade que rapidamente se aproximaram, e vimos um dos trancadores põr-se em pé, pegar no arpão e começar a mandar o oficial dar o bote à Baleia: primeiro a uma, depois manda a outra, e não atira...

Agora, o mais estranho: as Baleias continuavam por cima, e o bote, preparado para trancar, estava a marear e não ia às Baleias, mas dirigia-se para a sua gasolina, levantando ainda a bandeira da companhia, que era o sinal de chamada a um companheiro.

Tudo isto presenciámos, enquanto éramos rebocados com o máximo de força que o motor da nossa gasolina podia imprimir, para cima daquelas Baleias que agora levavam a cabeça sempre no mesmo sítio, muito perto do vento, e sempre bem «tocadas». Para melhor andarem, não viravam o rabo. Iam à tona da água; vinham acima; davam cinco ou seis bufos, e repetiam a mesma manobra.

Nós continuávamos na sua perseguição, tendo apenas como companheiros a armação do nosso porto. Os outros tinham já amarrado, e seguiam em direcção a terra.

Não se compreendia por que razão nós nos mantínhamos naquela louca perseguição depois de tudo o que havíamos presenciado! Seria a razão de haver já vários dias que não apanhávamos nada?

O certo é que ali permanecíamos, embora sabendo da desistência dos outros!

Estávamos agora a conseguir aproximarmo-nos das Baleias com uma certa vantagem, mas era necessário ganhar-lhes a cabeça, e fazer com que não fossem mais ao vento, porque, continuando elas no mesmo andar, não podíamos largar a vela. De remos, não havia possibilidade de nos aproximarmos.

A gasolina «Maria Manuela» que, devido ao seu maior andamento, ia novamente na nossa frente, dentro em breve iria largar o seu bote e decerto procurar tirar-lhes a cabeça do vento.

De facto assim foi: largou o bote que havia feito de vela mesmo a reboque com o fim de não demorar, enquanto a gasolina a toda a sua velocidade ia passar pela frente das Baleias e tentar virar-lhes a cabeça. Esta manobra, que exigia muita experiência do mestre da gasolina, devia ser feita procurando virar-lhes a cabeça contra a nossa terra; nisso havia toda a vantagem, até para tornar mais rápido o regresso, poupando combustível e as longas horas de reboque. Quando se tratava de armações de várias ilhas, principalmente entre Pico e S. Jorge, gerava-se, de início, o despique, em que cada um procurava levar a melhor, cercando as Baleias contra a sua terra. No geral, acabavam por vencer aqueles que tinham mais gasolinas.

Quantas vezes conseguiram cercar numa baía um cardume de baleias, e, ali, enquanto as gasolinas se cruzavam em meio círculo num vaivém constante entre as duas pontas da baía, os botes dizimavam o cardume, nem sempre até ao fim porque a noite chegava! Nalguns casos, só saíam desse recanto de mar tinto de sangue alguns cafres?, poupados àquela matança cruel.

A «Maria Manuela» tinha passado pela cabeça das Baleias e avagava a marcha, enquanto o bote, a todo o pano, esperava a saída delas contra o nosso canal. Assim não aconteceu. As Baleias, estranhamente, não tinham ligado nada ao barulho da gasolina, devendo mesmo ter passado por baixo dela, seguindo no anterior rumo.

Como não tínhamos largado da nossa gasolina, ficámos com mais vantagem. Os outros tinham que ir buscar o bote para rebocar para o vento.

Desde que tínhamos chegado, já se teriam passado mais de duas horas nesta corrida pelo noroeste dentro sem se ver maneira de aquelas Baleias avagarem a sua corrida, ou mudarem de rumo. Isto, atrás de cinco baleias abandonadas por outros baleeiros... E nós a teimar e a querer -o quê?!...

Mais um bom bocado passado, quando as Baleias começaram, talvez devido ao cansaço, a diminuir o andamento. Estávamos a aproximarmo-nos a pouco e pouco. Já não mergulhavam, indo sempre por cima, embora só bufando de minutos a minutos.

A «Maria Manuela», que tinha de novo passado por nós, ia já um bom bocado à nossa frente, quando, subitamente, as Baleias avagaram ainda mais a sua corrida. A gasolina, que ia mesmo chegando ao rabo delas, em vez de largar o bote, qual o nosso espanto: passa por elas com o bote sempre a reboque, sem ao menos esboçar uma atitude de trancar!

Estávamos também a chegar, e depressa vimos a razão de tudo o que tínhamos presenciado!: as Baleias não passavam de cinco baleotes, pouco maiores do que os cafres, nem tão-pouco aguentariam o peso do arpão. Era, de facto, um crime inútil trancar um animal daqueles.

Tínhamos andado mais de três horas naquela perseguição e agora era voltar para casa; não havia outra coisa a fazer. A nossa gasolina avagara o andamento e assim os baleotes ganharam de novo dianteira, bufavam quase normalmente, como se o medo lhes tivesse passado.

O tempo a que atrás me referi, com vento soprando fresco de noroeste, tinha sofrido grande alteração. Agora não havia qualquer vento, e o mar estava «estanhado», condições impossíveis para andar de vela.

Alguma coisa de estranho se devia estar a passar, porque a gasolina «Maria Manuela» continuava a toda a velocidade, já bastante distanciada de nós, embora sempre com o mesmo rumo.

Foi de dentro da nossa gasolina que o motorista, que tinha saltado acima da casa, com certeza para se certificar do que se passava com a outra gasolina, que continuava no mesmo andamento e mesmo rumo, começou a fazer sinais apontando para a proa.

Todos, como que impelidos por uma mola, se puseram de pé dentro do bote! Decerto todos viam o mesmo, e outra coisa não podia deixar de ser, nem se percebia como ainda não se tinha visto. O mar em toda a nossa frente e enquanto a vista alcançava -estava cheio de Baleias!

O mar manso de que há pouco falei era agora encrespado pelo redoiço das inúmeras Baleias que ali estavam. Não eram dezenas, nem mesmo centenas -deviam ser milhares!

Estávamos separados da «Maria Manuela» cerca de uma milha. Esta continuava com o bote a reboque, e já chegando àquele mar de baleias, enquanto nós, também agora a toda a força, íamos no seu encalço...

No bote, o oficial José Maria. O trancador era o Mafredo. Este homem, de uns 55 anos, parecendo muito mais idoso devido ao consumo diário do álcool, era um baleeiro cauteloso, medroso e de pouca coragem. Salvo erro, esta foi a sua última arriada dentro de botes. Passou a arriar como mestre de uma das gasolinas.

Dos restantes seis fazia eu parte, à data um rapaz de 16 anos, o mais novo que ali estava, remador ao remo três. Foi nesta tarde e noite que a minha consideração como baleeiro muito subiu. Isso devo ao José Maria, pela confiança que depositou em mim durante aquelas longas horas, confiança nascida, com certeza, da coragem e agilidade que observava em todos os meus gestos e atitudes.

Será interessante lembrar que, nesse dia, fazia parte da companha uma outra figura, já vossa conhecida: o carcereiro da cadeia das Velas, que, aquando daquelas idas, tinha a mulher que fazia o seu lugar em terra junto dos ferros, e muito foi lembrada naquela tarde e noite pelo seu fiel marido... Esta também a sua última arriada. Em pânico, prometeu a Deus que «se voltasse a ver a mulher e filhos não mais tornaria à Baleia»... e cumpriu.

Na gasolina, o mestre era o Manuel Félix, bom indivíduo, embora pouco conhecedor, sendo também muito medroso, mas sempre pronto a cumprir qualquer ordem que lhe fosse dada.

O motorista, o Sabino, cuja profissão era ferreiro e forjador, sendo como forjador um habilidoso excepcional. Tinha a vaidade de que nunca Baleia alguma trancada com arpões feitos por ele tinha sido perdida por defeito do arpão. Esta arma de fabrico artesanal, saída das mãos deste artista, era, de facto, uma obra de perfeita execução. Aperfeiçoada por ele próprio, nela já apareciam linhas aerodinâmicas, particularmente na maneira como lançava a barba e a farpa do arpão... Vi e ajudei a fazer muitos destes arpões. Ele fazia-os para todas as ilhas. Uma outra presunção dele era o que conseguia fazer dando um único calor ao ferro. Espantoso! «Caldeava» o alvado ao canelo, e num só calor deixava o trabalho feito, pronto a que o cabo de madeira encaixasse no alvado do arpão. «Caldear» o ferro um com o outro não passava de uma soldadura, só que, quando bem feita, ficava como se de um único ferro se tratasse. A importância disto é que o ferro que levasse vários calores perdia qualidade, e ali, justamente na ligação do canelo ao alvado, onde vai amarrar o estropo do arpão que por sua vez vai ligar à linha, é um dos pontos que faz mais força.

Conheci sempre este homem a ir à Baleia. Fazia-o por vício, porque trabalho nunca lhe faltava. Se sabia fazer um arpão, os alviões e enxadas feitas por ele não eram inferiores. Quantos esperaram um ano e mais para conseguirem essas peças de ferramenta, feitas e temperadas como só ele sabia!

Como motorista, satisfazia; como baleeiro, era muito bom, Além de saber atirar uma lança da proa da gasolina, era uma pessoa dotada de uma vista magnífica, gostando de a usar. Passava horas de pé em cima da casa a vigiar, e, aí, por vezes, os motores sofriam pela falta de assistência...

O marinheiro desta gasolina era também um rapaz, por sinal filho do delegado marítimo, que, embora gostando muito da pesca, mais ali andava para praticar como motorista do que por outra razão.

Estávamos a chegar, e o nosso oficial mandou desamarrar o cabo de reboque, e passar a ponta em volta do banco um, ficando o escote seguro pelo homem do baó, pronto a largar à primeira ordem.

Executada a manobra, já tínhamos Baleias não só pela frente, mas também de um e do outro lado. Até pela popa elas se viam! Seria praticamente impossível sair dali sem trancarmos, O Mafredo, na proa, de arpão na mão, procurava mandar para a maior Baleia, enquanto, da gasolina, o Sabino, ainda de pé, em cima da casa, e da popa do nosso bote o José Maria, gritavam que esperasse. Decerto, no meio de tanta Baleia, devia haver Baleias grandes. Assim, dirigi-me ao oficial e disse-lhe:

-José Maria. Tem que haver, no meio destas, Baleias grandes! Não deixes trancar.

-Também estou convencido disso, mas não vejo nenhuma! Vê se consegues descobrir alguma.

Embora de reboque, tinham sido colocadas as forquetas no seu lugar, e os remos prontos a correr fora. Foi depois de me certificar que o meu estava bem cruzado e não cairia ao mar que saltei para cima do meu banco, o banco três, onde rema o remo mais comprido do bote?. Ali, de pé, descobria maior horizonte. Tudo, até onde a vista alcançava, eram Baleias e em toda a volta. De onde tinham surgido tantas, continuando a chegar mais, mesmo atrás de nós, donde há pouco havíamos passado?! Já o mar estava cheio. Eu vivia um momento excitante, maravilhoso e inesquecível. Como explicar a razão do que ali se estava a passar?!

É natural que, naquela altura, o que se estava desenrolando me parecesse sob o ponto de vista material e não visse as coisas com a lucidez de mais tarde, e esse mais tarde foi praticamente toda a minha vida, em que esse espectáculo, ou antes fenómeno, porque disso se tratava, foi relembrado milhares de vezes...

Trinta e cinco anos mais tarde.

Tínhamos ficado a pairar durante a noite a umas 80 a 90 milhas pelo Sul do Pico fora. Quando me encontrava na ponte, ao amanhecer, comecei a distinguir, por cima do mar sem uma ondulação e completamente estanhado, qualquer coisa estranha que me prendeu a atenção: pareciam velas de pequenas embarcações...

Mandei chamar vários marinheiros para verem, e tentei saber se algum tinha conhecimento do que se estava a presenciar; mas ninguém tinha uma explicação.

Foi só após o amanhecer que conseguimos distinguir, com o auxílio dos binóculos, que se tratava de voadores?. Tudo o que se alcançava à nossa volta eram «ase lhas» de voadores, centenas de milhares, talvez mesmo milhões! Ali estavam dormindo, e o mais estranho, todos de lado, com a «aselha» levantada!

Não sei de onde e como apareceram, mas sei como desapareceram: um raio não seria mais eficiente!

Após demorada contemplação, vendo tão perto peixe que carregaria muitos navios, estávamos quase certos de ir fazer uma grande pesca. Não sabia como proceder perante este caso inédito para mim na pesca, mas achei que a primeira coisa a fazer seria pôr a máquina principal em funcionamento. Tínhamos a trabalhar a motobomba que dava água para os viveiros, e luz para a iluminação. Assim, dei ordem ao motorista, que se encontrava também a meu lado contemplando aquele espectáculo, para pôr a máquina em movimento, o que ele de imediato foi fazer. Continuávamos olhando aquele mar, quando o arranque girou, e a máquina logo arrancou. No mesmo instante, todas as aselhas se movimentaram, e aquele mar de peixe, ainda há pouco tão visível, se sumiu como que engolido de uma só vez, para muito mais tarde aparecer mas em cardumes, aqui e além, como era habitual.

Eu continuava de pé em cima do banco, procurando descobrir uma Baleia grande. O oficial José Maria tinha razão: Não seria fácil. Aquelas Baleias não bufavam como era habitual. Se tanto, em cada cem, só uma o fazia. Elas nem andavam. Quando chegavam junto das outras, paravam e ali ficavam.

Nunca me tinha constado que se pudesse trancar Baleias a reboque da gasolina: ao sentirem o ruído do motor, logo submergiam. Mas a estas nada as assustava. Podia-se trancar a qualquer momento. Até entre a popa da gasolina e a proa do bote chegavam a emergir Baleias, sem um movimento de medo, de defesa ou de ataque. Tudo aquilo era muito estranho.

Mas eis que descubro o procurado. Não devia haver engano.

Eram os dorsos de três enormes baleias que eu estava a ver!... Um momento mais para confirmar. Não havia dúvida!...

-Ali!... Ali! contra a nossa terra!...

Não sei se o José Maria as chegou a ver, ou se se fiou na minha palavra. A ordem foi por ele dada:

-Larga o cabo de reboque. Armem os remos.

E já com o esparrela fazia voltar o bote na direcção indicada.

Eu tinha-me sentado no meu lugar, puxado o remo fora à ordem de armar remos, e já curvado sobre o punho do mesmo fazia-o vergar, como os meus outros companheiros, para que rapidamente o bote adquirisse a velocidade desejada.

Todos os oficiais que conheci assumiam uma atitude típica quando se aproximavam de uma Baleia, e o José Maria não fugia à regra. O boné que sempre usava era puxado para cima da testa, deixando a parte de trás da nuca a aparecer. No seu caso, ficava-lhe à vista uma parte da careca... A pala do boné tapava-lhe os olhos quase por completo. Após uma cuspidela borda fora, amarelada devido à permanência da masca ao canto da boca, e após ter aproado o bote ao rumo, começava uma «lengalenga» que também lhe era habitual nestas situações. Este palavriado em voz abafada ia sempre baixando de tom à maneira que o bote se aproximava da Baleia. Os intervalos entre as suas ordens, lamúrias ou protestos, iam também diminuindo, tornando-se intermitentes. Por vezes, parecia falar consigo próprio.

Mas eis que o ouvimos:

-Já as vi! Ali estão!

Vá, força nesses remos!... este bote não anda nada!

A sua cabeça não tinha um movimento: acompanhava o corpo; e os olhos, esses deviam estar fixos num ponto e dali não saíam.

-Anda Mafredo. Puxa por esse remo.

Ah! Baleia filha da puta... sai daí para fora.

Uma Baleia tinha-se atravessado na proa. Sentimos perfeitamente o bote varar por cima dela. Parou-se de remar. O bote quebrou o andamento e oscilou a um e outro lado. Tínhamos varado em cima do lombo dela...

Felizmente nada mais houve que um pequeno susto para alguns. A Baleia, ao sentir o bote, afundou-se, deixando-nos de novo o caminho livre.

-Força, rapazes... estamos safos desta! Vamos, força...

Ei?! Mafredo, elas estão estendidas por cima da água como paus!...

Aguenta duro, rapazes...vai ser desta vez.

Agora é uma outra Baleia que vem à superfície do lado em que estou a remar. O meu companheiro da frente, que rema no cinco, por não se ter apercebido ou por outra qualquer razão, faz o remo deslizar por cima do corpo da Baleia. Faltando-lhe o encontro da água na pá, vira de costas por cima de mim, resultando daí duas remadas falhadas.

Enquanto isso, o oficial continuava:

-Levanta-te malandro! Vás fazer com que percamos a Baleia! Se te querias deitar, tivesses ficado em casa.

Vamos... Vamos que vai ser agora.

Elas estão ali só à nossa espera!

Cuidado! Atenção! Vamos encalhar outra vez em cima de outro estupor!...não tenham medo.

O bote só roçou ao de leve por cima dela e continuou na sua marcha.

-Grandes Baleias!...

Já não posso ir pelo rabo, vou mesmo ao atravessar, Mafredo... a maior é a da ponta de lá. A do meio também é urna grande Baleia! A mais pequena é a primeira.

Força rapazes! É só mais meia dúzia de remadas! Vamos, força.

Pára de remar!...

Dá-lhe, Mafredo!... A maior é a do meio, mas tranca essa!

-Vamos partir!... vamos partir se tranco!

Estávamos parados, de remos apunhados. O bote cada vez ficava mais em seco em cima das Baleias. Encontrávamo-nos atravessados em cima de três Baleias que deviam estar na brincadeira connosco. Outra coisa não se podia depreender, visto que cada vez se levantavam mais e o bote já mal tocava com a quilha no mar. Elas sentiam o bote e continuavam. Não havia dúvida que se tratava de uma brincadeira... Caso contrário, podiam-nos desfazer em poucos segundos.

Passados que foram aqueles primeiros momentos, durante os quais ainda foram ouvidos alguns gritos de desespero, a voz do José Maria fez-se ouvir, ainda nós adornados sobre estibordo:

-Tranca, Mafredo! Tranca!

-Esta aqui! A do meio que é a maior! -dizia também eu para o Mafredo.

Este, com o arpão atravessado na proa, segurava-o com uma mão, enquanto com a outra se segurava ã borda; só dizia:

-Estamos partidos, como é que querem trancar!? Vamos morrer todos aqui!

-Malandro! Malandro!...vem trancar aquela Baleia!

-Não tranco! Se não estamos partidos, vamos partir! - dizia aquele pobre homem, que em poucos momentos se transformara num farrapo humano, apoderado pelo medo que os efeitos do álcool não deixavam dominar.

De facto, tinham-se sentido madeiras a estalar e a ranger por várias vezes, mas isso era natural. O bote estava carregado com toda a companha, e tinha estado quase todo fora da água levantado por dois pontos. Talvez tivesse mesmo algumas tábuas e cavernas partidas, o que não queria dizer «estar arrombado».

-Depressa!... Elas vão-se embora! -dizia o José Maria, vendo que o bote tomava a sua posição normal pelo facto de as Baleias estarem a deixar-se afundar.

Voltei a insistir:

-Vão-se embora e ficamos sem Baleia!

De pé, em cima da tilha da popa, o José Maria baixa-se, retira a cana do leme debaixo do leito, empunha-a, e, em voz rouca, horrendamente ameaçadora, diz:

-Ou trancas, ou eu mato-te.

Para quem ouvisse esta ordem, não merecia qualquer dúvida. O pé direito estava em cima do banco sete, pronto a saltar, qual tigre em cima da presa. A cana do leme de metro e meio de comprido, feita de madeira de giesteira, mantinha-se no ar para desferir o golpe ameaçador, se a ordem não fosse cumprida.

Dita como fora a ordem e mantida aquela atitude, sabendo-se ainda dos inúmeros antecedentes de onde partiam aquelas ameaças, o Mafredo pegou no arpão, olhando em volta...

-A do meio!... a do meio!...-se fez ouvir a mesma voz.

E aquele homem, que deixava transparecer na fisionomia todo o horror que ia dentro em si, saltou para cima do banco um, logo se apoiando no marinheiro do baó, sentado no banco dois, e saltou depois por cima do remo deste para o meu banco, apoiando-se também no meu ombro.

Eu estava debruçado na borda, olhando o mar para baixo, vendo as Baleias, não só as que ali estavam logo debaixo de nós, cuja cor, devido à pouca profundidade, se apresentava quase no tom normal do preto-acinzentado, mas vendo também as outras, por baixo destas, com a sua cor esbranquiçada, devido à profundidade em que se encontravam ser maior: dois ou três metros.

Ao sentir a mão em cima do ombro, olhei aquele homem amigo, e, ao encontrar os seus olhos, vi-os cheios de terror. No entanto, mostrava a determinação de cumprir o seu dever à ordem dada, mesmo que tivesse de ser pela última vez...

-A Baleia está aqui. Vá, tranca!

Sempre amparado a mim com uma das mãos, enquanto a outra segurava o cabo do arpão que trazia às costas, saltou para a minha frente, ficando entre a selha de linha e a borda. Olhou a Baleia que ali continuava despreocupadamente à espera, não doutra coisa que não fosse o arpão.

Mas ainda disse:

-Isto é um disparate! Vamos morrer aqui todos!

-Trancas, ou é que morres! -insiste o José Maria.

Eu estava agora de pé em cima do banco olhando aqueles monstros. Por baixo de mim um grande, talvez o maior, mostrava a sua imponente cabeça, enquanto o rabo estava pelo outro bordo fora. O lombo, começando logo atrás da cabeça, estava pronto a receber o arpão.

O Mafredo, com o joelho da perna direita encostado à borda, e com o pé da outra perna encoiçado na selha, tinha o arpão ao alto, fora da borda, seguro com as duas mãos. Havia ainda hesitação...

Novamente sente-se o bote estremecer. Olhei borda fora e vi a Baleia que se mantinha ali, embora tivesse vindo um pouco mais à superfície. Decerto estava de novo na brincadeira com o bote... Arqueia-se, mostra um pouco da cauda e deita a cabeça fora da água, mostrando a venta por onde atira um bufo, lento e fraco, pois o seu esforço, praticamente nulo, mais não requeria.

-Trancas, ou dá-me o arpão que eu tranco.

-Eu tranco -ouvi-o dizer muito baixo. Os seus braços elevaram o arpão o mais possível e cravaram-no no dorso do animal, à queima-roupa. Ainda pior que trancar à muleta, pois este trancar exige empurrar o arpão com o ombro. Ali, fora como se estivesse a espetar uma vara na terra...

O Mafredo deixou-se cair, ficando sentado em cima da selha. Eu recuei para o centro do banco. O cabo do arpão estava na nossa frente direito ao ar, sem um movimento. Não havia dúvidas que a Baleia estava trancada: via-se o mar, naquele sítio, levemente toldado do sangue que saía do buraco aberto pelo arpão.

Não se ouvia o mais pequeno ruído nos elementos da companha. Um observador atento conseguiria escutar o bater descompassado daqueles corações conscientes do perigo que tinham por baixo dos pés...

Passaram-se 5, 10, 15 talvez 30 ou mais segundos e tudo se mantinha. Para prova estava o arpão na mesma posição em que o Mafredo o tinha deixado! Embora por muito estranho que fosse, a Baleia parecia não o ter sentido. Só assim se explica esta sua atitude de indiferença.

O José Maria devia achar também tudo isto muito estranho e bem o deixava transparecer. Pela primeira vez o vi sem boné na cabeça, sentado em cima do lagaiete com as mãos sustendo o remo do esparrela. Mostrava, na sua atitude e fisionomia, para quem bem o conhecia, que os nervos se tinham apoderado dessa habitual calma, embora momentaneamente. Seria assim, porque a sua voz logo se fez ouvir:

-Cia para ré. Depressa.

Os remos correram fora e a manobra ia ser executada.

Quando o bote começava a andar para trás, o remo do meu companheiro da frente ia empeçar no cabo do arpão ainda na mesma posição, logo atrás da minha forquilha. Havia a tomar uma atitude e essa não se fez esperar: puxei o remo dentro, debrucei-me fora da borda, peguei no cabo do arpão, e cambeio-o no sentido do prolongamento do bote. O arpão, que tinha entrado até ao alvado, como agora via, cambou na junção deste com o canelo.

O meu remo de novo foi fora, e o bote, lentamente, por ir roçar em cima de uma ou mais Baleias, começou a sua marcha para ré.

O Mafredo continuava sentado na selha, notando-se-lhe claramente o seu estado de abatimento.

Embora com dificuldade, o bote vai saindo daquela posição crítica, se bem que as Baleias ainda estivessem embaraçando o remar. Tinha-se de meter os remos na água com cuidado para não bater em nenhuma. Se isso acontecesse, podia haver perigo de ela ripostar ao sentir-se tocada, e todas as outras seguirem o seu exemplo, o que, na situação em que nos encontrávamos, reduziria as possibilidades de dali sairmos incólumes.

Tudo passou pelo melhor. O bote encontrava-se fora da Baleia trancada, aquela que, para já, oferecia mais perigo. Ela continuava por cima, atravessada a poucos metros de nós -na nossa proa. O arpão que a prendia a nós era perfeitamente visível em cima do seu lombo.

-Vejam se essa linha está pronta a correr!

Sai daí para fora, Mafredo! Vai para o teu lugar e põe tudo pronto para matar.

-Matar?!

-Sim, matar -responde ainda o José Maria -ou queres levar a Baleia viva?

Eu estava de novo em pé com uma perna para cada lado do meu banco e olhava em redor. Era espantoso o que continuava a ver: parecia haver ainda mais Baleias do que quando trancámos... Dava a impressão que se podia andar por cima do mar saltando de Baleia em Baleia...

Via, por fora de nós, a gasolina «Maria Manuela» e o outro bote que parecia também estar trancado. Não se conseguia saber qual das Baleias era. Só por se ver todo o pessoal de pé dentro do bote e a gasolina muito próxima é que a isso nos levava a crer. No caso de assim ser, devia-se estar a passar o mesmo que connosco: a Baleia estava por cima, juntamente com as outras.

Enquanto se mantivesse esse estado de coisas, com aquelas Baleias todas por cima, era impossível começar a matar. Seria, como já disse, correr um grande perigo, o que não era, de maneira nenhuma, aconselhável.

A nossa Baleia tinha-se separado mais das outras, ou antes, as outras separavam-se dela, fazendo um círculo à sua volta,

Não demorou muito.

A Baleia rola-se a um lado... depois ao outro... bate duas vezes com a cauda no mar. Forma um arco, estende-se, e dá um bufo... para novamente fazer arco, mas desta vez não havia dúvidas: ia virar o rabo. A sua cauda saiu da água, elevou-se no ar e, lentamente, sumiu-se nas águas do oceano.

A linha ia começar a correr. Por tal veio a chamada de atenção:

-Atenção à linha!

E é então que tenho a felicidade de assistir a mais um fenómeno!.. Todas as Baleias estão a virar o rabo ao mesmo tempo, como se lhes fosse dada uma ordem. Não levaram mais de 15 a 20 segundos para todas o fazerem. Por um momento, o mar, à nossa volta, tornou-se escuro por aqueles milhares de caudas apontadas ao céu.

Uma das Baleias trancadas deu a isto origem. A princípio, julguei que fosse a nossa. Mas, mais tarde, um dos cabeças do outro bote disse-me que aquilo havia acontecido porque a Baleia deles por três vezes avançara para o bote, tendo sido obrigados a dar-lhe uma lançada.

Os últimos redoiços das Baleias afundadas desapareceram por completo e o mar voltou a ser mar.

A linha começara a correr rapidamente, e meia selha tinha saído borda fora. Mais uma volta foi passada ao lagaiete. Com três voltas, dali saía uma coluna de fumo devido à fricção, escaldava como fogo.

-Água na linha.

Um dos dois baldes que faziam parte da palamenta foi a fora da borda, e rapidamente foi despejado em cima da primeira selha, enquanto o marinheiro do remo sete, munido do piriquito?, despeja ininterruptamente água que vai enchendo fora da borda em cima da linha que está passando no lagaiete, para evitar que este se incendeie.

-Atenção à costura -diz o homem que está à selha.

Era a primeira selha da linha que tinha chegado ao fim.

-Passou. Atenção, Mafredo.

Corre um homem por cima dos bancos com a costura que liga as duas linhas entre si, e vai entregá-la ao Mafredo, que a faz passar por cima da roldana da proa, após o que diz:

-Já passou.

-Chamem a gasolina para dar a ponta da linha.

Enquanto dizia isto, o José Maria passava mais uma volta. Agora já eram quatro. O atrito aumentou e o calor desenvolvido pela linha a correr, apertada contra a madeira, era também maior. A coluna de fumo igualmente aumentava.

Os chamamentos pela gasolina tinham sido feitos. Por maior precaução, foi também puxada a bandeira da companhia.

De bordo da «Isolda», os nossos sinais foram compreendidos, porque já ela vinha para nós, vendo-se o marinheiro à proa preparando tudo para nos entregar a ponta da linha.

Todas as gasolinas baleeiras usavam, por baixo do leito de proa, uma se lha de linha para socorrer o bote numa emergência. Neste caso, em que não tínhamos mais bote nenhum como companheiro, isso mais se explicava.

Parecia não haver dúvidas que íamos precisar da linha da gasolina. A Baleia continuava a ir para o fundo, restando-nos apenas meia selha. Mesmo que viesse de imediato para cima, não seria já suficiente para auxiliar o pendão que a linha faria.

A gasolina aproximava-se o mais rápido que lhe era possível, enquanto as últimas voltas da linha apanhada cuidadosamente aos círculos dentro das selhas ia desaparecendo...

Os chamamentos para a «Isolda» eram aflitivos; estava-se em risco de perder a Baleia e a linha. O José Maria passou mais uma volta no lagaiete, para retardar a saída da linha. O bico de proa do bote, que estava quase raso com o mar, começa agora a beber água, enquanto a popa mais se eleva. Valia-nos o mar estar muito manso. Se houvesse a mais pequena ondulação, o bote não aguentaria tal esforço.

Esta manobra do oficial, retardando a saída, deu tempo que a gasolina se aproximasse e nos passasse a ponta da linha. De imediato entregue ao Mafredo, rápido se debruçou pela proa fora com a ponta da mão, e deu o nó que deve segurar uma linha à outra. O nó tem de ser dado pelo lado de fora para evitar haver qualquer empeço na sua passagem ou na saída de dentro do bote. O nó dado é o de «cabaça», ficando largo em mão, e só apertado pelo trancador que continua estendido por cima do leito esperando a ordem do oficial:

-Aperta.

O Mafredo levanta-se, um pouco lento, e dá a manobra por concluída:

-Já apertou.

-Aí vai a arsa?.

Um marinheiro corre com esta saltando de banco em banco ao longo do bote, como foi feito com a costura que liga uma se lha à outra.

O nó que foi dado, no geral não aperta o suficiente para prender a linha no lugar onde foi apertado. Corre até ao fim da linha e aperta contra a arsa ou mãozinha.

O fim da linha passou por cima da roldana de proa. O bote, vendo-se solto daquela grande força que procurava arrastá-lo, ficou, durante momentos, elevando-se e baixando-se alternadamente da proa e da popa até, de novo, tudo se normalizar. Antes que isso acontecesse, já o José Maria ordenava:

-Depressa a armar remos... Vamos depressa.

A gasolina tinha-nos entregue uma ponta da sua linha que aguçámos na ponta do chicote da nossa e que largámos em seguida, passando a linha a correr de dentro da gasolina de onde agora seria feita a manobra. Devido à sua diminuta tripulação, tendo ainda por cima como marinheiro um inexperiente, requeria ali mais alguém. Era essa a pressa do José Maria.

Armados os remos, rápidos nos aproximámos da «Isolda». A Baleia continuava a procurar o fundo, e, por conseguinte, o andamento, de início nosso e agora da gasolina, era muito pouco, sendo a distância que nos separava não superior a 50 metros.

-Nun'Álvares, vai para a proa e salta para dentro da gasolina e vai manobrando aquilo. Nós vamos procurar a cabeça da Baleia para lhe dar uma lançada quando ela sair.

O bote aproximou-se o suficiente para, num salto, eu poder vencer a distância que nos separava, tendo ido ficar em cima da borda, junto à casaria, e seguro no varandim da mesma. Rápido, deslizei até à proa, onde o mestre segurava a linha à entrada do cepo, utilizado aqui como o lagaiete nos botes. O motorista estava em baixo, à saída da selha, para evitar que se formassem seios, enquanto o marinheiro, com um balde, acarretava água para deitar na linha que corria rapidamente, só com duas voltas ao cepo.

Num rápido relance, tomei noção da situação, passando desde logo mais duas voltas ao cepo, Aqui era necessário ter outros cuidados, Enquanto o bote é uma embarcação leve que cede facilmente a um ou outro esticão maior da linha, na gasolina já assim não sucede devido ao seu tamanho.

Eu e o mestre estávamos a dar a linha ao cepo, apertando quando corria e aliviando as primeiras duas voltas quando parava, para, ao começar a correr de novo, o fazer sem grande esticão.

Três corridas vieram rápidas, e mais de meia selha de linha tinha corrido. A Baleia levara já duas se lhas e meia...

Rápido saiu, em mais nove ou dez corridas, quase tudo o que faltava. Apenas mais algumas voltas havia para correr. O motorista, fazendo notar o seu nervosismo, perante esta nova e iminente situação de se poder perder a Baleia e toda a linha, faz-nos saber:

-Só tem meia dúzia de voltas!

Não hesitei e arrisquei, passando mais duas voltas e dando ordem ao motorista para preparar o estrovo?. Este estrovo tinha por fim, após ligado ao chicote da linha, e deitado ao mar, trazê-la à superfície e ali a manter, a fim de poder haver possibilidades de ser recuperada. Era este apetrecho que o Sabino estava a preparar.

Depois de ter passado mais duas voltas, a linha só tornara a correr uma vez. Ainda puxava bastante, não o fazendo no entanto como há pouco. Agora dá início a mais uma corrida, mas só alguns metros saem e logo pára.

A Baleia não puxava já para o fundo. A gasolina começava a deslocar-se nitidamente na direcção em que a linha estava. A Baleia vinha para cima, mas a linha ainda dava mais uma corrida, o que não admirava. Dado o seu comprimento, estava fazendo um enorme pendão.

O Sabino passa a meu lado pela escotilha fora com a ponta da linha na mão e vai aguçá-la no estrovo, já preparado. Deita-o em seguida fora da borda.

-Pronto! Poucos metros tem dentro da selha. Está tudo pronto a largar por mão.

Se a Baleia levasse mais linha, como seria natural, tinha de retirar muito rápido as voltas passadas no cepo e atirar o seio ao mar. Tudo fazia agora crer que a Baleia vinha para cima, devendo mesmo estar quase a sair. Tínhamos que evitar a todo o custo que a linha corresse, sem, no entanto, a apertar mais, Se começasse a correr, não havia solução senão largá-la; caso contrário, o estrovo, amarrado e já fora da borda, seria arrastado pela ponta da linha contra o cepo, aí faria tono, não correria, e, por certo, a linha rebentaria,

Nada disso aconteceu, e foi com alívio que vimos a Baleia sair e dar o primeiro bufo perto da proa do bote, que estava lá para a frente.

Depois daquele mar de Baleias, nenhuma agora. Não havia dúvidas. Se o mar tanto tinha dado sem sabermos como, da mesma maneira tudo levara! Não seria bem assim, porque duas ainda estavam presas...

O bote da outra companhia, também trancado, estava nas mesmas condições que nós: a sua Baleia presa à gasolina, queria dizer ter levado as linhas do bote. Este passara remando na volta da nossa terra e contra a Graciosa, enquanto a «Maria Manuela», mais atrasada, ia sendo rebocada na mesma direcção.

Nós pouco podíamos fazer com toda aquela linha no mar. Iríamos, no entanto, tentar meter algumas braças dentro, para, no caso de a Baleia mergulhar, nós termos alguma linha para arriar.

Se a Baleia não se deixasse matar de imediato, a linha tinha de ser passada para o bote ficando ele com toda a linha das três selhas.

O bote estava-se a preparar para a primeira lançada. Embora longe, víamos a Baleia quase parada, atravessada na sua proa, e o Mafredo de lança na mão.

A lança partiu. Um salseiro enorme eleva-se. Deixamos de ver o bote, enquanto a Baleia se bate loucamente. Só assim se explica o aguaceiro que ali se vê. Estamos os quatro de olhos fixos lá na frente, naquele aguaceiro, que deixa ver, de vez em quando, o negro do corpo do monstro debatendo-se ou com a dor da lançada, ou enraivecido por se encontrar preso.

Nenhum de nós fala. Um pressentimento nos deve ter invadido: não conseguimos ver o bote! O que se passará ali?

É o mestre Manuel Félix que quebra o silêncio, mostrando claramente, pelo tom de voz, o terror que o invade:

-Vamos largar a linha e saber o que aconteceu àquela gente...

Estava de facto pronto a fazê-lo. A sua atitude, ao baixar-se e ao deitar a mão à linha para a retirar do cepo, bem o indicava.

-Não…isso não. Ainda é cedo para se saber se houve algum desastre. Aqui ninguém toca.

Eu estava ainda segurando a linha juntamente com os outros dois. Agarrei-lhe a mão que ele estendeu à linha e, com voz decerto mais dura e ameaçadora do que eu próprio desejava:

-Aqui não se larga nada.

Ele pôs-se de novo em pé, e ficou olhando o local onde se desenrolava qualquer coisa que não víamos.

-Largo eu -disse o Sabino, ao mesmo tempo que largava a linha que segurava atrás de mim, pondo-se também de pé, fixando o mesmo ponto.

-Olha o bote!...olha o bote!... está a «ciar» para ré.

O motorista Sabino tinha razão: via-se o bote sair de trás daquele salseiro, sempre «ciando» para ré com toda a força que os homens, aos remos, podiam dar. Assim devia ser, porque logo percebi que a Baleia os estava perseguindo. Mas eis que o rabo se eleva nos ares. A última água levantada cai, enquanto a cauda desaparecia. De novo a Baleia mergulhou!...

A nossa atenção está toda concentrada no bote, e um dos nossos primeiros cuidados, mecânico quase, é contar as cabeças para saber se falta algum homem. À popa estão dois em pé e cinco debruçados sobre os remos. Não falta ninguém, penso, mas por que razão estão aqueles dois na popa, quando devia estar um na proa?! De facto não se compreendia.

Um gemido, seguido de um grito abafado do mestre da gasolina, fez-se ouvir:

-Eu sabia... eu sabia... Falta ali um homem. Eu sabia... Quando chegar a terra vou participar.

-Vás participar de quê?!

A resposta veio do motorista:

-Que morreu ali um homem e teimas em não ir socorrer aquela gente.

Estamos para aqui à espera que ela mate os outros todos, para depois os irmos juntar aos pedaços?!

Eu dentro daquela gasolina era um estranho, só que tinha ido para ali por ordem de um oficial. Não podia dar ordens perante o mestre, nem tão pouco ser obedecido por qualquer um dos elementos, se ele assim o entendesse. Só de uma maneira, embora essa fosse contra a lei: era à força. Tendo a razão pelo meu lado, como julgava, fiz-me impor:

-Vocês são uns «coirões» que não valem nada. Quem manda agora aqui dentro sou eu, e o primeiro que desobedecer já sabe que se entende comigo.

O motorista, que tinha comigo mais confiança e também tinha muito palavriado, ainda quis refilar.

-Cala-te... já disse que quem manda agora aqui sou eu, E livre-se aquele que não obedecer.

-Também não faço mais nada, Vou-me embora para o meu serviço que é ao pé do motor.

-Vai, mas não me aborreças mais.

Ainda me levantei, hesitante se devia ou não tomar uma maior firmeza no meu procedimento.

Ele tinha largado a linha. Esta, só segura pelo marinheiro, começa a correr, e saem os poucos metros que havia...

-Larga -gritei ao marinheiro antes que ficasse com as mãos traçadas. Foi a tempo! O seio chegou ao fim e, puxando pela ponta onde tinha o estrovo preso, passou por cima da borda, e foi trincar contra o cepo. A proa da gasolina cedeu um pouco.

Seria de esperar que a linha fosse rebentar, mas assim não aconteceu.

A Baleia não devia ter descido muito, como o indicava a pouca força que a linha fazia.

O marinheiro sacudia as mãos e torcia-se com as dores. Estavam escaldadas pela linha ao passar entre elas a grande velocidade. Muita sorte teve em largá-la a tempo de não ficarem entaladas contra o cepo.

Nada podíamos fazer senão esperar que a linha aliviasse o suficiente para que pudéssemos meter algumas braças dentro, alargar o aperto que ali ia, e iniciar nova manobra.

O Sabino foi buscar óleo de lubrificação e deitava nas mãos do marinheiro que continuava gemendo e torcendo-se com dores.

Enquanto o motorista estava neste trabalho de enfermagem, o mestre, sempre olhando o bote, diz, com a maior simplicidade, e deixando transparecer a alegria que sentia:

-Ó Sabino, afinal não falta ninguém no bote, são mesmo só sete...

-Estás doido, falta um homem!

-Não falta. Ele tinha oito, mas um saltou para aqui.

Só agora se havia apercebido que eu tinha saído de dentro do bote, e por isso só contavam sete homens, Este caso não era inédito entre baleeiros,

Conheci alguns deles, Um, fora do bote que revirara a matar uma Baleia grande. Quando os homens se juntaram em volta e, agarrados ao bote, começaram entre si a ver se faltava alguém, contaram e chegaram à conclusão de estarem todos. O que contava, contava-se a si duas vezes: ao iniciar a contagem e no fim. Foi só quando a gasolina chegou, muito depois, por estar longe, que, os de dentro dela, viram que faltava um homem. Ao perguntarem por ele, aqueles, ainda tomados de pânico, teimavam em assegurar que não faltava ninguém. Salvos, já a bordo da gasolina, constataram a realidade: tinha desaparecido um homem não mais havendo qualquer indício a seu respeito.

Eu acabava de ganhar uma grande partida, e aqueles homens estavam-me agradecidos por não terem perdido a Baleia. Pensei no que diz o velho rifão: «Um homem com razão tem muita força.»

O bote agora abandonara a Baleia e dirigia-se para nós. Por que razão? Era o que íamos saber dentro em pouco tempo.

Ela devia estar perto de sair. A linha não fazia força, como acabara de verificar. No entanto, com menos um homem, o marinheiro ferido nas mãos, seria difícil meter algumas braças de linha dentro; mas como o bote estava a chegar, veríamos qual a resolução a tomar.

Aproxima-se. Estamos quase à fala. O trancador Mafredo está na popa, de pé, na frente de José Maria, não havendo qualquer mostra de estar ferido. Vão prolongar connosco. Atiraram-nos um lançoope para a proa que é passado à caçadeira, enquanto, no bote, levam os remos.

-Peguem nesse seio da linha e tragam-no para aqui ordena o oficial.

Um marinheiro foi executar a manobra indo-se encostar à linha pela altura do choque que fica colocado na borda entre o leito de proa e o banco um. Mais dois homens ajudaram à manobra e o seio da linha, presa à Baleia, foi passado na roldana. Sempre com o outro seguro, começam a meter linha dentro, formando um seio que, aos poucos, vai crescendo até que, chegado à popa, é passado ao lagaiete. A linha puxada por toda a tripulação vai vindo dentro e é apanhada entre o banco sete e o leito da popa, frente ao oficial.

Foram colhidas umas 30 braças e foi mandado largar a ponta da linha ainda passada ao cepo da proa da gasolina, manobra que foi facilmente executada com a linha sem fazer força, tendo-se só desfeito o aperto dado contra o cepo pelo efeito da chegada ali do estrovo, também já desamarrado da ponta da linha.

-Posso largar?

-Podes. Ficas aí dentro e vais ver se dás umas lançadas na Baleia que deve estar a sair. Toma cuidado: ela avançou para nós! Pega de dente!

Agora eu percebia a razão de o Mafredo se encontrar na popa. Tinha, decerto, apanhado um tremendo susto e temera estar na proa.

Largada a ponta da linha, o bote começou a separar-se de nós e dei ordem para ligar o motor para vante. Passei através da escotilha e fui debaixo do leito buscar uma lança que levei para a proa juntamente com o lançoope que agucei no estropo da lança. A outra ponta foi passada ao cabeço colocado de estibordo, onde fica presa, vindo por cima da borda junto à casaria até à proa.

A Baleia tinha saído com a cabeça em noroeste e com um andamento bem rápido, a cerca de meia milha de nós. Mandei dar toda a força ao motor e, de pé, em cima do leito, dava sinal ao mestre de qual a direcção que devia tomar.

Para matar de bordo de uma gasolina, esta passa a toda a força ao lado da Baleia, a lança é atirada e logo a gasolina se desvia, ficando tudo pela popa. Quando o lançoope estica, a lança sai da Baleia e é metida dentro ainda pela popa, evitando assim irem ao hélice o lançoope ou mesmo a lança.

Toda a manobra é dirigida pelo homem que está a matar, através de sinais dados com a mão e com o braço, ao alto. A lança vai ao nosso lado ou à nossa frente, atravessada.

Aproximámo-nos da Baleia. Peguei na lança e em quatro voltas do lançoope, que se encontrava apanhado na minha frente. Estas voltas do lançoope, que ficam na mão que pega por altura de meio cabo, são atiradas juntamente com a lança, evitando mais atritos, assim como desvios do ponto visado.

Entrámos no redoiço. Pouco depois tinha a cauda a meu lado e, em seguida, estava emparelhado com o ampo para, no momento seguinte, a lança partir, dirigida ao alvo pretendido. Mas eis que, por pressentimento ou outra qualquer razão, a Baleia rola-se contra a gasolina com uma rapidez que nunca tinha presenciado, e vejo que nos vai bater, Rápido, saltei pela escotilha que tem por baixo um estrado preparado para matar em mais segurança, Ali, de pé, o convés fica pela altura da cintura, Eu raramente usava este sistema a não ser com o mar muito mexido. Preferia matar de pé, em cima do leito.

Tinha saltado, e, talvez mesmo antes de tocar com os pés no estrado, a gasolina é atirada, ao som do ranger de madeiras, toda para bombordo. Vejo o carrilho do monstro passar mesmo a roçar a proa, acompanhando o rolar daquele enorme corpo. O que nos teria acontecido se aquele potente maxilar nos tivesse atingido!...

A Baleia estava com a boca aberta. Tínhamos de sair dali antes que ela desse uma volta completa e nos atingisse em cheio com o maxilar. Valeu-nos a velocidade que se mantinha, embora fôssemos ainda a roçar nela em todo o seu comprimento. Finalmente, ficou-nos para trás. Sentiu-se um estalido: era o lançoope que havia rebentado.

A lança tinha atingido a Baleia, mas não na barriga, para onde fora enviada. Ao rolar-se, a lança foi espetar-se já quase em cima do lombo, não devendo ter entrado mais de um ou dois palmos, logo cambando com o rodar da Baleia, e feito tono. O lançoope, enrolando-se no seu corpo, mais facilmente rebenta.

O monstro continuava na nossa popa. Olho-o cá da popa e apercebo-me que vem na nossa direcção. O mais estranho é que vem de lado e não ao alto, como é normal quando anda à superfície.

Debaixo de água, e já a certa profundidade, anda de lado com a boca aberta. Os olhos, um olhando o fundo, o outro olhando a superfície. Enquanto a cauda, quando assim, está ao alto tal como qualquer peixe ou leme de embarcação, permitindo-lhe rodar facilmente para qualquer lado. Por cima, à tona de água ou a pouca profundidade, anda ao alto, olhando normalmente para os lados, enquanto a cauda fica ao baixo, não lhe permitindo rodar com facilidade. Fá-la, sim, elevar-se ou bater o mar com a maior destreza.

A falta de movimentos rápidos laterais é, sem dúvida, a maior vantagem para o baleeiro atacar com êxito. Se a cauda fosse como a dos peixes, decerto não haveria baleeiras nem baleeiros, pelo menos nos moldes que eu descrevo...

-Toda a força…Toda a força…-grito para a popa, enquanto salto para cima da casa para melhor poder apreciar os movimentos da Baleia que nos persegue.

O motorista deu toda a força ao motor a tempo suficiente de nos podermos distanciar mais alguns metros. Uns segundos mais na marcha reduzida, e seríamos alcançados. A distância que nos separava, naquele momento, não era suficientemente segura. Restava saber se o seu andamento era superior ao nosso. Se assim fosse, iríamos passar por um mau bocado. Julguei no entanto que, depois de a gasolina embalar, conseguiríamos aumentar, ou pelo menos manter a distância que nos separava.

Assim sucedeu. A pouco e pouco, fomos aumentando a distância e pudemos rodar para nos prepararmos para nova tentativa de lançada.

Entrei na casa e, de debaixo do leito, trouxe outra lança, e mais um lançoope, preparando tudo para tentar outra lançada. Normalmente, a bordo das gasolinas, costumava haver três lanças; mas, por se ter perdido uma da última arriada, e não ter sido substituída, só tínhamos duas daquela vez. Esta era, por conseguinte, a última existente a bordo. Nos botes havia lugar para quatro lanças, todas colocadas na amurada de estibordo, bem como três arpões na de bombordo, e um outro, o arpão da borda, que era o primeiro a ser usado, colocado a bombordo, em cima dos bancos dois e um. Quando baleando e depois de aguçado à linha, o cabo ia a debaixo do banco um, e, por altura do alvado, pousava no leito, sempre do lado de bombordo.

Saltei novamente para cima da casa para melhor poder observar, e mandar para uma nova manobra.

A Baleia bufava normalmente, mas andava em círculo. Esta sua maneira de proceder indicava que vigiava as nossas posições.

O bote, metendo sempre linha dentro o mais rápido possível, diminuía bastante a distância que o separava da Baleia.

Por mim, continuava mandando ao mestre, com certa precaução. Iria procurar passar perto da Baleia uma primeira vez sem atirar a lança, a fim de estudar a sua reacção. Aproveitando o seu andamento circular, ia tentar passar-lhe ao lado, encontrando-a, se possível, num ponto tangencial. Estávamos distanciados da Baleia uns dois comprimentos do bote. Esta rapidamente rodou a cabeça na nossa direcção. Tinha-nos visto ou sentido, e procurava atacar. De imediato mandei rodar tudo para fora, o que se conseguiu a tempo de não sermos tocados. Passou-nos à popa.

Continuava a mandar rodar, procurando entrar pelo outro lado -o direito, enquanto ela estava rodando sobre o esquerdo. Podia ser que conseguíssemos a aproximação, mas, por enquanto, ainda éramos perseguidos. A Baleia sabia onde estávamos. Isso adivinhava-se facilmente pelo seu procedimento. Não nos podendo ver, vindo como vinha na nossa popa e em posição normal à superfície (ao alto), em que os olhos só vêem para os lados, perseguia-nos pelo ruído.

O bote aproveitava-se de a Baleia não seguir rumo certo, facilitando assim o meter a linha dentro por não ter de vencer a resistência do andamento desta, e já não tinha mais de uma selha de linha fora, encontrando-se relativamente perto de nós.

Entretanto, a Baleia pára a perseguição! Dá um bufo e fica ali por cima da água, sem se mover, mostrando mais de metade do seu corpo imponente.

Lá está o arpão com a linha, dando várias voltas em seu redor, sendo a última no nó da cauda. Vêem-se também as voltas dos lançoopes envolvendo igualmente o seu corpo. A lança que enviei também lá está. Por sinal, bem próximo da que o Mafredo também teria enviado. A Baleia devia ter-lhe feito o mesmo que me fizera. As duas lanças, próximo uma da outra e no local em que estavam, nada afectaram a Baleia -para ela, apenas uma picada de alfinete, pois que nenhuma delas teria penetrado muito além do toucinho.

Estava agora a Baleia em posição ideal, e a nossa aproximação a fazer-se em condições magníficas. No entanto, era de pensar... Aquela não era uma Baleia qualquer que se deixasse matar estupidamente, como tantas outras. Aquela, ali estava parada, mas a sua atenção devia ser a máxima. Esperava como leopardo o momento de saltar sobre a gazela, que, se não foge, mudando de direcção no momento oportuno, vê chegado o seu fim! Mas a nossa missão é atacar e não fugir. Por isso, continuo a dar instruções ao mestre, mandando para nova manobra de aproximação, embora, por cautela, vá procurar passar o mais afastado possível apenas à distância máxima de poder atingi-la com a lança.

Isso não chegou a acontecer. Quando íamos chegando próximo de emparelhar com a cauda, ela fez um arco com uma facilidade inesperada. Mergulha, e, o mais estranho, não foge -roda na nossa direcção com igual facilidade. Vejo-a embranquecer debaixo de água. Julgo ainda que se afasta, mas, qual não é o meu grande espanto, quando vejo o branco passar a azulado. Não havia dúvidas: vinha para a superfície, mesmo por baixo de nós!...

Gesticulando e gritando, mando o mestre rodar todo para a esquerda, local onde, momentos antes, a Baleia tinha submergido. Esta manobra de mandar voltar para o local onde há pouco a Baleia estava, fez, naturalmente, hesitar o Manuel Félix, que, felizmente, talvez perante a minha aflição, a executou, já não sem que a popa da gasolina, pelo lado de estibordo, fosse levantada pela cabeça da Baleia, escorregando logo em seguida.

A gasolina deu um grande rolo, obrigando o mesmo a largar o leme e a agarrar-se à borda. A cabeça, com o impulso que trazia, saiu pela nossa popa, mais de dois metros fora da água!

Estávamos perante um caso muito especial: não se tratava, de facto, de uma Baleia normal. Aquela sabia-se defender; mais do que isso: sabia atacar, fazendo-o, não só com a destreza já descrita, mas também com inteligência, e para esta, decerto, não estávamos preparados...

Não seria conveniente fazer nova tentativa dentro do mesmo esquema. Isso poderia dar origem a uma fatalidade. Havia que tentar descobrir outra maneira de fazer novo ataque. Foi com essa ideia que dei ordem ao mestre para se aproximar do bote que continuava na faina de meter a linha dentro.

Ao chegarmos perto, o José Maria deu sinal para mais nos aproximarmos. Queria trocar-me com o Mafredo.

Com o tempo bom como estava, foi fácil a aproximação e fácil a manobra de nos trocarmos. Ele, de pé, no banco cinco, saltou para o poço, enquanto eu saltava para o banco quatro. A tripulação continuava puxando a linha e apanhando-a, agora entre os bancos três e quatro.

-Para onde vou?! -perguntei.

-Para a proa. Nós vamos tentar dar-lhe uma lançada quando ela estiver a perseguir a gasolina.

-Certo. Mas se ela se volta para nós?

-Dei ordem ao Mafredo para se manter sempre perto, e, se ela fizer essa tentativa, ele aproxima-se e dá-lhe a lançada.

Era, de facto, uma nova táctica e era muito natural que desse resultado, o que, se não acontecesse, seria de considerar muito seriamente o abandono daquela Baleia, definitivamente.

Não mais de cinquenta metros nos separava. Eu estava na proa ajudando a puxar a linha. A lança preparada, ali se encontrava a meu lado. A Baleia lá estava muito quieta, atenta ao mais pequeno ruído, como já nos habituara. Mal bufava, e, quando o fazia, eram bufos espaçosos e fracos.

-Fazer baó, e armar remos -ordenou o José Maria.

Debruço-me na proa, apanho o seio da linha, e trago-o por fora da borda, ficando a linha sempre passada na roldana, pronta a correr quando for largado o baó. Entrego o seio ao homem do baó que se encontra atrás de mim. Este homem vai puxando a linha, deixando-a sempre fora da borda, vindo aquela de arrasto atrás do bote. Nesta altura os remos é que fazem a manobra, imprimindo o bote para a frente ou para trás, facilitando o esforço de puxar a linha, que fica praticamente reduzido ao seu peso. Esta manobra, deixando este seio de linha solta por cima da água quando nos aproximamos da Baleia, permite-nos a aproximação com maior segurança, pois se a Baleia tiver alguma reacção inesperada, a primeira linha a fazer força é a que está no mar, ao contrário do que aconteceria se tivéssemos sempre metido a linha dentro do bote.

Devido à imobilidade da Baleia, aproximámo-nos rapidamente. Separa-nos um bote e meio de comprimento, se tanto. A gasolina, um pouco pela proa e a uns três comprimentos por bombordo, acompanhava-nos. Eis que a Baleia, com aquela facilidade que já tive ocasião de descrever, se volta para nós. Não havia dúvidas: ia atacar!...

-Cia para ré... Cia para ré... -mandamos, ao mesmo tempo, eu e o José Maria.

-Larga o baó e arma o teu remo.

Deixa correr a linha livre -eram as ordens dadas pelo oficial, que, já de boné na mão, acenava para a gasolina se aproximar da Baleia.

Tudo se passou num momento, momento em que nos vimos metidos dentro da boca daquela Baleia danada. Lá estava ela, de lado, com a boca aberta avançando para nós, com toda a ligeireza que podia. Esperava sentir alguma coisa dentro da boca para a fechar. Se o tivesse feito, já lá ficaria um terço do bote. Mas não: ela devia querer mais, ou então, o mais natural, como não nos podia ver, só depois de sentir o faria.

A tripulação, incitada por mim e o José Maria, fazia vergar os remos, e o andamento para ré era equiparado ao da Baleia.

A gasolina tinha passado por ela e por nós, mas muito larga, e o animal não fez qualquer caso. Nova volta já estava a ser dada para passar mais perto, na tentativa de ela nos deixar de perseguir. Aceno para o Sabino que está em cima da casa, e faço sinal para se aproximarem e darem uma lançada. O Sabino deve ter entendido, porque saltou para a proa e, de lá, para a escotilha. Pegou na lança, e mandou o Mafredo encostar-se mais.

A nossa situação dentro do bote era a mais crítica possível. Nem meio metro conseguíamos sair de dentro daquela boca... Continuávamos a deixar correr a linha livremente e ainda a auxiliávamos a sair o mais rápido possível.

A gasolina vem muito perto da Baleia. Vai ser a ocasião de levar uma lançada. A proa passa a cauda e o Sabino não espera. Devia estar inquieto para se ver livre da lança, porque a manda logo adiante do ampo. Mais uma lançada que de nada servirá! E mais uma vez que ela ataca, felizmente ainda sem consequências.

A lança espetou-se tal como as outras e também lá ficou. Mais uma e uma rede, em volta do corpo, de lançoopes...

Perseguia agora a gasolina, e, como se encontrava a uma certa distância de nós, deixámos de deitar linha ao mar. Sempre na mesma perseguição, não foi necessário muito tempo para estar bastante distanciada de nós, sem que contudo a linha começasse a puxar, devido ao comprimento deitado ao mar. De novo, a pesada manobra de recolher a linha e apanhá-la nos seus lugares foi iniciada...

Por fim, termina a perseguição à gasolina, e fica parada por cima do mar. Esperava-nos?!... A cada aproximação feita tinha aumentado o perigo e isso era compreendido pelos marinheiros que levavam a pedir para se cortar a linha e «abandonar aquela fera», que «ainda nos ia matar a todos», como diziam.

Eu não tinha dúvidas de assim ser, como estou certo de que o José Maria pensava o mesmo, embora nunca tivesse nisso falado, durante as muitas e longas conversas que tivemos depois. Questão de amor-próprio!

A gasolina aproxima-se de nós e, pelos sinais, compreendemos que pedem uma lança, Vou tirá-la do seu lugar e preparo-me para a entregar. Tal foi feito aguçando a lança na ponta de um lançoope que nos é atirada, após o que é deitada ao mar para de lá ser metida dentro. Esta é a maneira mais segura de executar a perigosa manobra de passagem de uma lança, de uma embarcação para outra...

Desastre fatal ocorreria alguns anos mais tarde, em que por um descuido uma lança atravessou a coxa de um trancador que viria a morrer, escoado em sangue, durante o seu transporte para terra.

... Como proceder agora, perante toda esta situação? O estado de espírito da tripulação nada ajudava. Toda a prudência seria pouca ao tentar nova aproximação. Mas antevia-se, pela maneira de falar do José Maria, que nova tentativa seria feita.

-Calem-se! Aquela Baleia vai connosco se Deus quiser.

-Eu não torno a ver a minha mulher e os meus filhos! Vamos morrer todos aqui!...-dizia o pobre do «carcereiro», já completamente desmoralizado.

-Quem não quer esta vida fica em terra. Agora, aqui, quem manda sou eu, e Deus livre o primeiro que desobedecer.

A sua voz, ao dizer isto, era firme, como firme eram os movimentos dados por ele ao esparrela, quando na proximidade da Baleia. Este remo foi corrido dentro enquanto o bote seguia o rumo dado pela linha ligada à Baleia.

A gasolina lá andava às voltas, bem longe dela, enquanto nós íamos de novo metendo linha dentro para mais uma tentativa em conjunto.

À distância de fazer baó foi dada ordem de execução e a manobra iniciada, tomando-se agora uma nova precaução: sentar os remadores ao contrário, porque assim, em vez de ciar para ré, remavam normalmente, embora o bote andasse para trás. O remar era mais incómodo, mas dava bom resultado.

A gasolina vem para o nosso lado. Lá na frente, a uns quarenta metros, a Baleia, na sua atitude já normal de expectativa, pronta a atacar, o que faz sem nos deixar aproximar mais. Vem na direcção da gasolina que facilmente lhe foge, guinando para bombordo. Nós, parados, esperamos nova atitude, que não demora. Somos agora o alvo do ataque. Deve-nos ter visto quando perseguia a gasolina, e, ali vem na nossa direcção. Não é necessário dar a ordem aos marinheiros para remar. Sentados, voltados para a frente, vêem tudo o que se passa e o medo fá-los remar para fugirem, mesmo antes do tempo...

Eu estava de pé, na proa, seguindo os movimentos daquela Baleia que parecia louca, movida por intuitos de autodefesa, nunca presenciados por mim, ou então dotada de inteligência fora do normal naqueles animais. Ela vinha sobre nós com uma rapidez impressionante. A um comprimento do bote, deita-se de lado e abre a boca. Em poucos segundos, íamos ser apanhados, mesmo deixando a linha correr e ainda auxiliada.

Eu tinha de fugir dali, e, pelo menos, mais dois homens, deixando aquela parte do bote para a sua presa, quando fechasse a boca. Tentaríamos salvar-nos, recuando para a popa do bote o que via ser muito difícil, porque, enquanto houvesse por cima da água alguma coisa que fizesse ruído ou ela visse, seria mastigado ou engolido.

Tudo isto me deve ter ocorrido, porque, na minha atitude, não houve hesitação: peguei na lança a meu lado e lancei-a com toda a minha força para o fundo da bocarra aberta que logo se fechou, sentindo-se um zurzir rouco, enquanto se ouvia o estalar da madeira do cabo da lança a desfazer-se pelo aperto daqueles potentes maxilares...

Endireita-se, bate de cauda e cabeça por duas vezes, faz arco e afunda-se. Irá mergulhar?!...Ou ficará só a meia água?! A última hipótese é a mais provável visto não ter virado o rabo.

De novo a gasolina se aproxima, emparelhando com o nosso bote. Desliga o motor. O Mafredo fala com o José Maria. O Sabino na proa, só com o tronco de fora, segura a lança que tem atravessada na sua frente. Estão a pouco mais de dois comprimentos de bote de nós, um pouco mais adiantados.

-Atenção: dá a ré a toda a força -gritei para bordo da gasolina com voz e gestos, aflito.

Era tarde! A Baleia, vindo de baixo para cima, com a cabeça ao alto, pega na gasolina a um terço da vante, e esta sai com a proa toda fora da água. Momento terrível de aflição! Todos gritam! Recordo ainda a expressão de terror do Sabino, de mãos na cabeça. A gasolina de meio para vante está praticamente toda fora de água e horrivelmente adornada para bombordo.

A Baleia não tinha a gasolina dentro da boca. Se assim fosse, já a teria fechado. No entanto, como se podia ver, a quilha estava presa na ponta do carrilho, mas, presa por pouco como estava, ia com certeza largar-se. Assim foi; a gasolina cai de pancada na água, levantando um grande salseiro. A Baleia cresce ainda mais acima da água. Tem praticamente meio corpo à vista. Está muito por cima da proa da gasolina e encostada a ela com a papada e uma parte da barriga.

Deixa-se lentamente cair para trás ... Será possível?!...Aquele animal, depois de mostrar tanta inteligência e destreza, vai entregar-se à morte?!

O meu grito de alegria deve ter sido enorme:

-Agora, Sabino! Dá-lhe agora.

O Sabino, que continuava ali estupefacto, desperta e percebe do que se trata. A Baleia está à sua mercê! Consegue agarrar na lança que havia corrido contra a borda, e, sem mesmo desenriçar o lançoope, manda-a em direcção da barriga, ali exposta.

A lança ainda não tinha entrado toda e já de novo eu gritava:

-É nossa! É nossa!...Esta é nossa!...

Não me podia enganar. A lança atravessara os intestinos, o que a levaria a uma morte certa dentro de cinco a sete horas, no máximo.

Apanhada a lançada, rola-se, ficando com mais uma lança cravada em si, mas agora profundamente. O lançoope, que rebenta, também lá fica enrolado no seu corpo.

Mas ainda não desiste: avança para nós e não para a gasolina. Vamos ter novo ataque. Tenho a última lança pronta a atirar. Não vou deixá-la aproximar. Tentarei enviar-lha de novo para a boca, o que tão bom resultado tivera. Sabia que não era aconselhável tentar nova aproximação que nos poderia ser fatal. Sim, era necessário pormo-nos ao largo e esperar que o tempo fosse passando. Eram cinco e meia da tarde. A morte devia dar-se entre as dez e a meia-noite.

A Baleia continuava a avançar, estando já muito perto. Pego na lança, mas o José Maria intervém:

-Não temos mais nenhuma.

-Nem vai ser preciso. Temos é que nos pôr ao largo. Tenho a certeza que esta Baleia já traz a morte consigo repliquei.

-Faz o que quiseres, pelo melhor!...

Tanto a tripulação como o próprio José Maria duvidavam desta minha afirmação, o que eu compreendia: a maioria dos baleeiros não sabe que órgão se atinge com a lançada aqui ou ali. Atiram a lança para «aquele sítio», porque lhes disseram que por ali ela viria a morrer, ou porque por aquele outro a morte é mais rápida. Enquanto uma baleia tinha vida, era normal não se parar de lancear até que a morte viesse, não se sabendo, no fim, qual a lançada ou lançadas que a provocara. E isto após, por vezes, muitas e muitas horas de trabalho extenuante.

-Vá, vamos. Remem duro -diz para a companha que já o fazia, talvez suplantando as suas próprias forças, o José Maria.

Eu também não parava de incitá-los, e foi a essa minha incitação que veio a resposta espirituosa de um dos remadores, que, apesar da situação e talvez do medo, não perdeu o seu bom humor:

-Está-se mesmo a ver que ela tem a morte consigo.

-Força, rapazes, senão ela vai-nos pegar!... Força... Força... O diabo não pára!... Ela vem em cima da gente como um cão!... Se vocês não puxam por esses remos, ela pega-nos desta vez!... -continuava o José Maria a incitar, enquanto, por cima das cabeças dos remadores, não perdia um movimento do que se estava a passar na proa, e para além dela.

Se era para atirar a lança, tinha de ser já. Deixar aproximá-la mais, era ficar dentro da boca dela. De novo, não hesitei: balanceei o tronco e a lança partiu. Sucedeu o mesmo: a boca fechou-se, ouviu-se um ronco, o estalar do cabo, e o rolar do monstro, agora para o nosso estibordo. Com isto criámos algum avanço, que muito nos viria a valer.

Desta vez não desiste, endireita-se e vem para nós.

Foi a maior de todas as perseguições, encontrando-nos quase completamente indefesos. Remava-se tudo o que se podia. Até eu fui armar o meu remo, deixando a linha correr livremente. O José Maria, de pé, em cima dos estribos, com o boné na mão, acenava para a gasolina se aproximar rapidamente.

Durante esta perseguição, a gasolina passou por três vezes perto da Baleia, mas ela nunca nos abandonava. Foi só à quarta passagem, e honras ao Mafredo, que passou mesmo a rasá-la, que nos abandonou. Tínhamos a proa a escassos palmos do fundo da sua boca, e a linha das três selhas corria na última centena de metros.

Em breve também largou a gasolina. Meteu a cabeça no noroeste, apressou o andamento para umas seis a sete milhas por hora, e para ali nos levou a reboque...

Não metemos nenhuma linha dentro. Estavam quase três selhas no mar. A distância entre o bote e a Baleia era grande, e tal dava-nos segurança.

A gasolina veio para o nosso lado, e a noite começou a cair sem que mais nada se modificasse. Até o andamento se mantinha...

O Mafredo veio mais perto e foram-lhe dadas instruções de como proceder durante a noite.

A lanterna, fazendo parte da palamenta e tendo o seu lugar na caixa da roupa e comida, foi retirada. Também o foi o bico de vela que, depois de aceso e colocado no suporte, daria toda a iluminação daquela noite; para muitos, talvez a mais tenebrosa e mais longa da sua vida...

O José Maria chamou por mim para a popa. De facto, eu não era mais necessário ali, pelo menos por enquanto. Verifiquei se tudo estava em ordem e para lá fui. Um homem, sentado no banco sete, segurava a linha que tinha seis voltas passadas ao lagaiete. O José Maria estava sentado em cima do leito. Foi ao lado dele, em cima da borda de bombordo, que também me sentei. Aí, com voz baixa, para não ser ouvido pelos outros, perguntou se eu tinha a certeza de a Baleia morrer só com aquela lançada. Fiz-lhe uma explicação pormenorizada do que pensava sobre isso, ao que julgo ter ficado convencido, porque me disse:

-Não se fala mais nisso! Vais revistar esses homens todos bem revistados e tirar-lhes as navalhas que tiverem. Não quero que a linha «arrebente» durante a noite.

Para um rapaz da minha idade, esta era, sem dúvida, a maior prova de confiança, possivelmente resultado do meu empenho em ser capaz e corajoso como baleeiro. A ordem foi executada com todo o cuidado. Quatro navalhas entraram em meu poder, e a faca da proa foi de lá retirada, tendo sido tudo isto entregue ao José Maria.

-Não, guarda as navalhas na tua algibeira, e dá-me a faca.

Arredou um pouco as pernas, abriu a pequena gaveta, presa com corrediças, por baixo do leito, do lado de bombordo, onde eram guardados alguns aparelhos, tais como fios, pinhos para arpões e proa, uma lima para afiar as lanças, um maço de velas, uma ou duas caixas de fósforos, etc., e meteu lá a faca.

Tinha anoitecido por completo. Não passávamos agora de vultos uns para os outros, que uma lua, num quarto minguante muito adiantado, ainda deixava ver.

Esse rabo de lua, caindo já para poente, estava bem ao alto, e, como com «lua em pé, marinheiro deitado», tudo indicava que o bom tempo se manteria.

Até cerca das vinte e duas horas e trinta, a situação manteve-se: a linha nem correu nem foi metida dentro, e a gasolina continuou ao nosso lado, o que sempre dava certo conforto. Até a marcha da Baleia, sempre para noroeste, também se manteve. Já há muito tínhamos deixado de ver o último clarão do farol do Capelo.

Não vou aqui descrever o que se passou até àquela hora, principalmente com três dos elementos da tripulação, que tudo procuraram fazer e dizer para nos levar a abandonar a Baleia. Aqueles homens viam e sentiam a Baleia nos lugares mais incríveis, chegando ao ponto de verem a gasolina ser traçada ao meio pela boca dela...

Entretanto, começámos a notar que a gasolina se estava sempre a distanciar de nós, para a nossa frente, chegando a dar algumas voltas para vir de novo pôr-se a nosso lado. Foi então que reparei no nosso andamento praticamente nulo. Para melhor me certificar, fui para a proa e de facto vi que não só não andávamos, como também a linha estava a ficar caída pela proa abaixo e nada estendida para a frente, como seria natural se a Baleia estivesse em andamento. Tal como as coisas se apresentavam, a Baleia teria deixado de puxar, já havia um bom bocado.

-Que horas são? -perguntei para trás. Não me recordo hoje de qual dos marinheiros tinha relógio; sei que dum deles a resposta veio:

-Falta um quarto para as onze.

Debruçado pela proa fora, com os olhos postos na linha, procurava ver algum indício de ser puxada. Mas nada: nem luzeiro fazia. Ouvindo dizer as horas, que vinham confirmar a minha suspeita, então disse:

-A Baleia está morta!...

-Ela ainda há pouco estava ali a bufar!...

-Aquilo não era Baleia nenhuma! -ripostei ao marinheiro que falara e que pouco antes gritara horrorizado que via a Baleia perto de nós.

-José Maria, a Baleia está morta. Vamos começar a meter a linha dentro.

Novo alvoroço na tripulação que de maneira nenhuma queria que nos aproximássemos da Baleia antes do amanhecer. Fazendo tal, seria perder seis a sete horas de reboque, o que muito nos retardaria.

Voltei a insistir ser de toda a conveniência amarrarmos à Baleia o mais rápido possível, devido à distância a que nos encontrávamos da terra. Não haveria perigo fazendo a aproximação com todo o cuidado, sempre prontos a ciar para ré se a sentíssemos. Eu tinha quase a certeza de que ela estava morta, não só pelo tempo passado, mas também por não puxar. Embora neste ponto houvesse a considerar o que presenciáramos várias vezes durante o dia: ela completamente parada à nossa espera...

Foi feito silêncio absoluto durante um bom bocado. Nada sentimos. Se a Baleia estivesse viva, devia bufar e nós ouviríamos o ruído do bufo.

-Armem os remos três, quatro, cinco e seis, os outros vão à linha.

Embora de má vontade, a ordem dada pelo oficial foi lentamente cumprida e iniciámos o meter da linha dentro, com todas as cautelas que aquela operação, nestas circunstâncias, requeria. Um dos cuidados a ter foi o maior silêncio: ninguém falaria e procuraria fazer o menor ruído possível.

O José Maria encarregou-me de dirigir aquela operação de aproximação, procurando sentir qualquer ruído, ou avistar, se possível, alguma coisa. A linha vinha dentro quatro ou cinco braças. Parava-se e escutava-se atentamente na direcção da linha, para, depois de se ter a certeza de nada ouvir, serem puxadas mais algumas braças.

Muito lenta foi essa cautelosa manobra, mas assim teve de ser. Passava da meia-noite e ainda tínhamos fora meia selha de linha.

Foi por esta altura que se começou a passar qualquer coisa de estranho comigo, que não compreendia, mas era verdade. O meu coração batia com tal força que sentia nitidamente as suas pancadas. Eu não tremia, mas, pela primeira vez, naquele dia, e talvez das poucas da minha vida, estava com medo. Era medo, sim! Perdera toda a confiança em mim! Até a certeza de a Baleia morrer ao fim de tantas horas também desaparecera e já não acreditava que estivesse morta.

Soube, no entanto, guardar para mim essa incerteza e esse medo, e nem um momento procurei recuar perante a situação.

A linha não estava agora caída pela proa abaixo: fazia um ângulo bem aberto, não havendo qualquer indicação de a Baleia fazer movimentos. Nem tão-pouco se rolava, o que é natural nas agonias da morte. Estar completamente parada, não era muito de admitir, visto não nos termos apercebido de qualquer ruído, que, à distância a que nos encontrávamos, pela pouca linha que faltava, não podíamos deixar de ouvir. Era muito tempo sem bufar. Morta era mais natural.

Mas como aceitar de ânimo leve o que, de facto, se apresentava como o mais natural?! Tínhamos assistido durante uma tarde inteira aos movimentos dessa Baleia, defendendo-se e atacando-nos das maneiras mais incríveis e por nós nunca presenciadas. Tudo se podia esperar dela...

A Lua estava-se a pôr, não a separando da linha do horizonte mais que uns dois palmos. Olhando na sua direcção, via-se reflectir no mar, salpicado por uma ondulação provocada pelo vento bonançoso que agora soprava, os seus ténues raios de luz. Lembrei-me que, conseguindo meter a baleia entre nós e a Lua, seria muito mais fácil alguma coisa conseguir ver. Expus esta minha ideia ao José Maria que logo autorizou a fazer a manobra. De imediato comecei a executá-la, estendendo-me pela proa fora a observar a linha, que era o único ponto de referência a poder dar-me a direcção possível em que a Baleia se encontraria.

O bote tinha de ser manobrado de maneira que a linha ficasse orientada para a Lua. Foi mandando remar umas vezes, outras metendo algumas braças de linha dentro, com o fim de anular o seio, que foi concluída mais esta manobra, em que a linha ficou pela proa fora na direcção da Lua, e, decerto, da Baleia. Mas, por muito que procurasse, nada conseguia ver, e não havia dúvidas que a Baleia, viva ou morta, estava ali, já bem perto de nós, visto também não haver dúvidas de estarmos presos a ela.

O silêncio tinha deixado de ser o desejado; o destrambelhamento de nervos era bem patente naqueles homens, e refiro-me agora a todos, da popa à proa...

A todo o custo o José Maria procurava manter a ordem, principalmente o silêncio, o que não conseguia, mesmo com as suas ameaças constantes. Era enorme o seu esforço para manter o bote com o esparrela na posição que eu ia mandando, e isto porque os remadores, não obedecendo a qualquer ordem, só ciavam para ré, como única maneira que viam de se porem o mais distantes possível...

Para evitar que a linha voltasse a correr, perante o impulso dado aos remos, trincava-a contra o leito, sempre auxiliado pelo homem do baó, e só quando se conseguia alguma calma naqueles homens metíamos umas braças dentro. Mas logo um via ou sentia a Baleia, e os remos entravam na água com toda a energia a criar para ré... A linha era novamente trincada e o bote, embora forçado pelos quatro remos, não se deslocava, a não ser o pouco que entesava o seio da linha.

Chegámos, finalmente, às últimas vinte braças, ou seja, à linha da proa. Sabia-o porque acabara de notar a sua flexibilidade, pelo facto de ser mais usada do que a restante.

O meu coração, se já muito batia, agora batia muito mais…Dava-me a impressão de saltar fora do lugar... e onde diabo estava metida aquela Baleia que não se conseguia ver, à pouca distância que nos separava?!...

Se tivesse vida, já nos teria atacado. No entanto, podia estar à tona da água, aguardando a nossa aproximação, para nos destroçar de uma só vez. Tudo isto me passava pela cabeça, enquanto procurava vislumbrar aquilo que de maneira nenhuma se patenteava...

Não tínhamos outra coisa a fazer senão meter mais algumas braças de linha dentro, apesar de todos os riscos.

A Lua estava quase a pôr-se. Era de tudo tentar antes que isso acontecesse. Ela já beijava o mar com a ponta inferior do seu minguante, quando me pareceu ver algo a reflectir sobre o mar na nossa proa, que mais ainda me amedrontou. Foi nesse preciso momento que um grito me ia a sair, e o consegui abafar! Esse grito seria uma ordem?, uma indicação?, seria de espanto ou de terror?!... Não sei. Sei que sustive a respiração, procurei confirmar se era ou não aquilo que me parecera ter visto. Observo de novo... Não havia dúvidas: estava ali o corpo da Baleia a ser batido pelos últimos raios daquela réstia de luar...

Nada digo, nem mesmo sei o que devo dizer, ou se conseguiria falar naquele momento. Dava-me a impressão nítida de a Baleia estar viva, atravessada na nossa proa.

Procurei acalmar-me o mais possível, fazendo ver a mim próprio que o único raciocínio lógico implicava que a Baleia estivesse morta. Se assim não fosse, eu tinha estado a enganar aqueles companheiros, durante tantas horas.

O ver mexer o corpo da Baleia devia-se ao facto de ainda estar quente, dando-se ao jeito da ondulação. Foi assim pensando que, resoluto, me voltei com o seio da linha na mão, o passei em volta do banco, auxiliado pelo homem do baó e, em voz, agora firme, exclamei:

-A Baleia está ali, e está morta!...

Um raio não teria produzido igual efeito! Eram autênticos loucos, dizendo as coisas mais disparatadas, enquanto, dobrados em cima dos remos, faziam esforços tremendos para fazer o bote andar. Eu tinha-me prevenido dando a volta, com o seio, ao banco, aguentando facilmente o esforço só com uma mão. Também procurava, levantando a voz o mais alto possível, fazer-lhes ver que já não havia perigo. O José Maria, também nisso auxiliava, mas levou tempo a conseguir-se a calma... a Lua tinha-se posto e a noite ficara de todo escura.

O José Maria mandou meter dentro dois remos, ordem que foi executada com certa relutância; ficavam armados o três e o quatro, apenas os suficientes para manobrar o bote.

Voltei-me para a frente e começámos a puxar na linha, agora com outra determinação. Mas a incerteza veio de novo: eu tinha visto a Baleia, no entanto, não podia garantir que estivesse morta. Tinha, sim, convencido a mim e aos outros do que seria de facto lógico, mas seria?! E sou eu agora a aguentar a linha para não vir dentro, procurando mais ouvir do que ver algum sinal de vida ou de morte daquele animal.

Foi então que senti, pela primeira vez, o mar a quebrar em cima de algo, não podendo ser outra coisa senão o corpo da Baleia.

Nada disse. Pedi a lanterna que estava na popa, amarrei-a na ponta do croque, e aguentei-o no ar pela proa fora. Mandei o homem a meu lado meter mais linha dentro. Depressa mais alguém sentiu e reconheceu o ruído. De novo se espalha o alvoroço, só que agora por motivo diferente... Acabava-se de ver o corpo da Baleia estendido por cima do mar, a menos de dez metros de nós. Desta vez não havia dúvidas: estava morta! Via-se a aselha no ar, sinal que não merecia qualquer dúvida, porque a Baleia, quando morta, fica de lado.

-Está morta!... está mortal. .. está ali com a aselha no ar! -diz o homem que a meu lado aguentava a linha.

-É mentira! É mentira!... -ainda alvitra alguém.

-Calem-se -ordena o José Maria.

Por hoje já basta de barulhos.

A sua calma e autoridade voltavam a fazer parte dele. Notava-o perfeitamente. Agora era um vencedor glorioso e não um vencido. A luta fora grande não só contra o monstro, que tão bravo se apresentara, mas também com o querer duma tripulação tomada de pânico.

Ainda um ou dois homens falam…

-O primeiro que tornar aqui a abrir a boca, sem que para isso seja chamado, abro-lhe a cabeça...

O silêncio fez-se total. Pouco depois veio a ordem:

-Vamos prolongar com a Baleia e amarrar.

O Nun'Álvares vai mandando.

Manso como estava o mar, foi fácil a manobra, e em breve chegávamos ao lado daquele bonito exemplar, cujo corpo inerte estava agora à disposição dos seus assassinos. O medo fora substituído pela alegria e glória de matar. Mas quanto não teria sido maior esse triunfo, se lhe tivéssemos presenciado as agonias da morte, rolando-se em dores, num debater-se desesperado; tentando endireitar-se ainda, mas, já de todo exangue, o angustioso estremecimento que assinala o fim, enquanto, trémula, a aselha se descola do corpo apontando o céu, e o mar, à sua volta, é um leito de sangue!

Agora já não há perigo: é o abrir de um buraco, a golpes certeiros de uma espelha, na cauda ou na venta; é passar um estropo, ligar-lhe o cabo de reboque entregue pela gasolina, e pronto!

Foi assim que se procedeu. Amarrado o cabo de reboque, a gasolina começou a puxar rumo à nossa terra.

A pouco e pouco, todos se vão acomodando de meio bote para trás, como é habitual. Safam o pano, para com ele se abrigarem, depois de vestirem as roupas de agasalho, que agora tanto jeito davam...

Também, aos poucos, as várias sacas de comida vão saindo da caixa, e todos se procuram confortar, pela primeira vez naquele dia. Mas era preciso ter cuidado e deixar comida para o dia seguinte, pois seria de todo impossível chegar a terra nas próximas 24 ou talvez 48 horas.

Durante muito tempo ainda os vários episódios do dia foram relembrados, ora em elogios, ora em censuras. Quanto ao nosso amigo carcereiro, teimava em manter a sua promessa que não mais voltaria à Baleia. Como dizia, «juras são juras» …De facto, assim foi.

Entretanto, todos já aconchegados o melhor possível, uns debaixo e outros enrolados no pano, o silêncio tornou-se total. Deitei-me em cima da tilha da popa, feito numa bola, que o espaço não dava para mais... O José Maria deixou-se escorregar de cima do leito e também ali se sentou encostado à amurada, a cabeça apoiada na borda, olhando as estrelas... Quanto tempo assim terá ficado e em que pensaria? Na mulher e nas duas filhinhas? Nas dificuldades que se lhe apresentavam na vida?!

Quando acordei, o corpo todo me doía e os queixos não paravam de bater pelo frio que tinha. Com dificuldade levantei a cabeça. O José Maria lá estava na mesma posição. Até os olhos pareciam fixar a mesma estrela... A manhã estava a começar a dar os primeiros sinais, vendo-se, no nascente, uma aurora muito ténue.

Gemendo, soergui-me um pouco e disse-lhe:

-Vai dormir. Eu fico agora de guarda.

-Não quero dormir; já passei pelo sono. Isto vai muito bem, mas muito devagar... vamos ter Baleia para rebocar durante dias!... Dorme mais um bocado. Parece-me que vamos ter outro dia muito puxado.

Ainda replico:

-Se é Baleia que sentiste, não penses nisso. As lanças foram-se todas embora!... (por vezes, no silêncio da noite, podia ter ouvido o ruído do bufar).

Voltei-me, puxei mais pano para cima de mim, ajeitei o corpo o melhor possível e, em breve, dormia de novo.

O Sol, acima do horizonte, batia-nos já com os seus raios fortes, quando despertei. Vários marinheiros tinham também acordado, e metiam algumas dentadas na boca, do pouco pão e algum conduto sobrado da véspera.

-Cuidado: acabando-se esse não há mais! E vocês vejam onde está a terra.

Ouvindo isto, veio-me logo a curiosidade de reparar se conseguia avistá-la, para o que me pus de pé em cima do banco, e, lá pela proa da gasolina fora a vislumbrei... Parecia mais uma nuvem que propriamente terra, só que, para marinheiros experientes, não havia confusão possível: era o azul da terra. Só os picos mais altos se viam; o resto estava comido pelo mar.

-Quantas milhas? -pergunta um dos marinheiros que, também de pé, em cima de um banco, olhava o horizonte,

-Conseguimos ver terra porque o tempo está muito claro, mas, por aquilo que aparece acima do horizonte, devemos estar a umas 40 a 45 milhas da ponta de Rosais!

-Quando é que chegamos a casa? -pergunta outro.

A resposta foi dada pelo José Maria:

-Quando Deus quiser!...

O assunto parecia ter ficado arrumado, mas agora, de bordo da gasolina, fazem-nos sinais indicando que precisam de falar connosco.

Vou para a proa e pergunto, por gestos, o que querem.

O Sabino vai buscar uma lata de gasolina vazia e, de cima da casa, faz gestos em que percebemos não terem gasolina senão para aquele dia.

-Eu já esperava esta... Pelo andamento... O motor tem vindo devagar para não gastar. Calculei isso durante a noite -diz-nos o José Maria. E continua:

-Acorda os outros que estão a dormir e vamos pôr isso tudo em ordem.

Assim foi feito, tendo o bote ficado todo arrumado nas condições devidas. Puxámos à frente, cortou-se a linha, por onde estávamos amarrados à Baleia, o mais junto possível ao estropo do arpão, armaram-se os remos, e remou-se até chegar junto da gasolina onde amarrámos curto, ficando à fala.

Era o que tínhamos compreendido: a gasolina que havia a bordo pouco mais daria do que até à meia-noite, e a comida estava praticamente esgotada.

Ali tinham tido ocasião e tempo para comer, enquanto nós, amarrados à Baleia, nas circunstâncias em que tínhamos estado, nem disso nos lembrámos.

Que podíamos fazer? Não havia vento para fazer de vela e ir a terra pedir socorros.

O José Maria deve ter tomado uma resolução, pois disse ao Mafredo, que continuava de mestre da gasolina:

-Quando chegares mais à terra, puxa uma bandeira no mastro. Pode ser que algum vigia te veja... -e mudando de tom -mas não esperes por nada antes do amanhecer de amanhã.

Larga o cabo.

Vá, rapazes, armem os remos, e que Deus Nosso Senhor nos acompanhe.

Três horas decorridas, já não víamos a gasolina mas S. Jorge continuava lá, muito longe, enquanto o Sol, à maneira que as horas passavam, mais nos flagelava os corpos, de onde aos poucos toda a roupa foi despojada e arrumada na caixa. Só nos ficaram as cuecas.

Eram sete horas quando tínhamos largado da Baleia. Remávamos há nove horas consecutivas, devendo ter ainda para percorrer oito a dez milhas até chegar à ponta de Rosais, e mais sete, para chegar às Velas. Comida não havia, e água só para mais dois goles a cada um. Depois das dez horas, não foi permitido mais que uma bochechada de cada vez, por espaços marcados pelo oficial que tinha colocado o último dos dois garrafões de água a seu lado, e só uma vez, até àquela hora, o tinha levado à boca. Exemplo louvável, merecedor de toda a consideração. Como dizia, podia passar melhor sem água do que os outros, visto o seu esforço, ao esparrela, ser menor, mas, como nos outros, ou talvez mais, o círculo de espuma branca já quase lhe tapava os lábios por completo.

-Vamos ver se conseguimos chegar à baía Grande ainda de dia, e um homem vai a terra encher os garrafões de água na nascente. Nesta altura, ainda não deve estar seca.

Estas suas palavras não passavam de um conforto e estímulo, tentando reanimar forças que conseguissem percorrer aquela distância o mais depressa possível, embora sabendo de antemão que tal seria impossível antes do anoitecer. O bote, de hora a hora, vinha a perder andamento, julgo mesmo que, na última hora, não teríamos percorrido três milhas.

Com a falta de comida, mas principalmente da água, o cansaço aumentara de tal forma que era uma tortura vencê-lo. Urgia chegar ao porto das Velas a todo o custo. Não serviria de nada tentar desembarcar na costa, porque teriam de subir as escarpadas rochas à procura de água e comida. E onde ir buscar forças para tal? Ainda por cima já noite fechada?

Às seis horas da tarde, poucas milhas mais haviam sido percorridas.

Olhando a costa, ainda mal se via o mar quebrar nas pedras. A última água tinha sido distribuída, enquanto as forças cada vez mais fugiam.

Não era que esses homens não estivessem habituados a duros esforços. Quantas vezes tinham remado dias inteiros em cima das baleias, e, já noite fechada, amarrarem a elas e rebocarem-nas para terra, sempre à força de remos. Quantas vezes também debaixo dum sol escaldante e à míngua de água e de pão, mas, meu Deus, a resistência do homem tem limites, e eu nunca como naquele dia tão próximo deles estive!

Hoje, quem aceita semelhantes situações?! Até a mim me custa acreditar, ao descrevê-las, que há quarenta anos fosse possível haver gente que a tudo isto se sujeitava sem revoltas nem ódios. E eu ali estava a auxiliá-los, sem qualquer recompensa, sofrendo das mesmas privações, levado apenas pelo prazer da aventura... E que aventura! Mas o coração sentia-se recompensado na estima e na admiração com que me olhavam todos aqueles companheiros em aflição. Eu era igual a eles por altruísmo, por amor.

O Sol, caindo sobre o poente, indicava a aproximação da noite. Para lá víamos o José Maria olhar. Sempre sentado em cima do lagaiete, com os pés apoiados no estribo de estibordo, segurava o esparrela na mão esquerda a fim de manter o bote no rumo. Para lá também dirigi o olhar, mas já o José Maria se voltava, punha-se de pé em cima dos estribos, e dizia:

-Levem remos. Vamos fazer de vela.

Sim, ele tinha razão: os primeiros pingos de água que caíam indicavam a aproximação de um chuveiro; logo atrás deste se via o mar enegrecido pelo vento fresco vindo soprando de oeste.

A moral tinha regressado à cara daqueles homens. Em todos eles renascia a esperança de mais rápido, e sem mais esforços, alcançarem o porto!

O mastro estava no ar e já eu entesava os brandais, quando a chuva começou a cair. E cai naquelas bocas sequiosas e naqueles corpos suados! Bendita chuva!

Logo a seguir, o vento chega a substituir a chuva. O pano sobe através do mastro, apanha o primeiro vento…O bote inclina-se para bombordo e inicia o seu suave deslize...

Recebendo o vento pela alheta da popa, e por estibordo, isto com a proa no nosso porto, íamos navegar num largo de onde se podia tirar um bom andamento, caso o vento se mantivesse tal como estava, o que tudo indicava assim ser. A chuva vira adiante do vento; se o contrário fosse, era então de esperar não aguentar.

Aguentando, as milhas que nos separavam de casa podiam ser percorridas, no máximo, em duas horas.

O vento manteve-se, e foi sem mais contratempos que chegámos ao porto, quando pouco faltava para as nove horas da noite.

Estavam várias pessoas em cima do cais, além daquelas que trabalhavam no desmanchar da Baleia apanhada pela outra companhia, e que, pelo andamento dos trabalhos, devia ter chegado durante a tarde.

Não demorou a começarem a chegar os familiares. Acabávamos de atracar e já eram estendidas as primeiras cafeteiras com o café que tão desejado era...

O gerente da companhia também chegara, sendo logo posto ao facto do que se passava e da necessidade urgente de enviar socorros, do que de imediato foi tratar. Não havia uma hora passada, desde a nossa chegada, e o «Nadador» gasolina de boca aberta? utilizada nos serviços aos navios de passageiros, transportando-os de bordo para terra e vice-versa, bem como no reboque dos batelões?, partia em socorro dos companheiros, levando gasolina e mantimentos.

Tínhamos cumprido a nossa missão! O bote foi varado e guardado no seu barracão, após o que a tripulação, na companhia dos familiares, se dirigiu a suas casas para um repouso bem desejado e merecido.

No dia seguinte, eram sete horas quando cheguei ao cais e já lá estava o José Maria em cima da muralha vendo a manobra para encalhar a cabeça da Baleia, apanhada pela outra companhia.

Fui-me colocar a seu lado e perguntei-lhe se sabia alguma coisa. Nada sabia. De facto, era muito cedo para ter notícias. Só vinham de Rosais, para onde tinha sido enviado um portador durante a noite, com instruções para o vigia. Esperaria até trazer notícias do que fosse presenciado durante a manhã.

Nesta altura tomei conhecimento de que a Baleia da outra companhia tivera um procedimento idêntico à nossa, só que andou sempre para a terra até à hora de morrer, ficando a poucas milhas da ponta de Rosais. O bote teve menos sorte do que o nosso: apanhou uma dentada no bico da proa que lhe levou esse bocado, logo acima da linha da água. Felizmente não houve ferimentos. A Baleia fora também morta de bordo da gasolina.

Alguém chegou junto de nós, dizendo que vinha do Morro, mas o vigia nada via. As gasolinas deviam estar carregadas mais para o norte, encobertas pela ponta de Rosais, tornando-se impossível dali serem vistas.

Eram onze horas quando chegou o portador de Rosais com notícias: o vigia tinha, logo de manhã, visto a «Isolda» a rebocar. O «Nadador» chegara ao pé dela às oito horas, indo logo amarrar na proa, ajudando ao reboque. O vigia também mandava dizer que o reboque se vinha a fazer bem e, pelo andamento trazido e à distância que se encontravam, calculava a chegada entre as dez e a meia-noite.

Satisfeitos com as notícias acabadas de chegar, todos se separaram indo para suas casas, onde o almoço os devia esperar. Mais umas horas de repouso, e teriam de se apresentar na casa dos caldeiros, já vestidos com as suas roupas mais velhas, para porem tudo em ordem. Quando a Baleia chegasse, iriam começar a desmanchar...

A noite era de Julho, calma e estrelada. Depois do jantar fui com alguns amigos até ao Jardim, onde havia habitualmente o maior movimento destas noites de Verão: crianças correndo atrás dos morcegos que rodopiavam à volta do Coreto no centro do lago artificial que o circunda, munidos de varas; raparigas passeando de braços dados, umas com as outras, sempre debaixo da atenta vigilância da mãe, tia ou avó; e nós, rapazes espigadotes, fazendo grupo, aqui e ali, tentando catrapiscá-las...

-A Baleia já vem fora do cabeço das Canas.

Esta notícia acaba de ser dada por dois rapazes que correm em direcção ao cais e vinham das «Cruzes», local à saída da Vila onde se pode ver para além da península do «Morro» e da outra que logo se lhe segue, a do «morro de Lemos». Para ali iam sempre espreitar o mar familiares dos baleeiros, ansiosos pela chegada dos ausentes.

Com esta notícia, a pouco e pouco, toda a gente vai despovoando o Jardim em direcção ao cais.

O cais das Velas é, também, um local de reunião e passeio. Está implantado no fundo duma das baías naturais mais abrigadas dos Açores – a baía das Velas, que é protegida, desde oeste, pelo «Morro», passando pelo norte, em que a escarpa da encosta, batida pelo mar, se eleva a 300 metros de altitude, até sueste, pela «ponta da Queimada». A encosta é habitação favorita dos cagarros que nela constroem os seus ninhos durante o Verão e enchem as noites do seu uáá…uáá…tão característico e ruidoso que o visitante desprevenido, espantado e, quiçá, apavorado, dificilmente pregará olho na sua primeira noite na ilha.

Eram onze horas e um quarto quando o «Nadador» desamarrou da proa da «Isolda», onde vinha ajudando ao reboque, para pouco depois esta última passar o cabo de reboque para cima do cais, logo se formando uma linha de rapazes (era sempre trabalho deles) puxando a Baleia que, aos poucos, se vai aproximando, até chegar ao sítio onde se dará início ao seu esquartejamento; isto é no «coiço» do cais, por baixo do guindaste que, por sinal, apesar das modificações e ampliações daquele, ainda se mantém no mesmo local, e em bom estado.

Deus queira (e o homem permita!) que lá se mantenha para sempre como testemunho dessa época, e (porque não?) para que aqueles que, como eu, ainda vivem, possam olhá-lo... encaixar as rugas naquelas roldanas velhas, e fundir num sonho imenso de recordações e vivências que jamais se repetirão.

Bem haja, se assim for.

? Freguesia do Norte do Faial, que também tem um pequeno porto baleeiro.

? Dar excessiva importância a alguma coisa.

? Baleia pequena que ainda está a ser amamentada

? Num bote baleeiro cada remo tem o seu comprimento.

? Espécie de atum conhecida nos Açores por voadores

? Balde pequeno em que uma das aduelas, subindo acima das outras, faz uma pega. Esta peça, que também faz parte da pala menta, feita no geral de madeira de cedro com arcos de ferro zincado ou latão, leva cerca de três litros de água.

? Como é conhecida entre os Açorianos a «mãozinha ...

? Aglomerado de cortiças, forrado a lona, levando um cabo passado em cruz em que, depois de amarradas, são as pontas ligadas umas às outras por uma costura, que por sua vez serve para ligar a ponta da linha.

? Que não tem casa.

? Lanchas de descarga.