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O Mar Não tem Cancelas

by Joaquim Pedro Celestino Soares

O Mar Não tem Cancelas

Joaquim Pedro Celestino Soares

A publicação de A Fragata Pérola, A Presa, O Combate, Naufrágio e O Mar Não tem Cancelas, extraídos do livro Quadros, Navais (edição do Ministério da Marinha), foi gentilmente autorizada pela Comissão Cultural de Marinha

© 1997, Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-22-8

Lisboa, Setembro de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

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O MAR NÃO TEM

CANCELAS

A FRAGATA PÉROLA

Nos últimos dias de Dezembro de 1820, recolhia-se a fragata Pérola de ter com boiado vários navios ao sul das ilhas de Cabo Verde, por causa dos corsários e ter feito longo cruzeiro nos Açores e costa de Portugal, deixando de prosseguir na caça à corveta Heroína, que era de muito melhor pé e tinha entrado para o estreito depois de disparados alguns tiros.

Fez-se o ponto, achava-se a fragata 14 milhas ao su-sudoeste da Roca; todos esperavam ter o ferro no fundo antes da noite, defronte de Belém. O vento era sul a su-sueste?, levantando-se barras grossas do sudoeste a oeste. Dera o gajeiro parte de navio ao sul.

-Ó da gávea, já vês que embarcação é?

-Sim, senhor; brigue-escuna.

Subiram alguns oficiais acima das peças e disseram:

-Ei-la ali, estava cosida com a terra do cabo e vai agora no mar.

-Que horas são? -pergunta o comandante.

-É mais de uma hora.

-Atravesse a gávea: esperemos um pouco a ver o que faz.

Pusemos a gávea sobre e o navio, depois de ir no mesmo bordo coisa de dez minutos, virou, botando em cheio para nós; tendo navegado quase outros dez, ao que pareceu para nos reconhecer, tornou a virar e meteu de ló, cingindo o vento no bordo do sudoeste.

-Será aquilo algum corsário? -disse o comandante para o capitão-de-fragata?.

-Será -respondeu este -, mas que se lhe há-de fazer nestas alturas? Acabámos o nosso cruzeiro, temos apenas mantimentos para quinze dias a meia ração, é Inverno, daqui a bocado é noite, e o tempo mostra aí uma carranca do oeste que não é para graças.

-Mostre o que mostrar -replicou o primeiro -, se ainda hoje ou amanhã aquele navio fizer alguma presa, que dirão de nós em Lisboa? Porque não entra? Que anda fazendo com aqueles bordos? É suspeito e devemos desenganar-nos. Ala braços.

Havia refrescado o vento de maneira que, quando a fragata pôs no outro bordo e orçou, custava-lhe a aguentar os joanetes.

-Amura a vela grande, caça a draiva; manda meter a artilharia de sotavento dentro para a fragata se adriçar melhor: obras de joanetes na mão.

A fragata levava-se bem, mas ia com os batentes das portas e a abatocadura debaixo de água.

-Marinheiro do leme, olha para o pano, não toques.

Teríamos andado obra de 5 a 6 milhas, rompeu a trovoada fortíssima, forrando-se tudo.

-Arria joanetes, carrega, abafa; carrega a vela ré, chega para o estingue grande, punho de sotavento em cima.

A fragata não podia mais, porque a trovoada tinha crescido e o vento era fortíssimo.

-Arria a bujarrona, carrega a vela grande; arria gáveas, mete a gata dentro, mestre Leite.

-Senhor!

-Gáveas aos segundos.

Foi a arriar-se a bujarrona, mas fez-se em tiras; o vento calou duro, muito duro, travessia do oeste a oés-noroeste, com aguaceiros de pedra, sem se ver mais navio, nem terra.

-O tenente da tropa que atraque a artilharia a ficar com peitos de morte, meta os óculos e pregue travessões, isto já. Mestre Leite, em acabando de rizar, bote abaixo as vergas dos joanetes e acachape os mastaréus, que não fiquem muito arriados para poder içar as gáveas: vamos, antes que chegue a noite.

O gajeiro de proa, que tinha ido para o lais do velacho, arrebenta-lhe o impunidoiro, cai com a cabeça em cima do ferro de BB, deixa os miolos e foi-se pela borda fora: a gata desferra-se e atira com o gajeiro entre as bitáculas: não deu um ai e ficou para sempre.

Deram seis ampulhetas, não se via nada; o comandante desce do degrau, enfurna pela escada da meia-laranja, o imediato, Silveira da Mota, fica ao catavento e a fragata vai seguindo bastante em duas gáveas arriadas e traquete, fazendo proa do norte. Chega o cabo do quarto.

-Senhores oficiais à câmara, fique o piloto.

Estava o comandante com a carta em cima da mesa, o criado Manuel Domingues segurando uma das suas pontas e um castiçal, e o comandante com outro na mão; assim que entrámos, retirou-se o criado e ele disse:

-É quase noite, não se descobre a terra, menos se verão faróis, não se pode cometer a barra, precisamos aguentar-nos fora até pela manhã; ao meio-dia demorava a Roca ao nor-noroeste, catorze milhas, andaríamos três a és-sueste, estivemos de gávea sobre meia hora, fomos outra meia no mar andando quatro milhas, temos gasto meia hora em rizar, botar vergas dos joanetes abaixo e arriar mastaréus, tendo caído agora e o tempo que estivemos atravessados talvez três milhas, o que, tudo somado, dá pouco mais ou menos a mesma posição do meio-dia: o vento é de rajadas, entre oeste e oés-noroeste, seguindo neste bordo com bastante pano, podemos montar a Roca; no outro bordo perdemos em virar em roda, variação e abatimento, vamos ficar ensacados, digam a sua opinião.

Ouviram-se todos e concordaram em seguir com a mesma amura; e se o vento escasseasse depois, encalharíamos na Praia das Maçãs.

-Bem, tudo para cima: Senhor Silveira?, mande pregar os encerados nas escotilhas; sirvam-se pela escada da praça de armas.

Subiram todos, o comandante foi para o catavento e mandou:

-A seus postos, quatro marinheiros para o leme, chega para as adriças, iça gáveas; amura a vela grande; chega para a escota.

Diz o imediato:

-A fragata não pode com esse pano.

-Há-de poder -replicou aquele –, o mar é grosso e sem a vela grande não se aguenta o navio para barlavento, não podemos desprezar um décimo; às sete horas devemos estar livres de perigo ou encalhados; caça; um oficial superior para a escota e o estingue na mão para carregar se for preciso.

Tudo assim se fez, sem ninguém dar palavra. Logo que acabou de caçar-se a vela grande, a fragata veio para o ló, adernando toda e metendo a trincheira de estibordo debaixo de água: chaleiras de balas, cabos e gente que não estava agarrada, tudo caiu a sotavento; um mar embarcou pela amura e levou a trincheira, algumas balas rolando pela tolda e castelo caem ao convés?, partem pernas e braços a soldados e marinheiros.

-Homem ao mar!

<p>Não se lhe pôde acudir, ninguém se largou donde estava.

Quando passou a refrega, chamou o comandante.

-Todo o mundo para barlavento; bote a barca; quanto deita?

-Sete milhas.

-Veja bem, torne a deitar; quanto?

-Sete milhas e quatro décimos.

-Abate muito?

-Não senhor, fica a esteira pela alheta, não chega à quarta e meia.

-Andar assim; às sete devemos ter montado a Roca: onde está a proa?

-Norte quarta do noroeste, com a rajada chega à quarta e meia.

-Não é preciso grivar, deixe-a seguir, sem arribar da quarta.

Andámos assim até tocarem seis ampulhetas, cavalgando as ondas de uma banda à outra da fragata; diz o comandante:

-A Roca já fica pela popa, falta a Berlenga, se o vento não escassear, havemos diminuir de pano antes da meia-noite.

Neste momento veio outra onda imensa que fez adornar a fragata, até assentar a trincheira da tolda na água; quando adriçou ouviu-se um forte esticão; era o escaler dos turcos de estibordo, que, enchendo-se dela, tinha arrebentado talhas e funda e lá ia pelo mar fora. Grita o homem do leme:

-O leme dá muita força, a roda não quer andar!

-Que dizes?

-O leme está parado.

-Senhor Silveira, vá lá abaixo com o mestre e um carpinteiro ver o que tem o leme.

Chega o calafate e diz:

-Há muita água na bomba.

-Isso não é nada -responde o comandante, sempre senhor de si -, temos as amarras talingadas e é água que entra pelos escovéns e bateria, vai do convés à coberta e talvez ao porão: toque à bomba, se não bastarem duas, toque a todas quatro.

Voltou o capitão-tenente Silveira, dizendo que o leme não girava e parecia muito afastado do cadaste.

-Dêem talhas à cabeça e atraquem-no para vante: vão governando assim, pondo gente que acuse a voz do piloto, para andar com o leme a bombordo ou estibordo.

Esta situação era na verdade horrível, não devíamos estar meia milha longe da terra e se a fragata ficasse sem governo ia de encontro às pedras, sem esperança de salvação para ninguém. Davam oito.

-Onde está a proa?

-Nor-noroeste por barlavento.

-Então já é oeste?

-Sim, senhor.

-Andar assim, folgado. Bote a barca.

-Oito milhas.

-Bem, daqui a bocado poderemos desvelejar.

As refregas e a pedra que chovia não deixavam olhar para o horizonte, mas os relâmpagos e a enxofria do escarcéu que alagava a fragata bem nos mostrava a curvatura dos mastros e dos mastaréus todos a sotavento. Nesta ocasião vem uma serra de água que alagou o navio todo, o qual adormeceu por mais de um minuto, cai-lhe a maior refrega que ainda não tínhamos sentido, arrebenta o braço do traquete, parte-se a verga de encontro ao estai e fica pendurada pelos laises nos punhos do velacho. Com esta falta de pano à proa a fragata adriçou, mas vindo a vento, caiu a ré e deu uma culapada que julgámos ir logo a pique, embarcando o mar por todas as bandas.

-Carrega a vela grande, arria gáveas, iça a vela de estai do traquete contro, contro.

Tudo assim se fez, a fragata arribou e tornou a seguir; deram seis ampulhetas, tínhamos andado 53 milhas, estávamos ao norte da Berlenga!

Passados onze dias entrou a fragata em Lisboa com três homens de menos, perdidos naquela noite; alguns com pernas, outros com braços quebrados e toda a gente com cara de fome, tendo andado a um quarto de ração e um quartilho de água, depois de suportar uma tormenta que lhe fez partir todos os machos do leme, menos o último de baixo, a verga do traquete, um escaler de menos, as trincheiras e quase todo o pano.

O comandante dela era o Sr. Manuel de Vasconcelos, todos os seus oficiais eram soldados e discípulos da Academia, menos um, que, faltando-lhe o curso matemático, tinha muita prática e havia entrado de criança para a Marinha, seguindo com honra os postos desde sargento-de-mar-e-guerra até primeiro-tenente; este oficial era o bom camarada França.

A PRESA

Pela tarde do dia 19 de Setembro de 1820, navegava a escuna Maria Teresa, a sotavento da fragata União, na costa de Angola, em procura de uns corsários que haviam apresado diferentes navios do comércio, roubando outros e posto em consternação os povos daquela província, sendo o mais temível e afamado deles um brigue de vinte peças, bem tripulado e veleiro. O vento assoprava bonançoso, a fragata menos andadora do que a escuna, ia ficando a ré e o comandante desta, para não passar a proa do outro mais antigo, mandara atravessar o velacho.

Era isto perto da baía de Luango, onde, por prática havida com o Mafuca em Cabinda, constava achar-se o brigue pirata. O vento foi enfraquecendo e já quase que nem levantava o catavento de penas. Fez a fragata sinal de força de vela à escuna, o comandante mandou marear o velacho, largar joanete e gafe de tope e içar a giba, seguindo em demanda do ancoradouro; perto do pôr do Sol. pôde descobri-lo, até que ao anoitecer deu vista de embarcação nele surta, que parecia brigue. A fragata fundeara desgovernada e a escuna que era navio fino, com as bafagens, tinha avançado obra de 12 a 15 milhas, até que de todo elas morreram, fundeando também para não se sotaventar.

Estava calma podre, o céu leve, o mar estanhado; rendeu-se o quarto, puseram-se vigias dobradas e toda a gente ficou em cima, cobrindo-se as armas por causa da cacimba. Correram quatro ampulhetas sem toque de sino, ou grita de «alerta», conversando o comandante mansamente com o oficial acerca da embarcação suspeita, quando este diz:

-Parece-me que ouço a modo de bater de remos!

-Isso é sonho -responde o primeiro -, estamos doze a quinze milhas da fragata e talvez mais da terra, mas o que for soará, escutemos; de que lado pareceu que remavam?

-Do lado da terra, na direcção donde ao anoitecer marcámos o brigue.

Chegaram-se para a trincheira e com efeito ouviram muito ao longe a bulha compassada dos remos na água.

-Acima gente, acima -diz o comandante -, silêncio, pega em armas, presto, leva rumor, não quero ouvir ninguém, prolonga pela amurada, escorva, e tudo esteja pronto à primeira voz.

Escutaram de novo, o bater dos remos foi-se percebendo melhor, até que finalmente se enxergou o vulto negro da embarcação. Ouviu-se o sussurro de vozes, cessando a boga, e imediatamente perguntarem pela buzina em inglês:

-Ó do navio!

-Que dirá? -responderam na mesma língua.

-Que navio é esse?

-Uma escuna de guerra inglesa; que escaler é esse?

-Do brigue espanhol que está fundeado à terra; que embarcações são aquelas que fundearam antes da noite?

-São da conserva desta escuna: venha a bordo esse escaler.

Bateu remos, endireitou para a escuna, prolongou-se com o portaló, subiu uma pessoa que conduziram à câmara; e no entanto saltam dez ou doze homens ao escaler, apoderam-se dele e fazem subir a sua guarnição surpreendida. Era gente e embarcação do brigue, que com o seu primeiro piloto vinham não se sabe se roubar a escuna, julgando-a mercante, ou tomar língua, supondo-a inglesa: o certo foi que os prisioneiros puseram-se a bom recato e os portugueses dispondo-se para combater logo que pudessem.

Antes do raiar da aurora, começou a sentir-se uma aragem de oeste a oés-sudoeste; assim que calou diz o comandante:

-Mestre! Vamos a suspender, nada de apito e acusem as vozes devagar: chega para as barras, vamos, vira de longo, pouca bulha, que logo teremos ocasião de falar alto.

Começaram a virar ao cabrestante, sentindo-se apenas o baque dos linguetes, até que o mestre disse da proa:

-Está a pique!

O comandante sobe ao degrau de estibordo e diz:

-Caça o velacho, iça a vela grande, iça a bujarrona, larga as carregadeiras do traquete; ala traquete e velacho a estibordo, iça bem a pique; volta; vira ao cabrestante, de longo.

Pôs-se o ferro em cima, a escuna fez cabeça e foi puxando para o ló quanto lhe dava o vento, fazendo proa do sul, quarta do sueste, onde lhe demorava o brigue ao anoitecer.

Despontou o sol claro e viu-se então o pirata, que estava envergando a vela grande; logo que concluiu esta faina, caçou gáveas e joanetes que tinha içadas, largou a amarração numa lancha que tinha à borda e deitou em cheio para a escuna, forcejando até com as velas de entre mastros, para travar combate antes que a fragata pudesse protegê-la. Pelas nove horas achava-se à fala, porém a barlavento, pois navegava largo e a escuna de bolina. Um homem de casaca, em pé na trincheira, diz com grande arrogância:

-Mande-me já o escaler para bordo e o meu oficial, senão meto-o no fundo.

Esta ameaça foi seguida de injúrias, mostrando os morrões acesos e muita gente de taifa, arribando, logo após, como que para abordar a escuna. O comandante desta evitou o golpe, acenando ao homem do leme que orçasse e dizendo:

-Fogo!

Toda a artilharia se disparou a um tempo e a escuna pôs no outro bordo. Do brigue responderam igualmente e mais uma descarga de fuzilaria, porém o seu fogo não produziu o efeito que era de esperar, achando-se a escuna já em direcção oblíqua, ao mesmo tempo que todos os tiros dela fizeram grande estrago ao inimigo, que tinha cometido o erro de começar a acção com todo o seu pano largo. Muitos cabos se lhe cortaram, braços e estingues, principalmente os do traquete, que ficou empandeirado, fazendo porém muito fogo em grande desordem e alarido. O comandante da escuna, aproveitando-se daquele descuido, deixou-se ficar um pouco a ré do brigue, e daí o bateu a ponto de que, às dez horas, ele arriou a sua bandeira espanhola, em consequência dos muitos feridos e grande avaria que já tinha na mastreação.

Cessara o fogo da escuna, também maltratada e com dezasseis feridos, começando a saltar gente ao escaler apresado para se apoderar do brigue, quando este, tendo-a pelo través, iça novamente a bandeira e rompe num fogo vivíssimo. A esta traição inesperada os portugueses enfurecem-se, o comandante manobra oportunamente e dá a voz de fogo.

-Fogo alto ao arvoredo; ala traquete e velacho, larga as espingardas, firma as pontarias.

Os tiros empregam-se todos, de parte a parte havia a mesma vontade, porém a escuna ganhara melhor posição, e tão bem tudo se executou que o pirata, desesperando do sucesso, procurou encalhar. O comandante evita-lhe a fuga, seguindo com a escuna e atravessando-lha na proa, donde, descarregando toda a sua artilharia, o tratou de maneira que lhe caíram as gáveas sobre as pegas, faltas de adriças e rompendo-lhe o pano todo. Então o pirata arriou a bandeira e amainou a bujarrona e joanetes.

Às onze e meia os portugueses, vitoriosos, tomavam posse de um belo e grande brigue, armado com vinte peças de 12, tripulado com uma valente e numerosa companha de setenta pessoas de todas as nações; cheio de riquezas, com trinta e sete mil duros de prata e muito ouro, conseguindo-se este feito com uma escuna artilhada apenas com catorze caronadas de 12 e sessenta e cinco praças de guarnição; devido isto não só ao valor dos nossos marinheiros e soldados se não à inteligência e perícia do seu comandante. o Sr. Isidoro Francisco Guimarães.

O COMBATE

Tinha-se acabado de observar o Sol, o tempo estava claro, o geral fraco, nós com todo o pano de bolina, andando 3 milhas e meia.

Grita o gajeiro grande:

-Navio!

-Por onde diz?

-Pela alheta de bombordo.

Deu-se parte ao comandante, que estava pondo o ponto na carta, o qual pouco depois subiu ao tombadilho, correu com a vista o horizonte e falou para a gávea:

-Onde demora a embarcação?

-Na alheta de bombordo.

-Como vai?

-Vê-se pela proa, vem como nós e já se vê melhor.

Às duas tinha entrado bastante, porque do tombadilho se lhe descobriam as gáveas, que eram de navio grande. Foi-se aproximando, tocaram seis ampulhetas, o oficial do quarto subiu às arreigadas da gata e diz para o comandante:

-Parece-me um fragatão!

O comandante subiu dois ou três enfrechates, pôs o óculo à cara, esteve coisa de cinco minutos, desceu e diz:

-É fragata, anda bem, ao pôr do Sol está connosco; mande apressar a ceia.

O oficial voltou para o catavento:

-Ronda! Chamar o cozinheiro; como vamos de ceia?

-Falta pouco, daqui a bocado pode-se dar.

Tocaram sete.

-Mestre apite a rancheiros.

Distribuiu-se.

-De longo -diz o oficial -que há outras fainas entre mãos; vamos, é mexer os queixos.

Às quatro horas já do tombadilho se via bem o casco da fragata. ela orçou. mostrando bandeira inglesa. firmada com pólvora seca. Diz o oficial:

-É inglesa. estava visto. aquele pano. aquele andar; e quer falar-nos.

Responde o comandante. assim com uma espécie de reticências:

-É inglesa .... e quer falar-nos! ... Ice lá a bandeira e firme-a com bala -e para o homem do leme: -Cheio mais. anda uma quarta largo do vento; aonde está?

-Ao sul. quarta do sudoeste.

-Anda ao su-sudoeste.

Passeou duas ou três vezes até à grinalda e na última diz ao ouvido do imediato:

-Senhor Silva?, desça à câmara e veja aquele saco de ofícios. amarre-lhe bem a boca. meta-lhe dentro duas balas e mande-mo pôr ao pé do cata vento -e para o oficial de quarto: -Mande tocar a postos.

O capitão-tenente não tardou muito já fardado. seguido do marinheiro que trazia o saco. entregou-o ao comandante. que o pôs junto do degrau; e este diz-lhe:

-Fique aqui, que eu já venho.

Desceu, voltando dentro de cinco ou seis minutos com os seus melhores uniformes, dizendo-lhe:

-Hoje temos função, devemos vestir-nos de gala; parece-me que o senhor Silva tinha tempo de se arranjar melhor, se o baú estivesse à mão.

-Está, sim, senhor, e como há tempo, sempre envergarei outra farda.

-Faz bem, que elas não são para outra coisa, e hoje parece-me que isto vai a valer; Senhor Lacerda?, faça o mesmo.

O Sol ia a mergulhar-se, o capitão-tenente a desembocar da meia-laranja para o convés, quando uma bala de 18 arromba o tombadilho, vai partir a braçola da escotilha grande e quebra uma perna ao chefe da última peça de vante. Era da fragata que, achando-se a alcance, arriou a bandeira que trazia, içou a francesa, dando fogo ao cachorro de proa e mais a duas peças da amura.

-Então era inglesa? -diz o comandante para o tenente Lacerda. -Aquele pano, aquele andar; e queria falar-nos?!

Responde este:

-Parecia-me ...

-E a mim não: ó da gávea de proa, bota o cutelo fora; mestre, vamos também com a barredoira e cutelos dos joanetes, ala seco, e gata a estibordo, grande e gávea a bombordo, ala traquete e velacho; cheio mais, mais; assim, não passar do rumo para bombordo.

Chegou-se para o imediato e diz-lhe:

-É preciso aproveitar o máximo andar da corveta, a fim de ver se lhe levamos alguma vantagem, que duvido; a fragata anda muito!

Responde este:

-Quem sabe se também com o vento pelo través, como agora vamos, será o mesmo; o pior é a Lua, que se ela nascesse tarde, ou fosse a noite escura, poderíamos escapar-lhe (olhando para a fragata); anda como um pássaro! Veja como entra, botando nós talvez sete milhas!

-Bote a barca; quanto deita?

-Sete e dois.

-Escorrega menos mal com o pouco vento que faz, porém aquela anda mais de nove; para navio grande é bem fino! Mande distribuir uma praça de aguardente por cabeça e outra tanta aí numa tina com o dobro de água, ao pé do cabrestante, para matarem a sede: daqui a bocado está connosco.

Neste tempo outra bala da fragata cruza por entre os mastros, rompe o traquete e corta os patarrases do pau da bujarrona; e outra, e outra sem cessar, que cortam o estai grande e a vela no lais de bombordo, rompendo a barredoira. Passaram-se os dois cachorros para ré, servindo de guarda-lemes, respondendo-se com eles ao inimigo, e botou-se mais em cheio; o Sol era posto havia bocado, a Lua cobriu-se e o vento acalmou de maneira que o pano batia de encontro ao arco, da gávea; o mar chico, quase estanhado, e a corveta apenas deitando 2 milhas. Da fragata orçavam para fazerem fogo por brigadas, tornando a prosseguir a caça, pelo que algum tanto se demorava.

Escureceu de todo, mas assim mesmo distinguia-se perfeitamente o inimigo, que navegava nas mesmas águas; seriam seis e meia estava na alheta, a menos de meio alcance; então o comandante diz para a gente:

-Atenção! Vamos entrar em combate, o inimigo é grande, mas que fosse maior, não me metia medo: aquela bandeira que ali está (e apontou para o penol) é portuguesa, num escaler que ela estivesse havíamos de defendê-la. O que recomendo, pois, é silêncio e nada de confusão; sei que ninguém faltará ao seu dever, a bordo deste navio não conheço nenhum fraco, por isso, à voz de fogo, disparar toda a artilharia e depois cada um trate de servil' bem a sua peça; o alvo é grande, não se pode errar. Mestre, vamos a meter a barredoira e cutelos dentro, carregando também os papa-figos à pancada; larga a bateria, ficando só os chefes de peça e porta-cartuchos; chega para os cabos, e ala de longo quando cantar o apito.

O mestre apitou para a gávea grande.

-Senhor?

-Cutelo e pau dentro.

Apitou para a de proa.

-Senhor?

-Cutelos e pau dentro, à uma: obras da barredoira, cabos da vela grande e do traquete; está tudo pronto.

-Apite.

Apitou, carregou-se tudo como por encantamento, ficando a corveta em gáveas e joanetes. Então aproximou-se a fragata que, ao prolongar-se com a corveta a tiro de pistola, carregou papa-figos e joanetes, dizendo-se de seu bordo em espanhol:

-Ó da corveta, arria a tua bandeira, que esta fragata é francesa e de quarenta e quatro peças.

O comandante respondeu-lhe:

-Esta corveta é portuguesa, não arria a bandeira a ninguém; arria tu a tua.

-Arria (dizem de lá) que não te faço mal, senão meto-te no fundo.

-Não arrio: fogo!

Toda a artilharia se disparou ao mesmo tempo, a corveta parece que saltou fora da água, enchendo-se de fumo.

-Fogo à vontade, fogo, mas vivo, vivo.

Com efeito era um nunca acabar; da fragata como que tardaram três ou quatro minutos, porém rompeu com uma descarga geral, continuando o fogo por brigadas inteiras. Da corveta sustentava-se admiravelmente, sem grande prejuízo; porque, sendo pequena e rasa e a fragata alterosa, e estando além disto a tocar-se com os lais das vergas, ficava ela debaixo da bateria, cujas pontarias salvavam a borda, não lhe ofendendo o casco e empregando-se toda a munição no arvoredo. De mais a mais, o fumo que se tinha condensado pelo pouco vento ou calma que reinava encobria a corveta, ocultando a sua verdadeira posição ao inimigo.

Assim se bateram por espaço de cinco quartos de hora que, sendo perto das oito, já os mastaréus e vergas empachavam o convés, ficando toda desmantelada. O comandante, vendo diminuir o fogo, diz para o capitão-tenente:

-Senhor Silva, porque afrouxa o fogo? Essa brigada do portaló está muito mal servida!

-Não pode estar melhor, senhor, venha ver; a vela grande, a gávea e cabos de joanete tudo aqui veio cair, que ninguém é capaz de mover uma peça e à proa acontece o mesmo; a vontade não falta, ninguém daqui arredou pé, mas tudo está empachado.

-Esta é boa, então visto isso não pode jogar a artilharia?

-Não, senhor.

-Está bem, leva mão, chega tudo cá para ré; está tudo?

-Sim, senhor!

-Bem. Temos cumprido a nossa obrigação, enquanto

as peças puderam jogar, todos trabalharam, agora que o convés está empachado com o pano, cabos e vergas, nada se pode fazer; a nossa bandeira vai arriar-se, porém creio que isso nos não causará vergonha: agradeço à guarnição e mais camaradas o modo por que se conduziram; assim era de esperar de portugueses. Senhor Silva, arrie a bandeira.

Da fragata falaram:

-Venha a bordo o escaler com o comandante.

-Não é possível porque todos estão arrombados.

Demorou-se algum tempo, vindo por fim um da fragata com o seu imediato para capitão de presa, o qual para entrar o portaló se demorou bastante, sendo mister acabar de cortar a vela grande que o cobria. Embarcou o comandante e oficiais subiram para a fragata; e quando, ao entrar na tolda, aquele foi entregar a espada ao comandante inimigo, este, oferecendo-lhe a mão, diz-lhe:

-Um oficial que se bate com tanta honra não deve largar a espada; sois um valente e hábil marinheiro, vinde comigo e o vosso estado-maior.

Conduziu-os à câmara, e ali, dirigindo-se a toda a sua oficialidade, diz-lhe:

-Convido-vos a beber um copo de moscatel à saúde deste bravo comandante e de toda a sua intrépida guarnição; confessai que nenhum de vós, nem eu, esperávamos de navio tão pequeno tamanha temeridade.

Beberam todos, e ele, pegando noutra garrafa, continuou:

-Quem visse uma corveta ao pé de uma fragata não daria nada por ela; porém, depois de presenciar o combate que sustentou, honrar-se-ia da acção; é por isso que de novo vos convido a beber um copo de Madeira à saúde do soberano que governa o país cujos cidadãos o sabem defender tão bem.

O comandante da corveta, pedindo licença para agradecer, bebeu e repetiu o brinde pela glória das armas francesas e conclusão de paz geral.

Ao amanhecer, via-se a corveta apenas em paus reais, como um bote, ao pé da fragata, com todo o seu pano e aparelho por cima da borda arrombada, ou de rojo na água, admirando-se todos de não ter ido a pique. Formou-se a guarnição, amarraram dezasseis marinheiros e soldados às culatras das peças, dizendo-lhes o comandante:

-Vão ser castigados na presença dos seus inimigos para maior vergonha; são uns cobardes. E virando-se para o comandante da corveta:

-Não são franceses, nem quero saber a sua pátria; estes vis abandonaram a bateria à primeira banda com que vós respondestes à minha intimação; fogo, e rijo, que lhes rasguem bem as carnes.

Cada um levou cem açoites, depois do que disse aos portugueses:

-Na verdade, ninguém esperava semelhante arrojo da vossa parte!

-Era minha obrigação -responde o comandante. Os nossos artigos de guerra mandam que a bandeira não se arrie senão na última extremidade, e o caso extremo só chegou uma hora depois.

-Mas se eu vos metesse a pique?

-Lá estava a posteridade.

Recolheu-se à câmara com o estado-maior, fez conselho acerca da sorte da corveta, havendo opiniões de a meter no fundo, ou queimá-la, sendo impossível dar-lhe um destino conveniente; porém, ocorreu a ideia de que, indo a fragata de cabos adentro, tamanho acréscimo de gente causaria embaraço na longa viagem, por falta de mantimentos. Portanto, concluíram por tirar-lhe as armas e apetrechos, entregando-a à guarnição se quisesse capitular, prometendo não pegar em armas contra a França até ser trocada, ou à conclusão da paz. Isto proposto e aceite, passaram os franceses a bordo da corveta, lançaram-lhe a artilharia ao mar, recolhendo na fragata bandeiras, pólvora, armas, munições, cartas, instrumentos bélicos e náuticos, deixando apenas uma só bandeira, uma agulha e um oitante de pau para procurarem a terra.

Duas semanas depois entrava na Baía um pequeno navio de três mastros, em guindolas, cheio de rombos, sem artilharia, mas de flâmula, surgindo no ancoradouro dos navios de guerra, com geral espanto dos marítimos daquela cidade! Era a corveta Andorinha, de vinte e quatro caronadas de 18, e cento e vinte praças de guarnição, cujo comandante, o intrépido Inácio da Costa Quintela, tinha tido a audácia de a expor por espaço de cinco quartos de hora ao fogo da fragata francesa Chiffone, de 44; e que, batendo-se denodadamente com forças t&atilde;o disparatadas, soube conservar a honra da sua bandeira, posto que arriando-a na presença do inimigo, no dia 19 de Maio de 1801.

Decorreram três décadas, e um pequeno navio de três mastros e vinte e seis caronadas, com todo o seu pano e artilharia, e também de flâmula, mas não a topetar, foi surgir perto dos navios de guerra em Brest ... Era a corveta Urania, que, encontrando-se com uma fragata francesa perto dos Açores, arriou a sua bandeira sem disparar um tiro!! ... 1831?.

NAUFRÁGIO

No dia 4 de Abril de 1807 cruzava no estreito de Gibraltar, entre a ponta da Europa e a Mina de Ceuta, a fragata S. João Príncipe, com a fragata Golfinho e o brigue Lebre, tendo ficado a nau Vasco, que era o navio-chefe, surta em Poenta Maiorca. A comissão da esquadra reduzia-se a obstar à saída dos argelinos para o oceano. O vento assoprava do sueste, fresco com seus salseiros, o mar grosso bastante, o céu escuro e cobrindo-se cada vez mais. Depois do meio-dia levantou-se o mar, vaga rebentava em flor, o vento assobiava rijo e o horizonte ficou curto e medonho; pelo que de bordo da Golfinho fizeram sinal de gáveas aos segundos. Às quatro horas o tempo estava péssimo, dando indícios de crescer para a noite; os aguaceiros caíram com mais força e o sueste mais duro; as fragatas e o brigue mal podiam aguentar os papa-figos, sendo mister de quando a quando carregar-se o punho grande. Em uma das sotas em que ficou menos escuro fez a fragata Golfinho sinal de arribar «Baía de Jeremias». O Lebre reconheceu logo e foi botando em cheio; o encarregado dos sinais a bordo da S. João deu parte ao comandante que o Lebre já ia arribado, porém que a Golfinho continuava no mesmo bordo com sinais içados, talvez à espera que esta fragata fizesse o mesmo. Respondeu:

-Não reconheça, quem tem medo traz um cão; se o comandante da Golfinho receia o tempo, que arribe, quanto a mim hei-de conservar-me no meu lugar: esta vida não é para todos, se o Senhor Garção vem cá para estas arribadas, melhor fizera se ficasse em Lisboa; não reconheça.

A Golfinho demorou-se, deu um tiro de peça para advertência, porém não se fez caso dele, até que arribou seguindo o Lebre, fazendo-se a bordo dos três navios muitos comentários pouco lisonjeiros ao orgulhoso, inconsciente e insubordinado comandante, que recusava obedecer a uma ordem tão justa.

Continuou a S. João no mesmo bordo do norte, carregando a vela grande depois que ficou só, virando no sul às oito e continuando a bordada até à meia-noite. Rendeu-se o quarto, pôs-se outra vez no bordo do norte, também com pouco pano, porque com efeito o vento era fortíssimo e a fragata só com muito risco suportaria a vela grande na amura; mas o risco era dos maiores e ela necessária para o navio não cair como ia fazendo, impelido pelo vagalhão e a corrente. O comandante conservou em cima as vergas e mastaréus de joanetes; não só para ostentar valentia, se não para caçar os argelinos que pudessem aparecer; e por isso com tal pendor a fragata aguentava menos, seguia menos e rolava mais, tendo três ou quatro quartas de abatimento. Às sete ampulhetas (três horas e meia) foi o oficial do quarto perguntar ao comandante se queria virar antes dele rendido, ou com toda a gente em cima.

-Não, senhor; como vai o tempo?

-O mesmo, ou pior, nem sei como, quando cai o aguaceiro as gáveas ficam inteiras; o prático diz que precisamos virar, porque a fragata segue pouco e abate muito, estando nós já bastante ensacados.

-O prático é; um tolo, não sabe o que diz; quanto deita a fragata?

-Três milhas.

-Continue na bordada.

Subiu aquele e o prático pergunta-lhe:

-Vamos virar?

-Nada, talvez o queira fazer depois do quarto rendido; por ora mandou seguir a bordada; também as oito não tardam?.

-Deus queira que antes disso não aconteça alguma desgraça; forte teima de homem, tomara já que subisse o senhor capitão-de-fragata, a ver se ele resolve o comandante; não temos tempo a perder e bom seria que o chamassem antes das oito; senhor tenente, veja se ele vem, diga-lhe que estamos em muito perigo.

-Abaixo não vou, nem mando, que não quero roda de poltrão, onde os outros morrerem, morro eu também; veja aí essa ampulheta, mexa com ela, a ver se corre mais depressa; a areia está húmida, e pára, dê-lhe quatro safanões; você está pior que uma galinha.

O prático apertou as mãos.

-Valha-me Deus, daqui a bocado o que será de mim e desta gente toda!

Desceu ao convés, chegou-se à sentinela da câmara.

-Sacuda esse demónio, ande, que talvez seja a última que o faça.

-Está a acabar.

Deu uma sacudidela.

-Cabo do quarto, acabou-se a ampulheta; são oito!

Subiu o cabo:

-Senhor tenente, são oito!

-Toque.

-Ronda! Oito, corra o sino.

Veio toda a gente.

Subiu o capitão-de-fragata, logo, pois era activo e hábil e tinha sido acordado às três horas pelo prático, avaliando bem qual a situação do navio; mas esquivando-se de dizer nada ao comandante, por lhe conhecer a insolência e rusticidade. Rendeu-se o quarto, tornou o prático a instar.

-Senhor. olhe que vamos encalhar. depressa. porque já o tempo não é muito; ai. meu Deus! Meu Deus. não torno a ver a minha casa!

E tornava a apertar as mãos ao pé do capitão-de-fragata. como louco. O vento assobiava. a chuva caía. os trovões e relâmpagos continuavam e a gente de folga não se retirava. como para acudir ao perigo: nestas ocasiões solenes. a multidão é previdente e observadora. aproveita qualquer coisa que a pode salvar e conhece quem é a pessoa capaz disso; pelo que não se arredavam do imediato, cuja inteligência e audácia eram notórias; este. por disfarce, pergunta:

-Onde está a proa?

-Nordeste quarta de este.

-Não está mau caminho para Estepona!

-Bote a barca; quanto deitou na última hora?

-Três -responde o tenente. que entregara o serviço. Eu mesmo a deitei; olhe onde deixa a esteira. fica aqui pelo portaló! Nem que estivéssemos de capa!

-Belo, tudo isto é para o norte. porque a vaga atira com ela para sotavento: Senhor guarda-marinha, dê parte ao senhor comandante que o prático diz ser tempo de virar no sul: diga-lhe que a fragata rola muito e informe-o do estado da atmosfera.

Desceu o guarda-marinha.

-Senhor comandante!

-Que é?

-O Senhor capitão-de-fragata diz que o prático quer virar; o mal é muito grosso e o tempo cada vez pior.

-Chame lá o senhor capitão-de-fragata.

Desceu este.

-Então que quer o prático?

-Diz que já se devia ter virado; e que não virando quanto antes vamos encalhar; o tempo está mau ...

-Então o prático é profeta? Também temos Bandarras cá a bordo? Para haver de tudo, haja mais isso. Continue com a mesma amura, que ainda há muito mar para correr; se ele tem medo, que passe para bordo da Golfinho, que talvez o Garção goste de conselhos; cá por mim não preciso deles.

Francisco Maximiano, pois era ele, que grandes brios animavam, pouca atenção deu ao último período, porque partira quando o comandante disse «continue», e ao embocar pela meia-laranja, ferrando os dentes:

-Cão! Tanta gente sacrificada sem proveito, por estupidez!

Foi para o degrau sem dizer palavra e o prático torna a perguntar:

-Então, senhor capitão-de-fragata, nada de virar?

-Nada, deixe ir.

-Ai que desgraça! Não arribou, por desfeitear o outro, e agora não vira por teima; maldito navio!

O mestre, que havia muito se achava ao pé do cabrestante, advertido pelo prático, cheio de susto apesar de ser marinheiro velho e valente, chegou-se ao imediato.

-Então, senhor capitão-de-fragata, morreremos aqui todos sem mais nem menos? Nunca tive medo de nada quando é preciso expor-me, mas agora sem necessidade…

-Basta! Se tem alguma observação a fazer desça à câmara, que lá está o comandante ...

-Mas ...

-Tenho dito!

Tudo ficou mudo; porém chegando-se para a amurada, juntos do degrau, para acudirem à primeira voz, transidos de frio e susto; quando se sente um choque extraordinário, uma pancada nunca ouvida, um estalar medonho, superior às refregas do furacão que assoprava e logo após outro ainda maior, precedido de uma vaga que atirando com a fragata acima das pedras lhe faz deitar os mastaréus e vergas de joanetes pela borda fora.

-Misericórdia! Encalhou!... Encalhou! -Gritam na coberta: -Misericórdia!

Quem estava em baixo não pôde subir ao convés, a fragata caíra sobre o portaló de bombordo, entrando-lhe a água até à braçola da escotilha grande; tudo era desordem, tudo alarido, ninguém atinava com o que fazia, tudo era escuridão, água e vento. As vagas encapelavam por cima do costado, e iam levando quanto estava na tolda; antenas, mastaréus e gente, a qual ia sendo esmagada pelos pedaços de escaleres desfeitos; pelos madeiros de que se destacavam mastros e vergas que se partiam e jogavam uns contra outros, seguros por alguns cabos! Este horror mais se aumentou, se isso foi possível, com a separação da fragata em duas metades, ficando o castelo e bailéus muito afastados da tolda. O comandante falava, ninguém o atendia; e cada qual procurava salvar-se, mas perecendo no meio das vagas; outros, agarrando-se a alguma carreta de estibordo, esperavam que amanhecesse, mas lá vinha a onda que a desatracava, esmagando com ela os miseráveis que a tinham procurado para abrigo: tudo era destroço e morte; quem caiu ou se deitou ao mar foi por este engolido ou arrojado à praia e envolto na areia pela ressaca, que toda espuma acabava de sufocar quem tinha ali chegado com vida!

Por milagre o soldado «Galrão» da brigada tornou pé, seguro a um remo, corre à praça, dá aviso, a população de Gibraltar acorda, sabe o caso, corre toda à praia de Estepona, com archotes, cabos e quantas coisas supõem necessárias para acudir aos náufragos; o dia amanhece escuro, corno a noite, porém com suficiente claridade para alumiar aquela horrorosa cena. O comandante da nau inglesa Malta acode com parte da sua gente, lança-se às ondas amarrado a um cabo, agarra este e aquele; em terra alam o cabo, salva três ou quatro; o seu exemplo é seguido por vários oficiais corajosos, que fazem outro tanto. O chefe Scarnichia salta igualmente com quanto tem a bordo da Vasco e vai socorrendo aqueles que conseguem chegar vivos ao rolo da praia. O espectáculo era horrendo, dezenas de cadáveres jaziam pela areia, ali abandonados pela maré vazante, outros flutuavam envoltos na espuma, membros dispersos apareciam aqui e ali; mas o que causava maior lástima era ver ainda um cento de infelizes apinhados sobre os dois pedaços da fragata, acenando e pedindo socorro, sem se lho poder levar, desprendendo-se um ou outro, impelido pela onda, que logo o engolia. No meio desta ansiedade, dão todos um grito:

-Ai, que lá se submergiu a proa!

Uma vaga impetuosíssima desfaz o castelo e dispersa os seus madeiros que, cheios de pregos, vão ferindo e dilacerando os desgraçados que nadam em procura da terra.

Na parte restante da tolda e popa achava-se o causador desta catástrofe, bem como alguns oficiais e marinheiros, todos esperando a morte, e vendo o modo de escapar-lhe. O generoso e valente Francisco Maximiano ia a lançar-se ao mar, seguro a dois pedaços de cortiça da trincheira que apanhara, quando o tenente Figueiras lhe diz:

-Ó Francisco, tu sabes nadar e eu não, nem este filho; tu podes escapar, porém nós morreremos ambos; se tu me desses essa cortiça, decerto escaparia eu e este inocente, que não posso largar aqui.

O rapazinho segurava-se ao pai e este ao cabrestante, para não ser levado pelas ondas.

-Pois sim, toma lá, ainda que eu morra não faço falta a ninguém e tu estás carregado de família; deixa cair o pequeno que eu o agarro.

-Deus te dará o pago!

-Larga-te e deixa-te ir sem te importar mais nada, que a onda te levará à praia; eu te acompanho.

Lançaram-se todos três à água, ele e mais os dois, mas Deus não quis salvar a todos, somente o homem generoso teve o prémio da sua boa acção, os outros chegaram a ela mortos, o pai abraçado com o filho! Das trezentas e cinquenta praças que havia a bordo às quatro horas da manhã, quando eram oito apenas existiam cento e cinquenta, tendo perecido duzentas neste horrível naufrágio. Scarnichia e o comissário-geral da esquadra, o Sr. João Baptista da Silva, ajudados pelas primeiras pessoas de Gibraltar, tinham feito cozer nas casas mais próximas galinhas e vaca para acudirem aos extenuados de forças, agasalharam os feridos, vestiram os nus, forneceram roupa aos que a tinham molhada e deram-lhes toda a sorte de consolação. A fragata desapareceu logo depois.

Mal que os náufragos puderam caminhar, dirigiram-se à praça: a procissão era edificante, quando entraram na igreja católica a dar graças, tudo foram lágrimas e soluços, mulheres, homens, crianças, pobres e ricos tudo chorava, pois nunca ali se tinha visto coisa mais lastimosa; olhando o povo com rancor para o homem soberbo e ignorante, cujo endurecimento e maldade fizera tantas vítimas, para Rodrigo José Ferreira Lobo, que também escapara!

Este oficial não era teórico, nem mesmo tinha outros estudos; pertencendo, não sei porquê, à casa dos Marialvas e devendo a um deles, quando governador da Baía, a sua passagem para a Marinha; de capitão de artilharia, que era da mesma província, galgou os postos até chegar ao de capitão-de-mar-e-guerra e comandante de uma fragata excelente que perdeu. E tal patrocínio tinha que, quando o conde de Anadia, então ministro da Marinha, deu parte ao príncipe da perda dela, disse-lhe:

-Real senhor, perdeu vossa alteza uma boa fragata e duzentos homens; porém, sirva-lhe de consolação o haver-se salvado o seu comandante, um dos melhores oficiais da Marinha real!!!

Foi mandado responder a conselho, mas como seria a sentença, quando o ministro mostrava tal interesse? Saiu absolvido e nomeado logo comandante da fragata Minerva! Passados três anos, em 1810, içava ele o seu pavilhão de chefe no tope da nau Vasco, comandando a esquadra do estreito; e no mesmo sítio, em claro dia e à vista de todos os habitantes de Gibraltar, envergonhou ainda mais a bandeira portuguesa, deixando de tomar, por ignorância ou cobardia, as fragatas argelinas, atribuindo as suas faltas e culpas aos honrados comandantes dos outros navios da esquadra, mormente ao muito digno José Joaquim Xavier de Velasco, comandante da fragata Amazona, que ele comprometeu e desgraçou?

O MAR NÃO TEM CANCELAS

Na manhã do dia 7 de Março de 1827 largou da barra da Aguada para Lisboa a charrua Maia e Cardoso. Seu comandante havia ponderado ao Governo provisório que a viagem naquela época era arriscada, pois começava o Inverno e poucas esperanças podia ter de montar o cabo em um navio de mau pé, contra monção e na força dos noroestes. O Governo desprezou as justas ponderações por ele feitas, terminando com a estúpida resposta:

-O mar não tem cancelas; já lá vai o tempo das monções, agora navega-se para toda a parte sem receio de coisa nenhuma; saia, que a província não pode com a despesa do navio.

Saiu, a charrua tinha recebido bastante carga, não só do produto das fazendas que conduzira de Lisboa, como a pertencente aos desembargadores Lousada e Miranda e a outros passageiros, de que vinha cheia. Passou a linha para o sul, com trinta e cinco singraduras, que já era má viagem, estendendo-se esta ao número de setenta e nove dias para chegar à costa do Natal, que foi a 25 de Maio. Perto da ponta do Padrão, deram-lhe calmarias com força de correntes para o norte, que naquela paragem, e tal tempo, são ordinárias, começando-lhe a assoprar o sueste de rajadas, como despedindo-se, até lhe saltar à proa. Com efeito no dia 26 rondou para sul e no seguinte, 27, calou duro do noroeste, sendo mister aguentá-lo de capa. A charrua sempre foi navio ronceiro e de mau governo, tendo além disso uma boca desproporcionada, pelo que mais conveniente seria aproveitar a sua rijeza de borda, regendo pano; e bem o conseguiria, bordejando pouco distante da costa, para à mercê das correntes, que viram ao noroeste quando a monção muda, passar o cabo. Para proceder assim, era indispensável uma guarnição disciplinada, oficiais activos e, mais que tudo, um enérgico comandante que se fizesse obedecer e respeitar: Joaquim Epifânio de Vasconcelos, sendo aliás homem honrado, faltavam-lhe as qualidades próprias do militar marítimo e era sumamente frouxo; a bordo da charrua todos mandavam e por isso falaram e puseram de capa, corno coisa que exigia menos atenção e dava menos fadiga, embora o navio sofresse.

Declarou-se o noroeste duro, cresceu o mar, o horizonte cobriu-se, a vaga cruzou-se e a charrua, no meio daquelas vagas imensas, atirava consigo horrivelmente até que, numa das cabeçadas, às vinte e duas horas do dia 28, partiu o leme, levando este a segunda e quarta fêmeas e aluindo com o seu choque toda a parte inferior da almeida, a ponto de entrar um grande jorro de água pelo gio, que subia no porão, a cinquenta e oito e sessenta polegadas por hora! Tudo a bordo foi confusão, todos queriam coisas diversas, cada qual dava a sua opinião e o barco sem governo, à matroca, atravessado ao mar, que o cobria: ora metendo o gurupés e a proa debaixo de água, ora caindo a bombordo, a ponto tal que o sino tangia sem ninguém lhe mexer. Pranto das senhoras, pragas dos marinheiros, censuras dos desembargadores, advertências dos oficiais de transporte; de maneira que nunca se tinha visto maior anarquia dentro de outra embarcação de guerra, com a qual os perigos aumentavam e a necessidade de acudir-lhe se tornava mais urgente. Ala braços por aqui, tesa por acolá, carrega a mezena, carrega a rebeca, larga o velacho; mas a charrua não arribando, na mais crítica de todas as posições, à mercê das ondas e do vento! A água no porão, cada vez mais, tocava-se redondo às quatro bombas, sem ela diminuir, pegaram nos gamotes, em que todos trabalharam, não havendo nesta laboriosa faina diferença de classes; e só depois de aturadíssima diligência se foi vencendo a maior força, alijando-se parte da carga ao mar, não só por estar arruinada e cheia de avaria, como para ficar a embarcação mais boiante.

Lembrou o capitão-tenente Pussich a vulgar espadela, meteram mãos à obra, mas de tal modo nisto se houveram que, por sua péssima estrutura e desapropriada colocação, nunca chegou a fazer serviço, levando-se em tentativas inúteis e disparatadas até ao dia 30. A todas as horas se esperava que o mar engolisse o navio ou que este abrindo, pelo choque das ondas, fosse logo a pique. Um tenente mandava alar o braço grande, o comandante largar o velacho, o capitão-tenente o traquete, o mestre a vela de estai de proa, repetindo-se estas e outras vozes, sem um pensamento fixo e sem que a charrua variasse de posição! Os navios têm sido por vezes comparados ao cavalo fogoso, que só obedece ao cavaleiro destro; assim um oficial instruído ao catavento parece dominar as vagas e imprimir a sua vontade àquela admirável máquina, que em todas as circunstâncias obedece à sua imperiosa voz! O Maia e Cardoso não respeitava o cavaleiro, nadava à tona de água, o seu elevado tombadilho e salientes alforges ofereciam resistência ao vento, igual a uma vela ré; e por isso para ele arribar logo se devera ter picado o mastro da mezena, o que nunca se chegou a fazer. No dia 30 o mestre e oficiais de proa lembraram a construção de um leme de pega, cuja madre fosse o mastaréu do velacho; esta ideia, óbvia e sempre seguida, abraçou-se avidamente, todos fizeram quanto dele dependia para o seu acabamento, que terminou no dia 4 de Junho; mas o temporal era então medonho, o frio intenso, a saraiva retalhando as mãos e o rosto de quem a suportava, as rajadas fortíssimas e o escarcéu furioso, a cuja vista muitos iam desfalecendo, exaustos de ânimo e forças.

Os camarotes daquele navio eram, e hoje ainda são, no convés, à ré do mastro grande; nos dois fronteiros ao mastro da mezena, em que vinham o desembargador Lousada com sua família, e o ex-contador Possolo e sua jovem esposa, se colocaram as correntes e talhas de atracar a pega ao cadaste; atravessando-se de bombordo a estibordo pelas portas deles, a verga de sobresselente da gávea com outras talhas fixas nos laises para ajudar a governar por fora. Mas por isso que as portinholas estavam abertas, tal força de água entrava por elas que ninguém podia trabalhar, inundando-se todo o navio! O desalento era geral e quase que nem se atreviam a mover um braço! Finalmente conseguiu-se no dia 8, com incrível fadiga e risco, calar o leme e dispor convenientemente o seu aparelho.

Graças a Deus que já governa! Estamos salvos! O leme gira bem! E com efeito o Maia e Cardoso arribou, deu a alheta ao mar e pôs a proa a és-nordeste, puxando-se logo com traquete e velacho para o canal de Moçambique. As senhoras e até os homens choravam de alegria, a vaga na alheta afrontava menos a embarcação, dando-se em consequência disso ordem a fazer alguma coisa de cozinha, pois havia uma semana que nada se tinha comido quente. Porém, com este bom sucesso não findaram as atribulações e perigos dos trezentos e dez viandantes, os quais não vendo nem portas nem cancelas em todo o oceano, viam apenas, e isso bastava, que ele, embravecido, lhes preparava a morte, ora elevando às nuvens o desconjuntado navio, ora sepultando-o no centro de serras de água, que de todos os lados ameaçavam engoli-lo! O caso foi que, ou a obra não fora feita com a necessária solidez, ou a força das ondas era muito superior a todos estes meios provisórios de governo, uma vaga apodera-se dele, faz tudo pedaços e deixa o navio em situação mais arriscada que dantes, tendo agora a bater-lhe no costado os restos do tal leme, presos pelas talhas e correntes. Picaram-se estas e aquelas, e eis de novo o Maia e Cardoso à matroca, já correndo para o sul, já para o norte! No dia II ensaiou-se a factura de outro leme de toros de amarra, o qual ficou pronto a 14, mas nesse dia era tão medonho o tempo, tais os balanços e tanta a água dentro do navio, que apenas trataram de tapar o buraco da enora do leme e as duas portas por onde saía a verga, com colchões e tabuado, a fim de se esgotar o porão. Alijou-se mais carga ao mar; a riqueza de uns, o remédio e o fruto de grandes economias de outros lá foram pela borda fora, para a salvação de todos. No dia 20, achando-se então em trinta e cinco graus sul e pouco mais a oeste da baía de S. Francisco, abonançou alguma coisa o vento, puderam botar o leme fora e governar com ele menos mal. Nestas alturas, a vaga é de uma grandeza que ninguém faz ideia, senão vendo-a, e a violência do vento pega nela com tanto ímpeto, que nenhum navio lhe pode resistir muitas horas, admirando como o Maia e Cardoso suportou aquele combate sem se desfazer! Outros navios, corridos em árvore seca ou em velacho sobre a pega, passavam por ele; mas não lhe dando, nem podendo dar auxílio, no meio de uma tormenta que os ameaçava com igual sorte. A marinhagem, excitada pelos passageiros que de tudo murmuravam, começou a desatender os seus próprios oficiais, sendo necessário prender à ordem da rainha o desembargador Lousada, mais turbulento, para restabelecer a disciplina e infundir algum respeito aos oficiais de transporte que, censurando sempre, por sua ignorância da profissão, as coisas mais acertadas que ali se fazem, tinham demasiados motivos para exercer a sua maledicência.

No dia 21, enfim, prouve a Deus que o leme pudesse trabalhar, obedecendo logo o navio e arribando para este, mas em que estado?! Todo o seu aparelho e pano perdidos, as costuras abertas, a popa arrombada, as perchas fora, quase toda a carga lançada ao mar e a restante cheia de avaria; e a guarnição e passageiros meios mortos de fadiga, privações e susto! O bom e débil comandante que, no meio destes desastres, tinha sobre seus ombros a imensa responsabilidade de uma arribada, em que todos os descontentes lhe serviriam de testemunhas de acusação, foi-se definhando à força de desgostos, sucumbindo no fim de cento e vinte e oito dias de viagem, quando ia a embocar o canal de Moçambique. Recaiu o comando no capitão-tenente Torquato, o qual entrou com a charrua naquele porto passada uma semana, completando-se então cento e quarenta dias de viagem de Goa. Ali fabricou e fez novo leme, custando infinito o arranjo de outras fêmeas em lugar das perdidas, que se deveram às diligências do tenente Cardoso, que as fez fundir, chegando com este auxílio a Lisboa passados quinze meses, no dia 4 de Junho de 1838. Seus prejuízos foram imensos, quer públicos, quer particulares, sofrendo a sua guarnição muitas privações e muito risco de vida, os passageiros muitos incómodos, desgostos e despesas, e a arma da Marinha muito descrédito. E tudo isto porque gente alheia à ciência das coisas navais julga e decide os objectos marítimos, que nunca compreendeu, nem compreenderá, sacrificando ignorantemente avultada porção da Fazenda Pública; e a fazenda e a vida de bons servidores do Estado, declamando, com crassa fatuidade, «Que o mar não tem cancelas»?!

? Costuma escrever-se S. S. O., que é uma abreviatura usada a bordo; porém, para inteligência dos leitores que ignoram a linguagem técnica, escrevi os rumos por extenso.

? João Inácio Silveira da Mota.

? Francisco de Paula Borges da Silveira, capitão-tenente

? A fragata era de poço, tinha bailéus e por isso caíam as balas, que rolavam da tolda e castelo ao convés.

? Joaquim José da Silva. capitão-tenente.

? José Bernardo da Lacerda, que morreu tenente-coronel da brigada real da Marinha.

? O comandante dela iça hoje a sua flâmula no galope da melhor corveta da Marinha nacional. 1845.

? Também as oito não tardam deve entender-se oito ampulhetas, e não oito horas. Para quem é da profissão, escusava definir o dito, mas é preciso explicar o termo técnico a quem não sabe a fraseologia de bordo.

? Por este facto entraram em conselho de guerra o chefe de divisão Rodrigo Lobo e os capitães-de-mar-e-guerra Velasco e Aboim, no qual conselho saíram estes absolvidos e aquele condenado. Procedeu-se a segundo conselho, e sucedeu o mesmo; até que, recorrendo o chefe Lobo à corte do Rio de Janeiro, obteve um decreto que anulou as sentenças dos conselhos de guerra, e o deu por inocente e culpados os verdadeiros inocentes, da forma seguinte (pasmem os leitores!!):

«América Portuguesa. -Rio de Janeiro, 29 de Março. -Por permissão régia publicamos o seguinte decreto. -Havendo constado na minha real presença que se havia procedido com notáveis irregularidades no conselho de guerra, que novamente mandei formalizar sobre a conduta do chefe de divisão Rodrigo José Ferreira Lobo, comandante da esquadra que ultimamente esteve no estreito de Gibraltar, e dos dois comandantes das fragatas Amazona e Fénix, pertencentes à mesma esquadra, o capitão-de-mar-e-guerra José Joaquim Xavier de Velasco e o capitão-de-fragata António Correia Manuel Torres de Aboim: Fui servido mandar rever por pessoas inteligentes e zelosas do meu real serviço, assim o processo como as sentenças proferidas a respeito daqueles oficiais. E resultando do sisudo exame que se fez conhecer-se na maior evidência, não somente as ilegalidades que se cometeram em toda a marcha do processo, como a existência de sentimentos de parcialidade da parte dos juízes, o que tudo deve tornar nula aquela sentença: Hei por bem, por todos estes respeitos, e porque seria de graves inconvenientes, depois de quatro anos decorridos, formalizar-se um terceiro conselho de guerra, em circunstâncias tais que requerem que eu prova de remédio pronto um negócio de tanta gravidade, mandar declarar, como por este declaro, o referido chefe de divisão Rodrigo José Ferreira Lobo completamente inocente e livre de toda e qualquer imputação que lhe pudesse provir dos tristes acontecimentos dos dias 26 de Abril e 4 de Maio de 1810, em que houveram os encontros com a esquadra argelina, tendo este oficial em uma e outra ocasião cumprido exactamente com os seus deveres e mostrado aquele valor e actividade que sempre o fizeram digno da minha real atenção. E porque ao mesmo tempo exigem os sentimentos da minha inalterável justiça que não fiquem impunes os dois citados comandantes, José Joaquim Xavier de Velasco e António Correia Manuel Torres de Aboim, que se reconhece haverem-se conduzido com imperícia ou cobardia; sou servido determinar que sejam privados do exercício dos seus postos até que embarcados completem, com exercício de voluntários, três anos, não entrando no número o tempo que possam estar no porto de Lisboa, depois do que dependerá ainda da conduta que tiverem tido merecerem que eu lhes faça a graça de os mandar restituir aos postos que dantes tinham, e em que por isso mesmo não poderão contar o tempo do serviço decorrido na satisfação da pena que lhes mando impor. O Conselho do Almirantado o tenha assim entendido e o faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 27 de Janeiro de 1815. -Com a rubrica do príncipe-regente, nosso senhor... (Gazeta do Rio de Janeiro de 29 de Março de 1815.)

Belezas do governo absoluto!!!

? Não tem cancelas, é verdade, mas nos pólos gela o mar, que impede os navios de se moverem; e nas paragens onde reinam as monções, como no cabo da Boa Esperança, na costa do Malabar, costa de Coromandel, golfo de Bengala, mar da China, arquipélago de Timor e Molucas, arrisca-se quem as quiser desprezar a sofrer o que sofreu o Maia e Cardoso, se for de uma tão forte construção, ou não voltar nunca, se for mais fraco. E aproveitando-as pode fazer' a sua viagem com segurança e rapidez, como agora se demonstra pela chegada da fragata D. Maria, que, saindo de Goa em monção, entrou neste porto domingo, apenas com cento e trinta e cinco dias de viagem, podendo fazer escala por Moçambique, Benguela e Angola.