A Última Viagem da Nau da ÍndiaJ;§<›£À›£ÀTEXtREAdÊŽœœ œ0œ@œPœ`œ~iTitle: A Última Viagem da Nau da Índia Author: João Braz de Oliveira CreationDate: Fri Jun 19 15:57:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Apr 29 02:20:00 GMT 1970 Genre: Description: A Última Viagem da Nau da Índia Desarvoramento da fragata D. Fernando (1861-1863) João Braz de Oliveira A publicação de A Última Viagem da Nau da Índia, texto extraído do livro Narrativas Navais (edição do Ministério da Marinha), foi gentilmente autorizada pela Comissão Cultural de Marinha © 1998, Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8396-50-3 Lisboa, Maio de 1998. Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** A ÚLTIMA VIAGEM DA NAU DA ÍNDIA As monções do canal de Moçambique sopram alternadamente de SO de Abril a Novembro e de NE o resto dos meses até Abril. A de SO é a boa quadra, a outra em ocasião de lua cheia traz quase sempre algumas horas de rijo temporal. A mudança de monção de SO para NE faz-se em geral com tempo claro e bonançoso e trovoadas de pouca intensidade; a de NE para SO dá sempre muita chuva, tempestade e aguaceiros pesadíssimos. O mês de Fevereiro é o pior de todos, diz o Guia do Canal de Moçambique, por Silva Costa, e as monomocaias, ou tufões de Moçambique, como ele também as denomina, fazem a sua visita àquela costa de 10 de Fevereiro a princípios de Abril, desde o Ibo e baía de Pemba até ao arquipélago de Bazaruto, oscilando pouco em latitude os seus limites. A duração máxima é de vinte e quatro a trinta e seis horas. Começa a soprar forte de SO, dá um recalmão de um quarto de hora, salta o vento para o N, tornando-se então de grande intensidade e perigoso. O naufrágio do brigue Mondego, o desarvoramento da fragata D. Fernando, o encalhe da corveta Duque de Palmela, são factos notáveis na história contemporânea da marinha de guerra portuguesa. Comovedoras, dramáticas, cheias de brilhantes heroísmos, de dedicações modestas, mas altamente apreciáveis, revestidas do lendário brilho das cenas marítimas nos mares do Oriente, são as narrativas do naufrágio e do encalhe. O desarvoramento da fragata tem, porém, uma feição especial. É, por assim dizer, a cena que resume a última viagem da charrua da Índia; um conjunto de factos que põe em relevo o valor profissional do marinheiro português; é a causa de que deriva uma longa viagem cheia de todas as contrariedades do ronceiro navegar da nau dos quintos; é uma história que já nos parece de antigas eras, porque o vapor e as máquinas, nos últimos anos, transformaram radicalmente a derrota e o navio. A fragata D. Fernando, cujo negro casco avulta a meio do Tejo transformado em pontão-escola de artilheiros, é um monumento arqueológico, apesar do seu aspecto mascarado, lembrando ter ainda há pouco havido arsenais e estaleiros nas colónias; navios que navegavam para a Índia; fragatas, corvetas e brigues de guerra iguais aos melhores das marinhas estrangeiras, porque o dinheiro não era então o único argumento indispensável para a construção de navios de guerra, hoje substituídos por essas maravilhas da indústria do ferro e aço, os navios de combate, que só as nações riquíssimas podem possuir e custear, sustentando no mar o seu domínio. Por isso os oficiais antigos recordam ainda o facto, a arribada, o remediar das avarias, como prova de aptidão profissional; como valioso documento de que possuíamos uma marinha, que breve decaiu e desapareceu sem que fosse substituída por outra de guerra ou de transportes, ainda que modesta, mas a par dos aperfeiçoamentos modernos, podendo comparar-se com algumas estrangeiras no serviço policial e das colónias. Quem sabe se, apesar da modéstia de todos, não acudirá ao espírito, em algum momento de aborrecimento, a ideia da comparação do navio de vela e do serviço naval daquele tempo com o de agora de largar e ferrar latinos nos cómodos barcos de vapor, ou a faxina dos mastros militares, que nada se parecem com as gáveas das naus de linha, onde os artilheiros e soldados que os guarnecem apenas conservam o uniforme da gente do mar, a camisola e a tradicional camisa de a1caixa dos gajeiros. Sem esquadras, sem navios grandes, sem marinha militar que lhes desse a noção da própria força e a crença de poder lutar com esperança de vencer, justificadas ficam lembranças do passado, desculpa para recordar os velhos tempos. O desarvoramento da fragata passou às lendas da nossa Armada envolto numa certa auréola de saudade. A fragata D. Fernando, de 50 peças de artilharia e de 1849 toneladas de deslocamento, foi construída de óptimas madeiras, em Damão, pelo tenente Gil José da Conceição e pelo mouro Jadó-Simoji. De 48,7 m de comprimento entre perpendiculares, 12,8 m de boca no convés, 11,9 m de pontal, da face superior da quilha à borda na casa mestra, foi lançada ao mar em 22 de Outubro de 1843. Dizem ser risco igual ao da fragata Duquesa de Bragança. A 18 de Maio de 1861, a reboque do vapor de guerra Mindelo, saiu a barra de Lisboa. Ia armada em charrua e levava apenas duas peças no convés. Destinava-se a Moçambique, Índia e torna-viagem por Angola, levando soldados e passageiros e carga do Governo. Para Moçambique conduzia uma companhia de caçadores e outra para Damão. A coberta ia empachada de carga especada como se tornava necessário e na tolda, entre os mastros, ia em quarteladas o vapor Zambeze feito de ferro para servir no rio do seu nome, de sorte que a fragata ia pesadíssima, dando amplíssimos balanços, puxando os mastros muito pela enxárcia, sentindo-se a falta dos rebaletes para lhe aguentarem o jogar e andando pouco não só por estar peada, mas porque o tempo era bonançoso e só no fim de oitenta e nove dias de derrota, a 15 de Agosto de 1861, largou âncora em Moçambique. A 16 desembarcaram soldados e passageiros e a 20 já o Zambeze ficou amarrado em frente do arsenal da ilha. Atestada que foi a aguada e recorrido o calafeto dos trincanizes, a 1 de Setembro largou a fragata para a Índia. A 22 fundeava na Aguada, tendo encontrado vento muito bonançoso na aproximação à costa do Malabar. A madre do leme ia partida e, por determinação do conselho de oficiais, aliviado o navio a ficar em 16,5 pés, a 19 de Outubro entrou a barra do Mandovi, amarrando em frente de Pangim, onde remediou a avaria e pôde finalmente calar o leme naquelas águas sossegadas, sem receio da ondulação do mar da Aguada, que raramente está tranquilo. A 1 de Dezembro, reparadas as avarias, voltou a fragata para o ancoradouro da Aguada, começando logo a aprontar para a viagem de regresso. Trabalho não faltou. Meteu a bordo 100 toneladas de lastro, representado por 59 peças de ferro de vários calibres, que tinham servido à conquista e guarda das nossas antigas fortalezas. Arrumou o lastro e 64 tanques de ferro que tirara, atestou a aguada e estivou pelo porão e coberta sacas de arroz, açúcar, pimenta, caixas de chá, bagagens e mais carga que trazia, recebendo além da sua guarnição 18 degredados e 119 passageiros. A 11 de Janeiro de 1862 fez-se de vela e a 11 de Fevereiro fundeou de novo em Moçambique. Aí recebeu mais carga e passageiros. A fragata ia carregada e o peso de 100 toneladas de peças de ferro no porão fazia-lhe dar rápidos e violentíssimos balanços. A enxárcia real estava branda e os mastros sacudiam e vergavam quando o navio se adriçava. O mastro grande era da primitiva, feito de puna, e enfeixado; o do traquete de madeira branca e pertencera a um indiaman, que andara na carreira muitos anos. A saída estava determinada para 20 e na véspera o navio ficou pronto. O NE soprava fresco pressagiando umas magníficas singraduras para sul. S. Ex.ª o Governador-Geral Tavares de Almeida lembrou-se, porém, de convidar o comandante e oficiais para um jantar de despedida, e a fragata só largou do porto a 22. O vento tinha abonançado e rondado para o S, as águas corriam ao N e a 24 estava à vista do baixo de João da Nova e ao meio-dia de 1 de Março o ponto era igual ao do dia de saída. Nos dias 7 e 8 de Março mostrava o tempo um cariz medonho. No quarto das 4 às 6 horas da tarde o vento era S: SSE, dando de quando em quando rajadas muito frescas e o mar de pequena vaga. O tenente Valadim, que estava ao cata-vento, recebeu ordem para virar de bordo, pondo o navio com amuras a bombordo. O comandante passeava na tolda a barlavento e quando o oficial lhe perguntou como mandava que virasse, respondeu-lhe cortesmente: como quiser. Meteu-se a virar por avante, rasgando-se a gávea quando ficou sobre, arribando em seguida desenvergou-se e envergou-se outra gávea, à qual aconteceu o mesmo quando o navio meteu a virar de novo. Abafaram os farrapos da vela como puderam, seguindo a fragata de bolina folgada a estibordo, até que às seis horas da tarde meteu de capa só com a vela grande rizada, capa péssima para aquele navio e que lhe dava uma velocidade de três milhas. À meia-noite içou a vela de estai na antegalha, deitando a NE 1/2 E, andando a fragata 7 milhas. Ao meio-dia de 6 estavam ao S das ilhas de Bazaruto, no paralelo do cabo de São Sebastião. Na noite de 7 o vento S soprava violento, a vaga crescera e desdobrava-se em altíssimos escarcéus, a atmosfera enfumaçada, o horizonte muito curto denotavam temporal. De madrugada o balanço era imenso. Rangiam os mastros e cavername em monótona e gemebunda cantilena. Tratou-se de aguentar a mastreação com costaneiras, estralheiras, aparelhos reais guarnecidos com ostagas, enque, contrabandais e às vergas contra braços. Apesar de os aparelhos serem rondados a cabrestante, tão violentos eram os balanços, que ficaram sempre brandeados. Avolumavam em torno das romãs aqueles pesadíssimos cadernais e de quando em quando rebentavam os ovéns da enxárcia real e os mastros vergavam e torciam em curvas perigosas. Pela tarde, com muito custo e risco para a gente, vieram ao convés as vergas de sobre e de joanete e os respectivos mastaréus. O de joanete grande desfez o michelo do andrebelo e desabou do alto no convés indo bater com a romã sobre a trincheira, caindo ao mar o galope, que partiu. No quarto da meia-noite às quatro uma grande vaga encheu o segundo escaler, que ia içado a estibordo, rebentou a chapa dos amantilhos com o peso, o turco cedeu, ficando a embarcação pendurada pela talha da popa a bater contra o costado, até que o mar a desfez levando os destroços para longe. O dia 8 amanheceu tempestuoso. O mestre e o primeiro-carpinteiro deram parte de que o mastro grande rendera entre a tolda e o convés. O comandante foi verificar a avaria e daí a pouco foi o mastro arrotado com barras de cabrestante o melhor possível, e reunido o conselho de oficiais lavrou-se termo de arribada. Desfez-se a capa e a fragata em papa-figos rizados e a vela de estai na antegalha deu ao leme de encontro, deitando a E 4 1/2 NE a caminho de Moçambique, com mar de vaga grossa, vento S muito duro e aguaceiros continuados. No dia 9 o tempo não tinha melhorado. Desde que a atmosfera se toldara tinha sido impossível observar o Sol e determinar um ponto rigoroso. Na manhã de 9 de Março o ponto estimado era 18° 44' lat. S e long. 38° 52' E GW. A fragata jogava muito e no quarto das 20 às 24, uma vez que caiu a bombordo num amplíssimo balanço, desarvorou do mastro grande, partindo entre a tolda e o convés. Na queda para bombordo destruiu a trincheira por ante a vante do portaló e quebrando pouco abaixo da romã deitou ao mar o mastaréu da gávea, o cesto, as duas vergas com os paus de cutelo e pano, ficando tudo preso ao navio pelos cabos. O pé do mastro saltou fora da carlinga, recorreu para ré e para estibordo arrombando a tabica da arcada da bomba e destruindo o último camarote desse bordo na coberta. No meio do estalar da madeira, do sibilar do vento, dos gritos aflitivos de muita gente que julgava chegada a hora extrema, saíam incólumes dentre os destroços das anteparas a bradar misericórdia oito canarins, aprendizes de clérigo, que tinham ali alojamento. Não havia nessa época arcebispo em Goa e eles vinham ordenar-se ao Reino. Na tolda a guarnição correu à borda e mesas de enxárcia a cortar os cabos para desligar o resto das antenas, vergame e aparelho, que batiam fortemente o costado do navio. Numa pancada o lais de um pau quebrou o vidro de uma das vigias da coberta e a água repuxou para dentro de um camarote em jorro copioso. Bradava o proprietário contra o dilúvio que lhe inundava o beliche, fazendo flutuar as caixas do chapéu armado e das dragonas, até que se conseguiu meter um taco de madeira no aro da vigia, vedar a água e acalmar um pouco o alarido. Preso pela enxárcia, o mastro foi ficando para ré, batendo no leme quando a vaga o arremessava contra a popa. A madre rendeu cedendo a um golpe violento e a roda partira na ocasião de o mastro desabar. O traquete ia enfunado, o navio em cheio, desdobrando-se a onda pela popa. Passaram-se novos braços às vergas de proa, continuando-se a governar com a cana do leme e talhas na coberta. Duas horas depois, às 23, uma rajada mais rija e ao cair na vaga caturrando, a fragata estremeceu e desarvorou do mastro no traquete, abatendo tudo dentro do navio. Rendeu o gurupés e o pau da bujarrona com o peso das vergas e velame. A marinhagem dirigida pelos oficiais cortava os cabos e safava a rascada com valor. Lá iam para o mar antenas, pano e aparelho, que no afã da faina não se pôde recolher. O mastaréu e a verga da gata tinham ido pela borda fora quando desarvoraram do mastro grande. Perdeu-se a roda do leme, uma das bitáculas, estalaram três vaus reais, a tolda ficou aluída desde o portaló até ao cabrestante, um dos pedaços do mastro do traquete arrombou o fogão do rancho. Perderam-se mais os paus de cutelo das duas gáveas e joanetes, quatro cutelinhos que estavam nas gáveas, toda a enxárcia de joanetes e sua manobra e a de sobres. Custa a acreditar como debaixo da avalancha de madeiros, cabos, chapas e poleame, que tocada pelo vento desabava sobre a tolda, escapou salva a guarnição sem ninguém perigar de tanto risco. Apenas o guardião Coutinho foi ferido na cabeça por uma hastilha do mastro do traquete. Verdade seja que, ao ver recurvar os mastros no balanço. fácil era a todos adivinhar que haviam de cair. Mas ninguém fugira a expor-se e portanto maior fora a fortuna e mais grato o salvamento. Livre o navio dos dois mastros e unicamente com o da mezena, o balanço cessou, e não se sentindo já o assobiar do vento na enxárcia parecia ter passado a tempestade. Caçou-se a mezena, içou-se uma vela de proa no estai da gata e a fragata aproou ao mar. Durante esta difícil conjuntura, comandante, oficiais e guarnição tinham-se portado com valor e disciplina. O comandante Rosa era um verdadeiro oficial de mar, e não era para ele novidade os contratempos da viagem da Índia. Embrulhado no capote azul, o rosto e as barbas brancas orvalhados pela chuva, sereno, dava as suas ordens para remediar as avarias. Confiados no comandante, guarnição e passageiros, que olhavam desconfiados para o mar, animaram e alguns que já tinham esmorecido já contavam valentias. Foram desmanchando a antena, safando os mastaréus de gávea e construindo com grande trabalho uma esparrela de palmatória para ajudar o leme, que não merecia confiança. Não chegou, porém, a ser deitada ao mar, porque a madre foi arrotada no lugar onde torcia e à porta, que tendia a separar-se, deu-se uma forte cosedura de cabo e uma corrente, conseguindo-se assim aguentá-la e governar. Sem pano que regesse, entregue ao capricho da corrente, a fragata abatia para S. No dia II estava tudo ensaiado para arvorar a mastreação. Era faina geral, que necessitava do concurso de toda a gente. Ninguém faltou e todos trabalharam com afinco. Nunca ao cabrestante se tinha visto grupo mais luzido. Oficiais do exército ultramarino, graves burocratas, punham o peito à barra e ajudavam a alar os cabos da manobra. A quem competia dirigir era aproveitado no seu posto; quem tinha só força dava os braços ao trabalho e certo ninguém discutia o valor das precedências. Cadenciando o virar do cabrestante, trinava o apito de um oficial superior, que vinha de passagem, retirando de comandar um navio em Moçambique. À ordem do comandante, ao silvar dos apitos da mestrança, com satisfação geral de toda a gente, foram postos a prumo os mastaréus da gávea e do velacho, substituindo os antigos mastros; rondadas as enxárcias cruzaram nelas duas vergas de gávea, com o seu pano, que passou a servir de papa-figos. Arvoraram-se dois mastaréus de joanetes, cruzando as vergas e caçando as velas, que se transformaram em gáveas e joanetes. Envergou-se uma gávea na verga seca e o mastaréu da gata foi substituído por um mastaréu mocho, cruzando a verga competente. À proa içaram a polaca, a vela de estai e bujarrona. À tarde a fragata, cuja beleza de aparelho muito deixava a desejar, começou a navegar com destino ao porto de Moçambique. Apesar de contrariada pelas correntes, a 23 estava a D. Fernando à vista da costa de África, na lat. 15° 36' S. As águas, que tinham nos dias antecedentes corrido a OSO, vieram essa noite ao N e ao amanhecer de 24 estava em frente da ilha de Moçambique, vendo-se claramente a fortaleza e a cidade. A corrente de 14 a 18 foi sempre na mesma direcção e em sentido contrário ao andamento. A fragata conservou o mesmo ponto apesar de as singraduras serem 55, 42, 44, 32 milhas a caminho. Se a fragata velejando ganhasse barlavento, em meia dúzia de bordos iria fundear no porto, mas assim, e sem poder virar por avante, já pela tarde a cidade se não via, o navio abatia para o N, pelo que, reunido o conselho de oficiais, decidiu que se arribasse para Pemba. Ao pôr do Sol avistou-se ao N um navio de vapor e deram-se dois tiros de peça. Anoiteceu e o navio ainda não reconhecera os tiros de socorro. Na fragata não repetiram os tiros. Parecia necessário poupar a pólvora dos paióis volantes. A fragata era a charrua da Índia, não ia armada em guerra e para chegar ao paiol da pólvora era necessário abrir o contrapaiol e esse ia abarrotado de arroz em sacaria. Fizeram-se alguns fachos de sinal, que o navio reconheceu deitando para a fragata. Era a corveta inglesa Orestes, de 1750 toneladas, 4000 de vapor e comandada pelo comodoro Gardener. Veio a bordo o seu oficial imediato. Às II da noite estava passado o reboque e, navegando com a velocidade de 4' ,5. às 4 da tarde de 25 fundeava a D. Fernando em Moçambique. A 26 de Março o mestre do navio, Francisco António dos Santos, e o primeiro-carpinteiro Joaquim do Espírito Santo apresentaram um plano de guindo las aparelhando a fragata a barca. Foi presente ao conselho de oficiais, que o modificou para galera, aproveitando-se o material que estava a bordo, algum do arsenal e navios da estação, uma antena e os mastros do brigue Villa Flor, que a fragata transportara na viagem de 1859. Aprovado o plano, tratou-se de dar começo à obra. Arriaram-se as guindo las, tirou-se o leme e começou-se o trabalho no intento de voltar à Índia em quadra própria, para depois armar segundo a arte e fazer a viagem para o Reino. Tirou-se o mastro da gata, o qual foi entelhado e serviu para gurupés. Os mastros do brigue, com as carlingas no convés, passaram a ser os mastros grande e do traquete. Um mastaréu de gávea da fragata transformou-se em mastro da gata. A antena que viera para o brigue aparelhou-se em mastaréu do velacho. O de joanete, que partira o galope ao arriar, aproveitou-se para servir de mastaréu da gata. O da sobregata fez-se de um fuso da mezena, ficando a boca da carangueja sobre o mastro. A verga do traquete foi das meias vergas de papa-figos, que vinham a bordo nas antenas, e para a de velacho aproveitou-se a verga do traquete da escuna Angra, que levara baixa de serviço. As de seco e gata passaram a ser de grande e gávea e os restantes mastaréus de joanetes, vergas, paus de bujarrona e giba e de cutelos, bem assim caranguejas e retranca, arranjaram-se com os antigos apropriados e outros que havia a bordo. Um pau de mucrusse, comprado em terra, substituiu a madre do leme, aproveitando-se o resto do antigo. Valeu à fragata a farta antena de sobressalente, porque, apesar de lhe dar para remediar as suas avarias, ainda chegou para socorrer outros navios. Meia verga do velacho foi dada à corveta inglesa Pantaloon para madre do leme, que perdera encalhando ao S da baía de Pemba. O outro mastaréu de gávea foi dado à galera Jovem Carlota para servir de mastro grande, pois no canal, preste a soçobrar com a tormenta, picou o mastro da gata para arribar e este ao cair levou o outro, vindo a galera depois entrar em Moçambique. Por alguns dias após a monomocaia vieram arribando ao porto, mais ou menos destroçados, alguns navios. Eram os vencedores, ainda que feridos, do terrível combate com o vendaval; e dos perdidos não se soube a conta, faltando pangaios e barcos de cabotagem, de que não houve mais notícia e que naturalmente naufragaram durante a tempestade. No mar e em terra continuavam activamente os trabalhos da fragata. A bordo a marinhagem, dirigida pelos oficiais e mestrança, consertava os vaus reais, a tolda, as mesas, calafetava, e o bater dos maços rebatendo a estopa acompanhava o golpear do machado, da enxó e da plaina, afeiçoando os madeiros ao fabrico. Cortaram-se e fizeram-se duas andainas de pano, ajeitando às novas vergas o antigo e algum que se recebeu do arsenal da ilha, em grande parte o que fora da escuna Angra, e de outros navios velhos e que lá o tinham deixado armazenado. Descocharam-se os cabos velhos e os que tinham escapado do desarvoramento, compraram-se alguns novos no mercado, que estava pobremente fornecido, e emendados os bocados uns nos outros e por cada dois fios velhos adicionando um novo, assim se fabricou em proporcionada bitola todo o massame do navio. Debaixo das acácias do campo de São Gabriel foi estabelecida a cordoaria, dirigida pelo marinheiro José Afonso de Amarante, auxiliado por praças de marinhagem. Pelo magnífico serviço que prestou, bem digno era de avançar no caminho da fortuna, tanto quanto andara para trás a cochar os cabos, realizando-se nele o voto de um fidalgo célebre, o qual desejava este benefício para um outro, que contava um estrinqueiro das galés de el-rei entre os seus ilustres avoengos. Na roda de homens que formava a guarnição da fragata apareciam agora operários de todos os ofícios. Alguns que pouco valiam no emprego que a bordo desempenhavam, chamados ao meio especial em que tinham vivido antes de assentar praça, tornavam-se apreciáveis pelo trabalho produzido. O criado do comissário, bom torneiro, fez num torno emprestado pela canhoneira Mariana os raios e malaguetas para a roda do leme, malaguetas das mesas e escoteiras que faltavam, consertou e fabricou imenso poleame. O serralheiro Madeira - que depois foi primeiro-maquinista da Armada e sempre considerado como artista de valor -dirigiu em terra a oficina de ferreiros. Todas as ferragens para o leme e aparelho foram feitas no arsenal de Moçambique. Ia crescendo a olhos vistos a reparação das avarias. Uma embarcação convenientemente tripulada empregava-se diariamente em fazer aguada na cisterna grande de Mossoril. Para substituir o escaler que se perdeu, comprou-se um outro e consertou-se. Em 3 de Junho estava a fragata aparelhada e tudo com tanta segurança e bem proporcionado que prometia de si fazer viagem sem receio. Era a fragata navio de primeira marcha e talvez assim arranjada andasse tanto como a maioria dos navios do seu tempo. Faltava ir ao mar experimentá-la e depois o conselho decidiria se em época própria poderia montar o cabo da Boa Esperança e seguir viagem para Lisboa, com as escalas do costume. Informado o governador-geral, a 12 de Agosto largou a fragata para o canal, entrando no porto a 20. O resultado da experiência foi dos melhores e todos contaram como certa a volta para o Reino. A 20 de Outubro de 1862 largou a D. Fernando para Moçâmedes. Nunca o ferro se arrancou de melhor vontade e quando a Fortaleza de São Sebastião desapareceu no horizonte parecia que se entrava em vida nova. Moçambique não deixava saudades em ninguém. A 10 de Novembro montou o cabo. À vista do Prazo Tormentório, como se dizia no século quinhentista, passava a última nau de viagem da carreira da Ásia. A montanha da Mesa já demorava ao SE, muito longe. Carrega a vela ré e a maior. Cheio. Ala braços a barlavento. Cutelo do velacho vai fora e varredoura. A fragata enfunada deitou a caminho de Moçâmedes e a 21 fundeava na baía. Em 17 tocou em Benguela e a 23 entrou com a viração em Luanda e amarrou pelo través do arsenal da ilha. Em todas as escalas recebeu passageiros. Era a época das trovoadas e a guarnição começou a adoecer. Aproximava-se a época da grande carneirada, de terrível fama para os europeus, e como convinha trazer limpa a carta de saúde, tratava-se com empenho de fugir de Luanda sem tardar. Ainda assim só a 18 de Janeiro foi possível. Recebida a bordo a guarnição da escuna Cabo Verde e mais 83 passageiros, em geral gente pobre e debilitada pelas febres, a D. Fernando arrancou o ferro, mareou e finalmente empreendeu a viagem de Angola para o Reino. De proa a O até entrar no geral, manda o roteiro passar vinte léguas ao N da ilha da Ascensão; depois a E do penedo de São Pedro e dali a avistar os Açores e virar na volta de Portugal, que trazendo a polar no lais da gávea vireis desfechar com a barra de Lisboa. A 16 de Abril avistou-se o Faial. Na enfermaria existiam perto de 50 doentes e muitos mais havia que não baixavam para se não privarem dos escassos dois terços de ração. A dieta era arroz cozido em água e sal. Pão não havia. Em Angola o fornecimento de mantimentos fora modesto, contando-se com a brevidade da viagem. Não aconteceu assim. Pelo Atlântico andou a fragata esmolando pelos navios que passavam perto. A bordo andavam todos enfraquecidos e mal-humorados. Havia singraduras em que de quatro em quatro horas se mandava esgotar o porão de 17 polegadas de água. Quando viram os Açores alegraram-se, imaginando findar tanta miséria. Mas nem mesmo sobre vela se tratou de embarcar algum refresco. A fragata não teria livre prática, o vento podia saltar à travessia, era útil aproveitá-lo a caminho de Lisboa. Não haviam terminado ainda os contratempos. O vento abonançou e a fragata, em vez de navegar, abatia. Em 1 de Maio estava na altura de Larache, na costa marroquina. Por ali já o NNO era fresco e a fragata ganhava barlavento e a 7 estava à vista da costa de Portugal, 13 milhas ao N do cabo de São Vicente. Restavam no paiol quinze dias de mantimentos, a dois terços de ração, a 386 pessoas que a venciam, das quais 42 jaziam doentes, sem dietas, remédios poucos, e às quais o mal dia a dia agravava. Navio não se via por todo o horizonte e na longe terra nem um posto semafórico para se comunicar pelo código de sinais. Esperavam ansiosos pelo vapor da carreira do Algarve, mas o paquete não aparecia. À tarde avistou-se o vapor inglês Charante, em viagem para Liverpool e que deu reboque para conduzir a fragata à foz do Tejo. A nortada era rija e o mar de vaga, e não podendo o vapor romper largou-se o virador, prometendo o seu capitão vir a Lisboa dar aviso, dizendo o comandante da fragata continuar por mais seis dias bordejando, no fim dos quais, se ainda estivesse a sotavento da barra, iria arribado para Lagos. A 12 estava a fragata à vista de Sesimbra, onde ia despejar a bordada. A serra da Arrábida e o cabo Espichel, coroado pela torre do farol. recortavam o seu perfil no céu azul sem uma nuvem; e o norte descendo impetuoso pelas ravinas da montanha soprava fresco e a conservar-se firme, como tudo pressagiava, no outro dia devia a fragata entrar no Tejo. Viera de Moçambique ao cabo Espichel armada em guindolas e pouco faltava para fechar a derrota no porto de armamento. Podia dizer-se afoitamente que tinha realizado um grande feito, digno de figurar na História da Marinha. Às 7 horas demorava o farol por N 13° E, à distância arbitrada de 4 milhas. Ao alvorecer avistou-se ao N um navio de vapor, que mais tarde deitou para a fragata. Era a corveta nacional Sá da Bandeira, comandada pelo capitão-tenente João Baptista Garção. À sombra da terra a vaga caíra e a serra amparava das rajadas da nortada. Passou-se reboque e às 10 horas navegava a D. Fernando em demanda da barra de Lisboa. A bordo da fragata, no tombadilho, no castelo, aglomerava-se toda a guarnição e passageiros. Um ou outro barrete vermelho, destacando-se no grupo, dava uma nota de cor brilhante na mancha azulada das camisolas dos marujos. Pelas escotilhas surgiam os doentes, pálidos e enfraquecidos, a quem a vista da terra dava alentos. Olhavam alegres a boa terra portuguesa, o deslizar da água no costado, a esteira que a hélice da corveta revolvia, o enovelar do fumo, negra nuvem que o vento desfazia, jubilosos por andar a caminho do porto, que buscavam há tantos dias com tamanha ânsia de chegar. Não menor contemplação lhes merecia as peças de carne pendentes das enxárcias do rebocador, as couves e repolhos enchendo as embarcações miúdas, os cestos de laranjas oscilando nos vergueiros e para lá os olhos se alongavam seguindo a du1císsima miragem traiçoeira, porque, temendo a quarentena, nada tinham mandado àquela faminta e pobre gente quando o escaler viera debaixo das amuras entregar o chicote da sondareza, para se alar para bordo os viradores. Mas a serra de Sintra, já clara, avultava pela proa e daí a pouco a Guia, São Julião e o Bugio, as marcas da barra esplendidamente iluminadas pelo sol desenhavam-se nítidas no majestoso panorama da formosíssima enseada. Às 5 horas da tarde entrou de barra dentro, seguindo rio acima. A E da Torre de Belém largou-se o reboque e a fragata deu fundo. Eram 6 horas da tarde de 12 de Maio de 1863 e assim se deu por finda esta derrota. À noite, num camarote da coberta, cinco oficiais, que tinham sonhado com um jantar esplêndido numa das hospedarias da cidade e desprezado o magro rancho habitual da praça das armas, repartiam entre si um pão de meio quilo e um bule de chá sem açúcar, que o cirurgião conseguira adquirir na Repartição de Saúde por grande favor especial. Pouco depois deram-se as macas, tocou-se a silêncio e, cansada, a guarnição adormeceu. Nas águas do Tejo espelhava-se o vulto alteroso da nau da Índia, embalada pelo marulhar das ondas, desdobrando-se brandamente na praia do Restelo. Alvejava a casaria da cidade estendendo-se pela encosta, a rendilhada Torre de São Vicente de Belém, os coruchéus do mosteiro manuelino. O cenário e os trabalhos que vinham de sofrer davam motivo para inspirar sentimental canção romântica a algum guarda-marinha poeta que tivesse ficado na tolda de serviço, sonhando ainda com os palmeirais de Moçambique ou com as saudosas hortas de Moçâmedes. O silêncio da noite só a espaços era interrompido pelo bater das horas no sino do convés, pelo rumorejar da corrente de encontro ao talha-mar, pelo brado regulamentar das sentinelas de vigia. Ao alvorecer voltava à fragata a vida e movimento, dissipavam-se os sonhos de poética fantasia e a lenda das naus de viagem da carreira da Ásia começava pouco a pouco a esvaecer-se à medida que o Sol ia subindo, dourando de luz os mastros aprumados.