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Title: Marés de Mar
Author: Luísa Dacosta
CreationDate: Mon Jul 13 15:51:00 BST 2009
ModificationDate: Tue May 19 22:20:00 GMT 1970
Genre:
Description:
Marés de Mar
Luísa Dacosta
Marés de Mar resulta de uma compilação de crónicas extraídas dos livros A-Ver-O-Mar e Morrer a Ocidente, de Luísa Dacosta, que gentilmente autorizou esta publicação.
© 1997, Luísa Dacosta e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-89-8
Lisboa, Maio de 1997
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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MARÉS DE MAR
A-VER-O-MAR
De que cor é este mar, nunca igual e sempre diferente, de ritmos vários, cadenciado como o bater certo dos remos, inquieto como a ansiedade dos que trazem os afectos sobre as ondas, fervente como um cachão raivoso, quieto, quieto, marginado pela linha, rubra, do crepúsculo? De que cor é este mar, onde se miram nuvens e gaivotas, onde se esfriam e se apagam as estrelas da madrugada?
Azul. Azul, como o manto das imagens milagrosas. Azul, como o olhar perdido dos náufragos. Azul da cor da noite. Verde fel. Verde da cor dos limos. Verde da cor dos barcos. Loiro cor de areia, das tranças e do cordame. Ferrugem, cor das âncoras e das redes. Castanho cor do sargaço. Palhetado de sol e luz. Irisado, como as escamas dos peixes. Rosa, como certas algas e corais, como a garridice das blusas em dias festivos. Rosa, como as flores de papel do altar do padroeiro. Vermelho da cor das guelras. Sanguíneo. Violáceo, cor de tinta. Roxo, como uma quaresma líquida. Cinzento. Brumoso de névoa e mistério. Metálico, como uma roda de navalhas. Branco de sal e espuma. Branco da cor das velas. Negro, como as faixas das mulheres e o luto das viúvas. Sem cor, como a angústia das que não têm sequer um cadáver para velar.
Por ele navegam, sem destino, como bússolas doidas, para lá da linha do horizonte, do que a vista alcança, tentando rondar o desconhecido de outras paragens e ilhas, as saudades das noivas, das mulheres, cujo leito arrefece durante os seis meses de safra do bacalhau ou durante anos, à espera do emigrante que se foi e não voltou ainda. Nele se perde o olhar do Manuel Neto, todos os dias ancorado na areia, como um barco inútil, agora que o genro lhe tirou o comando do Temos Fé. Indiferente à nortada, alheio ao cigarro apagado, longamente se despe de deste mar traiçoeiro, que lhe roubou três filhos – <
> -deixando que os olhos se lhe encham de azul e distância e se lhe ceguem, de todo, na noite que desce, primeiro arroxeada, como um coração pisado, depois negrume e névoa, até que uma voz infantil o acorde: <<Ó Bô! Ó Bô! venha cear!>>
Nele se concentram, teimosamente, enxutos e duros, os pesares da Fátima que há três meses espera carta e todas as noites tem de amassar a certeza dessa mágoa com a esperança dumas letras, que alentem a sua carne viúva.
De que cor é este mar, de ondas que se britam nas Pedras do Canto e se desfazem em milhões e milhões de gotas translúcidas, frias como lágrimas? De que cor é este mar de saudade?
-É o que lhe digo. O mar tem jardins... Jardins, cheios de búzios, corais e concheiros…A areia é lá tão fina como o pó do oiro. As árvores são maores que pinheiros velhos e os peixes andam de galho em galho, como aqui os pássaros. Como sei? Ora sei, porque sei. Há coisas que a gente sabe com o coração, sem precisar de as ver. Mas olhe, que já uma vez andava com o Joaquim Poixo a pescar a mais de sessenta braças e me saiu enleado na nassa um ramo prufeito, mais lindo que uma palma, vindo dos jardins do mar. Bem olhei para o fundo, bem tentei descobrir, mas quê? Olhos de vivo não profundam segredos. E os mortos, mesmo os que dão à costa, são mudos como peixes. Aqui há anos perigaram três homens num barquito ali ao norte, pró Quião, pai, filho e sobrinho. Morreram sem tempo de um padre-nosso, à vista de terra, com a boquinha cheia de água. Passados dias, quando lhes rebentou o fel, o pai e o filho apareceram aboiados, de bruços, enormes, como barris à tona. Vieram encalhar aqui nas Pedras do Canto. Mas o outro nunca mais apareceu. As correntezas levaram-no para o alto, para lá da Forcada, para lá do rumo das traineiras, que andam à sardinha. Ninguém mais o viu. Ninguém mais soube dele. Mas eu futuro que devia ter descido aos jardins do mar, onde o sol não chega e onde não há escuridão de bréu. Os olhos dos peixes são como farolins e as cores tão fortes que alumeiam mais do que o lume, vivo, das estrelas. Os vermelhos espilram como sangue, as brancuras brilham como sal. E as algas são mais verdes do que o milho depois da chuva. E tudo bule, movido pelo vento das funduras, tudo lavado pelo cristal das águas... Será tolear de velho, será, e Deus me perdoe se nisto peco, pois sou cristão baptizado, mas se não fosse por ter de morrer com a boca cheia de água, que é morte ruim, não se me dava de ver aqueles jardins. Não deve de haver nada mais alindado. Olhe que até no rebotalho que o mar nos atira se conhecem aquelas prufeições. Já viu as cores do sargaço, quando sai à beirada? É mais macio que cabelo de mulher. A francelha, então, é uma penugem! E aquele encrespado do botelho? Não há coisa semeada por mão de homem que com aquilo tenha comparança. Eu até quando preparo a isca prá faneca cismo naquele azul do mexilhão aberto. Não há azul d'olhos que lhe faça sombra. Nem os da minha neta Deolinda e mais parecem contas de vidro. Ah! o mar tem lindezas ...mas quem as conhece? Quem se pode gabar de as ter visto com os olhos que a terra há-de comer?
Ao deslado da enseada ergue-se, solitária, a pedra. As marés submergem-na, mas todos os dias vem uma hora que descobre sua beleza, hirta, lavada e só.
Manhã de vento. Limpa de névoas e de nuvens. Na janela de terra, onde nasce o Sol, coroada de asas. Na janela do mar, onde o Sol se afoga, salina e azul.
São poucos os colmeiros de sargaço que bordejam a estrada, logo acima do acampamento, colorido e buliçoso, dos ciganos. Anesa escassa. Por isso se semeiam muitos pelas traineiras e pelos bancos de bacalhau. Ainda outro dia o Joaquim Serrinha, que se me tinha chegado para uma fala de boas-vindas, rematou judiciosamente à despedida:
-I-isto é b-boa t-t-terra para se c-comer o ga-g-ganhado, m-mas má p-pró g-ganhar!
Felizmente chegaram as marés vivas. E tem havido faina desde o amanhecer. Todos têm querido valer-se da fartura para terem com que culturar a batata do próximo ano. A praia tem estado transformada numa assembleia de famílias até lá para o norte, para o Quião, onde a azáfama não é de barcos nem de nassas -as grandes redes em forma de saca -de que aqui se servem os pescadores de adubo, porque o fundo é arenoso, mas de cortiços, que habilmente governam entre a penedia, enquanto segam o sargaço com o foicinhão.
Hoje é um louvor a Deus de barcos, que andam no baloiço das ondas. Senhora das Neves. S. Pedro. Sagrada Família. Vamos com Deus. E outros. Só o Fliz Ventura se quedou, abandonado à minha porta. E uma rapariguinha solitária, sem irmãos que a tornem mãe, balança-se numa corda, que lhe passou pela proa. Os rapazes divertem-se fazendo deslizar as canelas, como se fossem trenós, sobre os paus rolados. Mas às vezes um ou outro abandona a brincadeira à voz imperiosa da mãe:
-Ó desgraçado! Vai pegar na menina que está a chorar!
-Já aí vêm os nossos! Despacha-te, António!
A areia está toda revolvida pelo vai-e-vem carregado das carrelas que as mulheres, faixa preta a cingir-lhes os rins, transportam afanosamente. Já há quem estenda as primeiras colheitas e um ventinho fresco despenteia, nas gravetas, o dourado húmido e marinho do sargaço que, assim ao sol, tem a ondulação do cabelo das sereias.
Uma família traz um barco para riba, rolando-lhe a quilha ensebada sobre os paus anavalhados com a marca familiar. Outros esperam ainda o regresso dos seus. Mas quase não há palmo de areia que não tenha um talhão a enferrujar-se e a acastanhar-se ao sol.
Almoça-se, em grupos. Carrelas ao alto. Nassas e cordame a secar. Muitos não voltarão a fazer-se às ondas. Gente anfíbia, pés nos lameiros e braços nos remos, a tarde vão dá-la às leiras. O Maçães deu o trabalho por findo. Pita um cigarro e limpa o barco com o vertedouro. Ainda quer ir dar uma olhadela ao milhão.
-Pois que remédio! O dinheiro não chega para enfrentar tudo e a terra com zelo e cuidado sempre dá. Sempre são os feijões, as batatas, as couves pró caldo e o milhinho e o pão que se forram. Olhe os que só têm a arte! Lá andam na sardinha e no bacalhau, e se as coisas correm de feição, vêm cheios. Mas quê? Enquanto eles por lá andam as mulheres e os filhos passam nacidade e até fome. Quando chegam estão empenhados. Têm de comprar o comer e o vestir. Não chegam a forrar nada. Depois, sem ocupação, consumem o resto na taberna. O mar não chega para ocupar um homem. É só faina de Verão.
Este é o arrazoado do Maçães que tem terras, mas os que as não têm? Muitos nem leiras nem barco. São forçados a assoldadar-se aos dias e às manhãs e, como o ano tem sido falheiro, nem os pobres fazem uma mantinha de sargaço com a ajuda do ganha-pão.
Fim de tarde. Chegam as primeiras carroças que vêm recolher o sargaço estendido a secar. De súbito, uma voz rasga a praia: Arga-a-a-a-aço! Arga-a-a-a-aço! É como um toque a rebate. Vindas de todos os lados da aldeia acorrem mulheres armadas de ganha-pão e graveta. Parece um motim. Metidas na água até aos peitos, sem medo da viveza das ondas, nem do frio da nortada, dispõem-se a arrancar o pão ao mar.
Indiferentes, os das carroças continuam a carregar o sargaço que os familiares vão empadelando num jeito, todo agrícola. São os donos dos barcos e das terras. Podem desprezar aquela luta pelo sargaço da beirada. Podem deixá-la à Rosária que tem o homem empregado vai para dezoito meses. À Fé, à Elisa, à Fátima que deve na farmácia e tem a filha cada vez mais desolhada pela desinteria e pela rabugem dos dentes. Os filhos ajudam-nas e só os mais pequenos ficam na areia, embiocados em xailes. Alguns afoitam-se querendo mostrar-se adultos, até que as mães os repreendem:
-Arreda daí, alma danada! Não vês que o mar espanca muito?!
-Corá-á-á-lia! Corá-á-á-lia! Prá trás!
O Sol está a desaparecer sobre o mar, oleoso, castanho e violáceo, grosso ainda de ondas altas. As mulheres são, agora uma chusma escura, da cor dos penedos. Já poucas carroças estão na praia. Todos se apressam para a ceia. A nortada torna-se mais fria. Passam, também, as primeiras mulheres de regresso. Derreadas pela enorme corcunda do ganha-pão a escorrer, transformadas em animais de quatro patas, de tal maneira a carga as força a inclinarem-se. Assim vão até casa, pois aquele migalho nem vale a pena ser estendido na areia, secam-no à soleira. As águas começam a morrer e embatem já com menos fragor na Forcada. Em breve o sargaço desaparecerá. Passa outra mulher. Uma outra. Outra ainda. Procissão de animais, baços, na contraluz.
O mar é cada vez mais uma quietação carregada de sombras que a nortada parece acumular. Os barcos e os remos, ao alto, ganham uma imobilidade estática e nocturna. Pela praia, deserta, galopa um potro novo, que dois ciganos incitam na corrida.
Não tarda que a luz nasça.
Era neta e filha de pescadores. As suas raízes, como as das algas, estavam naquela imensidão de águas sem fim. Rosina sabia o mar como os seus dedos. Seu regalo eram as conchinhas, estrelas, ouriços, tintureiros, buzinas, que marcavam o rasto das ondas, onde, paciente, descobria seus tesouros.
Seus brincares as fontes, os corguinhos, os jardins da maré vaza, transparentes de areia lavada e quieta, riscados por cardumes gelatinosos, onde floriam, roxas, vermelhas, verdes, as anémonas e o mexilhão, aberto, oferecia o ferrete, azul, das suas conchas naufragadas.
Quando ia ajudar a varar o barco, o avô entregava-lhe a gamela das fanecas, que não iam à lota, as da ceia. E, quando no caminho de casa, ele lhe pegava ao colo, Rosina pedia:
-Vocemecê não me leva ao mar, avô?
-Tu és da terra. O nosso Quim é que se há-de afazer a ir connosco, quando deitar mais corpo.
-Ó avô, mas eu também queria ir...
E o avô ria daquela teimice de menina. Rosina amuava: já tão espigada e fazedeira e ninguém a tomava a sério... À hora da ceia, esquecida do amuo, insistia:
-Ó avô, como é o mar longe?
-Como queres tu que seja, rapariga! Como o daqui. Azul, sempre igual.
Aquilo dizia o avô para lhe calar a boca e poder falar à vontade com o pai das más pescarias e do tempo. O avô não era mentideiro e sabia que o mar não era sempre azul. E então o mar cinza, pescoço de pombo? E o mar branco, asa de gaivota? E o mar lombo de ruivo, ao entardecer? E o mar azul, azuis muitos, de mexilhão aberto? E o mar verde, verdes limos? Perigos teria. Havia de ter, pois sempre rezavam pelos que andavam sobre as ondas. E marés havia que não eram marés de mar, quando o avô e o pai rondavam a praia, se sentavam ao pé do barco, mas não se faziam às ondas, que rebentavam, ferventes, na enseada do sul, toldada pela ceguidão da névoa.
Depois clareava. Longe, passavam os navios, ao rés da linha, em que o mar tocava o céu. Que haveria para além? Nisso cismava Rosina. Deixara, porém de fazer perguntas. À noite, fechava-se, como uma anémona, quando se lhe toca e punha-se a sonhar. Fantasiava a outra margem da imensidão, onde molhava os pés à beirada. A barranha do penedo seria loura, como um favo. Lapas empenachadas de limo e botelho abririam boquinhas sôfregas, com o movimento das ondas, miúdas, de flor branca, empurradas por um ventinho brincalhão, que despenteasse as guelras vermelhas e denteadas das algas. Cardumes de peixes viriam comer-lhe à mão, como pintos. E brincaria aos quatro cantinhos com as pulgas que eternamente jogam aquele jogo no areal. Todas as noites, como quem acrescenta um beijinho novo à fiada de antigo colar, afeiçoava aquele sonho. Partia, numa barca de espumas feita, a todo o vento, para a outra margem do mar, para o longe sem fim, de além e distância. Todas as noites deixava a enseada, as camas de sargaço, estendidas a secar e se fazia às ondas e ao sonho. Como encontraria o caminho? Ora, as estrelas subiriam à tona para lhe indicar seu rumo, sem norte nem sul. E se friasse? Os peixes ruivos ou as fanecas lhe trariam um xalinho, arrendado, de chorão do mar, para agasalho e acabaria por chegar à outra margem, cheia de rochas-grutas, onde o seu nome: Rosina-ina-ina, som de bazio ficasse.
Quando o avô e o pai fumavam, cismentos, a menina desdobava, lenta, o novelo dos sonhos e partia na sua barca de espumas.
E todas as noites adormecia, antes de chegar à outra margem do mar.
Duas pancadas, conforme o combinado. Vi o relógio. Cinco menos um quarto. Quando a mãe da Rita e eu saímos para a noite, a nortada varria um mar cinzento de espuma batida, mas não as estrelas, altas e claras.
-Bom dia!
-Bom dia! Boa pesca!
Eram os que partiam para a faneca, na escuridão. Os cães dormiam ainda, mas a Rita já nos esperava. E, como a Clemência não tinha aparecido desandámos, ambas para o norte a chamá-la, pois pegavam a trabalhar às seis e até à Póvoa era um estirão. A Clemência bem o sabia e não demorou. Agora era andar a passo certo. Chegadas ao cruzeiro metemos a uma azinhaga -a do rio das cavaleiras que parecia um roteiro de estrelas.
- Não se podem contar – preveniu a Rita.
Pois não, eram tantas! Mas não era isso explicou: contar estrelas fazia crescer cravos nas mãos, conforme acreditava a credulidade dos seus quinze anos, tão causticados no trabalho. É duma família onde se trabalha duro e não tinha hesitado em aceitar aquele serviço, apesar da hora e das caminhadas, para ajudar ao pão comum. Ao meu lado, aconchegava-se na mantinha, que trouxera: acha que fria e que o tempo a pede. Em A-Ver-O-Mar diz-se: <