Naufrágio de Sepúlveda HistóriaJ]µ„-ÆÀ-ÆÀTEXtREAdÿÿÿm ¶ÄÄ Ä0Ä@ÄPÄ`ÄpÄ€ÄÄ Ä°ÄÁF Title: Naufrágio de Sepúlveda "História Trágico-Marítima" Author: Bernardo Gomes de Brito CreationDate: Wed Jul 15 11:55:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Feb 04 18:20:00 GMT 1970 Genre: Description: Naufrágio de Sepúlveda "História Trágico-Marítima" Bernardo Gomes de Brito Titulo Original Naufrágio do Galeão Grande "São João" na Terra do Natal no Ano de 1552. © 1996, Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8127-37-5 Lisboa, Julho de 1996. Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** NAUFRÁGIO DE SEPÚLVEDA Naufrágio do galeão grande <> na terra do Natal no ano de 1552 Partiu neste galeão Manuel de Sousa, que Deus perdoe, para fazer esta desaventurada viagem de Cochim, a três de Fevereiro do ano de cinquenta e dous. E partiu tão tarde por ir carregar o Coulão, e lá haver pouca pimenta, onde carregou obra de quatro mil e quinhentas, e veio a Cochim acabar de carregar a cópia de sete mil e quinhentas por toda com muito trabalho por causa da guerra que havia no Malavar. E com esta carga se partiu para o Reino podendo levar doze mil; e ainda que a nau levasse pouca pimenta, nem por isso deixou de ir muito carregada de outras mercadorias, no que se havia de ter muito cuidado pelo grande risco que correm as naus muito carregadas. A treze de Abril veio Manuel de Sousa haver vista da costa do Cabo em trinta e dous graus, e vieram ter tanto dentro, porque havia muitos dias que eram partidos da Índia, e tardaram muito em ver o Cabo por causa das ruins velas que traziam, que foi uma das causas e a principal de seu perdimento; porque o piloto André Vaz fazia seu caminho para ir à terra do cabo das Agulhas, e o capitão Manuel de Sousa lhe rogou que quisesse ir ver a terra mais perto; e o piloto por lhe fazer a vontade, o fez: pela qual razão foram ver a Terra do Natal, e estando à vista dela, se lhe fez o vento bonança, e foi correndo a costa até ver o cabo das Agulhas, com prumo na mão, e sondando; e eram os ventos tais, que se um dia ventava levante, outro se levantava poente. E sendo já em onze de Março eram nordeste, sudoeste, com o cabo de Boa Esperança vinte e cinco léguas ao mar, ali lhe deu o vento oeste, e oés-noroeste com muitos fuzis. E sendo perto da noite o capitão chamou o mestre, e o piloto, e lhes perguntou que deviam fazer com aquele tempo, pois lhe era pela proa, e todos responderam, que era bom conselho arribar. As razões que davam para arribar, foram que a nau era muito grande, e muito comprida, e ia muito carregada de caixaria, e de outras fazendas, e não traziam já outras velas, senão as que traziam nas vergas, que a outra esquipação levou um temporal que lhe deu na Linha, e estas eram rotas, que se não fiavam nelas; e que se parassem, e o tempo crescesse, e lhe fosse necessário arribar, lhe poderia o vento levar as outras velas que tinham, que era prejuízo para sua viagem, e salvação, que não havia na nau outras; e tais eram aquelas que traziam, que tanto tempo punham em as remendar, como em navegar. E uma das cousas por que não tinham dobrado o Cabo a este tempo, foi pelo tempo que gastavam em as amainar para coserem; e portanto o bom conselho era arribar com os papa-figos grandes ambos baixos, porque dando-lhe somente a vela de proa, era tão velha, que estava mui certo levar-lha o vento da verga pelo grande peso da nau, e ambos juntos um ajudaria ao outro. E vindo assim arribando, que seriam cento e trinta léguas do Cabo, lhe virou o vento ao nordeste, e ao lés-nordeste tão furioso que os fez outra vez correr ao sul, e ao sudoeste; e como o mar que vinha feito de poente, e o que o levante fez meteu tanto mar, que cada balanço que o galeão tomava, parecia que o metia no fundo. E assim correram três dias, e ao cabo deles lhe tornou o vento a acalmar, e ficou o mar tão grande, e trabalhou tanto a nau, que perdeu três machos do leme so-os polegar em que está toda a perdição, ou salvação de uma nau. E isto se não sabia de ninguém, somente o carpinteiro da nau que foi a ver o leme, e achou falta dos ferros, e então se veio ao mestre, e lho disse em segredo, que era um Cristóvão Fernandes da Cunha o Curto. E ele respondeu como bom oficial, e bom homem, que tal cousa não dissesse ao capitão, nem a outra nenhuma pessoa por não causar terror, e medo na gente, e assim o fez. Andando assim neste trabalho, tornou-lhe outra vez a faltar o vento a lés-sudoeste, e temporal desfeito, e já então parecia que Deus era servido do fim que ao despois tiveram. E indo com a mesma vela arribando outra vez, lançando-lhe o leme à banda, não quis a nau dar por ele, e toda se pôs de ló; o vento que era bravo lhe levou o papa-figo da verga grande. Quando se viram sem vela, e que não havia outra, acudiram com diligência a tomar a vela de proa, e se quiseram antes aventurar a ficar de mar em través, que ficarem sem nenhuma vela. O traquete de proa não era ainda acabado de tomar quando se a nau atravessou, e em se atravessando lhe deram três mares tão grandes, que dos balanços que a nau deu lhe arrebentaram os aparelhos e costeiras da banda de bombordo, que não lhe ficaram mais que as três dianteiras. E vendo-se com os aparelhos quebrados, e sem nenhuma enxárcia no mastro daquela banda, lançaram a mão a uns viradores para fazerem uns brandais. E estando com esta obra na mão andava o mar muito grosso, e lhes pareceu que por então era obra escusada, e que era melhor conselho cortarem o mastro pelo muito que a nau trabalhava; o vento e o mar era tamanho que lhe não consentia fazer obra nenhuma, nem havia homem que se pudesse ter em pé. Estando com os machados nas mãos começando já a cortar vem supitamente arrebentar o mastro grande por cima das polés das coroas, como se o cortaram de um golpe, e pela banda do estibordo o lançou o vento ao mar com a gávea, e enxárcia, como que fora uma cousa muito leve; e então lhe cortaram os aparelhos, e enxárcia da outra banda, e todo junto se foi ao mar. E vendo-se sem mastro, nem verga fizeram no pé do mastro grande que lhe ficou, um mastaréu de um pedaço de entena bem pregada, e com as melhores arreataduras que puderam: e nele guarneceram uma verga para a vela da guia, e da outra entena fizeram uma verga para paga-figo, e com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer esta verga grande; e outro tanto fizeram para o mastro de proa; e ficou isto tão remendado e fraco, que bastava qualquer vento para lhos tornar a levar. E como tiveram tudo guarnecido deram às velas com o vento su-suéste. E como o leme vinha já com três ferros menos, que eram os principais, não lhe quis a nau governar, senão com muito trabalho, e já então as escotas lhe serviam de leme. E indo assim, foi o vento crescendo, e a nau aguçou de ló, e pôs-se toda à corda, sem querer dar pelo leme, nem escotas. E desta vez lhe tornou a levar o vento a vela grande, e a que lhes servia de guia; e vendo-se outra vez desaparelhados de velas, acudiram à vela da proa, e então se atravessou a nau, e começou de trabalhar: e por o leme ser podre um mar que lhe então deu, lho quebrou pelo meio, e levou-lhe logo ametade, e todos os machos ficaram metidos nas fêmeas. Por onde se deve ter grande recato nos lemes, e velas das naus, por causa de tantos trabalhos, quantos são os que nesta carreira se passam. Quem entender bem o mar, ou todos os que nisto bem cuidarem, poderão ver qual ficaria Manuel de Sousa com sua mulher, e aquela gente, quando se visse em uma nau em Cabo de Boa Esperança, sem leme, sem mastro, e sem velas, nem de que as poder fazer; e já neste tempo trabalhava a nau tanto, e fazia tanta água, que houveram por melhor remédio para se não irem ao fundo a pique cortarem o mastro da proa que lhe fazia abrir a nau; e estando para o cortar lhe deu um mar tão grande que lho quebrou pelos tamboretes, e lho lançou ao mar sem eles porem mais trabalho que o que tiveram em lhe cortar a enxárcia; e ao cair do mastro deu um golpe muito grande no gurupés, que lho lançou fora da carlinga, e lho meteu por dentro da nau quase todo; e ainda foi algum remédio para lhe ficar alguma árvore; mas como tudo eram prognósticos de maiores trabalhos, nenhuma diligência por seus pecados lhe aproveitava. Ainda a este tempo, não tinham vista da terra, depois que arribaram do Cabo, mas seriam dela quinze até vinte léguas. Desde que se viram sem mastro, sem leme, e sem velas, ficou-lhe a nau lançada no bordo da terra: e vendo-se Manuel de Sousa, e oficiais sem nenhum remédio, determinaram o melhor que puderam de fazer um leme, e de alguma roupa que traziam de mercadorias, fazerem algum remédio de velas, com que pudessem vir a Moçambique. E logo com muita diligência repartiram a gente, parte na obra do leme, e parte em guarnecer alguma árvore, e a outra em fazer alguma maneira de velas, e nisto gastariam dez dias. E tendo o leme feito, quando o quiseram meter, lhe ficou estreito e curto, e não lhe serviu; e todavia deram às velas que tinham, para ver se haveria algum remédio de salvação, e foram para lançar o leme, e a nau lhe não quis governar de nenhum modo, porque não tinham a bitola do outro que o mar lhe levara, e já então tinham vista da terra. E isto era aos oito de Junho; e vendo-se tão perto da costa, e que o mar e o vento os ia levando para a terra, e que não tinham outro remédio senão ir varar, e por se não irem ao fundo, se encomendaram a Deus, e já então ia a nau aberta, que por milagre de Deus se sustentava sobre o mar. Vendo-se Manuel de Sousa tão perto da terra, e sem nenhum remédio, tomou o parecer de seus oficiais, e todos disseram, que para remédio de salvarem suas vidas do mar, era bom conselho deixarem-se ir assim até serem em dez braças, e como achassem o dito fundo surgissem para lançarem o batel fora para sua desembarcação; e lançaram logo uma manchua com alguns homens que fossem vigiar a praia, onde dava melhor jazigo para poderem desembarcar, com acordo, que tanto que surgissem no batel, e na manchua, depois da gente ser desembarcada, tirarem o mantimento, e armas que pudessem, que a mais fazenda que do galeão se podia salvar, era para mais perdição sua, por causa dos cafres que os haviam de roubar. E sendo assim com este conselho, foram arribando ao som do mar e vento, alargando de uma banda, e caçando da outra; já o leme não governava com mais de quinze palmos de água debaixo da coberta. E indo já a nau perto de terra, lançaram o prumo, e acharam ainda muito fundo, e deixaram-se ir: e dali a um grande espaço, tornou a manchua à nau, e disse que perto dali havia uma praia onde poderiam desembarcar, se a pudessem tomar; e que tudo o mais era rocha talhada, e grande penedia, onde não havia maneira de salvação. Verdadeiramente que cuidarem os homens bem nisto, faz grande espanto! Vem com este galeão varar em terra de cafres, havendo-o por melhor remédio para suas vidas, sendo este tão perigoso: e por aqui verão para quantos trabalhos estavam guardados Manuel de Sousa, sua mulher, e filhos. Tendo já recado da manchua, trabalharam por ir contra aquela parte, onde lhe demorava a praia, até chegarem ao lugar, que a manchu a lhe tinha dito, e já então eram sete braças, onde largaram uma âncora, e após isso com muita diligência guarneceram aparelhos, com que lançaram fora o batel. A primeira cousa que fizeram, como tiveram batel fora, foi portar outra âncora à terra, e já o vento era mais bonança, e o galeão estava da terra dois tiros de besta. E vendo Manuel de Sousa como o galeão se lhe ia ao fundo sem nenhum remédio, chamou ao mestre, e piloto, e disse-lhes, que a primeira cousa que fizessem fosse pô-lo em terra com sua mulher e filhos, com vinte homens, que estivessem em sua guarda, e após isso tirasse as armas, e mantimentos, e pólvora, e alguma roupa de Cambraia, para ver se havia na terra alguma maneira de resgate de mantimentos. E isto com fundamento de fazer forte naquele lugar com tranque iras de pipas, e fazerem ali algum caravelão da madeira da nau, em que pudessem mandar recado a Sofala. Mas como já estava de cima, que acabasse este capitão com sua mulher, e filhos, e toda sua companhia, nenhum remédio se podia cuidar, a que a fortuna não fosse contrária; que tendo este pensamento de ali se fazer forte, lhe tornou o vento a ventar com tanto ímpeto, e o mar cresceu tanto, que deu com o galeão à costa, por onde não puderam fazer nada do que cuidaram. A este tempo Manuel de Sousa, sua mulher, e filhos, e obra de trinta pessoas em terra, e toda a mais gente estava no galeão. Dizer o perigo que tiveram na desembarcação o capitão, e sua mulher com estas trinta pessoas, fora escusado; mas por contar história verdadeira, e lastimosa, direi, que de três vezes que a manchua foi à terra se perdeu, donde morreram alguns homens, dos quais, um era o filho de Bento Rodrigues: e até então o batel não tinha ido à terra, que não ousavam de o mandar, porque o mar andava mui bravo, e por a manchu a ser mais leve, escapou aquelas duas vezes primeiras. Vendo o mestre, e piloto, com a mais gente que ainda estava na nau, que o galeão ia sobre a amarra da terra, e entenderem que a amarra de mar se lhe cortara, porque o fundo era sujo, e havia dois dias que estavam surtos, e em amanhecendo ao terceiro dia, que viram que o galeão ficava só sobre a amarra da terra, e o vento começava a ventar, disse o piloto à outra gente, a tempo que já a nau tocava: <>, e se foi embarcar, e fez embarcar o mestre, que era homem velho, e a quem falecia já o espírito por sua idade; e com grande trabalho, por ser o vento forte, se embarcaram no dito batel obra de quarenta pessoas, e o mar andava tão grosso em terra, que deitou o batel em terra feito em pedaços na praia. E quis Nosso Senhor, que desta batelada não morreu ninguém, que foi milagre, porque antes de vir a terra o soçobrou o mar. O capitão, que o dia antes se desembarcara, andava na praia esforçando os homens, e dando a mão aos que podia, os levava ao fogo que tinha feito, porque o frio era grande. Na nau ficaram ainda o melhor de quinhentas pessoas, a saber: duzentos portugueses, e os mais escravos; em que entrava Duarte Fernandes contramestre do galeão, e o guardião; e estando ainda assim a nau, que já dava muitas pancadas, lhes pareceu bom conselho alargarem a amarra por mão, por que fosse a nau bem à terra, e não a quiseram cortar por que a ressaca os não tornasse para o pego; e como a nau se assentou, em pouco espaço se partiu pelo meio, a saber do mastro avante um pedaço, e outro do mastro à ré, e daí a obra de uma hora aqueles dous pedaços se fizeram em quatro, e como as aberturas foram arrombadas, as fazendas, e caixas vieram acima, e a gente que estava na nau, se lançou sobre a caixaria, e madeira à terra. Morreram em se lançando, mais de quarenta portugueses, e setenta escravos; a mais gente veio à terra por cima do mar, e alguma por baixo, como o Nosso Senhor aprouve; e muita dela ferida dos pregos, e madeira. Dali a quatro horas era o galeão desfeito, sem dele aparecer pedaço tamanho como uma braça, e tudo o mar deitou em terra, com grande tempestade. E a fazenda que no galeão ia, assim del-rei, como de partes, dizem que valia um conto de ouro: porque desde que a Índia é descoberta, até então não partiu nau de lã tão rica. E por se desfazer a nau em tantas migalhas, não pôde o capitão Manuel de Sousa fazer a embarcação que tinha determinado, que não ficou batel, nem cousa sobre que pudesse armar o caravelão, nem de que o fazer, por onde lhe foi necessário tomar outro conselho. Vendo o capitão, e sua companhia, que não tinham remédio de embarcação, com conselho dos seus oficiais, e dos homens fidalgos, que em sua companhia levava, que era Pantaleão de Sá, Tristão de Sousa, Amador de Sousa, e Diogo Mendes Dourado de Setúbal. Assentaram que deviam de estar naquela praia, onde saíram do galeão, alguns dias, pois ali tinham água, até lhe convalescerem os doentes. Então fizeram suas tranqueiras de algumas arcas, e pipas, e estiveram ali doze dias, e em todos eles lhe não veio falar nenhum negro da terra; somente aos três primeiros apareceram nove cafres em um outeiro, e ali estariam duas horas, sem terem nenhuma fala connosco; e como espantados se tornaram a ir. E dali a dous dias lhe pareceu bem mandarem um homem, e um cafre do mesmo galeão, para ver se achavam alguns negros, que com eles quisessem falar para resgatarem algum mantimento. E estes andaram lá dous dias sem acharem pessoa viva, senão algumas casas de palha despovoadas, por onde entenderam, que os negros fugiram com medo, e então se tornaram ao arraial, e em algumas das casas acharam frechas metidas, que dizem que é o seu sinal de guerra. Dali a três dias, estando naquele lugar, onde escaparam do galeão, lhe apareceram em um outeiro sete, ou oito cafres com uma vaca presa, e por acenos os fizeram os cristãos descer abaixo, e o capitão com quatro homens foi falar com eles, e depois de os ter seguros, lhe disseram os negros por acenos, que queriam ferro. Então o capitão mandou pôr meia dúzia de pregos, e lhos amostrou, e eles folgaram de os ver, e se chegaram então mais para os nossos, e começaram a tratar o preço da vaca, e estando já concertados, apareceram cinco cafres em outro outeiro, e começaram a bradar por sua língua, que não dessem a vaca a troco de pregos. Então se foram estes cafres, levando consigo a vaca, sem falar palavra. E o capitão lhe não quis tomar a vaca, tendo dela mui grande necessidade para sua mulher, e filhos. Assim esteve sempre com muito cuidado, e vigia, levantando-se cada noite três e quatro vezes a rondar os quartos, o que era grande trabalho para ele; e assim estiveram doze dias até que a gente lhe convalesceu; no cabo dos quais vendo que já estavam todos para caminhar, os chamou a conselho, sobre o que deviam fazer, e antes de praticarem o caso, lhes fez uma fala desta maneira. Amigos e senhores; bem vedes o estado a que por nossos pecados somos chegados, e eu creio verdadeiramente que os meus só bastavam para por eles sermos postos em tamanhas necessidades, como vedes que temos; mas é Nosso Senhor tão piedoso, que ainda nos faz tamanha mercê, que nos não fôssemos ao fundo naquela nau, trazendo tanta quantidade de água debaixo das cobertas; prazerá a ele, que pois foi servido de nos levar a terra de cristãos, e os que nesta demanda acabaram com tantos trabalhos, haverá por bem que sejam para salvação de suas almas. Estes dias, que aqui estivemos, bem vedes, senhores, que foram necessários para nos convalescerem os doentes que trazíamos; já agora, Nosso Senhor seja louvado, estão para caminhar; e portanto vos ajuntei aqui para assentarmos que caminho havemos de tomar para remédio de nossa salvação, que a determinação, que trazíamos de fazer alguma embarcação, se nos atalhou como vistes, por não podermos salvar da nau cousa nenhuma, para a podermos fazer. E pois senhores e irmãos, vos vai a vida, como a mim, não será razão fazer, nem determinar cousa sem conselho de todos. Uma mercê vos quero pedir, a qual é que me não desampareis, nem deixeis, dado caso que eu não posso andar tanto, como os que mais andarem, por causa de minha mulher, e filhos. E assim todos juntos quererá Nosso Senhor pela sua misericórdia ajudar-nos. Depois de feita esta fala, e praticarem todos no caminho que haviam de fazer, visto não haver outro remédio, assentaram que deviam de caminhar com a melhor ordem que pudessem ao longo dessas praias caminho do rio, que descobriu Lourenço Marques, e lhe prometeram de nunca o desamparar: e logo o puseram por obra; ao qual rio haveria cento e oitenta léguas por costa, mas eles andaram mais de trezentas pelos muitos rodeios, que fizeram em quererem passar os rios, e brejos, que achavam no caminho: e despois tornavam ao mar, no que gastaram cinco meses e meio. Desta praia onde se perderam em 31. graus aos sete de Julho de cinquenta e dous, começaram a caminhar com esta ordem, que se segue: a saber Manuel de Sousa com sua mulher e filhos com oitenta portugueses, e com escravos, e André Vaz o piloto na sua companhia com uma bandeira com um crucifixo erguido, caminhava na vanguarda, e D. Leonor sua mulher, levavam-na escravos em um andor. Logo atrás vinha o mestre do galeão com a gente do mar, e com as escravas. Na retaguarda caminhava Pantaleão de Sá com o resto dos portugueses, e escravos, que seriam até duzentas pessoas, e todas juntas seriam quinhentas; das quais eram cento e oitenta portugueses. Desta maneira caminharam um mês com muitos trabalhos, fomes, e sedes, porque em todo este tempo não comiam senão o arroz que escapara do galeão, e algumas frutas do mato, que outros mantimentos da terra não achavam, nem quem os vendesse; por onde passaram tão grande esterilidade, qual se não pode crer, nem escrever. Em todo este mês poderiam ter caminhado cem léguas: e pelos grandes rodeios, que faziam no passar dos rios, não teriam andado trinta léguas por costa: e já então tinham perdidas dez, ou doze pessoas; só um filho bastardo de Manuel de Sousa de dez ou onze anos, que vindo já muito fraco de fome, ele, e um escravo, que o trazia às costas, se deixaram ficar atrás. Quando Manuel de Sousa perguntou por ele, que lhe disseram que ficava atrás obra de meia légua, esteve para perder o sizo, e por lhe parecer que vinha na traseira com seu tio Pantaleão de Sá, como algumas vezes acontecia, o perdeu assim; e logo prometeu quinhentos cruzados a dous homens, que tornassem em busca dele, mas não houve quem os quisesse aceitar, por ser já perto da noite, e por causa dos tigres, e leões; porque como ficava o homem atrás, o comiam; por onde lhe foi forçado não deixar o caminho que levava, e deixar assim o filho, onde lhe ficaram os olhos. E aqui se poderá ver quantos trabalhos foram os deste fidalgo antes de sua morte. Era também perdido António de Sampaio sobrinho de Lopo Vaz de Sampaio, governador que foi da Índia: e cinco, ou seis homens portugueses, e alguns escravos de pura fome, e trabalho do caminho. Neste tempo tinham já pelejado algumas vezes, mas sempre os cafres levavam a pior, e em uma briga lhe mataram Diogo Mendes Dourado, que até sua morte tinha pelejado mui bem como valente cavaleiro. Era tanto o trabalho, assim da vigia, como da fome, e caminho, que cada dia desfalecia mais a gente, e não havia dia que não ficasse uma ou duas pessoas por essas praias, e pelos matos, por não poderem caminhar; e logo eram comidos dos tigres, e serpentes, por haver na terra grande quantidade. E certo, que ver ficar estes homens, que cada dia lhe ficavam vivos por esses desertos, era cousa de grande dor e sentimento para uns, e para outros; porque o que ficava, dizia aos outros que caminhavam de sua companhia, porventura a pais, e a irmãos, e amigos, que se fossem muito embora, que os encomendassem ao Senhor Deus. Fazia isto tamanha mágoa ver ficar o parente, e o amigo sem lhe poder valer, sabendo que dali a pouco espaço havia de ser comido de feras alimárias; que pois faz tanta mágoa a quem o ouve, quanta mais fará a quem o viu e passou. Com grandíssima desaventura indo assim prosseguindo, ora se metiam no sertão a buscar de comer, e a passar rios, e se tornavam ao longo do mar subindo serras mui altas; ora descendo outras de grandíssimo perigo: e não bastavam ainda estes trabalhos, senão outros muitos, que os cafres lhe davam. E assim caminharam obra de dous meses e meio, e tanta era a fome, e a sede que tinham, que os mais dos dias aconteciam cousas de grande admiração, das quais contarei algumas mais notáveis. Aconteceu muitas vezes entre esta gente vender-se um púcaro de água de um quartilho por dez cruzados, e em um caldeirão que levava quatro canadas, se fazia cem cruzados; e porque nisto às vezes havia desordem, o capitão mandava buscar um caldeirão dela, por não haver outra vasilha maior na companhia, e dava por isso a quem a ia buscar cem cruzados: e ele por sua mão a repartia, e a que tomava para sua mulher, e filhos, era a oito e dez cruzados o quartilho; e pela mesma maneira repartia a outra, de modo que sempre pudesse remediar, que com o dinheiro, que em dia se fazia naquela água, ao outro houvesse quem a fosse buscar, e se pusesse a esse risco pelo interesse. E além disto passavam grandes fomes, e davam muito dinheiro por qualquer peixe que se achava na praia, ou por qualquer animal do monte. Vindo caminhando por suas jornadas, segundo era a terra que achavam, e sempre com os trabalhos que tenho dito: seriam já passados três meses que caminhavam com determinação de buscar aquele rio de Lourenço Marques, que é a aguada de Boa Paz. Havia já muitos dias que se não mantinham senão de frutas, que acaso se achavam, e de ossos torrados: e aconteceu muitas vezes vender-se no arraial uma pele de uma cobra por quinze cruzados: e ainda que fosse seca a lançavam na água, e assim a comiam. Quando caminhavam pelas praias, mantinham-se com marisco, ou peixe, que o mar lançava fora. E no cabo deste tempo vieram ter com um cafre, senhor de duas aldeias, homem velho, e que lhes pareceu de boa condição, e assim o era pelo agasalho, que nele acharam, e lhes disse, que não passassem dali, que estivessem em sua companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse; porque na verdade aquela terra era falta de mantimentos, não por ela os deixar de dar, senão porque os cafres são homens que não semeiam senão muito pouco, nem comem senão do gado bravo que matam. Assim que este rei cafre apertou muito com Manuel de Sousa, e sua gente que estivera com ele, dizendo-lhe que tinha guerra com outro rei, por onde eles haviam de passar, e queria sua ajuda: e que se passassem avante, que soubessem certo que haviam de ser roubados deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira que pelo proveito, e ajuda que esperava desta companhia, e também pela notícia que já tinha de portugueses por Lourenço Marques, e António Caldeira, que ali estiveram, trabalhava quanto podia, por que dali não passassem; e estes dous homens lhe puseram nome Garcia de Sá, por ser velho, e ter muito o parecer com ele, e ser bom homem, que não há dúvida, senão que em todas as nações há maus, e bons; e por ser tal fazia agasalhos; e honrava aos portugueses: e trabalhou quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhe que haviam de ser roubados daquele rei com que ele tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis dias. Mas como parece que estava determinado acabar Manuel de Sousa nesta jornada com a maior parte de sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste reizinho, que os desenganava. Vendo o rei, que todavia o capitão determinava de se partir dali, lhe pediu que antes que se partisse, o quisesse ajudar com alguns homens de sua companhia contra um rei, que atrás lhe ficava; e parecendo-lhe a Manuel de Sousa, e aos portugueses, que se não podiam escusar de fazer o que lhe pedia, assim pelas boas obras, e agasalho, que dele receberam, como por razão de o não escandalizar, que estava em seu poder, e de sua gente; pediu a Pantaleão de Sá seu cunhado, que quisesse ir com vinte homens portugueses ajudar ao rei seu amigo; foi Pantaleão de Sá com os vinte homens, e quinhentos cafres, e seus capitães, e tornaram atrás por onde eles já tinham passado seis léguas, e peleijaram com um cafre, que andava levantado, e tomaram-lhe todo o gado, que são os seus despojos, e trouxeram-no ao arraial adonde estava Manuel de Sousa com el-rei, e nisto gastaram cinco ou seis dias. Depois que Pantaleão de Sá veio daquela guerra em que foi ajudar ao reizinho, e a gente que com ele foi, e descansou do trabalho que lá tiveram; tornou o capitão a fazer conselho sobre a determinação de sua partida, e foi tão fraco, que assentaram que deviam de caminhar, e buscar aquele rio de Lourenço Marques, e não sabiam que estavam nele. E porque este rio é o da água de Boa Paz com três braços, que todos vêm entrar ao mar em uma foz, e eles estavam no primeiro: E sem embargo de verem ali uma gota vermelha, que era sinal de virem já ali portugueses, os cegou a sua fortuna, que não quiseram senão caminhar avante. E porque haviam de passar o rio, e não podia ser senão em almadias, por ser grande, quis o capitão ver se podia tomar sete ou oito almadias, que estavam fechadas com cadeias, para passar nelas o rio, que el-rei não lhes queria dar, porque toda a maneira buscava para não passarem, pelos desejos que tinha de os ter consigo. E para isso mandou certos homens a ver se podiam tomar as almadias; dous dos quais vieram e disseram que lhe era cousa dificultosa para se poder fazer. E os que se deixaram ficar já com malícia, houveram uma das almadias à mão, e embarcaram-se nela, e foram-se pelo rio abaixo, e deixaram a seu capitão. E vendo ele que nenhuma maneira havia de passar o rio, senão por vontade do rei, lhe pediu o quisesse mandar passar da outra banda nas suas almadias, e que ele pagaria bem à gente que os levasse; e pelo contentar lhe deu algumas das suas armas, por que o largasse, e o mandasse passar. Então o rei foi em pessoa com ele, e estando os portugueses receosos de alguma traição ao passar do rio, lhe rogou o capitão Manuel de Sousa, que se tornasse ao lugar com sua gente, e que o deixasse passar à sua vontade com a sua, e lhe ficassem somente os negros das almadias. E como no reizinho negro não havia malícia, mas antes os ajudava no que podia, foi cousa leve de acabar com ele que se tornasse para o lugar, e logo se foi, e deixou passar à sua vontade. Então mandou Manuel de Sousa passar trinta homens da outra banda nas almadias, com três espingardas; e como os trinta homens foram da outra banda, o capitão, sua mulher e filhos passaram além, e após eles toda a mais gente, e até então nunca foram roubados, e logo se puseram em ordem de caminhar. Haveria cinco dias que caminhavam para o segundo rio, e teriam andado vinte léguas quando chegaram ao rio do meio, e ali acharam negros, que os encaminharam para o mar, e isto era já ao sol-posto; e estando à borda do rio, viram duas almadias grandes, e ali assentaram o arraial em uma areia onde dormiram aquela noite; e este rio era salgado, e não havia nenhuma água doce ao redor, senão uma que lhe ficava atrás. E de noite foi a sede tamanha no arraial, que se houveram de perder; quis Manuel de Sousa mandar buscar alguma água, e não houve quem quisesse ir menos de cem cruzados cada caldeirão, e os mandou buscar, e em cada um dia fazia duzentos; e se o não fizera assim, não se pudera valer. E sendo o comer tão pouco como atrás digo, a sede era desta maneira; porque queria Nosso Senhor que a água lhe servisse de mantimentos. Estando naquele arraial ao outro dia perto da noite, viram chegar as três almadias de negros, que lhe disseram por uma negra do arraial, que começava já entender alguma cousa, que ali viera um navio de homens como eles, e que já era ido. Então lhe mandou dizer Manuel de Sousa se os queriam passar da outra banda: e os negros responderam, que era já noite (porque cafres nenhuma cousa fazem de noite) que ao outro dia os passariam se lhe pagasse. Como amanheceu vieram os negros com quatro almadias, e sobre preço de uns poucos de pregos, começaram a passar a gente, passando primeiro o capitão alguma gente para guarda do passo, e embarcando-se em uma almadia com sua mulher e filhos, para da outra banda esperar o resto da sua companhia; e com ele iam as outras três almadias carregadas de gente. Também se diz que o capitão vinha já naquele tempo maltratado do miolo, da muita vigia, e muito trabalho, que carregou sempre nele, mais que em todos os outros. E por vir já desta maneira, e cuidar que lhe queriam os negros fazer alguma traição, lançou mão à espada, e arrancou dela para os negros, que iam remando dizendo: <> Vendo os negros a espada nua, saltaram ao mar, e ali esteve em risco de se perder. Então lhe disse sua mulher, e alguns que com eles iam, que não fizesse mal aos negros, que se perderiam. Em verdade, quem conhecera a Manuel de Sousa, e soubera sua discrição, e brandura, e lhe vira fazer isto, bem poderia dizer que já não ia em seu perfeito juízo; porque era discreto, e bem atentado: e dali por diante ficou de maneira, que nunca mais governou a sua gente, como até ali o tinha feito. E chegando da outra banda, se queixou muito da cabeça, e nela lhe ataram toalhas, e ali se tornaram a ajuntar todos. Estando já da outra banda para começar a caminhar, viram um golpe de cafres, e vendo-os se puseram em som de pelejar, cuidando que vinham para os roubar; e chegando perto da nossa gente, começaram a ter fala uns com os outros, perguntando os cafres aos nossos, que gente era, ou que buscava? Responderam-lhe que eram cristãos, que se perderam em uma nau, e que lhe rogavam os guiassem para um rio grande que estava mais avante, e que se tinham mantimentos, que lhos trouxessem, e lhos comprariam. E por uma cafra, que era de Sofala, lhe disseram os negros, que se queriam mantimentos, que fossem com eles a um lugar onde estava o seu rei, que lhe faria muito agasalho. A este tempo seriam ainda cento e vinte pessoas; e já então D. Leonor era uma das que caminhavam a pé, e sendo uma mulher fidalga, delicada, e moça, vinha por aqueles ásperos caminhos tão trabalhosos, como qualquer robusto homem do campo, e muitas vezes consolava as da sua companhia, e ajudava a trazer seus filhos. Isto foi depois que não houve escravos para o andor em que vinha. Parece verdadeiramente que a graça de Nosso Senhor supria aqui; porque sem ela não pudera uma mulher tão fraca, e tão pouco costumada a trabalhos, andar tão compridos, e ásperos caminhos, e sempre com tantas fomes, e sedes, que já então passavam de trezentas léguas as que tinham andado, por causa dos grandes rodeios. Tornando à história. Despois que o capitão, e sua companhia tiveram entendido, que o rei estava perto dali, tomaram os cafres por sua guia; e com muito recato caminharam com eles para o lugar que lhe diziam, com tanta fome, e sede, quanto Deus sabe. Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e como chegaram, lhe mandou dizer o cafre, que não entrassem no lugar; porque é coisa que eles muito escondem, mas que lhe fossem pôr ao pé de umas árvores, que lhe mostraram, e que ali lhe mandaria dar de comer. Manuel de Sousa o fez assim, como homem que estava em terra alheia, e que não tinham sabido tanto dos cafres, como agora sabemos por esta perdição, e pela da nau S. Bento, que cem homens de espingarda atravessariam toda a Cafraria; porque maior medo tem delas, que do mesmo demónio. Despois de assim estarem agasalhados à sombra das árvores, lhes começou a vir algum mantimento por seu resgate de pregos. E ali estiveram cinco dias, parecendo-lhes que poderiam estar até vir navio da Índia, e assim lho diziam os negros. Então pediu Manuel de Sousa uma casa ao rei cafre para se agasalhar com sua mulher e filhos. Respondeu-lhe o cafre que lha dariam; mas que a sua gente não podia estar ali junta, porque se não poderiam manter por haver falta de mantimentos na terra: que ficasse ele com sua mulher e filhos, com algumas pessoas quais ele quisesse, e a outra gente se repartisse pelos lugares; e que ele lhe mandaria dar mantimentos, e casas até vir algum navio. Isto era a ruindade do rei, segundo parece, pelo que ao despois lhe fez; por onde está clara a razão que disse, que os cafres têm grande medo de espingardas; porque não tendo ali os portugueses mais que cinco espingardas, e até cento e vinte homens se não atreveu o cafre a pelejar com eles; e a fim de os roubar os apartou uns dos outros para muitas partes, como homens que estavam tão chegados à morte de fome; e não sabendo quanto melhor fora não se apartarem, se entregaram à fortuna, e fizeram a vontade àquele rei, que tratava sua perdição, e nunca quiseram tomar o conselho do reizinho, que lhes falava verdade, e lhes fez o bem que pôde. E por aqui verão os homens, como nunca hão-de dizer, nem fazer cousa em que cuidem que eles são os que acertam ou podem, senão pôr tudo nas mãos de Deus Nosso Senhor. Despois que o rei cafre teve assentado com Manuel de Sousa, que os portugueses se dividissem por diversas aldeias, e lugares para se poderem manter, lhe disse também que ele tinha ali capitães seus, que haviam de levar a sua gente, a saber, cada um os que lhe entregassem para lhe darem de comer; e isto não podia ser senão com ele mandar aos portugueses, que deixassem as armas, porque os cafres haviam medo deles enquanto as viam, e que ele as mandaria meter em uma casa, para lhas dar tanto que viesse o navio dos portugueses. Como Manuel de Sousa já então andava muito doente, e fora de seu perfeito juízo, não respondeu, como fizera estando em seu entendimento; respondeu, que ele falaria com os seus. Mas como a hora fosse chegada, em que havia de ser roubado, falou com eles, e lhes disse: que nem havia de passar dali, de uma ou de outra maneira havia de buscar remédio de navio, ou outro qualquer que Nosso Senhor dele ordenasse; porque aquele rio em que estavam era de Lourenço Marques; e o seu piloto André Vaz assim lho dizia: que quem quisesse passar dali, que o poderia fazer, se lhe bem parecesse, mas que ele não podia, por amor de sua mulher e filhos, que vinha já mui debilitada dos grandes trabalhos, que não podia já andar, nem tinha escravos que o ajudassem. E portanto a sua determinação era acabar com sua família, quando Deus disso fosse servido; e que lhe pedia, que os que dali passassem, e fossem ter com alguma embarcação de portugueses, que lhe trouxessem ou mandassem as novas, e os que ali quisessem ficar com ele, o poderiam fazer; e por onde ele passasse passariam eles. E porém que para os negros se fiarem deles e não cuidarem que eram ladrões, que andavam a roubar, que era necessário entregarem as armas, para remediar tanta desaventura como tinham de fome havia tanto tempo. E já então o parecer de Manuel de Sousa, e dos que com ele consentiram, não eram de pessoas que estavam em si; porque se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo, nunca os negros chegaram a eles. Então mandou o capitão que pusessem as armas, em que despois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade de alguns, e muito mais contra a de D. Leonor, as entregaram; mas não houve quem o contradissesse senão ela, ainda que lhe aproveitou pouco. Então disse: <> Os negros tomaram as armas, e as levaram a casa do rei cafre. Tanto que os cafres viram os portugueses sem armas, como já tinham concertado a traição os começaram logo a apartar, e roubar, e os levaram por esses matos, cada um como lhe caía a sorte. E acabado de chegarem aos lugares, os levaram já despidos, sem lhe deixar sobre si cousa alguma, e com muita pancada os lançavam fora das aldeias. Nesta companhia não ia Manuel de Sousa, que com sua mulher e filhos, e com o piloto André Vaz, e obra de vinte pessoas ficavam com o rei, porque traziam muitas jóias, e rica pedraria, e dinheiro; e afirmam que o que esta companhia trouxe até ali, valia mais de cem mil cruzados. Como Manuel de Sousa com sua mulher, e com aquelas vinte pessoas foi apartado da gente, foram logo roubados de tudo o que traziam, somente os não despiu; e o rei lhe disse que se fosse muito embora em busca de sua companhia, que lhe não queria fazer mais mal, nem tocar em sua pessoa, nem de sua mulher. Quando Manuel de Sousa isto viu, bem se lembraria quão grande erro tinha feito em dar as armas, e foi força de fazer o que lhe mandavam, pois não era mais em sua mão. Os outros companheiros, que eram noventa, em que entrava Pantaleão de Sá, e outros três fidalgos, ainda que todos foram apartados uns dos outros, poucos e poucos, segundo se acertaram, despois que foram roubados, e despidos pelos cafres a quem foram entregues por o rei, se tornaram a ajuntar; porque era perto uns dos outros, e juntos bem maltratados, e bem tristes, faltando-lhe as armas, vestidos, e dinheiro para resgate de seu mantimento, e sem o seu capitão, começaram de caminhar. E como já não levavam figura de homens, nem quem os governasse, iam sem ordem, por desvairados caminhos: uns por matos, e outros por serras, se acabaram de espalhar, e já então cada um não curava mais que fazer aquilo em que lhe parecia que podia salvar a vida, quer entre cafres, quer entre outros mouros, porque já então não tinha conselho, nem quem os ajuntasse para isso. E como homens que andavam já de todo perdidos, deixarei agora de falar neles, e tornarei a Manuel de Sousa, e a desditosa de sua mulher e filhos. Vendo-se Manuel de Sousa roubado, e despedido del-rei, que fosse buscar sua companhia, e que já então não tinha dinheiro, nem armas, nem gente para as tomar: e dado caso que já havia dias que vinha doente da cabeça, todavia sentiu muito esta afronta. Pois que se pode cuidar de uma mulher muito delicada, vendo-se em tantos trabalhos, e com tantas necessidades; e sobre todas, ver seu marido diante de si tão maltratado, e que não podia já governar, nem olhar por seus filhos? Mas como mulher de bom juízo, com o parecer desses homens, que ainda tinha consigo, começaram a caminhar por esses matos, sem nenhum remédio, nem fundamento, somente o de Deus. A este tempo estava ainda André Vaz o piloto em sua companhia, e o contramestre, que nunca a deixou, e uma mulher ou duas portuguesas, e algumas escravas. Indo assim caminhando, lhes pareceu bom conselho seguir os noventa homens, que avante iam roubados, e havia dous dias, que caminhavam, seguindo suas pisadas. E D. Leonor ia já tão fraca, tão triste, e desconsolada, por ver seu marido da maneira que ia, e por se ver apartada da outra gente, e ter por impossível poder-se ajuntar com eles, que cuidar bem nisto é cousa para quebrar os corações! Indo assim caminhando, tornaram outra vez os cafres a dar nele, e em sua mulher, e em esses poucos que iam em sua companhia, e ali os despiram, sem lhe deixarem sobre si cousa alguma. Vendo-se ambos desta maneira com duas crianças muito tenras diante de si deram graças a Nosso Senhor. Aqui dizem que D. Leonor se não deixava despir, e que às punhadas, e às bofetadas se defendia, porque era tal, que queria antes que a matassem os cafres, que ver-se nua diante da gente, e não há dúvida que logo ali acabara sua vida, se não fora Manuel de Sousa, que lhe rogou se deixasse despir, que lhe lembrava que nasceram nus, e pois Deus daquilo era servido, que o fosse ela. Um dos grandes trabalhos que sentia, era verem dous meninos pequenos seus filhos, diante de si chorando, pedindo de comer, sem lhe poderem valer. E vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se erguer dali. Manuel de Sousa foi então a uma velha sua aia, que lhe ficara ainda uma mantilha rota, e lha pediu para cobrir D. Leonor, e lha deu; mas contudo nunca mais se quis erguer daquele lugar, onde se deixou cair, quando se viu nua. Em verdade, que não sei quem por isto passe sem grande lástima, e tristeza. Ver uma mulher tão nobre, filha, e mulher de fidalgo tão honrado, tão maltratada, e com tão pouca cortesia! Os homens que estavam ainda em sua companhia, quando viram a Manuel de Sousa, e sua mulher despidos, afastaram-se deles um pedaço, pela vergonha, que houveram de ver assim seu capitão, e D. Leonor. Então disse ela a André Vaz o piloto: <> E eles vendo que por sua parte não podiam remediar a fadiga de seu capitão, nem a pobreza, e miséria de sua mulher e filhos, se foram por esses matos, buscando remédio de vida. Despois que André Vaz se apartou de Manuel de Sousa e sua mulher, ficou com ele Duarte Fernandes contramestre do galeão, e algumas escravas, das quais se salvaram três, que vieram a Goa, que contaram como viram morrer D. Leonor. E Manuel de Sousa ainda que estava maltratado do miolo, não lhe esquecia a necessidade que sua mulher e filhos passavam de comer. E sendo ainda manco de uma ferida que os cafres lhe deram em uma perna, assim maltratado, se foi ao mato buscar frutas para lhe dar de comer; quando tornou, achou D. Leonor muito fraca, assim de fome, como de chorar, que despois que os cafres a despiram, nunca mais dali se ergueu, nem deixou de chorar; e achou um dos meninos mortos, e por sua mão o enterrou na areia. Ao outro dia tornou Manuel de Sousa ao mato a buscar alguma fruta, e quando tornou, achou D. Leonor falecida, e o outro menino, e sobre ela estavam chorando cinco escravos com grandíssimos gritos. Dizem que ele não fez mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali, e assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma mão, por espaço de meia hora, sem chorar, nem dizer cousa alguma; estando assim com os olhos postos nela: e no menino fez pouca conta. E acabando este espaço se ergueu, e começou a fazer uma cova na areia com ajuda das escravas, e sempre sem se falar palavra a enterrou, e o filho com ela, e acabado isto, tornou a tomar o caminho que fazia, quando ia a buscar as frutas, sem dizer nada às escravas, e se meteu pelo mato, e nunca mais o viram. Parece que andando por esses matos, não há dúvida senão que seria comido de tigres, e leões. Assim acabaram sua vida, mulher e marido, havendo seis meses, que caminhavam por terras de cafres com tantos trabalhos. Os homens que escaparam de toda esta companhia, assim dos que ficaram com Manuel de Sousa quando foi roubado, como dos noventa, que iam diante dele caminhando, seriam até oito portugueses, e catorze escravos, e três escravas das que estavam com D. Leonor ao tempo que faleceu. Entre os quais foi Pantaleão de Sá. e Tristão de Sousa, e o piloto André Vaz, e Baltasar de Sequeira, e Manuel de Castro, e este Álvaro Fernandes. E andando estes já na terra sem esperança de poderem vir à terra de cristãos; foi ter àquele rio um navio em que ia um parente de Diogo de Mesquita fazer marfim, onde achando novas que havia portugueses perdidos pela terra, os mandou buscar, e os resgatou a troco de contas, e cada pessoa custaria dous vinténs de contas, que entre os negros é cousa que eles mais estimam; e se neste tempo fora vivo Manuel de Sousa, também fora resgatado. Mas parece que foi assim melhor para sua alma, pois Nosso Senhor foi servido. E estes foram ter a Moçambique a vinte e cinco de Maio de mil e quinhentos e cinquenta e três anos. Pantaleão de Sá andando vaga mundo muito tempo pelas terras dos cafres, chegou ao paço quase consumido com fome, nudez, e trabalho de tão dilatado caminho, e chegando-se à porta do paço, pediu aos áulicos lhe alcançassem do rei algum subsídio; recusaram eles pedir-lhe tal cousa, desculpando-se com uma grande enfermidade, que o rei havia tempos padecia: e perguntando-lhes o ilustre português, que enfermidade era, lhe responderam, que uma chaga em uma perna tão pertinaz, e corrupta, que todos os instantes lhe esperavam a morte; ouviu ele com atenção, e pediu fizessem sabedor ao rei da sua vinda, afirmando que era médico, e que poderia talvez restituir-lhe a saúde; entram logo muito alegres, noticiam-lhe o caso, pede instantemente o rei, que lho levem dentro; e despois que Pantaleão de Sá viu a chaga lhe disse: <>, e saindo para fora, se pôs a considerar a empresa em que se tinha metido, donde não poderia escapar com vida, pois não sabia cousa alguma que pudesse aplicar-lhe; como quem tinha aprendido mais a tirar vidas, que a curar achaques para as conservar. Nesta consideração, como quem já não fazia caso da sua, e apetecendo antes morrer uma só vez do que tantas; ourina na terra, e feito um pouco de lodo, entrou dentro a pôr-lho na quase incurável chaga. Passou pois aquele dia, e ao seguinte, quando o ilustre Sá esperava mais a sentença da sua morte, do que remédio algum para a vida tanto sua como do rei, saem fora os palacianos com notável alvoroço, e querendo-o levar em braços, lhes perguntou a causa de tão súbita alegria; responderam que a chaga com o medicamento que se lhe aplicara, gastara todo o podre, e aparecia só a carne, que era sã, e boa. Entrou dentro o fingido médico, e vendo que era como eles afirmavam, mandou continuar com o remédio; com o qual em poucos dias cobrou inteira saúde; o que visto, além de outras honras puseram a Pantaleão de Sá em um altar, e venerando-o como divindade, lhe pediu el-rei ficasse no seu paço, oferecendo-lhe ametade do seu Reino; e senão que lhe faria tudo o que pedisse: recusou Pantaleão de Sá a oferta; afirmando lhe era preciso voltar para os seus. E mandando o rei trazer uma grande quantia de ouro, e pedraria, o premiou grandemente, mandando juntamente aos seus o acompanhassem até Moçambique.