O Galeão EnxobregasJp/¬ïÆ€ïÆ€TEXtREAdŒö!1AQaq‘¡±ÁÑáñ!1@Title: O Galeão Enxobregas Author: Francisco Maria Bordalo CreationDate: Wed Jul 29 12:17:00 BST 2009 ModificationDate: Mon Feb 26 18:40:00 GMT 1973 Genre: Description: O Galeão Enxobregas Francisco Maria Bordalo A publicação de O Galeão Enxobregas, extraído do livro Naufrágios, Viagens, Fantasias & Batalhas (Selecção, coordenação, prefácio. leitura de texto e notas de João Palma-Ferreira), foi gentilmente autorizada por Maria Filipe Palma-Ferreira e Imprensa Nacional-Casa da Moeda. © 1997, Maria Filipe Palma-Ferreira e Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8127-82-0 Lisboa, Maio de 1997 Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** O GALEÃO ENXOBREGAS I. Tormenta e Revolta Em uma quinta-feira da Ascensão, que se contavam treze dias do mês de Maio do ano do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de 1649, reuniu-se muito povo na praia de Belém para ver desaferrar do Tejo o galeão Enxobregas, uma das maiores naus do seu tempo, que por efeito de grossas avarias não seguira para a Índia com o mais da frota d'esse ano, em 15 de Abril; mas que por ser veleiro e seguro esperavam chegasse a Goa adiante daqueles que lhe tomaram a dianteira. A referida armada compunha-se apenas de dois galeões; já não eram aquelas grandes frotas do tempo de D. João III! Por capitânia da viagem ia a nau S. Lourenço, construída na ribeira de Goa, a qual se perdeu logo a 3 de Setembro nos baixos de Moxincale, como mui lastimosamente conta o jesuíta António Francisco Cardim, que era seu capelão; e por almirante um galeão novo, denominado Nossa Senhora do Bom Sucesso do Povo, que também se perdeu, cinco dias depois, perto das ilhas de Angoxa, no quarto da modorra, com vento em popa, amarras telingadas e vigias na sobrecevadeira, como igualmente conta o reverendo padre da Companhia de Jesus. Com vento fresco e de feição, ao repontar da maré, desceu airoso o Tejo o nosso galeão Enxobregas, levando por seu capitão a Bastião de Morais, o dos óculos, acanhado da vista mas desembaraçado do pulso. Por piloto ia Pêro Dourado, velho navegador da Índia. Duarte Fernandes era o mestre da nau; e Pantaleão Vaz, o Cheira-Dinheiro, seu contramestre. De passagem levava vários fidalgos, oficiais e soldados, que iam a servir el-rei no ultramar; alguns missionários da Companhia de Jesus e da Ordem do seráfico S. Francisco; e duas senhoras de distinção, uma esposa outra filha de Rui da Cunha, provido com a fortaleza de Cananor. Ao pôr-do-sol do mesmo dia da saída, já estes navegantes não viam terra da pátria; e engolfando-se nas solidões do oceano procuravam o caminho da frondosa ilha da Madeira. Viagem de rosas tiveram, não só até à altura de Porto Santo que enxergaram de perto, e da Madeira que avistaram ao longe, mas além da ilha de Santo Antão, uma das de Cabo Verde, que marcaram ao cabo da décima oitava singradura. Depois começaram-lhe a dar as trovoadas de Guiné, e no paralelo da Serra Leoa viu-se o galeão perdido, com os ventos furiosos e desencontrados que o assaltaram, com o mar bravio que se levantava em pirâmides, e com raios que caíam em roda do navio, fazendo horrível estrondo, cegando com o brilho dos relâmpagos e ameaçando de o incendiar. Os timoratos já pediam confissão ao capelão da nau, padre Jerónimo da Conceição, e aos demais frades passageiros; porém, os homens experimentados nas coisas do mar trataram de meter dentro, primeiro as gáveas, depois os papa-figos, a mezena e a cevadeira; arriaram, como puderam, os mastaréus; e em árvore seca, oferecendo o cadaste à fúria do mar, lá foi correndo o galeão, a Deus e à ventura, rociado pelas vagas, até que abonançou a tormenta. Seguiram-se alguns dias de enfadonha calma na Linha, e afinal dobrando os abrolhos, seguiu a nau Enxobregas, desviando-se da costa do Brasil, até se internar pelo sul dentro, muito além da latitude do Cabo. Já um impertinente frio entrava com a maruja, que mal a deixava acudir à manobra, quando o vento virou de feição, para deixar que a nau aproasse ao Cabo da Boa Esperança; visto que o capitão, contra o regimento d'el-rei queria ir fundear em Moçambique, para fazer veniaga, em vez de seguir as ordens que o mandavam ir por fora de Madagáscar. Entrava já o mês d'Agosto; o galeão fazia alguma água pelos altos, não coisa de cuidado, é verdade, mas que o embaraçava de puxar com todo o pano; e o piloto questionava com o sota-piloto sobre ter-se passado ou não o Adamastor, quando as mangas de veludo, começando a cruzar por sobre os mastaréus, vieram dar testemunho de que estavam além do Cabo. A vista do Cabo Falso confirmou no mesmo dia a alegre presunção dos nautas. Nesse dia houve missa, banquete e dança a bordo. Mas logo depois, correndo ao longo da costa de Natal, caiu tão dura refrega sobre a nau, e tão súbita, que o mastro do traquete, já de si inclinado para vante, parecia querer ir beijar o gurupés; e o conseguira, se a vela se não rasgara em mil pedaços. Os mastros grande e da mezena, que caíam para ré, conforme a construção do tempo, quase que se puseram a prumo; e as respectivas vergas soltaram de si as velas com a violência da borrasca. O gurupés rendeu, e a verga da cevadeira partiu pela estagadura, ou, como hoje diríamos, pelo terço, se é que ainda há navio que use de cevadeira! O padre Jerónimo da Conceição acudiu ao chapitéu da popa, armado de um crucifixo, para exorcismar a tempestade, e os moços de primeira viagem, de envolta com os soldados bisonhos, segurando-se às roupetas dos filhos de Loyola e aos hábitos dos franciscanos, chamavam, voz em grita: <> O capitão, que nada entendia de náutica, ouvia os conselhos do piloto e sota-piloto, mestre, contramestre e guardião, e até dos marinheiros que sabiam tomar a altura do Sol, não achando meio de conciliar os disparatados pareceres d'estes velhos navegadores. E a nau arfando, sem governo, porque os timoneiros mal podiam subjugar o leme, apesar das valentes talhas que lhe haviam dado. A cerração era completa. O Cheira-Dinheiro, meneando um calabre, zurzia de popa à proa os grumetes que não andavam lestos. Um velho marinheiro que em 1593 vira de perto a morte no galeão Santo Alberto, encalhando no penedo das Fontes, repassava na mente a triste história d'aquele naufrágio, e os trabalhos que lhe seguiram, suportados então com a coragem de mancebo imberbe, mas a que o ancião não resistiria agora; e cria já ouvir as pancadas que o galeão estava dando sobre o baixio. O piloto e o sota-piloto era concordes (coisa rara n'aqueles tempos!) em que a nau de sua majestade estava mais amarrada, apesar de não verem o sol havia três dias e n'estas paragens correrem as águas como sangue, segundo a expressão favorita dos marinheiros. A água crescia no porão, e começava a invadir a coberta. As bombas, meio entupidas, não lhe davam vazão, apesar de trabalharem sem descanso, tocando a elas os próprios fidalgos, e mais gente graúda que ia a bordo. Os escravos passavam de contínuo gamotes cheios de água do porão para a tolda, a qual voltava ao oceano d'onde viera. A situação tornava-se de momento para momento mais assustadora. Não obstante a falta das velas, que poderiam fazer pendor ao navio se fossem largas, o galeão adornou a estibordo, sorvendo um grande mar, com o que aumentou a desordem e terror a bordo. Novos gritos de aflição ecoaram pelas amuradas do Enxobregas; novos brados de misericórdia subiram ao céu, entre o fulgor dos relâmpagos, ao estampido dos raios, contra torrentes de chuva no meio da escuridão da noite. -Alija! Alija tudo ao mar! -bramou do chapitéu de proa o mestre Fernandes. E a maruja acudiu imediatamente a executar a ordem de salvação. Foi uma safa-rascada! Ricos estofos, trem de artilharia, baús de senhores, caixas de marinheiros, foram de companhia para o incomensurável abismo do oceano; e tal era a pressa que o capelão do navio lançou por descuido ao mar o seu Breviário. O capitão-mor partiu os óculos, ficando, como dizem os marítimos, a ver navios. O piloto, apesar de ser um velho lobo do mar, perdeu a tramontana; e se não fora a coragem estóica dos oficiais de proa, feito era da nau d'el-rei que não tornaria endireitar-se. Foi Deus servido, porém, guardar estes pecadores para outras tribulações, e não lhes acabar logo ali com a mesquinha existência. Um jesuíta, que ia missionar no Japão, tratou de confessar em público os que pretendiam a absolvição; e tão grande foi o número de crimes e erros que os penitentes manifestaram, que começou a clamar: -Este temporal é castigo de Deus contra os reprovados que vão a bordo da nau e os justos pagarão, como se fossem pecadores, pela má companhia em que se acham! Assim passou esta noite de agonia, sem luzir no tope o esperançoso lume de santelmo. E quando alvoreceu o novo dia, se bem que o mar estivesse mais aplacado, e menos furioso o vento, enxergavam-se melhor as avarias da embarcação, e à claridade do sol desenganaram-se de que não estavam em proximidade de terra, pois que a nenhum rumo se avistava. Então principiou uma cena de outro género, não promovida já pela natureza, mas pelos homens, e talvez mais horrorosa ainda. Declarou-se a insubordinação nos mosqueteiros que iam a servir na Índia, e o medo dos perigos do mar arrastou-os a tornarem ainda maiores esses temerosos perigos. Quando a tempestade já começava a abonançar, e que se podia apresentar ao vento um bolso do traquete, armaram-se alguns soldados, e invadindo o chapitéu da popa, intimaram o capitão da nau para que mandasse arribar a terra. Debalde o piloto lhes explicava que não tinha pelo través nenhum porto onde pudessem reparar as avarias da viagem, o que só poderia conseguir em Moçambique, a cujo rumo navegavam; a estúpida soldadesca, coadjuvada por alguns marujos de má morte, gritava cada vez mais alto: -Vamos para terra! Aproemos a terra! Rui da Cunha, o capitão de Cananor, pretendeu impor-lhes respeito; mas não o atenderam. Sua esposa, Dona Leonor, ofereceu-lhes as jóias que lhes restavam depois do alijamento, e nada conseguiu. A jovem e formosa filha d'estes cônjuges, a encantadora Madalena, em vão tentou com lágrimas enternecer os sublevados; e baldadas foram também as diligências dos padres, que invocavam o nome do Redentor. O capitão e os bons homens do mar seguiram outro caminho. Bastião de Morais lançou mão da sua boa espada de Toledo e atirou-se aos revoltosos como Santiago a mouros; de cada cutilada fazia um profundo gilvaz e, quando Deus queria, uma amputação. Mestre Fernandes, com um velho chanfalho, fazia o que podia. O Cheira-Dinheiro armou-se com um pé-de-cabra. Pêro Dourado servia-se do astrolábio como de um aríete. O sota-piloto arremessava contra os insurgentes as balas que achava pelas chaleiras. Um estrinqueiro atirava ao monte com o poleame que encontrava à mão, tornando em projécteis de guerra moitões, cadernais, polés, sapatas e caçoilos. O condestável distribuiu à pressa algumas espadas e chuços de marinhagem, e a revolta foi sufocada em sangue. Imaginem os leitores que horrível não seria esta luta no acanhado âmbito de um navio, no isolamento do mar e em vista dos estragos produzidos pela tormenta! Em vez de louvarem a Deus pela bonança que lhes mandava, estes pecadores endurecidos confundiam o sangue de seus irmãos com as águas do oceano, e escapados milagrosamente de um grande perigo, buscavam por suas mãos outro maior! A golilha e as algemas adornaram os pescoços, mãos e pés dos delinquentes que o ferro poupou na refrega; os mortos foram lançados ao mar com os competentes pelouros amarrados às pernas; e os feridos passaram a habitar nos catres da enfermaria, entregues ao cuidado de uma espécie de licenciado que vinha a bordo. Livre d'este obstáculo, o capitão-mor, que já havia encontrado outros óculos, chamou o carpinteiro e o calafate para lhes encarregar a faina de atamancarem o melhor possível o navio, a ver se estancava a água; ao mestre recomendou O conserto do velame e substituição do massame arrebentado e do poleame rendido; e encomendando-se mui devotamente a nossa Senhora da Nazaré, ordenou ao piloto que soltasse o rumo para a ilha de Moçambique. II. Novas Personagens Vencendo com grande custo as indómitas correntes do canal de Moçambique e bordejando a todo o pano entre a terra firme e ilha de S. Lourenço, foi o galeão Enxobregas aproximando-se a pouco e pouco do lugar que demandava, não sem grande mágoa dos seus tripulantes, que não tinham já negócio que fazer na ilha, visto que as mercadorias haviam todas ido ao mar e não poderiam passar esse ano à Índia por ir adiantada a monção; ficando assim expostos ao maléfico clima de Moçambique, sem espécie alguma de compensação. Entretanto o calafate tinha conseguido vedar a água dos altos e calafetar o arruinado trincaniz da nau, bem como desobstruir a cada das bombas para se tocar redondo e esgotar continuamente a água que lhe entrava pelas obras vivas. O carpinteiro consertou como pôde a abita que sofrera com o temporal. arranjou novos pés-de-carneiro para substituir os que renderam, fez novas bonecas para o lugar das que se partiram e cuidou em tudo o mais da sua obrigação com verdadeiro zelo. Também o mestre Fernandes se não descuidou da sua parte, e ajudado pelo laborioso Cheira-Dinheiro (que apesar de toda a sua actividade nunca chegou a tomar-lhe o gosto) arrotou o gurupés e passou-lhe uma contra-trinca; substituiu a cevadeira quebrada por uma verga de gávea grande, que era pouco menor; botou a riba os mastaréus, envergou novas gáveas e com as betas passadas de longo levou as vergas ao seu lugar. Depois amurou-lhe os papa-figos, caçou-lhe as gáveas e a mezena, largou-lhe a cevadeira e deixou ir o barco na água. O piloto e o sota-piloto consultavam os astros e as cartas, a cor da água e os horizontes, e não pareciam desanimados. O condestável tratou de pôr em boa ordem as armas de mão e safar a artilharia para combate ou para salva, como necessário fosse; e o guardião encarregou-se de pintar as alcaixas da nau com a ajuda de três moços que tinham manha de borradores. Os gajeiros andavam sempre lá por cima a ver se enxergavam terra: os padres passavam a vida em devotas ocupações; e o capitão, curvado ao peso da responsabilidade que pesava sobre ele, dava-se a perros por ter empreendido esta viagem da Índia, podendo estar na fronteira portuguesa a bater-se com os castelhanos. Já tocava quase o seu fim o mês de Setembro quando do galeão avistaram a Mesa, alta montanha das proximidades de Moçambique; porém como era noite resolveram deixar para a seguinte manhã o investimento no porto. Apareceu-lhes então uma vela...Se seria de holandeses que viessem vingar nestes portugueses a perda de Luanda, que Salvador Correia lhes arrebatara das mãos havia um ano! Enquanto a gente de guerra se aparelhava para combate, os padres tiravam esmolas para confrarias e aceitavam os votos dos timoratos a todos os santos da corte do céu, para que não houvesse perigo. A embarcação aproximou-se; era inglesa. Já então tremulava o pavilhão de Santo André por estes mares! Passou por gilavento do Enxobregas e saudou os nossos com suas trombetas; mas não obteve resposta, porque estes não estavam agora para cumprimentos, e então a ingleses! A nau lá se foi a rumo do Cabo, e a nossa pairou no canal à espera da manhã e enfadada de repetidos aguaceiros. Ao alvorecer do novo dia entestou com a costa, cerrando à bolina a rastear com a ilha de Goa; e perpassando rente da majestosa fortaleza de S. Sebastião, foi lançar âncora em seis braças de fundo ao nor-noroeste da mesma fortaleza. No porto não estava uma só embarcação de alto bordo; apenas alguns pangaios cosidos com a terra, e as ligeiras almadias que sulcavam as águas dirigindo-se algumas delas para o galeão. O Enxobregas tinha má sina: não se salvava de um perigo senão para se espetar em outro! Assim bramavam os matalotes que o guarneciam. A amarra que arriaram para o fundo estava dada ao cabrestante da xareta, e com a força do esticão no fundear levou consigo o cabrestante! Não estava outra amarra telingada, e enquanto a alavam acima tinha tempo a nau de se fazer em pedaços na cabeceira para onde as águas a empurravam. Valeu o batel e o esquife que ajudados das almadias tomaram viradores e ostagas de bordo com que rebocaram o galeão para fora da costa. Afinal largou outra âncora com mais cuidado, e o navio segurou de vez. Como dissemos, não estava nenhuma nau no ancoradouro, mas apareceu, com geral espanto, a bordo do Enxobregas, o capitão-mor do galeão S. Lourenço, saído de Lisboa um mês antes daquele, e que, como dissemos, se perdera nos baixos de Moxincale, com grande extravio de pessoas e cabedal. Este cabo, por nome Diogo Leite Pereira, comendador de Alegrete na Ordem de Cristo, vinha acompanhado pelo inquisidor apostólico Paulo Castelino de Freitas e outras pessoas de distinção, das que escaparam ao naufrágio. Não sabiam porém novas do que devera ser seu companheiro toda a viagem, e que se apartou deles na altura da Guiné, o galeão novo Nossa Senhora do Bom Sucesso, de que era almirante Vasco de Azevedo. Esta dúvida poucos dias durou; porque a 14 de Outubro seguinte chegaram a Moçambique dois homens daquele galeão que se perdera, como também já dissemos, abaixo das ilhas de Angoxa, morrendo trezentas pessoas que iam a seu bordo, escapando só com vida cento e dez; durante a viagem já haviam falecido de moléstia ou acidente cento e cinco homens, incluindo neste número o almirante. Assim, pois, enquanto se corrigiam as avarias do galeão Enxobregas, invernara a gente das três naus nesta doentia ilha de Moçambique, sucumbindo muita dela às febres da carneirada, e outra mesmo à falta de alimentos sadios. Os marinheiros ainda lá resistiram, mas os soldados reinões caíam como tordos. O fidalgo, que servia de governador na ausência de Álvaro de Sousa de Távora, que estava na terra firme, hospedou em sua casa o capitão do Enxobregas e alguns passageiros de prol, como Rui da Cunha e sua família, do mesmo modo que o fizera já a Diogo Leite, ao inquisidor e a outros. Este hóspede era mancebo ainda, de grandes brios, de gentil presença e bem-falante. Chamava-se Luís de Brito. Com a vista quotidiana do formoso rosto e gracioso ademane de Dona Madalena da Cunha, acendeu-se no coração do novo governador interino uma invencível paixão pela donzela; e resolvendo-se a pedi-la ao pai em casamento, obteve a sua mão, pois lhe não era inferior em fidalguia. Foi um dia de festa para Moçambique o desse consórcio, que se celebrou a 10 de Março de 1650; e logo passados cinco dias se partiu a nau Enxobregas para Goa, aproveitando a monção pequena e deixando em Moçambique a filha de Rui da Cunha que com mui grandes prantos se despediu de seus pais. Não pense porém o leitor que perde de vista para sempre a formosíssima Madalena. Apesar de estarmos escrevendo uma verídica história e não fabulosa novela, não podendo assim preparar surpreendentes peripécias, sucede que a realidade teve neste caso seus visos de romance, e que as principais personagens que mencionamos voltam todos a encontrar-se, depois de separados em diferentes pontos. Largou pois a nau do porto de Moçambique a 15 de Março, pela manhã, com o terrenho; e deitando de barra fora governou ao nordeste-meio-leste em gáveas e papa-figos, encontrando o mar de leite, algumas correntes a leste, vento do quadrante sueste e céu quase sempre nublado. Levava a seu bordo alguns dos náufragos dos galeões S. Lourenço e Bom Sucesso; outros destes infelizes seguiram logo a 10 de Abril para Goa no patacho do capitão de Diu; e o resto só deixou Moçambique na monção de Setembro. De mil e trezentos homens que nestes dois navios saíram de Lisboa, só chegaram duzentos à Índia! Tendo avistado a ilha do Comoro, continuaram sua derrota com cautela os do galeão Enxobregas, para se desviarem dos baixos de S. Lázaro e do Patrão; montando este, meteram à orça para leste quanto puderam para afastar da costa da Deserta, onde as águas encostam com forte correnteza; e sempre com bom tempo foram navegando até avistar os Ilhéus Queimados, a melhor conhecença da proximidade de Goa. Já antes haviam encontrado no mar as cobras como enguias, de que falam os roteiros, e que se afastam até cem léguas da costa, às vezes; os bandos de corvas pretas e nédias, cascas de siba alvas e aquelas escumas redondas, desovamento de peixe, a que chamam tostões e vinténs, e que, segundo o nosso Pimentel, são sinais certos da proximidade da costa. A 13 de Abril avistaram com efeito o farol da, a fortaleza da mesma denominação, a igreja de S. Lourenço, edificada poucos anos antes pelo vice-rei, conde de Linhares, o convento de Capuchos de Nossa Senhora do Cabo, e enfim o rio Mandovi que conduz à cidade. O galeão surgiu próximo do morro de Bardez, a um tiro de mosquete da terra. Chegados felizmente à desejada Índia, os reinões embarcaram-se em tonas para a cidade, já com a mira nas bailadeiras, de que lhes falavam amiúde os velhos navegadores do Malabar; enquanto estes observavam com tristeza o abatimento daquele estado que definhava a olhos vistos de ano, de dia para dia! O vice-rei Dom Filipe Mascarenhas acolheu bem a todos; e Dona Leonor da Cunha, à parte a saudade da filha, pôde enfim descansar em melhor clima, e com regalos que há muito lhe faltavam. O galeão foi para a Ribeira das Naus a forrar de novo, depois de pronto de toda a obra de carpinteria e calafeto. Passou-se-lhe uma rigorosa vistoria, e apesar de muito alquebrado e de se lhe encontrarem partidos muitos vaus, curvas de convés e revés, dormentes, entremixas, braços e hástias, não o condenaram; e a verdade é que ficou como novo, e que fazia uma linda vista quando apareceu de verga de alto. Não muito distante, porém, do lugar em que jazia a nau, se deu um lamentável espectáculo por esse tempo. Com baraço e pregão foi conduzido à margem do Mandovi o mestre Domingos Henriques, do galeão S. Lourenço, e enforcado aí como culpado da perda daquele navio, por não ter as amarras telingadas quando foi o naufrágio, o que contribuiu para se não poder salvar a embarcação, e outras culpas que lhe carregaram. O piloto do mesmo galeão, de nome Diogo Tavares, foi condenado em dez anos de galés; e outros oficiais sofreram prisões e incómodos. Desgraças sobre desgraças! Em consequência do grande naufrágio que sofreram no porto de Goa, em 1647, os navios que se destinavam para a China, e que todos se afundaram sem remédio, determinou agora o vice-rei de enviar' o galeão Enxobregas àquelas partes com o resto da preciosa carga que ainda para ali não havia sido possível transportar. Achando-se lesta a nau e tripulada com os mesmos oficiais, e quase toda a mesma marinhagem que trouxera de Lisboa, abalou de Goa aos nove dias do mês de Setembro daquele ano de 1650, abarrotada de mui importante carregamento para Macau. Lá ficava na Índia Rui da Cunha e sua esposa, que ainda tornaremos a encontrar no decurso desta história; e bem assim os fidalgos, oficiais e soldados que iam servir na Índia, bem como os jesuítas e franciscanos que iam para os seus conventos daquela cidade e estado. Seguiu, porém, na nau o seu capelão frei Jerónimo e o missionário que se destinava ao martírio do Japão. Embarcaram mais, de passagem para a China no galeão, duas pessoas que têm ainda de figurar nesta narrativa: eram elas Dom Martinho, príncipe de Arracam, que fora criado e baptizado na Índia, servindo por alguns anos nas armadas daquele estado, e ultimamente como capitão de Goa; e sua esposa, uma gentil chinesa, convertida ao cristianismo, que fora roubada em pequenina a seus pais pelos nossos católicos navegadores e trazida a Cochim, onde foi acolhida e muito bem educada por um fidalgo português. Esta formosa menina ia ver se descobria vestígios dos seus parentes, e seu marido acompanhava-a nesta digressão, para voltarem juntos na mesma nau e se transportarem a Lisboa, onde Dom Martinho vinha requerer por seus serviços. Deixemos, pois, a nau amurar-se da costa do Malabar enquanto tomamos fôlego para seguir na rota da China. III. Fome e Sede! Hoje é quase um prazer navegar. Prazer inteiro nunca direi que seja, porque sempre se sofrem algumas privações a bordo. Mas agora encontra-se o conforto, a velocidade, e até certo ponto a segurança que não havia no século XVII, e que ainda muito tempo depois não houve. A relação das perdas de naus portuguesas nas carreiras da Índia, da China e do Japão, da Arábia e Sino Pérsico, do Brasil, Guiné e Congo, é tão volumosa e tão horrivelmente trágica, que custa a crer como tantos de nossos avós, nobres e plebeus, eclesiásticos e seculares, velhos e moços e até mulheres se arriscavam aos perigos de temerosos mares nos mal construídos, ronceiros e incómodos galeões, caravelas, zavras, patachos e galés daqueles rudes tempos, em permanente risco duma morte dolorosa. Desde que começaram as descobertas dos nossos conterrâneos por todas as partes do mundo, não se passou talvez um ano, até à época a que se refere esta história, sem que algum navio português se perdesse e com ele a vida de muitos homens e preciosos cabedais. A princípio, a coragem dos nossos em se expor às fúrias do oceano, poder-se-ia explicar por um veemente desejo de glória, de ganhar nome honroso devassando novos mundos; porém, no século XVII já não era mais do que ambição que arrastava aos mares os filhos dos Gamas e dos Pachecos. Ao guerreiro substituíra-se o negociante, ao descobridor o especulador, e até ao missionário já se ia substituindo o rico prebendado. O nosso império marítimo tinha de cair finalmente; e já se desmantelava por diferentes partes em 1650, quando o galeão Enxobregas, alongando-se do Malabar, perdia o cheiro da pimenta, que diziam os marinheiros lisonjear o olfacto por toda aquela costa, e procurava ver outrora nossa ilha, ilha de Ceilão, onde melhor aroma, o da canela, embalsama os ares até grande distância da terra. A 20 de Setembro, depois de terem apanhado bastantes trovoadas mas poucas calmarias por irem afastados da costa, enxergaram o Cabo Comorim; e fugindo do golfo que separa o dito Cabo da ilha de Ceilão, por causa da força das correntes que ali se encontram, guinaram para fora de Ponta de Galé, desviando-se assim do celebrado Pico de Adão, tão respeitado dos indianos. Com viagem regular, sem água de mais na lomba nem de menos nos tonéis, foram navegando por aquele extenso golfo de Bengala, governando de modo a passar pelo canal das ilhas de Nicobar, onde tencionavam tomar alguns refrescos. Daí singrando pelo canal de Sombreiro, já com vento mais frescalhão e que prometia crescer, diligenciaram abrigar-se no óptimo porto de leste da ilha da Pimenta e fazer aí mais aguada, enquanto passava a maior força da borrasca. Andados já dias de Outubro, embocaram pelo estreito de Malaca, deixando pela popa o então insignificante Pulo Pinão, hoje importante Pinang ou ilha do Príncipe de Gales dos bretões; e encostando-se mais à terra de Achem do que à península Malaia, para não avistarem aquele soberbo empório avassalado por Albuquerque e que há mais de dez anos jazia em poder dos holandeses, surgiram ao cabo de alguns dias em face da ilha de Singapura, lugar quase deserto então, humilde valhacouto de miseráveis pescadores, e hoje assento de uma das mais formosas e comerciais cidades do mundo. As decantadas samatras destas paragens não haviam afrontado muito os nossos navegantes no trajecto entre as duas portas do estreito de Malaca, cujas chaves guardam cuidadosamente hoje os nossos antigos e mais fiéis aliados, modernos herdeiros deste vínculo português, instituído por Diogo Lopes de Sequeira, Fernão de Magalhães e outros. Daqui para o mar da China sai-se por um de três estreitos, que se denominam: do Governador, de Salete-Baró ou Singapura-a-Velha e de Singapura. Este último preferiu o piloto da nau Enxobregas para passar avante, e governando a leste enxergou o alvo cume da Pedra Branca, onde hoje existe um farol. Daí navegando ao norte-quarta-de-nordeste, procurou reconhecer Pulo Laor. Com vento favorável seguiu o galeão, prumando de meia em meia hora, à vista da enseada de Siam. Quando porém se acercava de Pulo Condor, antemanhã, e que o prumo marcava dezoito braças de fundo, área branca com caramujos e conchinhas, tratou o piloto de orçar, buscando maior fundo, para não ir por dentro dos i1hotes encostar-se à terra de Camboja, onde, quase um século antes, se perdera Camões; mas de repente caiu sobre o navio tão rija samatra, que parecia acabar-se o mundo. O mestre, muito prático desta navegação, gritou logo da proa: -Amaina tudo! Amaina! E ligeiro, que não é para graças esta trovoada! -Andar com a mão, camaradas! -bradou em seguida o contramestre fazendo tomar as velas, menos um bolso do traquete, e distribuindo alguns pescoções aos moços para activar a manobra. Quando o capitão apareceu no chapitéu da popa para dar força moral à tripulação, já o mar andava revolto, como se a borrasca durasse há muitos dias; o céu negro e pesado achatava-se sobre os topes dos mastaréus, a chuva caía em grossas gotas sobre o convés da nau; e o vento, assobiando horrivelmente por entre os cabos e antenas, parecia querer derribar todos os obstáculos que encontrava. Era um quadro medonho! E posto que repetido mais de uma vez nesta viagem e contemplado mil vezes pela maruja e oficialidade do Enxobregas em outras ocasiões, nem por isso deixava de aterrar. As cenas da tormenta são sempre originais! Os seus aspectos, peripécias e resultados variam dum para outro ponto do globo, de uma para outra estação do ano, e estão em parte sujeitos à qualidade das embarcações e à perícia dos seus mareantes. Não houve remédio senão dar a popa ao vento, e correr sem norte, talvez a caminho da perdição! O leme dava horríveis pancadas, e nem passando-lhe novos aldropes eram bastantes dez homens para o subjugar! Afinal, tão grande mar rebentou na popa do galeão, que os machos do leme partiram e ficou sem governo o barco! Começava a alvorada. O contramestre com alguns marinheiros mais experientes no seu ofício improvisava uma esparrela, com toros de amarra e uma antena, a fim de substituir o perdido timão; e o mestre carpinteiro, com ajuda de alguns mancebos, tratava de consertar o coice da popa, e o cadaste, arruinados pelas pancadas que lhe dera o leme, quando se despegou deles. Mestre Duarte Fernandes corria a uma e a outra parte do navio, safando rascada e examinando se estava rebentado algum ovém da enxárcia, algum brandal ou estai, e se os cabos de laborar estavam claros para a manobra. O condestável e o calafate fechavam pregavam e calafetavam as portinholas das peças, enquanto os soldados de mar passavam contravergueiros à artilharia. O Sol raiou brilhante. A samatra havia fugido; mas, como uma maldição de Deus, deixara sinais indeléveis da sua passagem! A nau pôde largar as gáveas; a esparrela foi colocada na popa, e governava com talhas dobradas que passavam pelas portinholas dos guarda-lemes; porém Macau ainda estava longe!... Arribar, para onde? Seguir, e a tormenta?... Se lhe cai um tempo duro, sem leme!... O padre Jerónimo resolveu a questão, fazendo voto, em nome de todos os mareantes e passageiros presentes, de levarem a gávea do traquete em devota procissão aos pés de Nossa Senhora da Conceição, no seu altar de Macau, se Deus por intercepção da Virgem os conduzisse a salvamento à China, e que continuassem a navegar ao seu destino. Aprovada, por maioria, a moção, como hoje se diria, seguiu a nau a esteira do Oriente. O tempo foi abonançando de hora para hora porque o vento não era já de arrancar pinheiros, e só o balouçar das vagas fazia enjoar a nau. Achando com a sonda fundo de área preta, entendeu o sota-piloto estar com a Iagem de Mateus de Brito, e posto que o piloto se fizesse já ao mar de Pulo Cecir, sempre foram deitando ao nordeste para segurar a manobra, e mesmo para desviar da costa de Champá, que se dizia andar suja de corsários. Bom estava agora o galeão para combates! Passando a leste da coroa de Santo António, e indo em demanda das primeiras ilhas da China, começou o vento leste a fustigar a nau, de modo que tornou a abrir água. Ora num bordo, ora no outro, enfim, com as bombas na mão, lá iam barlaventeando para o seu caminho, enquanto ele durou; mas por dezoito graus de latitude setentrional entraram umas impertinentes calmas com a embarcação, como se estivesse na linha. Tomava-se o Sol ao meio-dia e achava-se a mesma altura da véspera! A barquinha não trabalhava, e o pano, para se não romper, estava debaixo da gaxeta. Pairavam por força maior, não como o holandês à espera de bom tempo. Porém uma desgraça, maior do que todas ocorridas nesta malfadada derrota, esperava ainda os miseráveis tripulantes da nau Enxobregas, e seus passageiros!... Era a fome, com o dedo carcomido, apontado para as agonias duma morte lenta... Era a sede, mil vezes mais horrível do que a fome, acenando com os delírios da febre a esta turba desesperada!... Desde que haviam fugido da barra de Champá, vinha a gente da nau a dois terços de ração e três quartilhos de água para beber, e meia canada para cozinhar em cada dia; porém vieram denúncias ao capitão de que o despenseiro, um tal Gil Correia, lavava a sua roupa em água doce, e banqueteava os seus amigos todos os domingos e dias santos. Vendo pois Bastião de Morais que continuavam as calmas, sem se poder adivinhar quando teriam termo, mandou tomar contas ao despenseiro, tanto da aguada como dos mantimentos, por um conselho de oficiais e passageiros, assim composto: o príncipe Dom Martinho, o sota-piloto, o missionário do Japão, o Cheira-Dinheiro e o calafate. Mas qual não foi o terror destes homens, e em seguida de toda a gente de bordo, quando por toda a vitualha encontraram um barril de biscoito, já encetado, e algumas gulodices que o despenseiro reservava para si! Duplicado horror, pasmo, e logo desesperação, achando apenas meio tonel de água doce, e esvaziados todos os outros cascos da aguada! E a calma na vela! E água na bomba! E a terra distante! Com os paióis e a despensa vazios! O capitão lançou logo um bando em que ordenava, que quem quer que tivesse nos seus camarins ou beliches alguma quartola de água, e qualquer mantimento, marmeladas e confeitos que fosse, viesse entregar tudo sem demora aos cinco comissionados, que haviam estabelecido a sua administração junto ao cabrestante de ré, entre o mastro grande e o da mezena. E assim se fez; todos contribuíram para o monte grande, e desde esse momento repartiu-se igualmente o mantimento e a água, em porções tenuíssimas, por quantos vinham a bordo. Porém, a última moinha de bolacha estava engolida, depois de comidos todos os ratos, gatos, macacos e passarinhos que iam no galeão; a última sede de água fora esgotada com a que produzira uma copiosa chuva de algumas horas; e as pranchadas de chumbo de artilharia, cortadas em pedaços, serviam de único refrigero àquelas bocas escaldadas pela febre…E o vento sem chegar! Ora pintava de um lado, ora apontava do outro, mas nunca passando de ligeira bafagem. Os batéis que rebocavam a nau, pouco a faziam adiantar; nem os marinheiros já tinham força para puxar dos remos. Todos se admiravam, principalmente os velhos navegadores destes mares, de achar tal constância de calma em tão grande altura, e nesta estação do ano; e só atribuíam este fenómeno a castigo de seus pecados. Depois dias completos se passaram sem nada se comer nem beber a bordo do galeão. Um marinheiro, desvairado pela sede, lançou-se ao mar a afogar; outro, aguilhoado pela fome, seguiu-o nas águas para aproveitar o seu cadáver. Depois verificou-se na proa uma horrível cena de canibalismo! Disputava-se às facadas a posse de qualquer sevandi ja, que por acaso se descobria nas cobertas e porão! A autoridade tinha-se anulado de todo naquele microcosmo naval: a fome e a sede faziam mais contra a disciplina do que a tormenta e a revolta! Quando, enfim, uma aragem mais fresca e de feição veio galvanizar aqueles cadáveres encontrou a jovem chinesa prostrada, sem cor nem fala, no seu leito de agonia, tendo de joelhos a seus pés o extremoso príncipe de Arracam, e à cabeceira o padre Jerónimo que lhe lançava a absolvição. Porém, o vento refrescou pelo sueste, e o galeão fazendo força de vela, começou a deitar seis milhas por hora. Era a salvação que chegava! Quase se esqueceu a fome... e a sede é que era difícil de olvidar! Porém, o céu, condoído enfim dos mesquinhos nautas, mandou-lhes abundante chuva. No dia seguinte pescaram algum peixe, que foi devorado mesmo cru! E, finalmente, no último de Dezembro, avistaram em distância de quinze milhas a ilha dos Ladrões, e tomaram prático, mantimentos e água de uma lorcha chinesa. No primeiro dia do novo ano do Senhor, de 1651, ancoraram a salvamento no porto de Macau, dando muitas graças a Deus de se acharem felizmente em terra de amigos. Tratou-se logo de cumprir a promessa feita na ocasião da tormenta; e aqueles que podiam arrastar-se, saíram em terra nessa mesma tarde, conduzindo a gávea prometida a Nossa Senhora da Conceição. Esperava-os na Praia Grande o capitão-geral, os membros do Leal Senado, c1erezia, e povo da cidade, assim cristãos como chins; e tomando a dianteira o missionário com a cruz alçada, pôs-se a caminho do templo católico, a pequena ermida de S. Lázaro, onde muito devotamente rezaram, com choros de alegria, os míseros aventureiros. Assim terminou o terceiro acto deste medonho drama, com o qual não finaliza ainda a acção. Novas peripécias se desenrolarão ante os olhos do leitor, não menos verdadeiras e interessantes do que as precedentes, até ao fatal desenlace, a pasmosa catástrofe do galeão Enxobregas. IV. Torna-viagem Reinava a paz em Macau. Depois dos socorros militares que haviam prestado os habitantes ao império Chinês, adquirindo assim a complacência dos mandarins, e já desassombrada a cidade de todo o receio das invasões de holandeses, que bem escarmentados haviam sido em duas tentativas de conquista alguns anos antes, tratavam unicamente agora os macaenses da sua labutação comercial e não negavam gasalhado a quem quer que ali aportasse carecendo de protecção e abrigo. Dona Catarina, a jovem esposa do príncipe de Arracam, não chegara a sucumbir à fome, à sede e aos trabalhos de todo o género daquela horrível viagem, e encontrou com seu marido todas as comodidades para se restabelecer, sob o tecto hospitaleiro de um dos vereadores do senado de Macau, o velho Tomás Vieira que já fora o terror dos Batavos. O missionário do Japão foi alojar-se com os seus irmãos da Companhia de Jesus, enquanto não seguia a estrada do martírio; Bastião de Morais foi hospedado pelo capital-geral; o despenseiro Gil Correia foi recebido no tronco pelo carcereiro, que lhe fez lançar grossas algemas segundo a ordem que recebera do senado; e o resto da tripulação da nau continuou a viver a bordo, salvo uma ou outra excursão que faziam até à Pedra da Paciência. O galeão, ancorado no porto interior de Macau, corrigia de novo as avarias, seu invariável destino em todos os portos que aferrava! Deixemos porém momentaneamente as ribas do mar cuja vista talvez já fatigue demais os nossos caros leitores, e caminhando terra dentro {não para muito longe, porque o circuito de Macau é assaz limitado!} demos entrada na opulenta casa do nosso Tomás Vieira. Que é isto! Lágrimas de náufragos no porto de salvação! Ah! são choros de alegria! Como o filho pródigo, menos as culpas daquele, a formosa Dona Catarina aparecera sem ser esperada na casa paterna. Apenas contara a sua singela história como a ouvira em Cochim, de haver sido arrebatada de Macau por um capitão de navios que a levara à Índia para a fazer cristã, repetindo o seu primitivo nome chinês que trocara na pia do baptismo pelo de Catarina, ergueu-se o ancião, o bom Vieira, apertando-a nos braços e exclamando: -Aton! Aton é o teu nome? Minha querida filha perdida! E uma tancar de meia idade, com seu alto penteado e sua cabaia azul, saiu ao mesmo tempo de um aposento interior, e lançando-se aos pés da jovem chinesa, bradou também beijando-lhe as mãos: -Aton! Minha filha achada! Dom Martinho contemplava em religioso silêncio este belo quadro de família. Tão inesperado encontro parecerá fantasia de noveleiro, mas não é; o caso passou-se assim como estamos contando. Depois dos abraços e beijos correspondentes a tão feliz achado, o honrado Vieira tratou de reconhecer legalmente Aton como sua filha, e destinou logo o dia em que havia de casar com Athoy, a mãe de Dona Catarina para que esta se não envergonhasse do seu nascimento e fosse sua natural e legítima herdeira. A china mãe já era cristã, mas não mudara ainda o trajo nacional pelo europeu, o que fez agora, para ir à igreja contrair o sacramento do matrimónio, levando pela mão a sua Aton, a filha querida das suas entranhas. A 28 de Fevereiro do mesmo ano de 1651, estando de todo descarregado o galeão Enxobregas das preciosas mercadorias que trouxera da Índia, e abarrotado de não menos importante carga de sedas, charões e artefactos de marfim e madrepérola, soltou as velas ao vento (que para aquela gente era quase sempre o vento da adversidade!) e largou do porto de Macau, conduzindo de novo a seu bordo os cônjuges Dom Martinho e Dona Catarina, que com muitas lágrimas dirigiam um derradeiro olhar para a cidade donde lhes acenavam com os lenços o bom Vieira e sua esposa, desejando-lhes de coração a boa viagem. Se por um lado a jovem Aton ia satisfeita por haver encontrado a sua família e por pai um honrado comerciante, por outro lado sentia a dor da ausência depois de tão breve estada no lar paterno. Também Dom Martinho desejava ir ver as plagas onde nascera, porém o reino de Arracam ficava fora da rota da nau que voltava directamente a Goa. Entre tristes e satisfeitos, os dois esposos contemplavam em silêncio a amplidão dos mares, quando a noite estendeu sobre eles o seu funéreo crepe; e invocando a Virgem: Ave, maris stella! foram repousar, confiados na sua protecção. Com alternativas de melhor e pior tempo, veio o galeão navegando por aquele amplo mar da China; quase sempre com vento do quadrante nordeste e vagalhão, até avistar a Pedra Branca e penetrar no estreito de Malaca. Daí por diante foi apanhando algumas samatras de pouco peso, e com mais ou menos pano sempre à trinca por achar ventos escassos, galgou finalmente o Pulo Pinão. A navegação que continuou a fazer até Goa, foi aproximadamente pelas paragens da ida para Macau; e sem notável acidente surgiu no ancoradouro da Aguada a 12 de Abril do mesmo ano. Desembarcou ali grande parte do carregamento da China, e não carecendo de conserto algum o galeão (coisa rara!) abarrotaram-lhe o porão com três mil quintais de pimenta, e ficou de novo lestes a navegar. Por esses dias chegou a Goa a notícia de que o conde de Aveiras, João da Silva Telo de Meneses, que voltava segunda vez à Índia como vice-rei, havia falecido na viagem; e, achando-se Dom Filipe Mascarenhas a governar aquele estado desde 30 de Dezembro de 1645 e já muito alquebrado pela doença, resolveu abrir a via de sucessão, que vinha do reino com o novo vizo-rei, onde se acharam designados para lhe suceder na governança o arcebispo-primaz do Oriente, Dom Francisco dos Mártires, e dois fidalgos que serviam na Índia, António de Sousa Coutinho e Francisco de Melo e Castro. Então o velho Dom Filipe não hesitou em fazer entrega do mando aos três homens designados por el-rei para substituírem a falta do conde de Aveiras; o que teve lugar em Goa com toda a solenidade, no dia 10 de Junho, embarcando-se em seguida o ex-vizo-rei para bordo da nau Enxobregas. O nosso antigo conhecido Rui da Cunha também embarcou no mesmo galeão, preso por causa de certos capítulos que levantara contra ele o feitor da capitânia de Cananor, e seguia-o sua esposa e fiel companheira de seus prazeres e desditas. No outro dia, por volta das oito horas da manhã, suspendeu do porto de Goa a nau de el-rei ao som da artilharia das fortalezas que saudava o antigo governador na despedida, e da artilharia do navio que agradecia em seu nome os cumprimentos da cidade. Ao pavoroso som da artilharia A náutica celeuma se mistura, Em negro rolo o fumo ao ar subia, Tapando a luz ao sol brilhante e pura; Da recôncava, agreste penedia Se repercute o eco, o mar murmura; Incha as velas o vento, na chusma exulta, E fica a terra no horizonte oculta. O galeão vinha muito carregado e avolumado por causa da ambição dos oficiais de mar e dos passageiros, e por não haver naquela monção outra nau que trouxesse especiaria para o reino. Também inclinava para estibordo pelo mal alastrado da carga, o que tudo o fazia pouco boiante, ronceiro e de mau governo. Logo à saída de Goa começaram a dividir-se as opiniões sobre a rota a seguir: uns queriam trilhar a carreira velha por fora de S. Lourenço, outros a nova pelo canal de Moçambique. Esta última é que prevaleceu, porque o vice-rei vinha muito doente e desejava tocar em todos os portos de escala, para comprar refrescos. Dando pois resguardo aos baixos de que são muito sujos aqueles mares, veio o galeão Enxobregas avistar Cabo Delgado; e correndo ao longo da costa na conveniente distância lançou ferro na barra de Moçambique. Depois duma demora de alguns dias e tomando os necessários refrescos, fez-se de novo ao largo a embarcação em demanda do sempre temoroso Cabo das Tormentas. A lista dos passageiros havia sido aumentada em Moçambique com a formosa Madalena e o gentil Luís de Brito, que já tencionavam voltar ao reino aquele ano e que muito satisfeitos ficaram de ir em companhia de Rui da Cunha e Dona Leonor. Escusado é dizer que se travaram íntimas relações de amizade entre estas senhoras e Dona Catarina, pois que na estreiteza de um navio não pode haver pessoas desconhecidas umas das outras ou indiferentes entre si. A bordo reina sempre ou a amizade ou o ódio de indivíduo para indivíduo. Logo veremos que funestos resultados teve aquela intimidade entre as duas famílias. Sigamos por ora a esteira do Cabo acompanhando o galeão por entre o baixo da Judia; e, afastando os olhos do interior do navio, contemplemos o céu que se apresenta escuro e pesado, e os horizontes que se rasgam em fuzis. O vento salta com fúria de quadrante em quadrante; tomam-se as velas, e um rijo furacão do noroeste trás o galeão em árvore seca a dar vista do Cabo das Correntes. Aproveitando depois um salto de vento ao nordeste, o piloto que não desamparava a cadeira, foi-se amarrando com a nau para ir tomar a altura do Cabo da Boa Esperança em grande distância da costa, visto que os holandeses se haviam apoderado da Aguada de Saldanha, depois que o Enxobregas por ali havia passado na vinda para a Índia. Com este vendaval, alguma água na bomba e pequenas avarias na mastreação; a mais importante foi render o gurupés pelo papa-mosca, mas lá o atamancaram como puderam. Na forma do costume de todas as naus da Índia, alijou-se ao mar muita carga e o navio ficou mais boeiro e doce de leme. Enfim, a 16 de Julho, ao meio-dia, achavam-se na latitude das ilhas de Tristão da Cunha, porém muito a leste; daí soltaram o rumo direito a Cabo Negro. Enquanto se aproxima lentamente o galeão dos sossegados mares tropicais, vamos nós informar o leitor do que se passa naquele recinto tão acanhado para tanta gente, e que tantos pecados albergava! Ninguém está contente com a sua sorte neste mundo de enganos e tribulações. O mandamento da lei de Deus que proíbe desejar a mulher do próximo, foi duplamente violado a bordo do galeão com público escândalo, e quem sabe também quantas vezes o foi em particular! Porém o castigo do Senhor severo e pronto, não se fez esperar, caiu logo sobre a cabeça dos pecadores como uma espada de justiça, aplicando-lhes a pena de Talião. Luís de Brito, que casara por paixão com Dona Madalena, começou agora a achar mais graça nos olhos pequenos, mas negros e vivos de Aton, do que no meio olhar das azuladas pupilas de sua esposa; mais donaire no talhe esbelto porém breve de Catarina, do que na figura alta e majestosa da sua consorte; mais encanto no pezinho acanhado da chinesa, do que no pé comprido e estreito (como o da Vénus antiga) da filha de Rui da Cunha. Mas em compensação Dom Martinho, que desposara Catarina sem nome de família, sem dote, sem protectores, cativado unicamente da sua beleza, também descobria agora mais formosura no rosto oval de Madalena do que nas faces proeminentes da filha do Vieira; mais formosura nos cabelos louros cendrados da esposa de Brito do que nas bastas negras madeixas da sua própria mulher; mais mimo na alva cútis da portuguesa do que no gracioso moreno da oriental. E sem se aperceber de tal. Madalena de Brito encontrava um prazer novo para ela na conversação do príncipe de Arracam, que lhe referia as façanhas cavaleirosas de seus reais avós, e as próprias no mar e na terra; enquanto seu marido, desde que passara a lua-de-mel, só lhe falava do resgate do ouro e do marfim, do preço da pimenta e da canela; contemplava o rosto bronzeado de Dom Martinho com todo o brilho do sol oriental, e mau grado seu achava-o mais varonil e franco do que o do negociante-guerreiro, outrora branco de neve, mas hoje amarelecido ou antes esverdeado pelas febres de Moçambique e Sofala; enfim, lastimava no íntimo do coração aquele príncipe indiano por haver desposado a filha de uma tancar (barqueira), pois sempre ouvira dizer a seus parentes navegadores que era aquela a última raça das mulheres chinesas. Ai! Também Catarina fazia comparações entre Luís e Martinho, e não eram elas nada favoráveis ao seu consorte! O orgulho do príncipe humilhava a descendente dos marinheiros tornados negociantes em Macau, ao passo que considerando-se europeia por seu pai, sentia em si uma certa superioridade sobre o índio, embora ele fosse neto de reis. Brito era português de sangue puro; e esta lembrança seduzia Aton, que se sentia atraída para ele por um íman desconhecido. Era amor, amor adúltero o que sentiam estes quatro entes? Talvez. Quem o poderá dizer hoje, quando nada resta dos seus cadáveres? Só Deus o sabe. Porém, cada um dos quatro compreendeu o que se passava no coração ou, pelo menos, no espírito dos outros três. Desde esse dia as mulheres odiaram-se com todo o rancor de duas rivais, com o torpe rancor de adúlteras! Os homens mediram-se com furor, e sem dizerem de parte a parte uma palavra levaram a mão ao punho das espadas! Dona Leonor, por sua prudência, pôde evitar um conflito vergonhoso entre Catarina e Madalena. O vice-rei impediu que as espadas saíssem das bainhas e que houvesse a bordo um duelo de morte entre Dom Martinho e Brito. Já então o mês de Julho tocava o seu termo, e ao descair de uma calmosa tarde dos trópicos, bradou da gávea do traquete o sota-gajeiro: -Terra por barlavento da proa! Era o focinho do Cabo Negro onde jaz o último padrão das descobertas africanas de Diogo Cão. Todos ficaram contentes a bordo, que vinham lassos da viagem, almejando repousar alguns dias e refazer-se de mantimentos e aguada. Pouco porém durou a alegria, porque o mesmo marinheiro tornou a bradar da gávea, anunciando outra nova bem diversa: -Duas velas por gilavento! -Grandes ou pequenos barcos? -perguntou o capitão. -Grandes e veleiros; parecem-me naus de ingreses ou framengos. -Toca a postos! -gritou o capitão-mor. -A minha espada! Tragam-me a minha espada! -disse o vice-rei que mal podia ter-se nas pernas, por efeito da doença. -As nossas espadas! -acrescentaram os dois cavaleiros rivais, esquecendo momentaneamente os seus agravos para se unirem na defesa do pavilhão nacional. As dez peças (cinco por banda) da tolda, foram logo guarnecidas com soldados e moços; outras tantas que havia na coberta foram confiadas aos passageiros e escravos; e as suas meias-esperas da popa (guarda-lemes) ficaram confiadas exclusivamente aos fidalgos. Os pajens conduziam a pólvora do paiol para a bateria; e as mulheres, inclusive as de alta nobreza, encarregaram-se de acudir com água aos combatentes sequiosos. Em menos de meia hora tudo estava a postos e lestes; e já se enxergavam distintamente os cascos dos dois navios e as bocas das suas peças: eram naus de guerra e procuravam o galeão. -Icem a bandeira e firmem-na com um tiro! -bradou o capitão. Assim o fez. E os fogachos de dois tiros, seguidos do fumo e ribombo, responderam a este convite, em companhia do pavilhão neerlandês, que subia vagarosamente ao tope das naus. O combate era inevitável! V. Guerra e Peste As duas naus holandesas, mais sólidas, mais veleiras e mais bem artilhadas do que a nossa, chegaram com todo o pano à proa do Enxobregas; e manobrando com acerto, passou uma delas a rastejar com o gurupés do galeão, que também as procurava, e prolongou-se-lhe com o costado de estibordo, enquanto a outra passando por bombordo lhe deu uma banda, e meteu em seguida a virar. O Enxobregas achava-se entre dois fogos, e conhecia a vantagem que lhe levavam os contrários; mas também contava muito com o valor da sua gente, principalmente se chegassem ã abordagem, em que a valentia pessoal se podia experimentar nas armas brancas. O capitão Morais mandou pois diminuir de pano, o que se executou sem confusão, ã voz de Pêro Dourado, que estava à cadeira. O galeão ficou só em gáveas, e desembaraçado o convés das escotas e amuras dos papa-figos. Em seguida ordenou bandas de fogo por um e outro bordo contra as naus inimigas, mas estas respondiam-lhe com outras bandas, e em seguida furtavam-lhe o costado virando por d'avante, com o que aproveitavam toda a sua artilharia, e não recebiam em cheio a metralha dos portugueses. Ligeiras, com todo o seu velame largo, executavam esta manobra com presteza, enquanto o Enxobregas apenas guinava a um lado e a outro, com pesados movimentos; porém, a guarda da sua bandeira estava confiada ao braço e ao estoque do vice-rei; a defesa da varanda e chapitéu da popa a cargo do ex-capitão de Cananor; prontos os primeiros a abordar, estavam no castelo de proa, de espada na mão, Dom Martinho e Luís de Brito. Os outros fidalgos conservaram-se na tolda, para defesa daquele lugar e serviço dos guarda-lemes. O mestre e o contramestre vigiavam os portalós; e os artífices tapavam os rombos que fazia no costado a artilharia inimiga, e acudiam a atalhar qualquer incêndio que se ateava em alguns dos muitos combustíveis de bordo. Vendo, porém, o capitão, depois de meia hora de combate, que o plano dos contrários era meter-lhe o galeão a pique, sem nunca chegarem à abordagem, mandou içar de novo as velas que amainara, e ainda meter monetas; porém um tiro certeiro do inimigo cortou as ostagas do traquete, e veio abaixo a verga, que se partiu em dois pedaços, ficando empachada a artilharia da proa com a vela e os respectivos cabos. Estava pois perdida a última esperança de dar caça aos holandeses. A noite, entretanto, tinha fechado de todo, e a cacimba tornava opaca a atmosfera; mas os contendores ainda se viam, e o capitão formando à pressa conselho com os mais prudentes e autorizados oficiais e passageiros do galeão, propôs-lhes deitar direito à costa, para reparar a avaria que os bata vos se não chegavam à abordagem, e não era possível caçá-los! Assim se resolveu, e o piloto mandou arribar para o norte. Não tardou que os holandeses percebessem a manobra; e julgando que os nossos lhe fugiam por medo, fizeram força de vela nas suas águas, e em pouco tempo estavam na alheta do Enxobregas. Então trabalharam deveras as meias-esperas da popa, e com acerto, que um pelouro seu quebrou o gurupés da nau que vinha mais próxima. Deixando esta para ré, a outra nau holandesa veio prolongar-se com o galeão, tentando, talvez, abordá-lo finalmente. Porém sucedeu-lhe um horrível sinistro! Ateou-se-lhe o fogo a bordo com uma rapidez e intensidade pasmosas, e em breves instantes toda a nau era chamas! O Enxobregas deitou à popa arrasada, para fugir do contacto deste inimigo, agora perigosíssimo; e a sua gente sentiu uma temerosa explosão, e observou com espanto fazer-se em pedaços o valente navio contrário, ao som dos gritos de desesperação que soltavam na derradeira agonia os seus tripulantes. Os marítimos são sempre generosos. Qualquer acreditaria facilmente que o primeiro movimento do galeão Enxobregas seria dirigido sobre a nau holandesa, que com a perda do gurupés, chave da mastreação, perdera os outros mastros, ficando rasa, e portanto impossibilitada de navegar. Seria uma conquista fácil. Mas não se tratou disso, em vista da perda da outra nau; pelo contrário, toda a guarnição portuguesa, a uma voz, requereu que se lançassem ao mar os batéis, e que se salvassem da água os inimigos que houvessem escapado do fogo. Não sucedeu assim aos nossos da nau Chagas, em 1591, pois que ardendo-lhe a embarcação, quando combatiam com três vasos ingleses, foram recebidos nas pontas das lanças britânicas, e muitos deles assassinados, entre as vagas do oceano! O esquife e os batéis desceram com efeito ao mar, e os marinheiros à porfia se lançaram a eles para irem salvar os náufragos. Com grande trabalho ainda conseguiram trazer para bordo do galeão uma dúzia de infelizes, mas todos eles mutilados, e dos quais nem um só escapou à morte, proveniente das feridas. Depois dirigiram-se, seguidos do galeão, para a outra nau, arvorando bandeira branca, e sem resistência se apossaram dela, desarvorada, e que já se ia a pique, com a muita água que fazia. Cento e doze prisioneiros, entre oficiais, soldados e maruja, entraram a bordo do Enxobregas, e foram aí muito bem tratados, principalmente os feridos. A perda dos portugueses fora pequena, em relação ao encarniçamento do combate. Dois mortos e onze feridos, tudo marinheiros e escravos. Dos holandeses perdera-se o almirante, e mais de duzentos tripulantes da frota. Quanto às suas embarcações, se uma se espalhara em pedaços sobre as ondas, como vimos, a outra não tardou em submergir-se nas águas! Assim terminou esta renhida peleja; e o galeão seguiu a sua rota directamente para Angola, pois que, desassombrado de inimigos, tinha ocasião de deitar acima uma nova verga de traquete, em lugar da que se partira. Seguindo ao longo da costa de África, em distância de cinco léguas dela avistaram as barreiras escalvadas, onde o mar rebenta com fúria ao sul da Angra do Negro (hoje chamada baía de Moçâmedes); depois o morro do Sombreiro, extremidade meridional da baía de Benguela, onde começava a prosperar uma colónia portuguesa, fundada aí em 1617, e que se tornou em cidade muito comercial, mas assaz doentia; em seguida enxergaram o morro de Benguela-a-Velha, que dá ideia do Cabo Espichel, na nossa costa, após o Cabo Ledo (bem pouco ledo que ele é!) E logo a ponta da Palmeirinha, e a ilha de Luanda, e a cidade de S. Paulo. Bordejando, dobraram a ponta da ilha e surgiram em frente da feitoria, onde então se despachavam os negros para o Brasil. Do outro lado via-se a cidade, adornada de bandeiras e galhardetes, por ser o dia 15 de Agosto, terceiro aniversário da restauração de Luanda, do poder dos holandeses, por Salvador Correia de Sá e Benevides. A maior parte da tripulação e passageiros, escoltando os cativos holandeses, desembarcou pouco depois de amarrado o navio, e dirigiu-se ao palácio do governo, donde em companhia deste, do venerável bispo, cónegos e mais eclesiásticos da sé de Angola e Congo, com acompanhamento também de muito povo curioso, foram render graças a Deus e à Virgem Santa de os trazer até ali a salvamento, e com perda dos inimigos da religião católica, ante o altar de Nossa Senhora da Assunção, que se festejava nesse dia, e que dera sobrenome à cidade. A noite passou-se em folgares; mas logo na manhã seguinte se tratou de reparar o galeão, para seguir melhor aparelhado na volta de Lisboa de que viera até ali, tanto no que dizia respeito à navegação, como ao encontro de inimigos, porém a carneirada, que nesse ano caiu com imensa força sobre Angola, começou a dizimar a gente da nau, a tal ponto que, uns mortos, outros doentes, tiveram que deixar todo o carrego das obras de bordo aos artífices da cidade e gente das lanchas costeiras. Todavia, o fabrico progrediu, Deus sabe como, é verdade!, e por meados de Outubro estava a nau aparelhada, alcatroada e pintada. Parece-nos que o leitor já terá notado, com desprazer, que abandonássemos por tanto tempo as personagens desta veracíssima crónica por quem, seguramente, mais se interessa. Não é assim? É, decerto! Mas não os esqueceu o cronista... Eles é que dissimularam, os quatro adúlteros, seus pecaminosos desejos, e os criminosos planos, até à chegada a terra. Logo que desembarcaram em Luanda mostraram, todavia, que não havia esquecimento de injúria, nem menos ódio de parte a parte; porém, o velho Mascarenhas fazia vigiar de contínuo os dois mancebos, e Dona Leonor não perdia de vista as jovens rivais. Além disto, Madalena enfermou com o mal da terra, e como o seu estado dava sérios cuidados, tiveram ainda de se reprimir' por mais algum tempo os dois implacáveis inimigos. Aton, a chinesa nascida sob o trópico e habituada a viver nos climas não menos ardentes da Índia, era talvez a única pessoa, das que aportaram a Angola no galeão Enxobregas, isenta do menor ameaço de carneirada; pelo contrário, estava nutrida, rosada, muito mais formosa, enquanto a sua rival pálida, abatida, se consumia presa a uma febre lenta mas terrível. Luís de Brito, o ingrato, o infiel, esquecia a esposa que agonizava num leito de dores, para só se lembrar do seu amor e da sua vingança... mas já menos desta do que daquele! Era cavaleiro e brioso, sim; mas a causa da projectada vingança estava prestes a sumir-se, e o alvo do amor cada vez mais belo, mais esplêndido de atractivos! Dom Martinho é que estava mais do que nunca empenhado em arrancar a vida ao fidalgo português, porque a sua paixão por Madalena esfriara, vendo-a no leito da morte, sem cor, sem fala, sem movimento -sempre era amor de um índio! -e voltava de novo a adorar a ultrajada esposa, que o repelia com desprezo, e amava ternamente o quase viúvo da sua rival. A febre do amor e da vingança, junta à febre endémica do país, havia prostrado também no leito os dois cavaleiros, quando Madalena deu o último suspiro. A quem achar prosaica esta morte da filha de Rui da Cunha, lembraremos que não foi mais poética a do apaixonado poeta da Menina e Moça, que também se finou da carneirada em S. Jorge da Mina. Rui da Cunha e Leonor, desesperados pela morte da sua filha querida, instaram com o governador de Angola para que obrigasse a ficar na terra o que eles chamavam assassino de sua filha; porém aquele, apesar de amigo velho da família Cunha, só lhe prometeu cumprir os seus desejos, no caso que Luís de Brito desse algum pretexto para se fazer tal violência. O pretexto, e grave, não se fez esperar por parte do recente viúvo. Nas vésperas da partida do galeão, e achando-se já restabelecido das febres que sofrera, encontrou no largo do Palácio o seu rival e a sua amante, que vinham de visitar o governador; e furioso de ciúme, de raiva, acometido de súbito delírio, arremessa-se a Dom Marinho, separa-o da esposa, arranca-lhe a gorra, rasga-lhe o peitilho, e sacode-o pelas pontas de seus compridos bigodes! Isto foi rápido como o pensamento, e portanto impossível de prever e de evitar. O governador, que estava no balcão central do palácio, gritou para a sua guarda que prendesse o agressor; e antes que Dom Martinho tivesse tempo de desembainhar a espada, estava Luís de Brito manietado e interpunha-se entre ambos uma barreira de corpos humanos. -Sangue! Sangue! -bradava o príncipe índio, de espada em punho, diante das janelas do palácio. -Justiça se fará! -respondeu energicamente o governador. A moda dos duelos já tinha acabado nesse tempo entre os portugueses; e nunca mais voltou, a sério, até hoje. Deus louvado! Como se vê estava achado o pretexto e mais do que pretexto, para reter em Angola a Luís de Brito. Rui da Cunha e sua esposa criam haver vingado a morte de uma filha querida; e posto que enfermos, como a maior parte dos seus companheiros de viagem, embarcaram mais satisfeitos do que o fariam a par daquele odiado genro. Dom Martinho é que não tornou a ver um sorriso nos lábios de sua esposa. Cada vez mais fria para com ele, a chinesa, que escapara à carneirada, não evitou o spleen (como hoje se diria) e tornou-se quase uma estátua. Ao príncipe, injuriado pelo rival e desprezado pela mulher, lembrou-lhe o suicídio, mas esse meio ainda não era então moda também! Quem escapou à febre, embarcou por fim no galeão, em dia de Finados, 2 de Novembro de 1651, mas quase toda a gente mais para morrer do que para trabalhar! Quanto a Luís de Brito, segundo dizia o governador, iria dar um passeio, pouco higiénico, pelas margens do Cuanza e demorar-se em Massangano por algum tempo, onde provavelmente se finaria de doença. Postas as âncoras em cima, soltas as velas e dando e recebendo o costumado Boa viagem, lá se foram os nautas afastando de Luanda no malfadado galeão Enxobregas, que singrava quatro a cinco milhas por hora, aproando ao nor-noroeste e noroeste, com vento largo do quadrante sudoeste, e amura a bombordo. À vista da ilha de Ascensão lançaram ao mar com todas as solenidades militares e religiosas o cadáver do velho Dom Filipe de Mascarenhas, a quem Deus destinara que não tornasse a ver a pátria, depois de seis anos de ausência! Melhor foi assim que evitou os trabalhos que ainda estavam reservados para os seus companheiros de viagem. Até ao Equador tiveram bom tempo e vento na vela; mas aí começaram-lhe as calmas, depois as trovoadas; e quando principiavam a convalescer das febres de Angola que apodrecia nos tonéis, a ponto de fazer algumas vítimas e deixar muitos estropiados. Quando chegaram pela altura de Cabo Verde, já não havia a bordo mais do que cento e dez almas, mas nem cinquenta corpos em estado de suportarem as fadigas dum temporal ou dum combate! Nestas tristes circunstâncias se aventuravam, no rigor do Inverno, a demandar o proceloso mar dos Açores, quase sempre salteado de naus de hereges ou de infiéis! Que valentias se praticam cá em terra, comparáveis a estas temeridades navais? Vereis o resto. VI. Catástrofe O mar dos Açores não afrontou o galeão, nem os piratas do Norte o insultaram naquelas paragens, pouco seguras então. Já as ilhas ficavam pela popa depois de dez singraduras, e os pilotos se faziam com a costa de Portugal, quando ao anoitecer do dia 13 de Janeiro de 1652, a gente do Enxobregas viu com assombro e terror um corpo luminoso, cuja extremidade inferior se agitava no espaço como se fosse balouçada pelo vento. -Senhor Jesus, misericórdia! -bradaram os marinheiros, caindo de joelhos no convés. -Misericórdia, que se acaba o mundo! O padre Jerónimo da Conceição dispunha-se a dar absolvição geral àqueles pecadores, quando Pêro Dourado acudiu, rindo, a sossegar os espíritos da marinhagem. O velho piloto era sabedor da sua arte, e não supersticioso. -Amigos -disse ele com voz segura -, aquilo é um cometa; não faz dano aos homens do mar. Anda longe, e não se mete connosco. Pantaleão Vaz, ainda moço, posto que já bom contramestre, também não cria em contos de bruxas, e achegando-se dos timoratos com uma boa rota, às chibatadas lhes acabou de sacudir o medo, que as palavras do piloto tinham começado a dissipar. Havelius notou neste cometa, e depois no de 1661, fortes ondulações na cauda, como antes e depois outros astrónomos afirmaram ter observado em diferentes cometas. A noite passou sem novidade, e ao primeiro alvor da manhã uma tarja negra que se enxergou no horizonte, pela proa, veio alegrar os nautas, patenteando-lhes a terra da pátria. Como é doce, ao cabo de trinta e dois meses de ausência, tendo arrostado com toda a sorte de perigos e trabalhos, avistar o país natal! E que dor, quando um contratempo protrai ou aniquila a suave esperança de pisar esse solo querido, e abraçar os parentes e os amigos! Que alegria reinava nesse momento a bordo do galeão! Quem diria que em poucas horas se iam transformar em profunda tristeza! Uma vela, duas, quatro, cinco, doze, vinte apareceram sucessivamente pela proa do galeão, saindo detrás do Cabo da Roca! E o Enxobregas estava tão perto desse Cabo que, a serem inimigos, não era possível fugir-lhes. E eram inimigos e cruéis! As meias luas de prata destacavam no fundo vermelho das bandeiras que aqueles navios arvoravam. Naus de turcos, inimigos da cruz de Cristo que hasteava o galeão português, cercavam aquela pobre gente, morta de cansaço, extenuada pelas privações. -Oh, o cometa! -exclamaram então os supersticiosos marinheiros. -Vejam se ele não anunciava desgraça! E o seu primeiro desejo foi lançarem ao mar o piloto e o contramestre, que não criam em presságios. Porém, o inimigo aproximava-se ao alcance da artilharia, mais em tom de festa do que de guerra, ao que parecia, pois vinham embandeiradas todas as naus, e na capitânia ou almiranta se tangiam ruidosamente vários instrumentos músicos. A peleja era inevitável, e o seu resultado pouco duvidoso. Vinte contra um e aqueles robustos, e este enfraquecido, tais eram as proporções da luta que se apresentava. Ali, tão perto, a pátria, a salvação: aqui, quase certa, a morte ou o cativeiro! Bastião de Morais, o dos óculos, o de forte coração, dirigiu-se à sua gente nestas concisas palavras: -Quem prefere a desonra a uma morte gloriosa, arrie o batel e vá entregar-se àqueles perros descridos. O resto ponha lestes a artilharia, as lanças ao alcance do braço e fogo sobre os infiéis. -Viva o nosso capitão-mor! -bradou uníssona toda a tripulação. -Viva Portugal, e morramos todos com honra pelo serviço de Deus e de el-rei! -Eis aqui quem há-de ajudar-nos -acrescentou o capelão alçando no ar um crucifixo. -Ele morreu por nós; demos pois a vida pela sua santa religião! -A eles, que a capitânia inimiga já está pelo nosso través! -Fogo! E o galeão Enxobregas, alquebrado, fazendo água, com uma guarnição diminuta, foi o primeiro a travar tão desigual batalha! É que os seus tripulantes e passageiros sacudiram de si nesse momento solene e decisivo a doença, a debilidade, o temor da morte, e tornaram-se gigantes. As próprias mulheres, esquecendo a fraqueza do seu sexo, armaram-se para o combate. Em poucos momentos tudo estava a postos, e um bem sustentado fogo vomitava sobre o inimigo uma chuva de pelouros. Gil Correia, o despenseiro imprevidente, que vinha em ferros no porão para ser sentenciado em Lisboa, quebrou as algemas e aparecendo na tolda, de espada em punho, pediu ao capitão-mor, pelas chagas de Cristo e por sua Mãe Maria Santíssima, que o deixasse morrer pelejando contra os inimigos da fé, ao lado dos seus camaradas, Todos louvaram o nobre proceder do despenseiro, e a licença foi concedida sem delonga. Dona Catarina, empunhando também um montante, e chispando fogo dos negros e brilhantes olhos, parecia o anjo do extermínio alçado sobre o chapitéu do galeão, Alguns passos distante dela, o príncipe Dom Martinho, dirigia o fogo das esperas da tolda e mostrava amplo prazer, contemplando o quadro de destruição que se desenrolava ante seus olhos, Rui da Cunha estava à bandeira, e Dona Leonor acompanhava-o, não com lágrimas que enfraquecessem o ânimo do esforçado cavaleiro, mas com palavras de consolação e esperança, e brandindo igualmente uma espada, O capitão corria o navio de popa a proa, de um bordo a outro, visitando ora o convés, ora a coberta e determinando fogo contínuo em ambas as baterias, a bombordo e a estibordo ao mesmo tempo, porque as galés e as naus dos turcos estreitavam o galeão em um círculo infernal. Todos faziam o seu dever; mais do que o seu dever, prodígios de heroicidade! Velhos, moços, livres, escravos, crianças, mulheres rivalizavam em coragem! Porém o combate não podia ser de longa dura, pela diferença numérica dos contendores e das bocas de fogo. Umas das maiores naus lançou os arpéus da abordagem ao galeão, e a gente do Enxobregas deixando de responder ao fogo dos outros vasos contrários, correu toda à borda a que se encostara o turco; e enquanto os maometanos, de alfange na mão, saltavam às enxárcias e ao convés da nau portuguesa, os nossos abriam com a espada e com a lança, caminho para a embarcação inimiga, pelas portinholas da sua artilharia; e davam um combate na coberta inferior daquele alteroso navio, ao mesmo tempo que não menos cruenta batalha se pelejava na tolda do Enxobregas. -Rende-te! Era o grito furioso que se escutava naqueles recintos, ora proferidos em árabe, ora em português. Aqueles encarniçados inimigos não poupavam mutuamente nenhum meio de se hostilizarem, por mais horrível que fosse. Os turcos buscavam incendiar o galeão, que não supunham fácil de apresar, em vista da tenaz resistência que lhe opunham os nossos; e os portugueses, contando com a morte certa, faziam iguais diligências com relação à nau dos infiéis, pois queriam, à semelhança de Sansão, envolver na própria ruína a destruição dos contrários. Mouros e cristãos realizaram os seus desejos. O fogo apareceu simultaneamente nas duas naus, rompendo pelas escotilhas em espadanas de fogo, lambendo os mastros e enredando-se nos ovéns da enxárcia. Nem a presença de tão horrível quadro fez abrandar o combate. Enquanto alguns turcos acudiam a apagar o incêndio da sua embarcação, diligenciando separar-se da nossa, os portugueses, sem lhe importar com a própria ruína, perseguiam os inimigos em retirada, e obstavam à desunião dos dois vasos. Entretanto a capitânia, atravessada a pouca distância da popa do Enxobregas, começava a meter-lhe balas de coxia, que varriam o convés e a coberta. Um pelouro de trabuco varou o peito de Rui da Cunha, que vibrava a espada com a mão direita e segurava com a esquerda a driça da bandeira nacional. Baqueando sobre a varanda, e sentindo-se morrer, abraçou a querida esposa, e só teve força para lhe dizer estas palavras: -Não te deixes aprisionar pelos infiéis. E acabou! Dona Leonor, vendo o navio em chamas, abraçou-se com o cadáver do marido, e lançando-se com ele ao mar, foi acompanhar no fundo das águas e por toda a eternidade aquele de quem nunca se separara em vida. Já não restava a menor esperança de salvação, nem para os nossos, nem para aqueles que tiveram a imprudência de se aproximar tanto de homens desesperados. Banhado em sangue, no seu posto, jazia o velho piloto; e o padre Jerónimo depois de o ouvir de confissão, absolveu-o em nome de Deus, correndo em seguida a prestar as últimas consolações a mestre Fernandes, que acabava de cair também mortalmente ferido. Daí vendo abaterem-se os mastros de que o fogo se apossara e conhecendo bem que era chegada a última hora para todos aqueles pecadores, o padre subiu à borda, lançou a absolvição sobre todos os seus companheiros de um mártir do cristianismo, passou à nau contrária a meter-se no meio da refrega, com a cabeça inclinada sobre o peito, e abraçado à cruz do Redentor, achando ali poucos instantes depois a morte que buscava da mão dos infiéis. O capelão não chegou a ver o último acto deste sanguinolento drama. Sem esperanças de parte a parte, os contendores pelejavam não já como homens, nem como leões, mas como demónios! Bastião de Morais, mal ferido, ensanguentado, defendia-se só, e com a espada quebrada, contra vinte alfanges que lhe vibravam não interrompidos golpes. Dom Martinho cobria com o seu corpo o de Catarina, disputando aos sabres mauritanos o resto de vida que ainda animava aquela heroína, horrivelmente mutilada no combate. Era um quadro medonho! As naus turcas não vinham em auxílio daquela que aferrara o galeão, porque temiam o contacto do incêndio que lavrava a olhos vistos, e receavam mais ainda alguma explosão dos paióis da pólvora. Tinham-se amarado algum tanto, porque o vento e a corrente arrastavam para a enseada de Cascais os dois vasos incendiados. O povo acudia à praia armado de chuços velhos, mosquetes e espadas, para socorrer, sendo possível, os seus compatriotas do galeão, que lutavam com coragem heróica nos últimos transes de vida; porém, nenhum auxílio lhes puderam prestar, porque, antes de chegarem à terra as duas naus, que sucessivamente se iam afundando, mergulharam de todo, e foram a pique. Ainda entre as vagas, nadando com o braço esquerdo, e esgrimindo a espada com a mão direita, alguns dos contendores pelejavam um combate sem igual nos fastos da guerra; e um só destes desgraçados, cortado de mil golpes, rolava para a praia, seguro a um madeiro. Os esquifes turcos que se aproximaram do lugar daquela estranha batalha já não recolheram senão cadáveres. Pouco depois a armada do sultão fez-se ao largo, em busca de mais fácil presa. O homem arrojado à praia era um português, o Cheira-Dinheiro, único que escapou do galeão Enxobregas. Foi ele que contou os pormenores da viagem e sucessos do mesmo galeão a um frade da terceira Ordem de S. Francisco, o qual deixou escrita, mas não impressa, uma relação dos referidos acontecimentos, que por acaso nos veio à mão, vasculhando nas ruínas dum convento da Ordem, e que fielmente transportámos para este livro. Nota: Francisco Maria Bordalo (1821-1861), oficial da armada e o mais conhecido dos escritores marítimos portugueses, foi autor de Rei ou Impostor?, drama, Lisboa, 1847; artigos sobre D. Sebastião na Revista Universal Lisbonense, de 1844; Trinta Anos de Peregrinação, manuscrito achado na gruta de Camões, Macau, 1852; Um Passeio de Sete Mil Léguas, Lisboa, 1854; Eugénio, romance marítimo, Rio de Janeiro, 1846; Viagem à Roda de Lisboa, Lisboa; A Nau de Viagem, in Revista Popular, 1850-1851, em livro em 1880; Quadros Marítimos, Lisboa, 1854; in Panorama, vol. III da 3.ª série; Viagens lia África e na América, idem; D. Sebastião, o Desejado – Lenda Nacional, in Panorama de 1855; Navegadores Portugueses, idem; Navegadores Estrangeiros, idem; Ignoto Deo – Tradição Portuguesa, idem; Viagem Pitoresca à Roda do Mundo, idem; O Voador, idem. Foi colaborador de numerosas revistas e director de A Pátria (1855-1856) e autor ainda de Ensaios sobre a Estatística na África ocidental e oriental, etc., Lisboa, 1859. Escreveu duas autobiografias (uma das quais incluída por J. C. Ribeiro Viana em Folhetins de um Marinheiro) e foi biografado por Rebelo da Silva. Embora razoavelmente estudado no seu tempo, foi Fidelino Figueiredo quem em História Literária de Portugal (era romântica) lhe deu as honras, juntamente com Celestino Soares, de introdutor, em Portugal, do romance marítimo na continuação da tendência inaugurada pela narrativa De Jersey a Granville (1831), de Alexandre Herculano. Como bem sublinhou Fidelino Figueiredo, Bordalo é, apesar de tudo, o grande oceanista português, influenciado provavelmente, por Fenimore Cooper cujas obras estavam traduzidas em Portugal desde 1838. Ao invés do que sucede com Celestino Soares, Francisco Maria Bordalo urde as suas intrigas com gente de terra ocasionalmente a bordo do navio que se transforma num simples cenário romanesco. Fidelino completou a análise do comportamento dos escritores perante o mar nos ensaios de Torre de Babel. João Gaspar Simões também tratou o tema do romance marítimo, quer em artigos dispersos, quer na História do Romance Português. Os críticos modernos têm prestado pouca atenção a Francisco Maria Bordalo.  J. A. de Macedo, O Oriente, poema.